A produção em história das disciplinas escolares pela escrita de

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Revista Brasileira de Histria da Educao

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Revista Brasileira de Histria da EducaoRevista Conselho Diretor Wenceslau Gonalves Neto (UFU); Jos Gonalves Gondra (Uerj); Rosa Lydia Teixeira Corra (PUC-PR); Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (UFPB). Comisso Editorial Bruno Bontempi Junior (USP) Lucia Maria da Franca Rocha (UFBA) Helosa Helena Pimenta Rocha (Unicamp) Flvia Obino Corra Werle (Unisinos) Secretria Patrcia Aparecida do Amparo Conselho Consultivo Membros nacionais: Ana Waleska (PUC-RIO); Cinthya Greive Veiga (UFMG); Ana Magaldi (Uerj); Diana Vidal (USP); Maria Rita de Almeida Toledo (Unifesp); Marlos Bessa (UFJF); Claudia Alves (UFF); Cleonara Schwartz (Ufes); Maria Betania Barbosa Albuquerque (Uepa); Carlos Humberto Alves Corra (Ufam); Maria Nepomuceno (UCG); Elisabete Madureira (UFMT); Claudia Engler Cury (UFPB); Anamaria Gonalves Bueno de Freitas (UFS); Jacy Menezes (Uneb); Adriana P. Silva (Uepe); Silvia Brito (UFMS); Marias das Dores Daros (UFSC); Carlos Eduardo Vieira (UFPR); Eliane Peres (UFPEL); Terezinha Oliveira (UEM); Rosa Ftima de Souza (Unesp); Jos Gerardo Vasconcelos (UFC); Cesar Augusto de Castro (Ufma). Membros internacionais: Adrian Ascolani (Argentina); Frank Simon (Blgica); Jaime Caiceo Escudero (Chile); Alberto Martinez Boom (Colmbia); Gabriela Ossenbach (Espanha); Karl Lorenz (EUA); Jean Hbrard (Frana); David Crook (Inglaterra); Paolo Bianchini (Itlia).

Publicao quadrimestral da Sociedade Brasileira de Histria da Educao SBHESociedade Brasileira de Histria da Educao SBHE A Sociedade Brasileira de Histria da Educao (SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, uma sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurdica de direito privado. Tem como objetivos congregar profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docncia em Histria da Educao e estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercmbios com entidades congneres nacionais e internacionais e especialistas de reas afins. filiada ISCHE (International Standing Conference for the History of Education), a Associao Internacional de Histria da Educao. Diretoria Nacional Presidente: Wenceslau Gonalves Neto (UFU) Vice-presidente: Jos Gonalves Gondra (Uerj) Secretria: Rosa Lydia Teixeira Corra (PUC-PR) Tesoureiro: Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (UFPB) Diretores Regionais Norte: Titular:Snia Maria da Silva Arajo (UFPA) Suplente:Valria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel (Ufam) Nordeste: Titular:Antonio de Pdua Carvalho Lopes (UFPI) Suplente:Maria das Graas Loyola Madeira (Ufal) Centro-Oeste: Titular:Diane Valdez (UFG) Suplente:Elizabeth Figueiredo de S (SME-Cuiab) Sudeste: Titular:Regina Helena Silva Simes (Ufes) Suplente:Ester Buffa (Ufscar/Uninove) Sul: Titular:Norberto Dalabrida (Udesc) Suplente:Marcus Levy Albino Bencostta (UFPR) Secretaria Revista Brasileira de Histria da Educao Faculdade de Educao da USP Avenida da Universidade, 308 Bloco A Sala 231 05508-900 So Paulo-SP Tel.: (11)3091-3195 ramal: 8294 E-mail: [email protected]

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Editora Autores Associados

IRESIEBancodeDatossobreEducacin Iberoamericana http://132.248.192.241/iisue/www/index.html LatindexSistemaRegionaldeInformacin en Lnea para Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal http://www.latindex.unam.mx ClaseBasededatosbibliogrficade revistas de cincias sociales y humanas http://dgb.unam.mx/clase.html Verso on-line/version online: http://www.sbhe.org.br/

ISSN 1519-5902

maio/agosto

2010

no 23

HApoio:

Revista Brasileira de

ISTRIA da EDUCAOSBHE

Sociedade Brasileira de Histria da Educao

Revista Brasileira de Histria da Educao, n. 23, 272 p., maio-ago. 2010.A RBHE tem o objetivo de divulgar a produao cientfica nacional e internacional sobre Histria e Historiografia da Educao, que se revele de interesse para as grandes reas de pesquisa em Educao e em Histria, abrindo novos horizontes de discusso e estimulando debates interdisciplinares. Revista Brasileira de Histria da Educao, SBHE, Ed. Autores Associados, SPCampinas, 2001 Quadrimestral Publicao da Sociedade Brasileira de Histria da EducaoISSN 1519-5902

EditoRA AutoREs AssociAdos LtdA.Uma editora educativa a servio da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de oliveira, 901 | Baro Geraldo | cEP 13084-008 campinas-sP | telefone/Fax: (55) (19) 3289-5930 e-mail: [email protected] | catlogo on-line: www.autoresassociados.com.br conselho Editorial Prof. casemiro dos Reis Filho Bernardete A. Gatti Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia diretor Executivo Flvio Baldy dos Reis coordenadora Editorial rica Bombardi Assistente Editorial Rodrigo Nascimento Reviso Melissa Barros diagramao e composio MM Design Projeto Grfico rica Bombardi Arte-Final Rodrigo Nascimento impresso e Acabamento Grfica Paym

Sumrio

EditoRiAL Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas de Minas Gerais do sculo XiX Marcus Vincius Fonseca o problema do ensino da leitura no ltimo quartel do sculo XiX: Portugal, Brasil e o debate sobre o par decadncia/atraso Roni Cleber Dias de Menezes Las convenciones internacionales del Magisterio Americano de 1928 y 1930. Circulacin de ideas sindicales y controversias poltico-pedaggicas Adrin Ascolani Povoar o hinterland: o ensino rural como fronteira entre estatstica e educao na trajetria de teixeira de Freitas Alexandre de Paiva Rio Camargo inspeo escolar e as estratgias de demarcao de espao de poder e autonomia profissional (1912-1914) Geisa Magela Veloso Associao sul Rio-Grandense de Professores e Associao catlica de Professores: apontamentos sobre a organizao do professorado nas dcadas de 1930 e 1940 Adriana Duarte Leon Giana Lange do Amaral

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A Vitria Colegial: registros de sucesso escolar nos anos 1950 Miriam Waidenfeld Chaves A produo em histria das disciplinas escolares pela escrita de pesquisadores brasileiros Mariana Cassab

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REsENHAs Cinco estudos em histria e historiografia da educao Suzete de Paula Bornatto cadernos vista: escola, memria e cultura escrita Marlia Gabriela Petry Glria Cristina Maciel Moreira 253

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oRiENtAo Aos coLABoRAdoREs

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Contents

EditoRiAL Profile of householders and family groups with children in the schools of Minas Gerais in the 19th century Marcus Vincius Fonseca the problem of the education of the reading in the last quarter of 19th century: Portugal, Brazil and the debate on pair decline/delay Roni Cleber Dias de Menezes the international convention of the American teachers from 1928 to 1930. circulation of syndical ideas and political and pedagogical controversies Adrin Ascolani Populate the hinterland: rural education as a border line between statistics and education in teixeira Freitass trajectory Alexandre de Paiva Rio Camargo school inspection and strategies to set the limits of power space and professional autonomy (1912-1914) Geisa Magela Veloso

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Rio Grande do sul state teachers Association and catholic teachers Association: annotations on teachers organization in the 1930s and 1940s 170 Adriana Duarte Leon Giana Lange do Amaral

A Vitria Colegial: records of school achievements in the 1950s Miriam Waidenfeld Chaves the production in the history of school subjects by the writings of Brazilian researchers Mariana Cassab Book REviEw Cinco estudos em histria e historiografia da educao by Suzete de Paula Bornatto cadernos vista: escola, memria e cultura escrita by Marlia Gabriela Petry Glria Cristina Maciel Moreira GuidEs FoR AutHoRs

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Editorial

temos o prazer de apresentar a edio n. 23 da Revista Brasileira de Histria da Educao! Este nmero se abre com o artigo de Marcus Vincius Fonseca, Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas de Minas Gerais do sculo XiX. Procurando aproximar histria da educao e estudos demogrficos, o pesquisador lida com fontes provenientes de contagem censitria, notadamente, as listas nominativas de habitantes, produzidas em Minas Gerais nos anos de 1830. A partir de aspectos como posse de escravos, ocupao dos chefes de domiclio e composio dos grupos familiares, Fonseca classifica os domiclios cujas crianas frequentavam escolas de instruo elementar e destaca a ligao que determinados segmentos da populao, tais como os negros livres e as mulheres chefes de famlia, tinham com a escola. Roni Cleber Dias de Menezes apresenta o artigo O problema do ensino da leitura no ltimo quartel do sculo XiX: Portugal, Brasil e o debate sobre o par decadncia/atraso. Neste, investiga aspectos de um dilogo entre Portugal e Brasil, na segunda metade do sculo XiX, em torno do ensino da leitura, articulado a um programa mais vasto de redimensionamento da tomada de conscincia do tema decadncia/ atraso nas duas sociedades. Para tanto, aborda a propagao do mtodo de ensino da leitura Joo de deus como um empreendimento que incorporava o desejo de estancar a propalada decadncia portuguesa eRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 9-11, maio/ago. 2010 9

Editorial

diminuir a distncia que separava Portugal dos pases mais adiantados da Europa. A pesquisa abrange, ainda, os itinerrios dos divulgadores desse mtodo no Brasil, considerando as dimenses dessa problemtica lusitana dentre os esforos da jovem nao para integrar a marcha civilizatria do mundo ocidental. Em Las convenciones internacionales del magisterio americano de 1928 y 1930. Circulacin de ideas sindicales y controversias polticopedaggicas, o pesquisador argentino Adrin Ascolani aborda dois congressos de professores havidos na Amrica Latina na primeira metade do sculo XX: a I Convencin Internacional de Maestros (Buenos Aires, 1928) e a II Convencin Americana de Maestros (Montevideo, 1930). destaca, nos debates e manifestaes de antagonismos ideolgicos, a tenso entre a educao escolar e as expectativas de diversos atores sociais, fossem reformistas ou conservadores. Baseado na documentao desses congressos e nas reportagens em peridicos, Ascolani analisa com muita propriedade os consensos, dissensos e confrontos que povoaram os dois eventos e que persistiram, nas dcadas seguintes, em destaque nas pautas dos debates pedaggicos e poltico-educacionais na Amrica Latina. Alexandre de Paiva Rio camargo participa deste nmero com o instigante artigo Povoar o hinterland: o ensino rural como fronteira entre estatstica e educao na trajetria de Teixeira de Freitas. Nele, investiga a trajetria ascensional dessa personagem no comando das estatsticas nacionais e no debate sobre a educao na Era vargas (1930-1945), interpretando o seu investimento no campo educacional como uma estratgia de converso dos capitais sociais j acumulados no Ministrio da Educao (MEC) e no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). Analisa, alm disso, as principais ideias do estatstico a respeito do ensino rural, e sua recepo entre os contemporneos, pretendendo contribuir para a compreenso das relaes institucionais entre estatstica e educao no perodo. inspeo escolar e as estratgias de demarcao de espao de poder e autonomia profissional (1912 1914), de Geisa Magela Veloso, trata da resistncia inspeo escolar de uma professora primria e um diretor de grupo escolar de Montes Claros/MG, nas primeiras dcadas do sculo XX. Utilizando como fontes correspondncias oficiais, relatrios10 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 9-11, maio/ago. 2010

Editorial

de inspeo e peridicos, a pesquisadora explora conceitos e mtodos da histria cultural, buscando, nos discursos que documentam esses embates, representaes, tais como, a boa professora e o bom ensino. Em Associao sul Rio-grandense de Professores e Associao catlica de Professores: apontamentos sobre a organizao do professorado nas dcadas de 1930 e 1940, as autoras Adriana duarte Leon e Giana Lange do Amaral apresentam os modos de atuao dessas entidades professorais da cidade de Pelotas/Rs. As fontes utilizadas so livros de atas e peridicos das Associaes, que, segundo as autoras, por sua representatividade e desempenho na valorizao do professorado, cumpriram papel de relevo na consolidao da profisso docente em mbito local. Miriam Waidenfeld Chaves contribui com A Vitria Colegial: registros de sucesso escolar nos anos 1950, em que analisa a revista A Vitria Colegial, publicada pelo Colgio Santo Incio. A autora identifica, nos assuntos tratados nesse peridico, o clima cultural de sua poca de produo e circulao. Na materialidade da revista, revela indcios das estratgias editoriais e de escrita, que teriam atendido ao intuito de reforar nos leitores a crena no sucesso e na excelncia da vida escolar de seus alunos. Em A produo em histria das disciplinas escolares pela escrita de pesquisadores brasileiros, Mariana Cassab procura mapear a produo brasileira em histria das disciplinas escolares e oferecer ao leitor uma viso ampla da produo no campo, identificando tambm as suas nfases e lacunas. o estudo, focado em 23 artigos publicados em revistas da rea de educao, prope-se ainda a examinar seus referenciais tericos e o modo como chervel e Goodson, os autores mais frequentemente citados pelos pesquisadores brasileiros, tm sido apropriados. Este nmero conta, ainda, com as resenhas cinco estudos em histria e historiografia da educao, por Suzete de Paula Bornatto, e Cadernos vista: escola, memria e cultura, escrita por Marlia Gabriela Petry e Glria Cristina Maciel Moreira. A todos uma tima leitura! A comisso EditorialRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 9-11, maio/ago. 2010 11

Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas de Minas Gerais do sculo XIXMarcus Vincius Fonseca*1

Resumo: Este trabalho foi construdo a partir da aproximao entre a histria da educao e os estudos demogrficos sobre Minas Gerais, principalmente aqueles que tratam das questes relativas s famlias. Utilizamos como material de pesquisa um conjunto de listas nominativas de habitantes que constitui uma documentao censitria, proveniente de algumas tentativas de contagem da populao mineira, nos anos de 1830. Essa documentao foi utilizada como principal elemento para a construo de uma classificao dos domiclios que possuam crianas nas escolas de instruo elementar, permitindo a descrio dessas unidades de moradia com base em aspectos como posse de escravos, ocupao dos chefes de domiclio e composio dos grupos familiares. Procuramos tambm destacar o comportamento de segmentos mais especficos da populao que estavam ligados s escolas. Entre eles, destacam-se os grupos compostos pelos negros livres e pelas mulheres que ocupavam a chefia de seus domiclios. Palavras-chave: histria da educao; Minas Gerais; demografia; famliaescola.

*

Professor adjunto no departamento de Educao da universidade Federal de ouro Preto (Ufop).13

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Profile of householders and family groups with children in the schools of Minas Gerais in the 19 th centuryMarcus Vincius FonsecaAbstract: this work was done from an approach between educational history and other demographic studies about Minas Gerais, mainly those which treat the issues related to families. the material used for research is a range of nominative lists of inhabitants which constitute a documental search (sensus) that comes from some temptations to count the Minas Gerais population in the 1830s. this documentation was used as the main source to build a classification of householders who have children in the elementary schools allowing, in this way, the description of those house units from the aspect of their posses of slaves, the main occupation of the family head and their family groups composition, too. It also aims to highlight the behavior of specific segments of the population that were linked to the schools, among them highlights the group constituted by free black people and women who were the main head of the family. Keywords: educational history; Minas Gerais; demography; familyschool.

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IntroduoA historiografia tem se movido no sentido de aprofundar-se na temtica do desenvolvimento da sociedade mineira e isso tem resultado no estabelecimento de consideraes que apontam para a singularidade da trajetria percorrida pela regio representada por Minas Gerais. Essa singularidade pode ser percebida por meio de alguns aspectos indicados pelas pesquisas, dentre os quais merecem destaque o processo de superao da economia de monocultura, as formas de recomposio do plantel de escravos e o perfil racial das escolas de instruo elementar. o debate em torno das questes econmicas est relacionado a um processo de reviso que passou a problematizar a crise que envolveu a atividade de minerao durante o sculo Xviii. At os anos de 1980, vigorava na historiografia o entendimento de que a crise na rea da minerao teria resultado na decadncia econmica da capitania de Minas Gerais. O fato de Minas Gerais continuar possuindo o maior plantel de escravos do pas passou a ser interpretado como algo contraditrio em relao ideia de crise, ou seja, como poderia haver crise econmica em uma sociedade que utilizava em larga escala o trabalho escravo? Essa contradio passou a mobilizar pesquisas empricas que terminaram por revelar que a crise na minerao resultou em uma transformao da economia mineira, que evoluiu da atividade de monocultura para uma configurao mais diversificada. Esse perfil econmico seria uma das mais importantes caractersticas da sociedade mineira ao longo de todo o sculo XiX (Paiva, 1996) 1. O processo de constituio de uma economia diversificada um dos aspectos que diferenciavam Minas Gerais das demais regies brasileiras. o mesmo pode ser dito com relao ao processo de recomposio do plantel de escravos, que, segundo pesquisas mais recentes, no se dava exclusivamente por meio do trfico de africanos, pois uma parte desses1. clotilde Paiva (1996) desenvolveu essa abordagem a partir dos estudos pioneiros sobre esse tema desenvolvidos por Roberto Borges Martins, nos anos de 1980.15

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Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas...

trabalhadores era proveniente da reproduo no interior do prprio cativeiro. segundo Bergad (2004, p. 21):comprovaes documentais bastante evidentes demonstram que o impressionante aumento demogrfico dos escravos de Minas durante o sculo 19 resultou em grande parte da reproduo natural, e no da importao da frica por meio do comrcio escravagista. No existe nenhum outro exemplo conhecido de qualquer sociedade escravagista de grande porte na Amrica e no Caribe em que isto tenha ocorrido, e h muitssima probabilidade de que este seja um exemplo nico na histria da escravido no Brasil.

A importncia da trajetria percorrida por Minas Gerais reafirmada ainda pelo predomnio dos negros nas escolas de instruo elementar. No sculo XIX, as escolas mineiras possuam um perfil racial que se assemelhava ao da populao, ou seja, os negros representavam o grupo racial que dominava a estrutura demogrfica de Minas (inclusive na populao livre)2 e isso se reproduzia nas escolas de instruo elementar, que eram majoritariamente frequentadas por crianas negras. Esse aspecto da sociedade mineira um elemento importante para ampliar a reflexo em torno da relao entre a escravido e os processos que envolviam a escolarizao3:2. clotilde Paiva (1996) utilizou os dados censitrios referentes dcada de 1830 para estabelecer uma estimativa da populao livre de Minas e registrou o nmero de 269.916 indivduos nessa condio. Segundo ela, essa populao era composta por 59% de negros (pardos, crioulos, africanos) e 41% de brancos. Quando acrescentamos populao livre os dados que essa mesma pesquisadora apresenta sobre o plantel de escravos, 127.366 indivduos quase metade da populao livre no resta dvida quanto presena hegemnica dos negros na populao mineira. As conexes entre a escravido e os processos relacionados educao tm sido pouco problematizadas pela historiografia educacional. De modo geral, as interpretaes produzidas nesse campo do conhecimento tm-se limitado a afirmar que os escravos (muitas vezes confundidos com os negros) eram proibidos de frequentar escolas, e isso tem sido utilizado como um subterfgio para o no tratamento das diferentes formas de relao entre as prticas educativas e a escravido. A escravido foi uma das instituies mais presentes no processo de construo da sociedade brasileira e suas influncias foram disseminadas nas mais diferentes reas. A importncia daRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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Ao contrrio do que se supunha, a escravido no interferia nesta relao e no produzia impedimento para que os negros frequentassem escolas e nem tampouco diminua as expectativas deste grupo em relao ao processo de escolarizao. de certa forma, a escravido criava at mesmo impulsos contrrios, fazendo com que os negros livres buscassem a escola como uma forma de afirmao da sua condio e como demonstrao de um domnio dos cdigos de liberdade [Fonseca, 2007, p. 236].

o aprofundamento dos estudos em diferentes campos da histria vem demonstrando a singularidade do processo de desenvolvimento da sociedade mineira. Isso se tornou possvel em funo do aumento na produo de pesquisas e do refinamento dos procedimentos de anlise que, entre outras consequncias, passaram a explorar novas fontes e a considerar as questes a partir de uma abordagem interdisciplinar que utiliza procedimentos de reas como economia, demografia, educao e antropologia. Neste artigo pretendemos acompanhar essa perspectiva interdisciplinar para abordar a questo do perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas que se encontravam em processo de escolarizao, em Minas Gerais, nos anos de 1830. Este um tema importante para uma compreenso mais apurada dos processos sociais que envolveram a sociedade mineira, pois amplia as possibilidades de descrio do pblico que se encontrava nas escolas e suas estratgias de afirmao no espao social. Para elaborar um perfil dos grupos envolvidos com os processos de escolarizao, utilizamos como material de pesquisa uma documentao censitria proveniente de uma das primeiras tentativas de contagem da populao de Minas Gerais. Trata-se de um conjunto de listas nominativas de habitantes que registraram a populao de vrias localidades mineiras a partir dos fogos, que era a forma de se referir aos domiclios nos censos do sculo XiX. As listas nominativas registraram o nomeescravido precisa ser reconhecida e considerada nas interpretaes relativas ao processo de desenvolvimento da educao na sociedade brasileira.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 17

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de cada um dos membros do fogo/domiclio, a qualidade (branco, preto, pardo, crioulo, africano, ndio), a condio (livres ou escravos); a idade, o estado civil e, por ltimo, a ocupao, ou seja, a atividade exercida por cada indivduo. No campo que se refere ocupao, algumas listas registraram os indivduos que se encontravam em processo de escolarizao. Para a elaborao da anlise, selecionamos as listas que registram pelo menos 24 crianas nas escolas, pois, de acordo com a legislao mineira, esse era o nmero mnimo estabelecido pelo governo para justificar a existncia de uma aula pblica em um distrito da provncia. Esse critrio foi aplicado s listas nominativas produzidas no incio da dcada de 1830 e isso implicou a seleo das listas de 11 distritos. so eles: so Bartolomeu, cachoeira do campo, catas Altas, Passagem de Mariana, Itaverava, Redondo, Bom Fim (comarca de Ouro Preto), Matosinhos, Santa Luzia, Caet (comarca do Rio das Velhas) e So Gonalo (comarca do Rio Sapuca).

Classificao dos domiclios nas listas nominativas de habitantesos primeiros estudos sobre grupos familiares realizados no Brasil concentraram-se quase de forma exclusiva na descrio do comportamento do grupo familiar patriarcal. Este era tido como um grupo composto pelo ncleo conjugal, seus filhos, parentes, agregados e escravos, abrigados todos sob o domnio de um patriarca que se projetava como detentor do poder e da riqueza. O conceito de famlia patriarcal tinha como elemento organizador a precria constituio poltica da sociedade brasileira, que, sobretudo no perodo colonial, seria caracterizado por uma ausncia do Estado, o que teria permitido aos grandes proprietrios reter em suas mos um poder que teria feito deles senhores das terras e das gentes. O declnio do poder patriarcal tambm se explicaria por meio do Estado e estaria

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ligado a uma ao estatal mais efetiva, que passou a ocorrer a partir do sculo XiX, e teria progressivamente minado o poder dos grandes patriarcas. Esse processo teria culminado com a transformao da famlia patriarcal, que, ao perder a sua funo produtiva, teria se transformado em famlia nucleada, passando a organizar-se a partir dos laos de afeto (teruya, 2000). Este modelo explicativo que pretendia abarcar a sociedade brasileira em diferentes perodos e espaos, atualmente, passa por um processo de reviso, que vem estabelecendo uma descrio mais ampla para o processo de organizao da famlia brasileira. Para Samara (1997, p. 10):O incio desse processo de reviso dos grandes mitos e arqutipos sobre a sociedade brasileira, ocorridos nos anos 70, deu base para que os estudos realizados na dcada de 80 se caracterizassem por uma maior pluralidade. Esses vo tratar, sobretudo, do papel dos sexos, do casamento, do concubinato, da sexualidade, das famlias, dos segmentos expropriados e do processo de transmisso de fortunas. inventrios, testamentos, processos de divrcio e de legitimao, crimes, autos cveis, entre inmeros outros documentos, ao serem analisados levantaram questes e romperam enraizamentos perpetuados por geraes de estudiosos, definindo, a partir desse momento, novas imagens da famlia brasileira.

A nova imagem da famlia na historiografia brasileira passou a ser caracterizada pela pluralidade de abordagens estabelecendo limites para a forma como se utilizava o conceito de famlia patriarcal; movimentouse tambm em direo a um processo de construo de outros modelos de famlia que passaram a ser admitidos como elementos explicativos da dinmica social. O movimento de reviso promovido pela historiografia possibilitou uma compreenso mais apurada da atuao de diferentes grupos no processo de construo da sociedade brasileira. um dos aspectos mais interessantes desse processo est ligado tematizao das experincias familiares que envolviam os escravos. Este era um tema totalmente ne-

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gligenciado pela historiografia e passou a ser investigado com alguma regularidade, chegando mesmo a ofuscar as pesquisas sobre outros grupos sociais. Segundo Botelho (2004, p. 3), ironicamente, a famlia escrava acabou sendo mais estudada que a famlia livre, fazendo com que hoje tenhamos uma bibliografia mais rica nesse campo que era praticamente ignorado a poucas dcadas atrs. A ideia de famlia escrava foi importante para ampliar o nvel de compreenso sobre o processo de constituio da escravido e sobre as diferentes atitudes e possibilidades dos sujeitos envolvidos nas relaes sociais engendradas a partir do escravismo. Esse tema teve uma importncia capital na historiografia brasileira e em particular na histria de Minas Gerais, pois, como vimos, a reproduo dos escravos no interior do cativeiro passou a ser um dado importante na explicao da recomposio dos plantis de escravos. A documentao relativa s listas nominativas de habitantes desempenhou um papel fundamental na constituio do campo de estudos ligado famlia na historiografia brasileira. Essas listas foram um dos pilares pelos quais os modelos de famlia e os demais temas ligados a esta rea passaram a ser investigados. Exemplo disso o trabalho pioneiro de Maria Luiza Marclio (2000), que foi uma das primeiras pesquisadoras a utilizar este material nas pesquisas que desenvolveu sobre so Paulo4. Tendo como referncia as listas nominativas de So Paulo, Marclio (2000) realizou um importante estudo sobre demografia histrica, contribuindo para a superao da ideia de que a famlia patriarcal extensa era um modelo que se impunha para toda a capitania paulista. Ao analisar o perfil dos domiclios descritos pelas listas nominativas da passagem do sculo Xviii para o XiX, ela constatou que 78,4% de todos os grupos

4.

Esse trabalho da historiadora Maria Luiza Marclio foi publicado no ano 2000, mas trata-se de uma tese de livre-docncia apresentada em 1974, ao departamento de Histria da USP. Nos anos de 1970, Maria Luiza Marclio foi uma das responsveis pela introduo da histria demogrfica no Brasil.

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domsticos eram formados por uma nica famlia e que, mesmo considerando os escravos, a mdia de pessoas por domiclio nunca foi grande. A importncia desse material tambm pode ser constatada por meio do estudo sobre as famlias escravas elaborado por Robert Slenes (1999), que recorreu s listas nominativas como parte da documentao que utilizou para contestar a viso dos escravos como um grupo anmico que desconhecia as experincias de natureza familiar. A anlise dos domiclios registrados nas listas nominativas permitiu a constatao da frequncia com que havia relaes envolvendo escravos, e isso levou slenes (1999) a considerar que o processo de dominao vivido por esses indivduos no os impedia de construir experincias afetivas que possibilitavam o surgimento de laos familiares. Os estudos de Marclio (2000) e Slenes (1999) so dois bons exemplos da importncia dessa documentao para os estudos dos temas ligados famlia, mas, na verdade, h uma srie de estudos que recorrem a esse material e trazem contribuies importantes para o desenvolvimento do tema na historiografia brasileira5. Nas listas nominativas elaboradas sobre algumas regies possvel encontrar grupos que foram registrados com base nas relaes de parentesco, ou seja, as listas apresentam os domiclios assinalando as relaes entre os diferentes indivduos que neles se faziam presentes (pai, me, irmos etc.). Esse tipo de registro permite a problematizao de um conjunto de questes que dizem respeito composio dos grupos familiares e seus diferentes membros. As listas nominativas que utilizamos no possuem essa qualidade, pois esto organizadas a partir dos domiclios, mas no assinalada a condio de cada indivduo dentro do grupo, ou seja, podemos encontrar o registro de pessoas que so casadas, mas no assinalado quem so seus filhos, parentes ou agregados. A estrutura familiar no privilegiada no registro das listas nominativas que compem essa documentao.

5.

Parte desses estudos encontra-se no boletim do Ncleo de Estudos em Histria Demogrfica (NEHD): .

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Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas...

Em alguns casos, s podemos reconhecer a presena de um grupo que poderia ser definido como familiar a partir da compreenso da lgica que ordena as informaes. dessa forma, o contato com as listas nominativas torna-se fundamental para que possamos identificar relaes do tipo familiar no interior dos domiclios. Por exemplo, quando o chefe do domiclio do sexo masculino e casado, geralmente o nome da esposa aparece aps o seu e, logo em seguida, os dos filhos. Quando encontramos um domiclio em que estes eram os nicos membros, fica claro que se tratava de uma famlia que reunia um casal e seus descendentes diretos. Neste caso, mesmo quando h escravos, possvel definir o grupo familiar, pois, apesar de os escravos viverem no mesmo espao, eles no podem ser computados como membros da famlia. Em relao a isso, pode-se dizer que um dos elementos que favoreceram a universalizao da ideia de famlia patriarcal se encontra na forma de compreender as relaes entre a casa-grande e a senzala, e as prprias relaes entre os escravos. o fato de os escravos terem sido descritos como indivduos que viviam em uma situao de proximidade e ambiguidade com o grupo senhorial influenciou na construo de uma viso que os reduziu ao poder da famlia de seus senhores. Essa situao irreal, pois, embora existissem inmeras formas de proximidade entre senhores e escravos, a convivncia no espao privado no nivelava as relaes entre esses grupos. A dificuldade de definio do ncleo familiar torna-se ainda maior quando temos um conjunto de indivduos livres dos quais impossvel reconhecer relaes de parentesco, ou mesmo o tipo de relao que tinham com o grupo familiar que estava situado no interior do domiclio. Em muitos casos, encontramos um ordenamento que apresenta um casal, em seguida seus filhos e, logo aps, indivduos adultos de quem no possvel saber a situao em relao ao ncleo familiar. Isso pode ser visto neste domiclio do distrito de Caet. Isto pode ser visto no domiclio chefiado por Vitor Jos da Costa, extrado da lista do distrito de Caet, que reproduzimos a seguir:

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Quadro 1 Domiclio de CaetHabitantes victor Jos da costa Justinianna Maria Rita ignez Pedro igncio Joanna Maria do Rozrio Qualidade Condio Idade Estado Pardo Parda Parda Parda Parda Pardo Pardo Parda Parda Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre 38 38 14 10 07 06 03 02 40 casado casada solteira .... .... ... ... ... solteira Ocupao Alfaiate Rendeira Rendeira Aprende a rendeira .... .... Aprende a ler .... Fiadeira

No interior desse domiclio temos um casal com um conjunto de indivduos que foram listados por idade e, provavelmente, eram descendentes diretos de victor Jos da costa e Justinianna. o ltimo membro Maria do Rozrio, que tem idade superior do casal, mas no possvel definir o tipo de relao que tinha com o grupo. A ocupao de Maria do Rozrio est em sintonia com o tipo de funo produtiva exercida pelos membros do domiclio era fiadeira, em um grupo no qual havia um alfaiate e rendeiras. Isso pode ser tomado como indcio de sua relao com o grupo, ou seja, pode ser que a relao fosse determinada pelo trabalho. No entanto, havia sempre a possibilidade de que ela tivesse um parentesco com o casal, e seria isso que determinaria a relao, mas, considerando apenas as listas nominativas, nada disso possvel ser comprovado. Quando o domiclio chefiado por uma pessoa solteira, a situao torna-se ainda mais complexa. Quando h sobrenome, possvel perceber se tratava-se de membros de um grupo de parentesco, mas impossvel definir o grau de proximidade entre eles. Nas situaes em que no h sobrenome, muito difcil identificar o que unia os membros do grupo, como pode ser visto no domiclio de Itaverava, como pode ser visto por meio da reproduo do domiclio chefiado por Maria Joana, extrado da lista de Itaverava, que apresentamos a seguir:

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Quadro 2 Domiclio de ItaveravaHabitantes Maria Joana Maria Magdalena Jos Joaquim Francelino Feliciano Qualidade crioulo crioulo crioulo crioulo crioulo crioulo crioulo Condio Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Idade 49 32 31 19 17 07 34 Estado solteira solteira solteira solteiro solteiro ... solteiro Ocupao Fiadeira Fiadeira Fiadeira Jornaleiro Roceiro ... Jornaleiro

difcil identificar o elemento aglutinador desse conjunto de indivduos no domiclio chefiado pela crioula Maria Joana. Todos pertenciam ao mesmo segmento racial, mas, em relao a isso, devemos considerar a atitude dos responsveis pela elaborao das listas, que podiam descrever as pessoas a partir de um padro que representaria o desejo de nivel-las em um mesmo grupo racial. Esse tipo de comportamento assinalado por Botelho (2004, p. 8) em relao aos documentos desse perodo:Quando o proco fazia o registro de casamento ou quando o juiz de paz construa sua lista de habitantes, eles poderiam tender a enxergar os cnjuges com a mesma raa/cor. Essa tendncia seria muito mais uma expresso do desejo de harmonizao social do que uma expresso da cor real, fenotpica, dos cnjuges. A homogamia seria mais uma construo social realizada no momento da constituio do casal do que uma expresso da realidade racial.

Esse comportamento pode ocorrer no s em relao construo de uma uniformidade dos casais como tambm para os demais membros livres do domiclio. Isso coloca de lado a possibilidade de considerar apenas o registro sobre a raa o elemento aglutinador dos indivduos. Portanto, tem pouco significado o fato de todos os membros do domiclio de Itaverava serem descritos como crioulos, pois, na verdade, esse no um elemento que permite avaliar o padro de unidade do grupo.24 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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Os indivduos desse domiclio no possuem sobrenome. As atividades produtivas so diversas e no ocorrem em situao de complemento ou de diviso de tarefas. A idade dos indivduos irregular, o que quer dizer que alguns podem ter parentesco direto (serem pais e filhos), ou serem simplesmente irmos, ou mesmo nada disso, e pode haver outro tipo de ligao que no pode ser percebida pela anlise das informaes relativas a esse domiclio. Portanto, na maioria dos casos, as listas nominativas permitem apenas intuir a presena de um grupo do tipo familiar, mas no possvel uma definio segura dos membros e o grau de proximidade entre eles. Isso impede que possamos utilizar de forma exclusiva a ideia de famlia para descrever o grupo ao qual estavam ligadas as crianas presentes nas escolas. Para superar as dificuldades relativas s caractersticas do material escolhido para a anlise, construmos uma classificao que descreve os domiclios a partir de um modelo do tipo familiar. Assim, desconsideramos as pessoas que foram registradas como escravas e utilizamos como referncia o chefe do domiclio, que sempre o indivduo que aparece em primeiro lugar no interior de cada fogo. A este indivduo, estavam ligados os demais membros, que, na maioria dos casos, tinham uma relao de dependncia para com ele. A partir desse modelo de classificao centrado na figura do chefe do domiclio, criamos cinco categorias que permitem descrever as unidades de moradia das crianas que estavam nas escolas com base em uma classificao do tipo familiar: domiclio de grupo familiar simples, domiclio de grupo familiar com agregado, domiclio de grupo familiar ampliado, domiclio de grupo chefiado por homens e domiclio de grupo chefiado por mulheres. As trs primeiras categorias que construmos tm em comum o fato de encontrarmos cnjuges no interior do domiclio. Assim, a classificao considerou no s o chefe, mas tambm o fato de ele ter uma situao conjugal reconhecida como legtima por aqueles que elaboraram a lista. Portanto, encontramos nesses domiclios um homem que ocupavaRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 25

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a chefia, que foi registrado como casado e que estava acompanhado por sua esposa6. A primeira dentre essas trs categorias que registram domiclios onde havia pessoas casadas foi denominada de domiclio de grupo familiar simples por corresponder ao padro mais convencional de famlia para o mundo ocidental, ou seja, aquele em que h um homem e uma mulher reconhecidos como um casal e acompanhados pelos filhos. O registro do casamento, a idade dos indivduos listados aps o casal e, quando foi possvel avaliar, o sobrenome indicam que se tratava de grupo familiar constitudo por pais acompanhados de seus filhos. No domiclio de grupo familiar com agregado, temos todos os elementos relativos definio do grupo anterior, mas h sempre uma ou mais pessoas que no podem ser classificadas como descendentes do casal em funo de a idade ser muito prxima, ou mesmo superior dos cnjuges, ou em funo de ser de condio forra, ou classificada em um grupo racial diverso do dos outros membros. como vimos anteriormente no domiclio chefiado por Victor Jos da Costa, geralmente aps o registro dos filhos que so registrados os indivduos ligados ao grupo, mas no h como saber o tipo de ligao (irmo do chefe ou do cnjuge, pai, me, feitor, trabalhador). optamos por design-los agregados, que um termo amplo e bastante comum organizao social do sculo XiX. A categoria de domiclio de grupo familiar ampliado descreve aqueles em que havia mais de um casal, ou seja, nos quais encontramos o chefe, sua esposa e outro casal, que podia inclusive estar acompanhado por filhos. Em geral, o segundo casal era formado a partir de um descendente direto do primeiro (filho ou filha), o que representaria uma situao de parentesco semelhante das famlias simples e a vinculao de membros (genro ou nora) como agregados. optamos pelo conceito de grupo familiar ampliado por levar em conta a situao de legitimidade matrimonial dos casais presentes no mesmo domiclio.

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Quando h cnjuges, o homem sempre registrado como chefe do domiclio.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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As categorias domiclio de grupo chefiado por homens e domiclio de grupo chefiado por mulheres foram construdas tendo como referncia a situao de chefia da unidade de moradia. Essas duas categorias so aplicadas a uma srie de situaes e registram domiclios em que a chefia ocupada por um indivduo registrado como solteiro ou vivo, no sendo possvel definir com clareza sua relao com os outros membros. Por exemplo, quando temos uma mulher registrada como viva, possvel intuir que alguns membros do domiclio eram seus descendentes diretos, mas, pelos vrios motivos que apresentamos para as situaes anteriores, difcil ter certeza dessa afirmao. Em outros casos, temos domiclios chefiados por membros do clero que estavam acompanhados por uma srie de pessoas. provvel que, nestes casos, no houvesse ligao de parentesco, mas todos foram listados em uma situao de aparente dependncia para com o chefe. Temos, ainda, aqueles domiclios nos quais encontramos indcios de que os membros eram irmos da pessoa que ocupava a chefia, mas no possvel afirmar com certeza que se trata de um grupo familiar organizado por relaes de parentesco. Portanto, para contornar as incertezas em relao aos membros desses grupos chefiados por pessoas solteiras ou vivas, utilizamos, para efeito de classificao, a designao domiclio de grupo chefiado por homens e domiclio de grupo chefiado por mulheres. A distino de gnero importante nesses casos, pois permite visualizar um padro de comportamento que apresenta diferenas entre os dois sexos e, como veremos, isso est relacionado insero de crianas nas escolas.

Presena de escravos nos domiclios com crianas nas escolas de instruo elementarQuando apresentamos as cinco categorias que utilizaremos para classificar os grupos aos quais estavam ligadas as crianas assinaladas como em processo de escolarizao, deixamos claro que pretendamos classificar os domiclios a partir de um modelo que se aproximasse do tipo familiar, por isso os escravos no foram considerados na elaboraoRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 27

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das categorias que construmos. Insistimos que o fato de livres e escravos compartilharem o mesmo espao no implicava um nivelamento das relaes que existiam entre eles7. No entanto, se entendemos como impertinente qualquer classificao que considere os escravos parte do grupo do tipo familiar no interior dos domiclios registrados nas listas nominativas, isso no quer dizer que sua presena no fosse revestida de significado. Tendo como referncia a importncia dos escravos no mundo privado, construmos uma classificao que tem por objetivo avaliar seu nvel de presena nos domiclios em que havia indivduos nas escolas. Para isso, consideramos todos os domiclios que registraram crianas na escola nas listas dos 11 distritos, classificamos os que possuam escravos e, em seguida, o nmero de escravos em cada um deles. A maioria das unidades de moradia apresenta apenas um indivduo frequentando a escola, e isso faz com que o nmero de domiclios seja relativamente prximo do nmero de pessoas registradas na escola. As onze listas nominativas apresentam 414 domiclios com indivduos na escola, e em 44% deles foi registrada a presena de escravos, ou seja, em 183 domiclios. Portanto, 56% dos domiclios com crianas nas escolas no possuam escravos e isso representa uma correspondncia entre os dados populacionais e os relativos aos grupos que se faziam presentes nas escolas, pois, segundo Paiva (1996, p. 103) em Minas havia um predomnio absoluto de fogos sem escravos. Apenas 32,5% dos chefes de

7.

A coexistncia de livres e escravos no interior do fogo pode ser compreendida de forma mais ampla quando consideramos a distino que Laster (1984, p. 139) estabelece em relao a este tipo de domiclio, ao discutir a sua situao na Europa do perodo pr-industrial. Ele os caracteriza a partir de sua funo bsica como unidade de produo: tomemos pois o domiclio com caracterstica de grupo de trabalho, ou seja, aquele onde as pessoas que nele viviam estavam associadas para fins produtivos, sendo a produo mais importante que a moradia. Alguns, ou mesmo todos os membros desse grupo, podiam estar associados, para atender tambm a vrios outros fins. A estrutura desta pequena sociedade de tal sorte que a associao limitada e em grande parte determinada por seu carter de grupo de trabalho.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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fogos tinham pelo menos um escravo listado dentro da unidade, portanto, dois teros das unidades eram integradas apenas por pessoas livres. Nos domiclios (fogos) em que havia cativos, eles se faziam presentes em nmero no muito elevado. Para demonstrar essa situao, dividimos o nmero de escravos em quatro segmentos, contemplando os domiclios que possuam entre 1 e 3 escravo(s), 4 e 6 escravos, 7 e 9 escravos, e os que possuam 10 escravos ou mais. O resultado pode ser visualizado no grfico a seguir: Grfico 1 Nmero de escravos nos domiclios das crianas na escola de primeiras letras17% 8% 55% 20%um a trs quatro a seis sete a nove dez ou mais

Fonte: Listas nominativas de habitantes.

A maioria dos domiclios possua de um a trs escravos, mas, quando agregamos os dados do primeiro e do segundo grupos, ou seja, entre um e seis escravos, chegamos a 75%. Apenas 17% possuam 10 ou mais escravos e o maior nmero registrado em um domiclio foi encontrado em caet, com 120 escravos que pertenciam ao baro de catas Altas. Mas, no geral, os domiclios com 10 ou mais escravos no ultrapassavam o nmero de vinte indivduos. Isto mais uma forma de demonstrar a sintonia entre os aspectos relativos populao e o pblico da escola, pois, segundo anlise elaborada por Paiva (1996, p. 103):[...] estes escravistas mineiros eram em sua grande maioria pequenos proprietrios. Cerca de um quarto dos fogos possua apenas um cativo e mais da metade deles tinha at trs escravos. A presena de proprietrios de grandes

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plantis era muito baixa. Foram contabilizados (em toda provncia) apenas 199 fogos com nmero de cativos superior a 50 no total dos 20.429 que possuam escravos.

Portanto, os dados relativos presena de escravos nos domiclios que registraram crianas nas escolas indicam que a maioria deles era habitada apenas por pessoas livres e, naqueles em que havia escravos, estes no se faziam presentes em grande quantidade. Esses dados tambm revelam uma correspondncia com os dados populacionais, ou seja, a posse de escravos na populao estava em sintonia com o padro que encontramos nos domiclios que possuam crianas nas escolas.

Perfil dos domiclios com crianas nas escolas de instruo elementarComo apontamos anteriormente, havia um predomnio dos negros nas escolas mineiras de instruo elementar e as listas nominativas podem ser tomadas como uma documentao que comprova essa realidade8. No conjunto das listas dos 11 distritos que tomamos para anlise, foram registrados 575 indivduos frequentando escolas de instruo elementar; destes, 72% eram negros e 28% eram brancos. Quando consideramos o perfil racial das escolas por distrito, contatamos que em dez deles os negros compunham a maioria. Apenas So Gonalo configura-se exceo, pois nesse distrito havia 37 crianas registradas como na escola e apenas duas delas eram negras9. Portanto, trata-se da nica localidade que

8.

9.

Para compor o grupo representado pelos negros agregamos os dados que se referiam aos indivduos designados por diferentes termos (pardos, crioulos e cabras). Para uma problematizao dos diferentes termos utilizados em relao a este segmento racial, ver Fonseca, 2007. Essa diferena entre so Gonalo e os demais distritos que compem a amostra uma consequncia de variaes regionais, pois, ao contrrio dos demais distritos na regio central de Minas, So Gonalo estava ao sul da provncia, onde havia uma configurao especifica em relao a aspectos econmicos e demogrficos.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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corresponde imagem tradicionalmente construda sobre as escolas do sculo XiX, cujo pressuposto a ausncia quase absoluta de negros. O perfil racial dos chefes de domiclio aproxima-se dos dados relativos s crianas em processo de escolarizao. Na maioria das vezes, o indivduo que ocupava a chefia do domiclio tinha relao de parentesco direto com a criana que estava na escola em muitos casos, eram os pais ou um parente. Dessa forma, os dados sobre o perfil racial desses indivduos no destoam daqueles que constatamos em relao s crianas, pois 67% dos chefes de domiclio com crianas nas escolas eram negros e 33% eram brancos. O conjunto dos dados relativos aos domiclios onde viviam alunos das escolas de instruo elementar indica que esses grupos possuam uma situao econmica que os exclua dos grupos mais favorecidos economicamente. Essa afirmao corroborada pelo perfil racial das crianas que foram assinaladas como em processo de escolarizao e pelo dos chefes de domiclio onde elas viviam e tambm pelos dados relativos posse de escravos, que no se faziam presentes na maioria dos domiclios e que, mesmo quando se faziam presentes, apareciam em pequena escala. O conjunto das atividades (ou profisso) exercidas pelos chefes de domiclio pode ser tomado como mais um indcio da situao econmica das unidades de moradia com crianas nas escolas. o conceito de fogo est ligado a um tipo de organizao que vincula o domiclio ao mundo do trabalho. Na maioria das vezes, era a condio daquele que ocupava a chefia do fogo que determinava a atividade exercida pelos outros membros. Considerando essa situao, construmos um quadro com as atividades dos chefes dos domiclio que registraram crianas nas escolas elementares. Para efetuar a classificao, consideramos o registro de ocupao contido nas listas nominativas, pois no temos uma viso dos processos de produo que permita uma classificao que possa reunir atividades profissionais que, a princpio, aparentam semelhana. Por exemplo, lavrador e roceiro so atividades prximas, mas no sabemos se dizem respeito mesma forma de execuo do ofcio. Poderamos reuni-las emRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 31

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um mesmo grupo, mas correramos o risco de igualar experincias que, no sculo XIX, eram distintas. Para evitar equvocos dessa natureza e tambm para preservar a diversidade de informaes apresentadas em relao ocupao, optamos por manter a designao encontrada nas listas nominativas. Quadro 3 Lista das ocupaes dos chefes de domiclios com crianas nas escolas (%)Fiadeira Negociante Agricultor tecedeira Alfaiate Mineiro Roceiro sapateiro costureira Agncia Jornaleiro Lavrador Eclesistico Ferreiro tropeiro carpinteiro Rendeira carreiro 18,3 15,5 6,5 5,2 4,5 4,2 3,7 3,7 3,2 2,7 2,7 2,2 2,0 2,0 1,7 1,7 1,5 1,2 Fazendeiro Feitor Fbrica Oficial justia Administrador ourives Pedreiro carniceiro cirurgio doente Faiscador Advogado Gov. domstico Juiz de paz Msico oleiro Professor Quitandeira 1,2 1,0 0,7 0,7 0,7 0,7 0,7 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 0,5 seleiro valetundinrio Boticrio caixeiro carapina chapeleiro cobrador contador deputado doceira Escrivo Ferrador Lavadeira Madereiro Paneleira Pecuarista Pintor santeiro violeiro 0,5 0,5 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2

Fonte: Listas nominativas de habitantes.

No quadro referente ocupao, fica clara a diversidade de atividades exercidas pelos chefes de fogo, pois so, no total, 55 ofcios diferentes. Em meio a essa variedade, encontramos indivduos ligados administrao pblica, s profisses liberais (como deputado, juiz de paz e advogado) e tambm s atividades mais simples e que estavam ligadas ao trabalho na agricultura ou no espao privado (lavradores, governo domstico, lavadeiras). preciso destacar que as atividades que aparecem com maior frequncia esto ligadas s dimenses mais simples dos processos de produo e dos setores de servios, o que indica que os indivduos na32 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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escola eram originrios de grupos familiares cuja situao financeira no poderamos chamar de privilegiada. A ausncia de escravos na maioria dos fogos indicava isso, e o ofcio exercido pelos chefes do domiclio tambm pode ser tomado como indcio que aponta nessa mesma direo. Outro aspecto interessante em relao aos ofcios o fato de que apenas as cinco primeiras ocupaes (fiadeiras, negociantes, agricultores, tecedeiras e alfaiates) respondem por 50% das atividades exercidas por aqueles que ocupavam a chefia dos domiclios. Talvez isso possa ser tomado como um indicativo de que havia um vnculo entre certos ofcios e os processos de escolarizao. Isso nos parece vlido no caso dos alfaiates, pois encontramos, com alguma regularidade, uma ligao entre os domiclios onde havia indivduos exercendo esse ofcio e a presena de crianas nas escolas. No caso dos agricultores e comerciantes a hiptese tambm vlida, mas, na verdade, esses termos so muito amplos e comportam uma variedade de atividades profissionais que no tm a mesma especificidade que o ofcio de alfaiate. O termo alfaiate tem um sentido muito especfico e designa atividade que tem uma representao relativamente clara, que construmos a partir da compreenso que temos dos procedimentos e processos envolvidos nessa atividade. o mesmo no podemos dizer dos negociantes, que podiam ser mascates, vendedores de imveis, de escravos etc. Isso tambm se verifica em relao aos agricultores, que poderiam ser desde simples lavradores at donos de fazenda. No caso das fiadeiras, que a ocupao com maior nmero de chefes de domiclios com crianas nas escolas (18,3%), e das tecedeiras (5,2%), acreditamos que a supremacia est ligada questo de gnero e no necessariamente ao oficio. Fiar e tecer eram atividades ligadas ao sexo feminino e no comum encontrar na documentao homens exercendo essas atividades. Entretanto, o repertrio de ofcios desenvolvidos por mulheres no era muito grande e elas se concentravam em algumas atividades, ao contrrio dos homens, listados em vrios ofcios. Dessa forma, no havia muitas possibilidades para as mulheres dessas regies de Minas no mundo do trabalho e elas se concentravam em algumas atividades, dentre as quais se destacam as de tecedeira e de fiadeira.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 33

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isto quer dizer que boa parte das mulheres que eram chefes dos domiclios e tinham ligao com indivduos que se encontravam em processo de escolarizao dedicavam-se a tarefas como fiar e tecer. Assim, podemos dizer que no era o ofcio que determinava a insero das crianas na escola, como no caso dos alfaiates, mas sim o gnero, pois, como veremos a seguir, parece que h uma conexo entre escolarizao e mulheres chefes de domiclios. Dessa forma, a presena das fiadeiras e tecedeiras no rol das ocupaes dos chefes de unidade de moradia uma expresso do monoplio desses ofcios pelo sexo feminino e da relao entre as mulheres e a insero de crianas nas escolas. Isso pode ser visto no grfico a seguir, no qual esto representados os domiclios classificados a partir das cinco categorias que apresentamos anteriormente, sendo que uma delas confere destaque aos domiclios chefiados por mulheres: Grfico 2 Perfil dos domiclios com crianas nas escolas de primeiras letras

34%grupo familiar simples

45%

grupo familiar com agregado grupo familiar ampliado grupo chefiado por homem grupo chefiado por mulher

12% 1% 8%

Fonte: Lista nominativa de habitantes.

A classificao dos fogos que possuam indivduos nas escolas revela que o domiclio de grupo familiar simples predominava, pois 45% das crianas viviam nesse tipo de domiclio. O tipo de domiclio que pode ser tomado como o mais prximo do modelo que, durante muito tempo, foi tido como padro para a sociedade brasileira, ou seja, a patriarcal, que de certa forma se aproxima do modelo que classificamos como domiclio de grupo familiar ampliado e domiclio de grupo familiar com34 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010

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agregado, responde por um pequeno percentual, respectivamente 1% e 8%. O nmero de famlias chefiadas por homens tambm no muito grande (12%) e chama a ateno o percentual elevado de domiclios chefiados por mulheres, que obteve o ndice de 34% dos domiclios com crianas nas escolas. H uma presena significativa das mulheres como chefes de domiclio no conjunto das onze listas nominativas: elas representam uma mdia de 36% da chefia dos domiclios de todos os distritos que utilizamos. Portanto, h uma proximidade entre a sua presena nas listas nominativas e o ndice que registrou os domiclios com crianas na escola, pois 34% deles eram chefiados por mulheres. A frequncia com que as mulheres ocupavam a chefia dos domiclios vem chamando a ateno dos historiadores e, segundo Lewkowicz (1993, p. 13), h algumas tentativas de explicar esse fenmeno:Com efeito, pesquisas realizadas para So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais realaram as combinaes familiares que ficaram longe de legitimao, levando a concluso de que os brasileiros no gostavam de casar e a sociedade acomodou-se a um estilo de vida em que a ilegitimidade tornou-se algo comum, acabando por aceit-la. H tambm a hiptese bastante interessante de que as relaes em Minas no eram intencionalmente passageiras, pois o grande nmero de lares em que os chefes eram mulheres solteiras com filhos estava ligado a homens que, embora mantivessem vnculos com essas famlias, possuam domiclios independentes. No haveria, portanto, co-habitao, mas talvez vnculos financeiros e afetivos, moldando um tipo singular de famlia, chamada de fracionada.

Essa presena das mulheres na condio de chefe de domiclio e sua elevada incidncia nos fogos com crianas nas escolas indicam que tambm em relao ao gnero havia uma correspondncia entre o perfil da populao e a presena na escola, ou seja, as mulheres aparecem com frequncia na condio de chefia de domiclios e isso tinha reflexo no perfil dos indivduos que se encontravam em processo de escolarizao. Portanto, os dados sobre mulheres chefes de domiclio tambm apontam para uma correspondncia entre o perfil da populao e o perfilRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 13-39, maio/ago. 2010 35

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dos grupos que se encontravam nas escolas mineiras. No entanto, no podemos deixar de considerar que a questo de gnero deve ser objeto de pesquisas que analisem a possibilidade de as mulheres terem sido um dos grupos que percebeu a importncia social da educao escolar, pois este tambm um caminho para explicar esse nmero expressivo de mulheres frente dos fogos que possuam crianas nas escolas.

ConclusoH indcios que apontam para o fato de que, em Minas Gerais, havia uma aproximao entre os aspectos relativos populao e os grupos que estavam ligados aos processos de escolarizao no nvel elementar10. Isso evidenciado a partir do perfil racial da populao, que era majoritariamente composta por negros, e sua correspondncia com o perfil da escola elementar, que tambm era predominantemente frequentada por crianas desse grupo racial. A aproximao entre o perfil da populao e o dos grupos que gravitavam em torno da escola tambm se torna evidente quanto posse de escravos e sua presena nos domiclios. O mesmo pode ser constatado em relao ao comportamento de segmentos especficos da populao, como as mulheres chefes de domiclio, que era um grupo expressivo da populao e possua a mesma expressividade em meio aos domiclios com crianas nas escolas.10. Neste artigo apresentamos apenas dados relativos escola elementar, mas preciso chamar a ateno para o fato de que essa correspondncia entre os dados populacionais e o perfil das escolas est restrita a esse nvel do ensino, pois quando consideramos o perfil dos domiclios daqueles que se encontravam no secundrio h mudanas significativas. Ou seja, enquanto os alunos da instruo elementar eram majoritariamente negros, na escola secundria havia um predomnio dos brancos; havia escravos nos domiclios de todos os alunos do secundrio e a sua presena se fazia em nvel elevado, demonstrando que se tratava de unidades de moradia que podem ser classificadas como correspondentes s da elite da sociedade mineira. Portanto, embora no possamos apresentar nos limites deste texto os dados relativos a esta situao, preciso registrar que havia uma inverso no perfil dos grupos que acessavam a escola elementar e a escola secundria nas Minas Gerais do sculo XIX.

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os aspectos relacionados a esse comportamento de segmentos, como os negros e a mulheres chefes de domiclio, podem estar apontando para mais uma das dimenses singulares da sociedade mineira. Negros e mulheres estavam entre os grupos mais discriminados dentro da sociedade mineira oitocentista e podem ter sido exatamente eles os primeiros a perceber a importncia da escolarizao, e de alguma forma podem ter tentado se valer dessa estratgia como instrumento de afirmao no espao social. As pesquisas em relao a esse tipo de comportamento necessitam de um aprofundamento que considere a possibilidade de que alguns grupos sociais perceberam a escolarizao de forma diferenciada e isso teria determinado a construo de estratgias especficas para a insero na cultura letrada.

Documentos consultadosLista nominativa dos habitantes de Bom Fim. Arquivo Pblico Mineiro, Fundo Presidente de Provncia. Documentos microfilmados, rolo 2, caixa 6, doc. 15. Lista nominativa dos habitantes de Cachoeira do Campo. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 1, caixa 1, pacotilha 9. Lista nominativa dos habitantes de Caet. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 6, caixa 2, pacotilha 9. Lista nominativa dos habitantes de Catas Altas. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 7, caixa 18, doc. 9. Lista nominativa dos habitantes de Itaverava. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 2, caixa 4, pacotilha 21. Lista nominativa dos habitantes de Matosinhos. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 6, caixa 11, pacotilha 7.

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Perfil dos domiclios e grupos familiares com crianas nas escolas...

Lista nominativa dos habitantes de So Bartolomeu. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 1, caixa 1, pacotilha 1. Lista nominativa dos habitantes de Passagem de Mariana. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 7, caixa 17, doc. 5. Lista nominativa dos habitantes de Redondo. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 2, caixa 3, pacotilha 26. Lista nominativa dos habitantes de Santa Luzia. Arquivo Pblico Mineiro, Fundo Presidente de Provncia. Documentos microfilmados, rolo 13, caixa 35, doc. 4. Lista nominativa dos habitantes de So Gonalo. Arquivo Pblico Mineiro, Inventrio Sumrio dos Mapas de Populao. Documentos microfilmados, rolo 2, caixa 2, pacotilha 18.

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Endereo para correspondncia: Rua itacoatiara, 427/303 Sagrada Famlia Belo Horizonte MG cEP 31035-400 E-mail: [email protected] Recebido em: 14 jan. 2009 Aprovado em: 19 maio 2009

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O problema do ensino da leitura no ltimo quartel do sculo XIX:Portugal, Brasil e o debate sobre o par decadncia/atraso

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Resumo: Este artigo pretende investigar aspectos da difuso do mtodo de ensino da leitura de Joo de deus no Brasil durante o ltimo quartel do sculo XiX. tendo em vista a mobilizao intelectual que a propaganda do mtodo trouxe consigo, acredita-se que ele integrou um programa mais vasto de redimensionamento da tomada de conscincia do tema decadncia/atraso nas sociedades portuguesa e brasileira. Ao mesmo tempo, igualmente alvo deste trabalho a persecuo dos itinerrios dos divulgadores do mtodo, quando, ento, a ateno se volta para os indivduos que encetaram a viagem de transposio do Atlntico com o intuito de promover a difuso do mtodo de Joo de deus. com isso, almeja-se mensurar a extenso do redimensionamento aludido, particularmente nos termos dos desafios da jovem nao americana em seus esforos para tomar lugar na marcha civilizatria do mundo ocidental. Palavras-chave: Joo de Deus; decadncia/atraso; Portugal/Brasil; intelectuais; ensino da leitura.

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Bacharel e licenciado em histria pela Universidade de So Paulo. Mestre em educao pela Faculdade de Educao da universidade de so Paulo (FE-UsP). doutorando em educao pela mesma universidade.41

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The problem of the education of the reading in the last quarter of 19th century:Portugal, Brazil and the debate on pair decline/delay

Roni Cleber Dias de MenezesAbstract: this article aims to investigate aspects of the diffusion of Joo de deus teaching reading method in Brazil during the last quarter of the nineteenth century. taking in consideration the intellectual mobilization which the methods propagation has brought with it, it is believed that it was part of a larger program of redimensioning the awareness of the topic decay/delay in Portuguese and Brazilian societies. At the same time we also discuss here the persecution of the itineraries of the advertisers of the method when attention turned to the individuals who embarked on the journey of transposition of the Atlantic in order to promote the dissemination of the Joo de deus method. in sum, the article aims to measure the extent of the redimensioning previously mentioned, particularly in terms of the Brazilian challenges in its efforts to take place in the march of civilization in the western world.. Keywords: Joo de Deus; Portugal/Brazil; decline/delay; intellectuals; readings learning.

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Introduoo debate acerca do alardeado par decadncia/atraso de Portugal e Brasil, respectivamente, ante os pases mais adiantados da Europa perpassou em intensidade os extratos letrados da sociedade desses dois pases nas ltimas dcadas do sculo XIX. Ele aparece nos documentos de Estado, na literatura, nos trabalhos de cunho cientfico, nas polmicas, na imprensa, nas discusses das associaes e instituies culturais, no campo da educao etc. Em ambos os pases, foi notria a participao nesse debate pela que se convencionou denominar Gerao de 1870. No caso de Portugal, ela teve origem, em linhas gerais, na rebeldia de jovens universitrios de Coimbra ante a disciplina rgida e o conservadorismo e imobilismo de certas prticas vigentes na universidade. o grupo formado por esses jovens intelectuais, no interior do qual se contam ilustres homens de letras lusitanos do oitocento, como Antero de Quental, Ea de Queirs, Oliveira Martins, Francisco Adolfo Coelho, Ramalho Ortigo, Tefilo Braga, Guerra Junqueiro, buscou inspirao no pensamento de literatos franceses, como Renan, no positivismo de comte, no idealismo de Hegel e no socialismo utpico de Proudhon e saint-simon. o marco da emergncia intelectual da Gerao de 1870 em Portugal relacionou-se com uma srie de polmicas conhecidas como a Questo coimbr, cujo ponto alto se d quando Antero de Quental enderea a carta Bom senso e bom gosto, datada de 1865, ao ento reitor da universidade de coimbra (uc), Antnio Feliciano de Castilho, a quem elege como a instncia metonmica do sistema intelectual portugus (Azevedo, 2005, p. 5-6). castilho era uma espcie de padrinho da gerao de escritores ultrarromnticos portugueses, que emergia concomitantemente ao grupo de Quental e Ea de Queirs. o embate com Antero assinala a derrocada da hegemonia de castilho no meio intelectual do pas, e sintomtico de algumas mudanas nos paradigmas de pensamento do Portugal oitocentista, em que os modelos fundados nos parmetros cientficos alcanavam maior prestgio. A imerso na bibliografia sobre a Gerao de 1870 portuguesa autoriza a ideia de que os coevos tenham dela tomado conscincia durante oRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010 43

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instante mesmo de seu acontecimento1 e que, percepcionada pelo vis da literatura e da escrita da histria, esse fenmeno tenha extrapolado essas dimenses, assumindo uma feio que tambm foi de cunho poltico, social e cultural. Quanto ao Brasil, a Gerao de 1870 principalmente em decorrncia da vastido do territrio e da menor coeso poltica e social em relao a Portugal foi um fenmeno fragmentrio, dividido em vrias unidades, que podem ser agrupadas em torno de um mesmo termo menos em funo dos contedos propriamente programticos que de uma identidade por negativao, construda tanto a partir da oposio ao regime monrquico e escravatura quanto por intermdio de experincias de excluso social e poltica (experimentada por muitos de seus membros), situao essa derivada, segundo a avaliao das vtimas dessa excluso, da ordem social vigente no segundo Reinado erigida pelos agentes do Partido conservador desde a dcada de 1840 (Alonso, 2002). Foram representantes desse grupo: tobias Barreto, capistrano de Abreu, Slvio Romero, Araripe Jr., Jos Verssimo, Clvis Bevilcqua, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Machado de Assis, Alusio de Azevedo, entre outros. Como resposta, esse grupo pe em marcha seu programa de refundao da sociedade brasileira, alicerado no republicanismo federativo, na reforma dos sistemas jurdico e poltico, na abolio do trabalho escravo e na separao Igreja-Estado. Esperavam consolidar, dessa maneira, a varredura do que restava dos fundamentos coloniais da formao social brasileira, renitentemente reproduzidos pelo fazer poltico do sistema monrquico. de modo geral, os debates no interior da Gerao de 1870 dos dois pases seriam testemunhas dos conflitos entre as possibilidades econmicas, postas por naes localizadas na periferia do capitalismo contemporneo capitalismo este de tintas imperialistas e as representaes da nao sob os signos da decadncia e do atraso: representaes que, de

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diferentemente do caso brasileiro, cuja expresso Gerao de 1870 uma construo a posteriori.Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010

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modos distintos, porm ao fim e ao cabo, marcavam a viso de mundo no somente de suas elites culturais, bem como de toda a sociedade. um dos pilares para a superao dessa dicotomia decadncia/atraso residia, para os membros das duas Geraes, na resoluo do problema educacional. os anos de 1870, por seu turno, assistem transformao da educao em cincia e, nessa medida, o tema da pedagogia traz como eixo a questo dos mtodos e procedimentos de um ensino racional, eficaz e cientfico. Nesse aspecto, o tema da alfabetizao adquire especial relevncia. o ler e o escrever convertem-se em armas competitivas, instrumentos de cuja posse dependeria o progresso das naes (Boto, 1997, p. 150). desenvolve-se, no correr da segunda metade do sculo XIX, uma ntida percepo da parte de determinados setores das elites culturais portuguesas das interseces entre cultura, civilizao e leitura e de que tornava-se evidente a relao entre prosperidade material e o desenvolvimento das letras (idem, ibidem). A partir de ento, o ensino da leitura passa a ser visto como um projeto civilizatrio, passvel e necessrio de colocar-se disposio da maioria da populao. Embebido dessas concepes, Joo de deus cria seu mtodo de ensino da leitura, condensado na Cartilha maternal ou Arte de leitura, publicao que grande importncia obteve na histria dos manuais escolares e da alfabetizao nas regies de lngua portuguesa. As pginas a seguir sero dedicadas ao estudo das relaes entre o problema do ensino da leitura, a disseminao do mtodo Joo de Deus pelos povos de lngua portuguesa, especialmente o Brasil, e suas imbricaes no mbito do debate sobre a superao da decadncia.

O mtodo joo de deus e o projeto de homogeneizao do ensino da leitura no mundo lusofalanteA esfera educacional no permaneceu estranha s preocupaes da Gerao de 1870 portuguesa. mais do que acertado asseverar que para seus integrantes a reforma dos esquemas mentais da vida nacionalRevista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010 45

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passava, em primeiro lugar, pela realizao de um amplo processo de educao e de acesso informao. Tambm lcito considerar que esse contedo propositivo se assentava sobre um diagnstico bastante acre quanto ao estgio em que se encontrava a instruo no pas e quanto aos mtodos e procedimentos que a orientavam. Ao lado da percepo da inadequao do sistema monrquico e da rejeio produo e ao consumo de uma literatura j ultrapassada, o diagnstico dos componentes da Gerao de 1870 apontava para um amplo descrdito em relao aos modelos arcaicos de pensamento e de ensino que se praticavam em Portugal na segunda metade do sculo XiX, a comear por aqueles que informavam os cursos superiores da uc. Essa concepo acerca da inadequao do ensino vigente no pas ante as necessidades de melhoramento do nvel intelectual da sociedade portuguesa transpareceu no variegado leque de produes literrias e intervenes que os integrantes da Gerao realizaram. Assistimos a isso na poesia e nos textos polticos de Antero de Quental, nos escritos de histria e economia poltica de Oliveira Martins, na prosa de Ea de Queirs, na crnica da vida quotidiana de Ea e Ramalho ortigo (As Farpas) e, extremamente relevante nesta lista, nas conferncias pblicas, como foi a clebre de Francisco Adolfo coelho em 1871 por ocasio das conferncias do casino Lisbonense, intitulada Questes de ensino, a quarta e ltima interveno destas que foram um marco da histria da inteligncia portuguesa. Nada obstante, no se nos afigurou nem que a historiografia, a contempornea da Gerao de 1870 e a posterior, tenha encarado o mtodo criado por Joo de deus como parte da obra reformuladora da dita gerao, nem que o prprio poeta tenha a ela experimentado qualquer espcie de pertencimento. isto importante ter em vista para que se possa precisar com maior justeza o espectro abarcado pelo mtodo e, pari passu, seja estudado com maior profundidade o carter de suas inovaes, tanto no mbito pedaggico quanto no mbito mais largo da cultura. fato que Joo de deus, pela proeminncia j alcanada no limiar da dcada de 1870 nos crculos culturais lusitanos, mantivesse dilogos com representantes da Gerao, como em relao a Antero46 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010

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de Quental, o maior nome da poesia portuguesa do perodo e que muito apreciava Joo de Deus e seu lirismo, devendo-se a Antero a afirmao de que Joo de Deus recuperara os luminosos dias do soneto na lngua portuguesa, modalidade potica mantida na mediocridade desde cames. Joo de deus tambm estabelece correspondncia com outros membros da Gerao, como o caso de Oliveira Martins2, em que, atendo-se correspondncia particular do poeta compulsada nos arquivos da biblioteca do museu pedaggico que leva o seu nome, divisa-se um conjunto de cartas que remetem s vicissitudes da publicao da Cartilha maternal, em que ganha destaque os desencontros no acerto de contas de Joo de deus com a casa Bertrand, responsvel, dada altura, pela edio da cartilha e da qual Oliveira Martins era funcionrio. Ainda assim, a relativa proximidade de Joo de deus com reconhecidos membros da Gerao de 1870 no nos autorizou a inscrever o poeta sob a rubrica dessa Gerao. Ainda assim, ao reavaliar-se os itinerrios de Joo de deus luz do projeto de irradiao do seu mtodo de ensino, antev-se o idntico desgnio da realizao da tarefa a que se entregou a Gerao de 1870, tendo o mtodo que criara se revestido de um substrato cultural a atuar na reverso da cena decadentista lusitana e, tambm, na agenda poltica de reerguimento da posio do pas no proscnio internacional (em que se sublinha a consolidao e expanso dos domnios coloniais em frica). No tocante s condies e ao caldo de cultura em que se desenrolou o pensamento e ao pedaggica de Joo de deus, proveitoso lanar a mirada para o estgio vivido pelas cincias da educao em Portugal durante a segunda metade do sculo XiX. Em sua tese de doutorado, Boto (1997) percorre aquilo que chamou de o sculo XiX portugus, perodo compreendido entre as lutas liberais de 1820 e a instalao da repblica, em 1910. Nesse largo intervalo de tempo a autora debrua-se sobre os intelectuais e seus discursos e percursos pedaggicos, sobre as representaes e o cotidiano da escola, sobre a imprensa pedaggica, mtodos de ensino, currculo escolar: em suma, passa em revista a socie2. vide correspondncia particular de Joo de deus arrolada nas fontes manuscritas.47

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dade portuguesa e a instituio escolar. partida, Boto (1997) anuncia ao leitor sua proposta:[] historiar o cotidiano, pressuposto nele uma histria dos atores que vivem a escola; perfazendo o relato da instituio que abriga sujeitos que agenciam o cotidiano escolar, para, finalmente entrelaar esse ensaio da escola que passou com as representaes configuradas no imaginrio pedaggico. Sendo assim, pretendemos retomar os cruzamentos entre as representaes e as prticas do ensino, considerando a reconstruo pela escrita de alguns aspectos que pontuaram o universo simblico acerca da educao em Portugal de um sculo atrs [p. 7].

A acurada anlise dos discursos e percursos pedaggicos dos intelectuais portugueses levada a termo por Boto, amparada em slida e vasta pesquisa documental, constituiu-se um manancial valioso para entendermos as condies que presidiram o aparecimento do mtodo de ensino de Joo de deus e, igualmente, do papel e das intervenes dos intelectuais de alm-mar quanto superao da decadncia em que se acreditava jazer o pas. Em relao ao material trazido por Boto a propsito de Joo de deus, alguns aspectos merecem ser sublinhados. inicialmente, a variegada gama de fontes a respeito do poeta, em que emergem suas obras e, especialmente, a documentao que condensa as polmicas e disputas em que ele esteve envolvido, como os jornais e os textos escritos por Joo de deus que recuperam as circunstncias da criao da Cartilha maternal, sua prpria correspondncia particular e as altercaes vividas com professores da Escola Normal de Lisboa e outros experts da educao. Por fim, mas no em ltimo lugar, a reflexo realizada sobre as interfaces e os contributos de Joo de Deus e seu mtodo de ensino em relao ao estgio das cincias pedaggicas de seu tempo e, identicamente, a historicizao encetada pela autora, atentando-se quanto ao lugar alcanado pelo mtodo Joo de deus e seu autor em relao queles pedagogistas que o precederam, no perdendo de vista, nesse sentido, as inovaes que cada mtodo de ensino trazia no tocante realizao dos contedos da dita pedagogia moderna.48 Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010

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Boto (1997) tambm no aponta Joo de deus como representante da Gerao de 1870 portuguesa. todavia, apoiada em catroga (1993), v em Joo de Deus uma espcie de aliado dos jovens intelectuais sados de coimbra em sua empreitada de romper com o imobilismo da arte, cincia e cultura da sociedade lusitana de ento. Eles teriam na pedagogia de Joo de deus um baluarte contra a educao praticada naquele tempo em Portugal, identificada por boa parte dos intelectuais que compuseram o cenculo e as conferncias do casino como afeita aos padres jesuticos de ensino. Nos dizeres da autora, a expresso prtica desse objetivo (instruo popular e transformao da leitura em atividade ordinria e comezinha, destituda da natureza religiosa de que amide era investida no tecido social lusitano) estaria dada nas esperanas depositadas no mtodo de ensino da leitura e da escrita desenvolvido por Joo de deus3. Por intermdio das redes de sociabilidade entabuladas por Joo de Deus no interior da Gerao de 1870, factvel aquilatar o compartilhamento daquela perspectiva inovadora, prpria dos integrantes da Gerao Nova, por parte de Joo de deus. A Gerao de 1870, embora tenha adquirido o ttulo em decorrncia de apresentar elementos estticos passveis de serem aglutinados a partir de um exerccio de sntese intelectual, divergiu sobremaneira, tomados individualmente seus membros, quanto a posies polticas, ideolgicas, artsticas e mesmo quelas estticas que em alguma medida lhes havia conferido, segundo uma interpretao historiogrfica, certa coeso. Dentre diferentes exemplos, um dos mais emblemticos dessa divergncia refere-se s figuras de Antero de Quental e Tefilo Braga. Oriundos do mesmo stio, Ponta Delgada, no arquiplago dos Aores, e tambm3. Em vida, Joo de deus elabora tambm um mtodo de escrita, que permanece como rascunho durante muito tempo e foi utilizado nas conferncias e aulas pblicas proferidas pelo poeta, na formao dos professores pelo mtodo, nos cursos ministrados por estes ltimos por conta da instalao das misses de alfabetizao promovidas pela Associao de Escolas Mveis pelo Mtodo Joo de Deus e, por fim, pelos divulgadores do mtodo em Portugal, nas possesses coloniais ultramarinas e no Brasil.49

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aglutinados na Gerao de 1870, ambos escritores seguem caminhos distintos ao longo de suas vidas4. Tefilo, positivista e republicano convicto, entra em coliso com Antero pouco tempo depois de ambos deixarem os bancos universitrios em coimbra. Antero tornar-se- o lder espiritual da Nova Gerao: eloquente, captar as atenes e angariar a empatia dos jovens intelectuais insatisfeitos com o modelo coimbro. Essa opinio endossada por Boto (1997):No so, pois, apenas os estudiosos, mas os prprios contemporneos j afirmavam a liderana de Antero perante o grupo que mais tarde se revelaria histrico. No princpio dos anos 60, Antero era reconhecido lder e dirigente no mbito da Academia. Havia j publicado conhecidas poesias, firmava-se na intelectualidade pelo teor da sua crtica poltica e social [p. 121].

Ao longo tempo, mesmo assumindo posicionamentos aparentemente contraditrios, Antero de Quental radicaliza mais e mais sua crtica, no se restringindo somente esfera poltica, mas sim concedendo a primazia crtica social, em que pe a nu a opresso de classe sofrida pelas camadas laborais do pas. Antero chega a elaborar uma proposta de organizao corporativa dos extratos trabalhadores portugueses. Em consequncia de seu itinerrio, afasta-se dos enclausuramentos postos pela adoo dogmtica do primado positivista, constries, alis, a que se viram envoltos, em maior ou menor grau, inmeros dos homens de saberes denunciadores da cena decadentista lusitana. Tefilo Braga, por sua vez, arrogando-se um dos paladinos da interpretao positivista da filosofia da histria em Portugal, nem mesmo participa das Conferncias do casino, embora tenha seu nome inserto no manifesto dos participantes, provavelmente, conforme saraiva (1995), por ao de Antero que o fizera contando com o consentimento de Tefilo. No obstante, a deferncia em relao a Joo de deus e a apreciao acerca de sua importncia nos domnios da literatura e da pedagogia so4. Para uma inteligibilidade mais apurada da relao Antero-Tefilo, ver: Saraiva (1995).Revista Brasileira de Histria da Educao, n 23, p. 41-69, maio/ago. 2010

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equivalentes tanto em Antero quanto em Tefilo. De um lado, ambos desferem o ataque a Antnio Feliciano de Castilho criador do Mtodo Castilho para o ensino rpido e aprazvel do ler impresso, manuscrito, e numerao e do escrever e ao ultrarromantismo.Joo de Deus restituiu-nos o Soneto como elle , como dev