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A PRODUÇÃO SOCIAL DA SOLIDARIEDADE OPERÁRIA O CASO DE ESTUDO DA PENÍNSULA DE SETÚBAL (1890-1910) SETEMBRO DE 2013 Tese de Doutoramento em História

A PRODUÇÃO SOCIAL DA SOLIDARIEDADE OPERÁRIA · A adopção destes dois conceitos analíticos - produção social do espaço e construção social de populações - na análise

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A PRODUO SOCIAL DA SOLIDARIEDADE OPERRIA

O CASO DE ESTUDO DA PENNSULA DE SETBAL (1890-1910)

Joana Vidal de Azevedo Dias Pereira

SETEMBRO DE 2013

Tese de Doutoramento em Histria

2

Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno

do grau de Doutor em Histria Contempornea, realizada sob a orientao cientfica de

Professor Fernando Rosas

3

Para o Vasco e a Vera

4

5

AGRADECIMENTOS

No possvel resumir em breves linhas os agradecimentos que, em quatro anos

de pesquisa, me merecem todos os que me ajudaram a construir esta tese.

No plano acadmico, devo destacar a disponibilidade permanente do meu

orientador, o professor Fernando Rosas, mas tambm os incentivos e opinies dos

variados colegas com os quais fui partilhando os meus resultados em congressos e

publicaes.

No plano da minha investigao emprica, da mais elementar justia

reconhecer o papel fundamental de todos os tcnicos e activistas que gerem os fundos

documentais locais, quer em arquivos municipais quer em arquivos privados de

associaes voluntrias.

Finalmente, tenho de agradecer minha famlia e amigos, sobretudo minha

me e ao Gustavo, pelo apoio incondicional.

6

A PRODUO SOCIAL DA SOLIDARIEDADE OPERRIA: O CASO DE ESTUDO DA

PENNSULA DE SETBAL (1890-1930)

THE SOCIAL PRODUCTION OF WORKERS SOLIDARITY: PENINSULA DE

SETBAL CASE STUDY (1890-1930)

JOANA DIAS PEREIRA

RESUMO

ABSTRACT

PALAVRAS-CHAVE: Espao industrial, Comunidades operrias, Estratgias dos trabalhadores,

Associativismo, Aco colectiva

KEYWORDS: Industrial Space, Working-class communities, workers strategies, associations,

collective action

A opo de analisar o desenvolvimento das relaes sociais industriais atravs

dos processos espaciais e demogrficos co-implicados parte do pressuposto de que o

espao industrial e a populao operria so socialmente produzidos, ou seja, resultam

da agncia conflitual de variados agentes, entre os quais se destacam os industriais, o

Estado e as classes trabalhadoras. Os processos de industrializao e urbanizao,

intensificados a partir de 1890, foram observados numa perspectiva integrada, tendo em

considerao as tendncias meridionais dominantes.

No obstante, o objecto de investigao privilegiado nesta dissertao foi o

repertrio estratgico dos trabalhadores e a sua aco colectiva. A concentrao da

indstria, a especulao imobiliria mas tambm a deficincia de equipamentos

urbanos, tornaram indispensvel a prossecuo de estratgias de sobrevivncia

diversificadas, que analisamos recorrendo aos mais actuais modelos tericos. Foram

consideradas as estratgias individuais do grupo domstico a migrao, a poupana ou

a diversificao de fontes de rendimentos -, as estratgias recorrendo ajuda externa

integrao de redes de entreajuda informais -, e, finalmente, a participao em

associaes e movimentos sociais. Estas ltimas, por sua vez, subdividiram-se entre as

estratgias centradas na economia domstica o mutualismo e o cooperativismo de

consumo; as centradas nos locais de trabalho as cooperativas de produo e os

sindicatos; e as centradas na presso sobre o Estado pela estruturao nacional do

associativismo e a aco colectiva.

O principal objectivo desta anlise foi compreender a base material e os recursos

organizacionais que possibilitaram o processo de mobilizao massivo das classes

7

trabalhadoras na segunda dcada do sculo XX. A crise revolucionria europeia de

1917-1920 tem vindo a ser alvo de inmeras interpretaes e estudos empricos, a

minha abordagem filiou-se na tradio historiogrfica que privilegia uma anlise

monogrfica e comparativa do processo de longo termo que antecede este ciclo de

agitao social, permitindo relacionar a evoluo da estrutura e da aco colectiva dos

trabalhadores.

The option to analyze the development of industrial social relations through the

co-implicated spatial and demographic processes, its based on assumption that the

industrial space and the working-class populations are socially produced, ie, the result

of different actors conflicting agency, among which stand out industrialists, the state

and the workers. The processes of industrialization and urbanization, intensified after

1890, were observed in an integrated perspective, taking into account the southern

dominant trends.

Nevertheless, the privileged object of research in this dissertation was the

workers strategic repertoire and their collective action. Industry concentration, but also

speculation urban equipment deficiency, induced diversified livelihood strategies,

which were analyzed using the most recent theoretical models. Were considered

household individual strategies - migration, savings or diversification of income

sources; strategies using foreign-aid - integration of informal networks of mutual aid;

and, finally, the participation in associations and social movements. The latter, in turn,

were subdivided among household-centered strategies - mutualism and consumer

cooperatives; enterprise-centered - production cooperatives and unions; and state-

centered strategies - structuring national associations and collective action.

The main objective of this analysis was to understand the material basis and

organizational resources that enabled the process of working-class mass mobilization in

the second decade of the twentieth century. The European revolutionary crisis of 1917-

1920 has been the target of numerous interpretations and empirical studies, my

approach joined the historiographical tradition that favors a monographic and

comparative analysis of the long-term process that proceeds this cycle of social unrest,

allowing to relate the structure and the workers collective action evolution.

8

NDICE

1. Introduo ............................................................................................................. 10

1.1 Definio do modelo terico .............................................................................. 10

1.2 O Estado da questo ........................................................................................... 15

1.2.1 A produo social do espao e a construo social das populaes ............... 15

1.2.2 O investimento no associativismo voluntrio e a evoluo do reportrio da

aco colectiva ..................................................................................................... 23

1.3. Fontes, mtodo e argumento.............................................................................. 33

2. A produo social do espao e das populaes ..................................................... 43

2.1 As tendncias meridionais .................................................................................. 43

2.1.1 Os espaos industriais: periferializao, concentrao e disciplina ............... 43

2.1.2 Os espaos residnciais: segregao, especulao e insalubridade ................ 58

2.1.3 As familias trabalhadoras: fixao, integrao e diviso sexual do trabalho .. 70

2.1.4 As comunidades operrias: redes e espaos de reciprocidade ....................... 79

2.2 O caso de estudo na Pennsula de Setbal........................................................... 94

2.2.1 A produo social do espao ........................................................................ 94

2.2.2 A diviso social do espao ......................................................................... 129

2.2.3 A evoluo das mobilidades e hierarquias .................................................. 154

2.2.4 A evoluo das proximidades e distncias sociais ...................................... 185

2.5 Os espaos dos trabalhadores ........................................................................ 208

2.2.5 A apropriao social do Espao .................................................................. 208

2.3 Concluso da primeira parte ............................................................................. 244

3. O repertrio estratgico dos trabalhadores ....................................................... 249

3.1 As tendncias meridionais ................................................................................ 249

3.1.1 Mutualidade e cooperao: a evoluo de solidariedades ancestrais ........... 249

3.1.2 Novo sindicalismo: a articulao das organizaes e o alargamento das

bases ................................................................................................................... 263

9

3.1.3 A ingerncia do Estado: condicionamento e tutela ...................................... 273

3.1.4 A evoluo do repertrio aco colectiva ................................................... 284

3.1.4 O papel do Estado na modelao do movimento ........................................ 295

3.2. O caso de estudo da Pennsula de Setbal ........................................................ 306

3.2.1 As estratgias centradas na economia domstica ........................................ 306

3.2.2 As estratgias centradas nas Relaes Sociais Industriais ........................... 340

3.2.3 As estratgias centradas no Estado ............................................................. 410

3.3 Concluso da segunda parte ............................................................................. 470

4. Concluso Final ................................................................................................... 478

5. Fontes................................................................................................................... 485

5.1 Fundos documentais de instituies pblicas .................................................... 485

5.2 Fundos documentais de instituies Privadas ................................................... 487

5.3 Fontes publicadas ............................................................................................. 488

5.3 Imprensa .......................................................................................................... 491

6. Bibliografia .......................................................................................................... 502

10

1. INTRODUO

1.1 DEFINIO DO MODELO TERICO

Tendo como objectivo principal compreender o processo histrico que induziu o

ciclo de agitao social que marcou o primeiro ps-guerra, elegi como objecto de estudo

a experincia e as estratgias dos trabalhadores da Pennsula de Setbal durante um

perodo de longo termo marcado por trs fenmenos interdependentes: a segunda

revoluo industrial, a germinao de reas metropolitanas e a construo do Estado

Moderno.

Debrucei-me prioritariamente nos dois primeiros fenmenos, observando os

processos espaciais e demogrficos co-implicados nos mesmos. A pertinncia do Espao

enquanto conceito operatrio tem vindo a ser largamente discutida pela sociologia

urbana e pela geografia humana1, tornando-se a produo social do espao e a

apropriao social do espao categorias analticas incontornveis. Para os historiadores,

os quadros interpretativos desenvolvidos nesta rea tornaram-se particularmente teis

quando as abordagens se distanciaram das estruturas para avaliar os processos. A

abordagem espacial dos processos sociais parte do princpio terico de que o Espao

no expressa apenas uma relao de poderes mas um processo de relaes e lutas entre

foras desigualmente colocadas na hierarquia social. O Espao assim analisado no s

no sentido em que contribui para instituir posies de desigualdade mas tambm novas

relaes sociais. A vila ou o bairro surgem como reas geogrficas em que se

territorializa um tecido de relaes sociais, cimentado pela vivncia e apropriao social

do Espao2.

Do pressuposto terico de que os espaos so socialmente produzidos derivou

um quadro interpretativo que permitiu compreender a formao histrica de

comunidades locais como um processo no qual agem mecanismos de construo social

de populaes. Segundo este modelo, a repartio dos grupos sociais no espao urbano

no se reduz conjugao de decises individuais e independentes umas das outras. O

processo de industrializao e urbanizao induziu a produo de novos espaos mas

1 Henri Lefebvre, La production de lespace.

2 Antnio Teixeira Fernandes, Espao Social e suas representaes. Separata da Revista da Faculdade

de Letras, I Srie, vol. II (1992) p61-62

11

tambm a mutao das caractersticas morfolgicas da populao, cujo exame

essencial para compreender a transformao das relaes sociais. Se em perodos

posteriores a sua distribuio resultou em primeiro lugar de mecanismos institucionais

(atravs de planos de urbanizao, por exemplo), no perodo em anlise a organizao

scio-espacial das populaes operou-se de forma complexa e pela agncia de variados

autores, com interesses distintos3.

A adopo destes dois conceitos analticos - produo social do espao e

construo social de populaes - na anlise histrica tem permitido observar os

diferentes agentes individuais e colectivos e as repercusses das suas aces conflituais

na transformao do territrio e dos movimentos demogrficos4. Recusando a

abordagem tradicional - segundo a qual os detentores dos meios de produo e o Estado

constroem um espao industrial e as camadas subalternas da populao, impotentes para

resistir progressiva perda de controlo sobre o processo produtivo, so envolvidas

involuntariamente em correntes migratrias massivas e sujeitas arbitragem do

mercado de trabalho industrial -, os estudos mais recentes analisam os indivduos e os

grupos que participaram neste processo e as estratgias colectivas que gizaram5.

Os trabalhadores, e em primeiro lugar o seu recurso organizacional primrio, o

grupo domstico, no se encontram impotentes perante este processo. Os estudos

sociolgicos clssicos interpretavam as transformaes operadas nas vidas dos

indivduos e grupos envolvidos, quer na converso da economia quer nos ciclos

migratrios do campo para a cidade, como uma ruptura radical. Segundo este modelo, a

integrao em redes alargadas de parentes e vizinhos perdiam-se na cidade cimentando

um novo modelo de relao. As famlias perdiam ainda as suas funes produtivas,

ficando o homem responsvel pelo salrio e a mulher pela gesto da vida domstica. Os

estudos histricos e socio-histricos, porm, permitiram observar fenmenos de

continuidade entre as sociedades rurais e urbanas, surgindo a famlia como uma

instituio capaz de preservar e reproduzir estratgias adquiridas, de resistir a essas

3 Marcel Roncayolo, Construction sociale ds populations. In: Georges Duby (cood.), Histoire de la

France Urbaine. Vol. V, p441-443 4 Espaos socialmente e populaes socialmente produzidos so conceitos analticos emprestados da

geografia humana e da demografia que tm vindo a ser largamente utilizadas pela historiografia europeia para reconstruir o processo de industrializao e urbanizao. Ver por exemplo Georges Duby (coord.),

Histoire de la France Urbaine ou Michael Savage, Space, networks and class formation. In: Social

Class and Marxism, p58-86. 5 Flemming Mikkelsen, Working-class formation in Europe: in search of a synthesis.

12

presses externas, ou mesmo at capaz de agir sobre a prpria mudana6.

O conceito de estratgia tem vindo a ser largamente utilizado e reelaborado para

analisar a agncia humana nos processos de transformao com os quais so

confrontadas as classes trabalhadoras durante o perodo em anlise. Segundo Michael

Savage, a sociedade capitalista, retirando os meios de subsistncia das mos dos

trabalhadores, t-los- constrangido a formular estratgias para lidar com a incerteza da

vida quotidiana, dando origem a relevantes resultados culturais e polticos7, um

processo que se eternizou designar como a formao da classe em si e para si8.

Esta ideia est implcita ou explicitamente presente nos mais significativos e

citados ensaios tericos sobre esta temtica. Ira Katznelson definiu quatro ngulos de

observao do fenmeno a estruturao de relaes de classe a um nvel macro-

econmico; a experincia de classe vivida nos locais de trabalho e nas comunidades de

residncia; os grupos de pessoas dispostos a agir em termos de classe; a aco colectiva

baseada na classe9. Michael Hanagan, adaptando este modelo, define os fenmenos

implicados na formao da classe operria como interesses, organizao social,

interaco e arena. Os interesses referem-se em primeiro lugar satisfao das

necessidades vitais de um grupo na estrutura econmica, ou seja obteno de recursos

capacidades, informao, conhecimentos no mercado de trabalho. Para isso, os

indivduos so obrigados a fazer parte de redes sociais, mais ou menos formais redes

de migrao, sindicatos, entre outras. Em determinados contextos e conjunturas, estes

recursos so apropriados nos processos de mobilizao para a aco colectiva10

.

Os historiadores que adoptam estes modelos tm vindo a analisar o que Savage

sintetizou como estratgias mutualistas atravs da associao autnoma destinada ao

provisionamento de empregos e servios; economicistas lutando por maior segurana

laboral atravs do movimento sindical e da negociao colectiva; ou estatistas

6 Ana Nunes de Almeida, Trabalho feminino e estratgias familiares. Anlise Social, Vol. XXI/85

(1985-1.) p8 7 Michael Savage, Space, networks and class formation. In: Social Class and Marxism, p58-86 8 Karl Marx, O 18 brumrio de Louis Bonaparte, p145 9 Ira Katznelson, Constructing Cases and Comparisons. In: Working Class Formation: Nineteenth-

Century patterns in Western Europe and United States, p21 10 Michael Hanagan e Charles Stephenson, Confrontation, class consciousness and the labor process:

studies in proletarian formation, p1-2

13

exigindo a interveno do Estado como garante da segurana material e bem-estar11

.

Mais recentemente, os investigadores tm vindo a incluir nas suas pesquisas, as

estratgias familiares informais, procurando relacion-las com a aco colectiva. Marcel

Van der Linden integra no repertrio estratgico das famlias trabalhadoras as

estratgias individuais do grupo domstico a migrao, a poupana ou a diversificao

de fontes de rendimentos; as estratgias recorrendo ajuda externa integrao de

redes de entreajuda informais; e, finalmente, a participao em associaes e

movimentos sociais. Estas ltimas, por sua vez, subdividiu entre as estratgias

household-centred o mutualismo e o cooperativismo de consumo; as entreprise-

centred as cooperativas de produo e os sindicatos; e as state-centred formao de

partidos polticos e aco colectiva12

.

Integrando neste quadro interpretativo a noo de produo social, os estudos

monogrficos sobre o processo em anlise nesta dissertao tm incluido, finalmente, o

exame da aco de outros protagonistas histricos. Angel Smith, analisando o mundo do

trabalho catalo, defende que a agitao social que marcou as primeiras dcadas do

sculo XX, antes de tudo um movimento marcado pela experincia no local de

trabalho e pela evoluo das relaes sociais nas comunidades de residncia, mas que as

estratgias levadas a cabo pelos empregadores, as polticas do Estado e os novos inputs

ideolgicos, neste caso de carcter classista, tiveram tambm um impacte fundamental

nas suas cosmografias, no tipo de organizaes que construram e nos movimentos de

protesto que levaram a cabo13

.

Como se pode verificar, os traos comuns a todas estas propostas tericas

destacam por um lado a evoluo das relaes face-a-face dos trabalhadores, induzidas

por fenmenos espaciais e demogrficos co-implicados nos processos de

industrializao e urbanizao que marcam este perodo e por outro as estratgias dos

trabalhadores interagindo com a aco de outros agentes sociais, nomeadamente os

industriais e o Estado.

11 Michael Savage, The Dynamics of Working-class Politics: The Labour Movement in Preston,

1880-1940, p19 12 Marcel Van der Linden, Introduction. In: Jan Kok (ed) Rebellious Families: household strategies

and collective action in the nineteenth and twentieth centuries, p7-9 13 Angel Smith, Anarchism, Revolution and Reaction: Catalan labour and the crisis of the spanish State,

1898-1923, p5

14

A agncia dos industriais indissocivel da evoluo das relaes sociais

industriais - relaes entre trabalhadores e o processo de produo, entre os

trabalhadores e os empregadores e entre os trabalhadores entre si14

. A agncia do Estado

inextrincvel da evoluo do repertrio de aco colectiva. O modelo terico

avanado por Charles Tilly demonstra como a crescente interveno governamental nas

esferas econmica e social induziu a articulao translocal e a politizao dos

movimentos sociais15

.

De facto, se parte do reportrio estratgico das famlias laboriosas tem vindo a

ser observado no quadro do processo global de produo social do espao e das

populaes, as estratgias centradas na aco colectiva so comummente analisadas em

relao com a emergncia do Estado moderno. A proposta terica de Charles Tilly,

actualizada recentemente com o novo programa de investigao, dinmica de conflicto,

ilustra sobretudo que quando a contestao se dirige ao Estado que possvel entrever

a complexificao da arena poltica por via da expanso e articulao das instituies e

movimentos sociais16

.

Os historiadores, baseando-se nestes modelos, procuram compreender no s a

evoluo do repertrio de aco colectiva durante perodos de longo termo mas tambm

analisar as conjunturas excepcionais que estiveram na base dos grandes ciclos de

agitao social como a crise revolucionria de 1917-1920. Para isso avaliam a estrutura

de oportunidade poltica - relativa abertura ou fechamento do sistema poltico, a

estabilidade ou instabilidade de alianas entre as elites, a presena ou ausncia de

aliados entre as elites, a capacidade do Estado e a propenso para a represso e os

programas polticos17

.

14 Michael Hanagan e Charles Stephenson, Confrontation, class consciousness and the labor process: studies in proletarian formation, p1-2 15

Charles Tilly, La France conteste de 1600 nos jours. 16 Charles Tilly, Doug McAdam e Sidney Tarrow, Dynamics of Contention. 17 Keith Mann - Forging political identity. Silk and metal workers in Lyon France 1900-1939, p6-11

15

1.2 O ESTADO DA QUESTO

1.2.1 A PRODUO SOCIAL DO ESPAO E A CONSTRUO SOCIAL DAS

POPULAES

Poder-se-ia enunciar um dos mecanismos conceptualizados pelos tericos da

dinmica de conflicto18

a competio para interpretar o espantoso progresso do

campo historiogrfico que se debrua sobre o operariado e o movimento operrio. No

obstante as motivaes ideolgicas de cada corrente e a relao entre modas

historiogrficas e conjunturas polticas, o que facto que a persistente polmica em

torno das classes trabalhadoras e das suas prticas sociais e polticas foi um poderoso

motor de desenvolvimento desta linha de investigao nos ltimos cinquenta anos.

A historiografia ocidental referente a este perodo, quer no que respeita aos

inquritos empricos quer no que concerne aos quadros interpretativos, profundamente

marcada pelo conceito de classe. Mesmo as reaces crticas validade analtica do

mesmo destacando a mobilidade geogrfica e social dos trabalhadores, a sua

estratificao e multiplicidade de identidades - vieram a fornecer ferramentas

extremamente teis anlise histrica da produo social da solidariedade e da

evoluo do repertrio de aco colectiva no mundo do trabalho industrial19

.

As propostas terico-metodolgicas que me orientaram so largamente

tributrias da ruptura com a abordagem clssica da histria das organizaes em favor

da inquirio histrica experincia dos de baixo. No entanto, tendo em considerao

os limites e contradies dos estudos que compartimentam a experincia e a prtica

poltica dos trabalhadores, integrei igualmente na minha anlise os novos programas de

investigao que atentam ao papel das instituies e os quadros interpretativos que

destacam a agncia do Estado moderno em formao na progressiva politizao das

estratgias dos trabalhadores.

A minha anlise devedora de um longo e rduo percurso historiogrfico. No

tenho a pretenso de levar a cabo a tarefa colossal de o resumir. Procurarei apenas

enunciar os contributos das diferentes correntes e tendncias que orientaram a minha

18 Charles Tilly, Doug McAdam e Sidney Tarrow, Dynamics of Contention. 19 Mauriziu Gribaudi, Susana Magri, Christian Topalov, entre outros.

16

investigao e me ajudaram a delinear um quadro interpretativo adequado ao meu

objecto de estudo.

E. P. Thompson, ao inaugurar uma nova histria social exactamente h meio

sculo, induziu um notvel investimento cientfico na anlise diacrnica das relaes

sociais dentro e fora da produo, nos locais de trabalho e nos espaos de lazer, nas

redes formais e informais de entreajuda e previdncia. A profuso de estudos

monogrficos analisando o perodo de intenso crescimento industrial e urbano iniciado

em finais do sculo XIX permitiu certificar a afirmao do autor, segundo a qual a

noo de classe traz consigo a noo de relao histrica. Como qualquer outra relao,

algo fludo que escapa anlise se tentarmos imobiliz-la num determinado momento

e dissecar a sua estrutura (). Se detivermos a histria num determinado ponto, no h

classes, mas simplesmente uma multido de indivduos com um conjunto de

experincias. Mas se examinarmos esses homens durante um perodo adequado de

mudanas sociais observaremos padres nas suas relaes, nas suas ideias e

instituies20

.

Em reaco perspectiva culturalista, desenvolveu-se uma contracorrente que

centrou a sua ateno na mobilidade e na estratificao das classes trabalhadoras, pondo

em causa a crescente homogeneidade e estabilidade do mundo operrio. Os mais

significativos dados empricos recolhidos com estas abordagens no contexto meridional

apresentaram-se em seminrios como La mobilit del lavoro operaio in Italia tra

Ottocento e prima meta de novecento em Itlia ou Villes Ouvriers em Frana. Este tipo

de anlises foram imprescindveis para realar a diversidade dos grupos operrios, a sua

estreita ligao com a restante realidade social e a distino dos seus percursos. As

temticas abordadas por estes autores relacionaram-se ainda com a mobilidade

residencial e profissional, as formas de emprego, a evoluo da organizao do trabalho,

a poltica de alojamento, as polticas patronais e dos poderes pblicos, bem como a

margem de manobra e a resistncia operria a estes constrangimentos21

.

Foi escala do lugar que se observou com maior nitidez a estratificao dos

mercados de trabalho, a diversidade dos itinerrios individuais e a consequente

heterogeneidade das classes trabalhadoras e suas estratgias de sobrevivncia. Foram

20 E. P. Thompson A formao da Classe Operria Inglesa: A rvore da Liberdade. Tomo I, p9-12 21 Susanna Magri e Christian Topalov (ed.), Villes Ouvriers 1900-1950.

17

igualmente os estudos monogrficos que ilustraram com eloquncia os elos de

solidariedade formal e informal que trespassavam as comunidades onde se fixaram

fbricas, oficinas, estaes ferrovirias, portos martimos e fluviais e se concentraram

largos contingentes de trabalhadores assalariados. Paralelamente, os estudos como o de

Roger Gould sobre a Comuna de Paris vieram demonstrar como as redes implicadas na

mobilizao popular se enraizaram no s nas relaes nos locais de trabalho mas

tambm nas de vizinhana, induzindo a proliferao de estudos concentrados nos

espaos fora da fbrica22

.

Recentemente, porm, os investigadores tendem a recusar a compartimentao

dos estudos sobre a fbrica e o territrio, relacionando a realidade fora da fbrica a

cultura material, as relaes familiares e sociais, os percursos migratrios, a relao

com a comunidade de origem, a mobilidade residencial, ocupacional e social com as

relaes de produo e particularmente com o mercado de trabalho. Os resultados destas

mltiplas investigaes demonstraram como o trabalho industrial, mesmo quando

precrio e ocasional, influu na vida quotidiana, na organizao da famlia, do espao e

tempo de sociabilidade, assim como a relao com a hierarquia das empresas e com os

companheiros de trabalho foi condicionada pelas conexes comunitrias, comeando

desde logo pelo recrutamento de mo-de-obra que percorria os fios das redes sociais,

pessoais, de parentesco e vicinais23

.

Estas diferentes tipologias de redes e os distintos padres de insero nas

mesmas foram uma das problemticas mais desenvolvidas nos estudos monogrficos

sobre o processo em anlise. Os seus resultados empricos demonstram como as

famlias envolvidas nos ciclos de migrao e integrao nos mercados de trabalho

industrial e urbano no foram agentes amorfos e que as suas estratgias induziram

itinerrios diversos, que se entrecruzaram nos scio-espaos germinados em torno das

principais cidades Sul europeias. Debruando-se sobre um dos mais mticos bairros

operrios de Turim o Borgo de San Paolo , Maurizio Gribaudi observou uma grande

diversidade de percursos e relaes. No deixou, todavia, de estabelecer os limites

destas variaes nas fronteiras da condio operria e chamar a ateno para a

22 Cit. por Mike Savage Classe, Histria do Trabalho e da Classe Trabalhadora na Europa. In: C. H.

M. Batalha, F. T. da Silva e A. Fortes, Culturas de Classe, p25-48 23 Stefano Musso, Gli operai nella storiografia contempornea. Rapporti di lavoro e relazioni sociali,

Annali, XXXIII (1999), pIX-XLVI

18

recomposio das classes trabalhadoras escala do lugar: Vimos famlias durante o

ciclo de integrao, diversificadas por situaes e identidades, se reunirem nos mesmos

espaos devido necessidade comum de garantir famlia e ao prprio indivduo, a

utilizao de recursos emocionais e econmicos que as redes locais de relao lhes

forneciam ()24

. Estas necessidades e estratgias induziram uma significativa

evoluo das proximidades e distncias sociais25

.

Ainda no quadro desta linha de investigao, a observao ampliada da evoluo

das sociabilidades e das associaes, dos espaos de reunio formal ou informal,

mostrou-se indispensvel para compreender a importncia da interaco quotidiana

cara-a-cara na germinao da aco colectiva seja ela na taberna, no local de trabalho,

no caminho para casa ou na sede da associao26

.

Actualmente, para alm das instituies enquanto recursos organizacionais e

factores de politizao, uma nova ateno tem vindo a ser dada aos espaos autnomos

dos trabalhadores, s suas sedes e equipamentos. Como defendeu Charles Tilly, estes

tiveram um papel fundamental na aco colectiva, uma vez que a existncia de espaos

seguros, onde os trabalhadores pudessem discutir e organizar-se seja qual for a sua

forma, so condio sine qua non dos movimentos sociais27

. A mesma relevncia

atribuda por James Scott aos espaos sociais off-stage, considerando que impossvel

uma efectiva resistncia sem a comunicao e a coordenao dos grupos subordinados

em espaos protegidos da perseguio e da represso28

.

Os modelos de anlise dos equipamentos colectivos valorizam a propriedade

legal dos espaos e dos seus valores sociais, a sua apropriao sociocultural atravs das

prticas e significados a estes associados, bem como a germinao de identidades

simblicas a partir da experincia quotidiana. Estes modelos tem como base no s o

24 Maurizio Gribaudi, Itinraires ouvriers: espaces et groupes sociaux Turin au dbut du XX sicle,

p234-235. 25 Frdric Vidal, Les habitants dAlcntara: histoire sociale dun quartier de Lisbonne au dbut du

xxe sicle 26 Bob Edwards, Michael W. Foley and Mario Diani, Beyond Tocqueville: Civil Society and the Social

Capital debate in comparative perspective, p17 27 Charles Tilly, Contention over space and place, Mobilisation, 8/2 (2003) 28 James Scott, Domination and arts of resistence: Hidden Transcripts.

19

conceito de espao socialmente produzido mas tambm o de produo de espaos como

produo de poderes reais ou simblicos29

.

Este debate intercepta o campo dos estudos patrimoniais, e nomeadamente

aqueles que se debruam sobre os vestgios materiais da industrializao. No obstante

a viragem contra a classe social30

que marcou as dcadas de 1980 e 1990, nos ltimos

anos uma maior ateno tem vindo a ser dada ao patrimnio tangvel e intangvel dos

de baixo - espaos e lugares mas tambm tradies ou expresses artsticas. Tendo

uma natureza muitas vezes dissonante, relacionada com o conflito e o protesto social,

este patrimnio reflecte igualmente um processo cultural marcado pela contestao e/ou

negociao de valores, narrativas, memrias e significados31

.

Ainda no quadro da crescente importncia conferida ao Espao nos processos

sociais, tem-se vindo a examinar a relao o mundo operrio e urbano, procurando

desvendar tanto o perfil sociolgico dos distintos estratos da classe operria como as

orientaes da vida quotidiana no Espao. Uma vez analisados estes campos, os

historiadores no deixam de os relacionar com a aco poltica e sindical, analisando o

peso dos factores espaciais na aco colectiva e nas lutas polticas. A anlise scio-

espacial abriu novos caminhos na compreenso do processo de formao da classe

operria, no qual as directrizes da vida quotidiana na cidade no foram simples

espectadores inertes. O espao urbano, a cidade quotidiana, foram tomados como uma

varivel explicativa32

.

Muito recentemente, os estudos que enfatizam o significado das lutas

relacionadas com o consumo dos trabalhadores integram esta mesma corrente

historiogrfica. Rejeitando a oposio entre classe operria e consumidores, estes

estudos consideram que as questes relacionadas com as condies de vida, nos espaos

residenciais, se inter-relacionam com as relacionadas com as condies de trabalho nos

espaos de produo e so fundamentais para a formao de uma identidade social de

29 Henry Lefebvre, La Production de LEspace; Raimond Ledrut, Les images de la ville; Jean-Paul

Rmy, Ville Ordre et Violence: forms spaciales et transaction sociale. 30 Michael Savage, The remaking of the British working class: 1840-1940, p10 31

Laurajane Smith, Paul A. Shakel e Gary Campbell, Heritage, Labour and the working class, p1-4 32 Jos Luis Oyon, La ruptura de la ciudad obrera y popular. Espacio urbano, inmigracin y anarquismo

en la Barcelona de entreguerras, 1914-1936, Historia Social, n. 58 (2007) p123

20

base classista, particularmente num perodo em que a estratificao dos trabalhadores

dentro da fbrica era muito acentuada33

.

Em Portugal, a produo cientfica destacando o papel do Espao, dos

movimentos demogrficos e das redes de relao nos processos sociais escassa e

relativamente recente. Estas abordagens, todavia, questionam fenmenos incontornveis

para a compreenso do processo de longo termo aqui em anlise, nomeadamente a

evoluo dos padres de mobilidade geogrfica e social, bem como de relacionamento

nos bairros urbanos contemporneos34

. Os resultados preliminares deste percurso

historiogrfico indiciam que o contexto urbano e suburbano, no qual o operariado

portugus se concentrou a partir da ltima dcada de oitocentos ter propiciado o

cadinho para a germinao de novas sociabilidades, indissociveis das condies de

vida que os seus habitantes encontraram nestes novos ambientes espaciais35

. Entre os

estudos com esta abordagem sobre a realidade portuguesa, necessrio destacar o

trabalho de Frdric Vidal sobre o bairro de Alcntara um dos primeiros bairros

industriais de Lisboa36

.

O interesse dos investigadores pelas anlises monogrficas, bem como o

reconhecimento da necessidade de confrontar os dados recolhidos nas mesmas, tem-se

desenvolvido desde os anos setenta de novecentos. Foram encontradas especificidades

na experincia concreta de cada comunidade, mas tambm importantes paralelos que

justificaram ento a proliferao dos estudos comparativos. Reuniram-se nos mesmos

volumes casos de estudo franceses, italianos, alemes, norte-americanos, etc. A

confrontao dos dados recolhidos em diferentes contextos induziu as seguintes

concluses: a partir da ltima dcada de oitocentos, a deslocalizao da indstria para

a periferia, no sendo acompanhada de um progresso dos transportes urbanos

suficientemente rpido, ter dado origem a reas industriais e bairros operrios que se

33 Tyler Stovall, Paris and the spirit of 1919: consumer struggles, transnationalism and revolution, p15-24 34 Frdric Vidal, Les habitants dAlcntara. Histoire sociale dun quartier de Lisbonne au dbut du

xxe sicle; Antnio Firmino da Costa, Sociedade de Bairro: Dinmicas Sociais da Identidade

Cultural; Graa ndias Cordeiro, Um Lugar na Cidade: Quotidiano, Memria e Representao no

Bairro da Bica. 35 Nomeadamente os trabalhos desenvolvidos no mbito da Histria Urbana, cujos resultados tm vindo a

ser publicados na Revista Ler Histria. 36 Frdric Vidal, Les habitants dAlcntara au dbut du XX sicle: Indentits, proximits et distances

sociales dans un quartier industrialis de Lisbonne, p35 e 350

21

tornaram centros de uma intensa vida comunitria, desenvolvida a partir da

sobreposio fsica das esferas da produo, consumo, lazer e aco colectiva37

.

A abrangncia territorial, todavia, no comprometeu uma observao

aproximada. Por exemplo, no volume de 1982 da revista Mouvement Social,

subordinado temtica Ouvriers dans la ville ou o editado pelos Annali em 1992,

Strikes, social conflict and the First World War. An international perspective, o estudo

comparativo feito entre regies especficas, em detrimento dos contextos nacionais. A

regio de Paris, de Turim, a baixa Normandia, Hanover, Petrogrado, o vale do Ruhr, a

zona Este de Londres, entre outras, so postas em paralelo.

Noutros projectos semelhantes, como Rebelious Century de Charles, Richard e

Louise Tilly ou Working Class Formation dirigido por Ira Katznelson e Aristide Zolberg

ou Work, Community and Power editado por James Cronin e Carmen Siriani, a

relevncia dada comunidade central. Michelle Perrot sublinha no seu contributo que

a conscincia da classe trabalhadora francesa reside na aliana da cultura popular, da

qual a famlia e a vizinhana eram uma componente essencial, com um sentimento de

identidade baseado na conscincia do seu destino comum, na sua relao com a

produo, entre outras condicionantes. Este sentimento de identidade expressava-se e

reforava-se nos discursos, smbolos e aco dos seus membros mais activos38

.

Portugal raramente tido em considerao na histria comparada deste processo.

No entanto, como podemos comprovar na organizao de um conjunto de quatro

encontros de investigadores locais que tiveram lugar em Portimo, Lisboa, Almada e

Porto durante o ano de 2011, a produo cientfica nacional nesta rea no s rica

como multidisciplinar. Nestes congressos procurou-se contribuir para uma

caracterizao ampliada do Mundo do Trabalho tendo em considerao a evoluo das

estruturas econmico-sociais, o legado material e imaterial, as interaces sociais no

espao, a densidade sociolgica dos modos de vida, entre outras abordagens essenciais

compreenso desta complexa realidade social e aos processos histricos que a

transformaram ao longo dos sculos XIX e XX.

37 James Cronin, Labor Insurgency and Class formation: Comparative perspectives on the crisis of 1917-

1920 in Europe. In: Work, Community and Power, p36 38 Michelle Perrot, On the formation of the French Working Class. In: Ira Katznelson and Aristides R.

Zolberg, Working-class formation, p105-106

22

As especificidades e as analogias perceptveis entre os casos de estudo que se

apresentaram fizeram sobressair algumas caractersticas transversais ao contexto em que

germina o movimento autnomo dos trabalhadores a generalidade das dificuldades

materiais, a relevncia das sociabilidades familiares e supra-familiares, as estratgias

que estiveram na base da construo de um tecido associativo multifacetado, que

conheceu um processo de politizao, nomeadamente no perodo em anlise nesta

dissertao.

Em suma, os estudos monogrficos so essenciais para a anlise da formao das

reas industriais e das comunidades operrias e para compreenso do seu papel no

processo histrico39

. Neste sentido, necessrio sublinhar que a minha investigao

largamente tributria do contributo dos investigadores portugueses e alm-fronteiras que

tm contribudo para o aprofundamento desta linha de investigao, permitindo a sua

observao comparada. necessrio evidenciar as investigaes que incidiram sobre a

Pennsula de Setbal. Entre estas destaco a de Maria Alfreda da Cruz, analisando as

formas de organizao do espao na margem Sul do esturio do Tejo ao longo do

perodo em anlise, importantssima para compreender as novas relaes sociais que se

desenvolveram em consequncia da expanso do sector industrial na regio. de

destacar igualmente a tese de Maria da Conceio Quintas que atenta evoluo da

economia Setubalense a partir da ltima dcada do sculo XIX e observa

detalhadamente as prticas sociais e as manifestaes culturais do operariado local.

Finalmente, de referir a obra de Alexandre Flores, incidindo num dos sectores

dominantes na regio, o corticeiro, ilustrando no s as transformaes na organizao

do trabalho nesta indstria, mas tambm o protagonismo dos seus trabalhadores, quer

no desenvolvimento do associativismo quer na evoluo do repertrio de aco

colectiva das populaes locais.

A minha tese deve ainda, e muito, aos inmeros estudos realizados na regio,

referentes aos principais sectores industriais, unidades de produo, espaos urbanos,

condies de vida e trabalho dos seus habitantes, relativos ao associativismo local, aos

movimentos reivindicativos, etc. A preocupao do poder local com a preservao da

memria colectiva das populaes tambm permitiu a conservao de fundos

39Bruno Monteiro e Joana Dias Pereira, De p sobre a terra. Estudos sobre a indstria, o trabalho e o

movimento operrio em Portugal.

23

documentais nos arquivos municipais de excepcional pertinncia para a minha pesquisa.

O mesmo se poder dizer de outras instituies no oficiais, como as prprias

associaes.

de sublinhar, finalmente, que os investigadores locais, muitos deles sem

formao acadmica, esto entre os mais dedicados operrios da histria dos de baixo

e sem o seu empenho na reconstruo histrica qualquer um dos estudos supracitados

estaria condenado. As teses e as outras obras que resultam desta dinmica de

investigao regional sero largamente citadas ao longo do texto e sem o seu papel

pioneiro o meu trabalho seria irrealizvel.

1.2.2 O INVESTIMENTO NO ASSOCIATIVISMO VOLUNTRIO E A EVOLUO DO

REPORTRIO DA ACO COLECTIVA

Nos estudos clssicos, o associativismo popular voluntrio surge como uma

ruptura com as formas de integrao social tradicionais impostas nascena

parentesco, comunidade, corporaes, entre outras destacando-se uma profunda

transformao operada pela revoluo liberal ao nvel das sociabilidades, que

ultrapassava os esquemas rgidos que enquadravam as interaces sociais tradicionais.

Os estudos histricos, porm, tm sublinhado as continuidades em detrimento das

rupturas, dando azo a um frutfero debate em torno da herana do corporativismo e

outras formas de associao ancestrais no movimento associativo moderno40

.

No que respeita diversidade de associaes que germinaram nos sculos XIX e

XX, tm sido avanadas diversas periodizaes e tipologias. Alguns historiadores

optaram por distinguir entre momento social associativo e momento social poltico, o

que lhes permitiu analisar a germinao do fenmeno associativo em estreita relao

com as formas de associao ancestrais e informais e a sua politizao posterior sob o

impacte da interveno e construo do Estado moderno41

. No que respeita s

tipologias, Levasseur distingue os grupos expressivos, que existem para responder ou

satisfizer interesses especficos que os membros tm em comum e que incluem as

40 Luigi Trezzi, Eredit corporativa nella cooperazione. In: Maria Teresa Maillari (coord.), Storiografia francese ed italiana a confronto sul fenmeno associativo durante XVIII e XIX secolo, p97-101 41

Franco Ramela, Aspetti della societ operaia nellItalia dellottocento. Analisi de un caso. In: Maria

Teresa Maillari (coord.), Storiografiafrancese ed italiana a confronto sul fenmeno associativo durante

XVIII e XIX secolo, p172

24

associaes recreativas, desportivas e afins, e os grupos instrumentais, que focam a suas

actividades na persecuo de benefcios econmicos, sociais ou polticos, como as

sociedades de socorros mtuos, as cooperativas ou os sindicatos42

.

A historiografia da sociabilidade, com particular desenvolvimento no contexto

francs, tem vindo a relacionar o nascimento das associaes voluntrias com a

evoluo dos padres de sociabilidade sob o impacte dos processos de expanso do

capitalismo nos campos, industrializao e urbanizao43

, ao passo que a italiana ou a

espanhola chamam a ateno para o seu papel como componente integral da histria da

politizao e controlo social44

.

Na sua diversidade, os estudos sobre o associativismo, incluindo a suas variadas

tipologias, tornaram-se indispensveis para apreender o processo de recomposio das

classes trabalhadoras, no qual as agremiaes tiverem um papel fundamental.

Particularmente os estudos que se debruaram sobre a evoluo das solidariedades na

Europa oitocentista, demonstraram como esta articulao se entrev nas comunidades

locais onde se concentravam os trabalhadores assalariados.

No contexto nacional, como alm-fronteiras, tem vindo a ser analisada a

importncia do associativismo na sua vertente pedaggica, nas suas funes

assistenciais e como organizador da nova sociabilidade urbana45

. As evidncias

empricas demonstram que a sociedade civil criou mecanismos de identidade e pertena,

transmitindo e validando modelos comportamentais, valores e uma cultura do trabalho e

da cidadania, claramente expressos nos seus estatutos, mas denunciam igualmente

factores de excluso, entre os o gnero46

. Por outro lado, tem sido investigado o grau de

participao nestas estruturas, mitigando-se a ideia de que na Europa Meridional as

42 R. Levasseur (ed.), De lasociabilit: spcificitetmutations, p33-56 43 Maurice Agulhon, Expos de clture. In: Levasseur (ed.), De lasociabilit: spcificitetmutations,

p327-345 44Dora Marucco, Iniciativa Pubblica e associazionismo operaio. In: Maria Teresa Maillari (coord.),

Storiografia francese ed italiana a confronto sul fenmeno associativo durante XVIII e XIX secolo, p78 45 Teresa Mirri Larrubia, Migrantes en las jvenes sociedades industriales: integracin y diferenciacin

social. Historia Social, n. 26 (1996) p93-95; Graa Indias Cordeiro, Um lugar na cidade: Quotidiano,

memria e representao no Bairro da Bica; Antnio Firmino da Costa, Sociedade de Bairro. Dinmicas

Sociais da Identidade Cultural. 46 Jorge ria, Entorno a lascomunicaciones presentadas a: associativismo. In: Santiago Castillo e Jos

M. Ortiz de Orruo (coord.), Estado, protesta y movimientos sociales, p339-347; Luigi Tomassini,

Lassociazionismo operaio: il mutualismo nellItalia liberale. In Stefano Musso, Tra Fabrica e Societ,

p24-41

25

populaes eram hostis associao formal47

.

Nos estudos monogrficos que incidem em espaos de recente vocao

industrial, o papel das associaes no passa igualmente despercebido. Maurizio

Gribaudi valoriza-as numa tripla perspectiva: como criadoras de imagens que sugerem a

migrao, como espaos que possibilitam e estimulam a mobilidade social e como

substitutos do Estado na cobertura das necessidades assistenciais mnimas48

. O trabalho

de Teresa Mirri Larrubia, centrado em Sant Mart de Provenals, el Obrador de

Barcelona, por exemplo, destaca a mtua dinmica gerada entre os recm-chegados e o

tecido social das classes populares locais49

.

O movimento organizativo do operariado destaca-se na obra de outros autores

hispnicos, incidindo em outras regies da Pennsula. Tambm nas comunidades

andaluzas analisadas por Manuel Morales Munz, o papel histrico do associativismo

popular evidenciou-se como extraordinariamente complexa e fecunda, no que se refere

integrao dos recm-chegados, superao de carncias materiais, organizao do

lazer, mas tambm resistncia, nomeadamente durante os surtos grevistas50

.

Com efeito, o associativismo, entendido como um movimento, reflecte uma

possante dinmica de articulao das diferentes formas de organizao das classes

trabalhadoras quer no plano geogrfico quer no que respeita aos objectivos e contedos

entrelaando a assistncia e a previdncia com a cultura, o recreio e o desporto, bem

como com funes de tipo sindical e cooperativo. As anlises monogrficas ilustram de

que forma este processo intercepta o percurso poltico do movimento operrio,

constituindo um perodo de incubao de orientaes e prticas que antecedem as

propriamente polticas. As evidncias empricas demonstram que a rede de interesses e

relaes que se vinha criando fornecia um substrato essencial () para a formao de

47Patricia R. Turner, Hostile Participants? Working-Class Militancy, Associational Life, and the

Distinctiveness of Pre-War French Labor Movement, The Journal of Modern History, 71/1 (Maro de

1999) p28-55; Ana Paula Rocha da Costa Saraiva, Associativismo mutualista em Lisboa na segunda

metade do sculo XIX, p67-79; Maria Alexandre Lousada, Tradio e renovao nas associaes

profissionais. On: Joo Freire (org.), Associaes Profissionais em Portugal. 48 Maurizio Gribaudi, Mondo operaio e mito operaio. Spazi e percorsi sociali a Torino nel primo

novecento, p35 e seguintes 49 Teresa Mirri Larrubia, Migrantes en las jvenes sociedades industriales: integracin y diferenciacin

social, Historia Social, 26 (1996). 50 Manuel Morales Munz Un Espacio prprio, sociabilidad e identidad obrera en Andaluca in Histria

Social, n. 56 (2006)

26

recursos, experincia, quadros, de absoluta relevncia para todo o movimento

operrio51

.

O desenvolvimento do associativismo operrio e a sua impregnao nas redes

sociais, particularmente nas reas de vocao industrial, reconhece-se em diversos

contextos nacionais. Danielle Jalla, ao analisar a cultura gerada nos bairros operrios de

Turim, defende que as doutrinas operrias no se constituem apenas como um corpus

terico ou linhas polticas. Nestas comunidades, as ideologias que preconizam a

emancipao social formavam ainda um conjunto de comportamentos, atitudes e valores

que se reflectiam nas redes sociais, nas colectividades e na aco dos activistas de

bairro52

.

nos perodos de agitao social que se torna mais inteligvel a densidade

sociolgica do quotidiano e se vislumbra a eficcia das redes de solidariedade

germinadas. Diferentes autores, analisando distintos contextos, observam de que forma

as paralisaes laborais so sustentadas por campanhas organizadas pelas associaes

trabalhadoras, atravs de cotizaes, colectas pblicas e espectculos benficos53

. Estas

abordagens no deixam de herdar o legado dos estudos clssicos que analisaram o

associativismo como uma emanao da conflitualidade social, a tradio historiogrfica

centrada na anlise das instituies sindicais e politicas que se ergueram com o

propsito de representar os trabalhadores.

Como j foi referido, a nova histria social surgiu em ruptura com esta tradio.

Recentemente, contudo, vrios autores tm vindo a chamar a ateno para a necessidade

de uma nova sntese, reconhecendo o significativo papel dos partidos, sindicatos e

outras instituies na experincia dos trabalhadores54

- contribuindo para criar unidade

entre grupos fragmentados mais do que para responder aos interesses de grupos

especficos55

. De acordo com estes estudos, as instituies, longe de serem simples

51 Luigi Tomassini - Lassociazionismo operaio: il mutualismo nellItalia liberale in Stefano Musso -

Tra Fabbrica e Societ, p8-9 52 Danielle Jalla, Le quartier comme territoire et comme reprsentation: les barrires ouvrires de

Turin au dbut du XXe sicle, Le Mouvement Social, n. 118 (Janeiro-Maro de 1982) p79-97 53 Teresa Mirri Larrubia, El processo de formacin del proletariado en un bairro industrial. El caso de San

Marti de Provenals. Integrao e diferenciao social. 1862-1925, Universidade de Barcelona, Setembro

de 1994; Manuel Morales Munz, Un Espacio prprio, sociabilidad e identidad obrera en Andaluca. Histria Social, n. 56 (2006) 54

James Cronin, Neither Exceptional nor peculiar: comparative study of labour in advanced society

International Review of social History, 38 (1993) p59-75 55 Jon Lawrence, Speaking for the people: Party language and popular politics in England, 1867-1914.

27

consequncias da formao da classe operria baseada nas relaes de produo, so

agentes fundamentais da criao do sentido de classe entre os seus apoiantes56

.

No que respeita especificamente ao movimento organizativo e reivindicativo dos

trabalhadores, e particularmente sobre este perodo marcado por ciclos de agitao

social massivos e globais, a produo historiogrfica abundante. A passagem do

sindicalismo de ofcio ao de indstria tem vindo a ser analisado como uma etapa

fundamental na histria do movimento operrio ocidental, procurando acompanhar a

metamorfose da estrutura industrial e das classes trabalhadoras ao longo dos primeiros

decnios do sculo. Este desenvolvimento prendia-se fundamentalmente com a

incapacidade dos trabalhadores qualificados preservarem o controlo do mercado de

trabalho e com a consequente necessidade de integrar as massas indiferenciadas57

.

Esta adaptao foi designada de novo sindicalismo e analisada sobretudo numa

perspectiva comparativa, sublinhando-se que foram seguidas estratgias diferenciadas

em cada contexto nacional ou regio e que a tendncia nos pases meridionais foi a local

e federalista, ao contrrio do que aconteceu em pases como a Inglaterra ou a Alemanha,

onde a opo nacional se justificou pelo maior desenvolvimento da economia e

consequente possibilidade de negociao colectiva. No entanto, a luta por uma

estrutura sindical mais abrangente foi universal e dirigida primordialmente contra os

ofcios e outros seccionalismos, procurando-se agregar os trabalhadores por ramo

industrial. Este movimento encontrou forte resistncia por parte da designada

aristocracia operria, permanecendo a maioria das estruturas sindicais mistas nos

vrios contextos nacionais58

.

O movimento associativo surge ainda com especial destaque nos estudos sobre a

sociedade civil. Entre os conceitos clssicos da teoria poltica utilizados no discurso

cientfico contemporneo, este provavelmente o que conheceu uma mais dramtica

ressurgncia nas ltimas dcadas. Estas anlises so profundamente marcadas pelo

quadro terico formulado por Alexis de Tocqueville, sublinhando a importncia de uma

56 Jrgen Kocka, The New trends in labour movement historiography: a German perspective,

International Review of social history, 42 (1997) p67-78 57 John Breuilly, Labour and liberalismo in nineteenth-century Europe, p89-93 58 Eric J. Hobsbawm, O Novo Sindicalismo em perspectiva. In: Mundos do Trabalho, p240-252

28

fremente vida associativa como garantia de democracia e proteco contra a inevitvel

intruso do governo na esfera pblica e privada59

.

Robert Putman importou este quadro terico para a historiografia tendo o seu

trabalho sobre a evoluo da poltica regional italiana desde a Idade Mdia dominado os

debates em torno do papel da sociedade civil no processo histrico. Segundo a sua

anlise, o actual sucesso da governao liberal no Norte de Itlia face ao Sul deriva da

natureza da governao medieval as repblicas comunais na gesto das quais os

cidados participavam atravs de concelhos, guildas e irmandades. Este tecido

associativo garantiu a germinao posterior de uma vibrante sociedade civil dominada

por lojas manicas, clubes, etc., que garantiram o vigor das instituies democrticas60

.

O aprofundamento da investigao histrica sobre o associativismo demonstrou,

todavia, que quer as associaes profissionais tpicas do Antigo Regime quer as redes

de solidariedade comunitrias que recuam Idade Mdia acumularam capital social que

se perpetuou no perodo liberal mas que foi utilizado noutras arenas que no apenas a da

construo da democracia61

.

Por outro lado, no campo da cincia poltica, para alm das correntes neo-

tocquevillinanas, destacaram-se os precursores do institucionalismo histrico,

preconizando a observao do papel do Estado, definido como o sistema administrativo,

legal e coercivo, na estruturao das relaes no seio da prpria sociedade civil62

. Nesse

sentido, os historiadores tm vindo a analisar no apenas de que forma a sociedade civil

influiu na natureza dos regimes mas tambm como a crescente interveno econmica e

social das autoridades oficiais modelou o associativismo voluntrio. Tem vindo a ser

verificado empiricamente que, no descurando as causas socioeconmicas que

estimularam o progresso da sociedade civil, desde os finais do sculo XIX, o giro

intervencionista da administrao pblica contribuiu para activar o desenvolvimento

indito do activismo popular63

.

59 Alexis de Tocqueville, Democracy in America (1835). 60 Robert Putman, Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. 61 Robert I. Rotberg Patterns of social capital: stability and change in historical perspective, p5 e seguintes 62

Theda Scockpol, Bringing the State back in: strategies of analysis in current research. In: Evans et al.

, Bringing the State Back in, p7-4 63 R. S. Alexander, Europes uncertain Path: State formation and Civil Society, p221

29

Actualmente, os estudos histricos sobre o perodo que antecedeu e sucedeu a I

Grande Grande Guerra na Europa integram sempre uma substancial reflexo sobre a

emergncia da poltica de massas, onde o debate sobre o fenmeno histrico da

emergncia do associativismo central. Mais do que analisar a natureza destes regimes

polticos o fascismo, a social-democracia ou o liberalismo - estas abordagens analisam

a natureza da transio para sociedades em que as massas populares se mobilizam

politicamente, nomeadamente atravs de associaes voluntrias64

.

Actualmente, o tema da emergncia da participao popular na arena poltica foi

recuperado por diferentes disciplinas e correntes. Infelizmente, em contexto nacional,

no que a este perodo diz respeito, a historiografia no est entre os campos de produo

cientfica mais profcua. Como foi referido na introduo, atravs dos quadros tericos

da cincia poltica que a massificao da participao, sob a forma de associaes e

movimentos sociais, tem vindo a ser observada.

Segundo estes estudos, a designada sociedade civil, no sendo uma inveno do

sculo XIX, conheceu neste perodo uma expanso indita que alcanou o continente

Europeu como um todo. O surto de finais da centria teve como principais

caractersticas: o activismo rural (organizado quer pela Igreja Catlica quer pelo

movimento sindical e socialista) e a organizao dos trabalhadores industriais urbanos.

Ambos contriburam para a polarizao da sociedade, ameaando

compartiment-la entre redes isoladas e autnomas. Estes movimentos tiveram um forte

impacto escala local, atravs de uma vasta rede associativa, mas tambm ameaaram a

hegemonia dos partidos tradicionais65

.

Considerando o caso portugus, Antnio Costa Pinto e Pedro Tavares de

Almeida defendem que a expanso do movimento associativo est intimamente ligada

ao processo de industrializao e urbanizao concomitante com a ascenso de

movimentos democrticos de carcter urbano o republicanismo e o socialismo e que

as classes mdias baixas e os trabalhadores industriais tiveram um papel chave neste

processo, sendo as associaes mutualistas, os sindicatos e as greves, a par de

64 Benjamin Ziemann and Thomas Mergel, European Political History, 1870-1914; R. S. Alexander,

Europes Uncertain Path: State formation and Civil Society. 65 Philip Nord, Introduction, In: Civil Society before democracy: lessons from nineteenth-century

Europe, Lanham, Boulder, New York, Oxford: Rowman & Littlefield publishers, inc, 2000, pXIII-XXII

30

movimentos cvicos como o anticlerical ou o nacionalista, a face mais visvel da

emergncia da sociedade civil em Portugal.

Segundo estes autores, o Estado acolheu com simpatia o associativismo

voluntrio, pelo menos at sua politizao. Paralelamente, os governos republicanos

esforaram-se por aplicar uma mais progressista legislao e poltica social. No entanto,

o sucesso muito limitado do reformismo republicano induziu o afastamento do

movimento operrio face ao novo regime e a preconizao da aco directa contra o

patronato, que por sua vez se reorganizou para resistir ofensiva operria e para

contestar as polticas econmicas e sociais do regime. Em suma, o activismo cvico

intensificou-se e adensou-se, mas f-lo num contexto de polarizao poltica,

enfraquecendo mais do que fortalecendo as instituies democrticas66

.

Gregory Lubbert, todavia, analisando esta conjuntura em diferentes pases,

incluindo latinos, defende que mesmo nos contextos onde o anarco-sindicalismo se

tornou hegemnico, o movimento operrio apelou mais para a interveno pblica do

que para a destruio do Estado. A sua crescente actuao na arena poltica atravs de

mobilizaes massivas induziu a cedncia de certos sectores do liberalismo s

reivindicaes reformistas, garantindo a perpetuao do Estado intervencionista67

. Esta

tese filia-se noutra corrente da cincia poltica mais centradas nas funes sociais do

Estado moderno do que na preservao do liberalismo. Theda Sckopol lidera esta

tendncia, sublinhando o papel dos grupos organizados na promulgao de polticas

sociais nos Estados Unidos da Amrica68

. Outros autores analisam a construo do

Estado de bem-estar europeu como emanao do associativismo e da luta dos

trabalhadores69

.

No obstante a escassez de estudos historicos sobre a formao da classe

operria como identidade poltica, algumas obras de referncia tm focado o impacto

deste processo, sublinhando que a crise do liberalismo oligrquico se deve

66 Antnio Costa Pinto e Pedro Tavares de Almeida, On Liberalism and the emergence of Civil Society

in Portugal, In: Civil Society before democracy: lessons from nineteenth-century Europe, Lanham,

Boulder, New York, Oxford: Rowman & Littlefield publishers, inc, 2000, p3-21 67 Gregory M. Luebbert - Liberalism, Fascism, or Social Democracy: Social Classes and the Political

Origins of Regimes in Interwar Europe, p1-11 68 Theda Skocpol, Social policy in the United States: future possibilities in historical perspective. 69

Bernard Harris, The origins of the British welfare State, p192-195; Bernard Gibaud De la mutualit

la Scurit Sociale: Conflicts et Convergences, p13; Miriam Halpern Pereira, Do Estado Liberal ao

Estado-Providncia: um sculo em Portugal.

31

fundamentalmente a uma indita irrupo das massas na poltica, ou seja, pela

emergncia de novas classes e grupos sociais e de novos partidos polticos, nascidos no

ltimo quartel do sculo XIX da vaga de industrializao, do crescimento das cidades e

da exploso de um moderno sector tercirio. Essas camadas eram portadoras de

reivindicaes sociais e polticas, de pretenses e expectativas que chocavam com a

velha ordem social, com a natureza oligrquica, elitista e restritiva dos sistemas liberais

instalados e que, por isso, os punham crescentemente em causa, luz de diferentes

projectos programticos70

.

Fernando Rosas destaca, entre os principais factores de crise, a questo social,

quer no plano nacional quer no plano internacional, sobretudo quando uma onda de

greves, ocupaes e revolues operrias varre a Europa71

. Na regio meridional temia-

se no s a revoluo mas tambm a reforma social, intolervel para as oligarquias dos

pases perifricos e para o seu processo de acumulao e dominao do trabalho72

. O

corporativismo surgiu como uma frmula eficaz para evitar ambas, no deixando de

integrar as massas populares na estrutura do Estado autoritrio.

O que importa reter que estes e outros estudos, procurando explicar a crise do

liberalismo, destacam a forma como milhes de pessoas comuns procuraram melhorar

as suas condies materiais de vida quotidianas atravs da actividade poltica73

,

considerando o papel da emergncia das massas na arena poltica como uma varivel

determinante no processo histrico durante o perodo em anlise. Neste sentido, a

anlise da evoluo do mundo do trabalho e do movimento operrio so fundamentais

para a compreenso da alvorada do curto sculo XX. Os estudos monogrficos tm

contribudo para este propsito, nomeadamente com as investigaes citadas e

replicadas nesta dissertao.

Segundo Charles Tilly, a participao popular na arena poltica prende-se

sobretudo com o surgimento de movimentos sociais nacionais, ou seja formas de

mobilizao que se dirigem s autoridades estatais e que se caracterizam pela sua

continuidade e por novas formas de aco colectiva reunies, manifestaes, greves,

70 Fernando Rosas, A crise do liberalismo oligrquico em Portugal. In: Fernando Rosas e Fernanda

Rollo Histria da Primeira Repblica Portuguesa, p16 71 Fernando Rosas, Salazar e o poder: a arte de saber durar, p25 72

Fernando Rosas, Salazar e o poder: a arte de saber durar, p289 73 Gregory M. Luebbert - Liberalism, Fascism, or Social Democracy: Social Classes and the Political

Origins of Regimes in Interwar Europe, p11

32

peties pblicas, entre outras que contrastavam com as antigas exploses repentinas

de violncia como os motins e as revoltas fiscais tpicas do Antigo Regime.

Na sua investigao emprica, o autor demonstra como os repertrios de aco

colectiva evoluem largamente de movimentos paroquiais, informais e padronizados,

para mobilizaes assentes na aco de massas crescentemente consciente, formal,

nacional e autnoma. Explica esta evoluo relacionando-a tambm com a emergncia e

concentrao do poder do Estado Moderno, no descurando o rpido processo de

urbanizao e a expanso das relaes industriais capitalistas que no seu conjunto

abriram novas oportunidades e formas para as pessoas darem voz s suas

reivindicaes74

.

de lembrar que a historiografia tem vindo a defender que os velhos repertrios

se perpetuaram na Europa do Sul devido ao atraso econmico e tardia modernizao

das estruturas estatais. No entanto, no s as designadas food riots atingiram todos os

pases europeus e tambm os EUA durante a guerra e no imediato ps-guerra, como se

distinguiram expressivamente das antigas jaqueries75

.

Segundo as mais recentes anlises destes reportrios, alis, as lutas em torno do

consumo, longe de reflectirem arcasmo, tiveram um papel incontornvel na

modernizao e politizao do movimento operrio. Articularam-se com as lutas em

torno da produo, que tambm evoluram no sentido de garantir a progressiva

integrao do proletariado, contriburam para o desenvolvimento de um multifacetado

desafio hegemonia capitalista e para a construo de uma mais alargada identidade de

classe. A crescente interveno econmica e social do Estado condicionou a eleio

destas estratgias e em boa medida a articulao translocal, massificao e politizao

das associaes e movimentos, tendo em conta a oportunidade percepcionada para

regular legalmente quer as relaes laborais quer os preos dos gneros ou o

inquilinato76

.

Tendo em considerao que neste perodo os estados-nao se tornam a principal

arena poltica, a tenso dinmica entre aco colectiva nas esferas nacional e local

74 Charles Tilly, The Contentious French e Popular Contention in Great Britain, 1758-1834 75

Manuel Prez Ledesma, El Estado y la movilization social en el siglo XIX Espaol. In: Santiago

Castillo e Jos M. Ortiz de Orruo (coords.), Estado, protesta y movimientos sociales, p220-227 76 Tyler Stovall, Paris and the spirit of 1919: consumer struggles, transnationalism and revolution, p9-12

33

comeam a marcar tambm os estudos histricos microscpicos. Com efeito, muitas das

transformaes que tiveram lugar em finais do sculo XIX e princpios do sculo XX

relacionam-se com a parcial consolidao de uma cultura poltica, dominada por

instituies nacionais, como o parlamento, os partidos polticos ou a imprensa, e as

instituies dos trabalhadores que estiveram na dianteira deste processo. A cultura

poltica, concebida como as lutas concretas de diferentes grupos sobre os benefcios

sociais conquistveis atravs da interveno na arena poltica, surge sempre, todavia,

enraizada em relaes sociais locais77

. Desta forma, a relao entre a luta poltica local,

enraizada nas condies materiais, e o alinhamento poltico na esfera nacional, entre

poltica e sociedade, tornou-se um ngulo de observao privilegiado para a

compreenso do processo histrico no perodo em anlise78

.

Tyller Stoval, analisando a crise revolucionria do ps-guerra em Paris, defende

que neste neste ciclo de agitao social possvel apreender o desfecho de um perodo

de longo termo, no qual se formou uma nova classe que unia os laos seculares dos

trabalhadores qualificados com as preocupaes e as solidariedades informais dos

indiferenciados, nomeadamente as mulheres, numa sntese capaz de forjar um

consenso nacional entre os trabalhadores79

.

1.3. FONTES, MTODO E ARGUMENTO

O objectivo principal da primeira parte da minha dissertao foi compreender a

evoluo das estruturas e das relaes sociais que estiveram na base da emergncia de

prticas e identidades de base classista a que convencionamos chamar movimento

operrio. Os pressupostos tericos que esto na base deste estudo so essencialmente os

que Thompson inaugurou, defendendo a ideia de classe como um acontecimento80

.

A perspectiva comparativa surgiu tambm como metodologia privilegiada, tendo

em considerao que a confrontao de casos de estudo especficos o mais prximo do

77 Mary Hilson, Political change and the rise of labour in comparative perspective, p68-69 78 Desde Richard Price, The future of British Labour History, International Review of Social History,

36 (1991) p249-260 at Robert Justin Goldstein, Political mobilization in nineteenth-century Europe, European History Quarterly, 32 (2002) p233-250 79

Tyler Stovall, Paris and the spirit of 1919: consumer struggles, transnationalism and revolution, p290-

291 80 E. P. Thompson A formao da Classe Operria Inglesa: A rvore da Liberdade. Tomo I, p9-12

34

teste experimental que o cientista social tem ao seu dispor. O historiador no pode

recriar o contexto em que se enquadra o seu objecto de estudo, alterando as diferentes

variveis de forma a compreender quais os factores determinantes. Comparando

fenmenos similares em diversos scio-espaos, no entanto, pode verificar quais os

traos comuns que caracterizam o processo histrico81

.

Por outro lado, a anlise exaustiva de pesquisas subordinadas s mesmas

questes que coloco ao meu objecto de estudo permitiu-me aplicar na minha

investigao um conjunto de ferramentas j largamente testadas, permitindo-me superar

uma srie de barreiras metodolgicas e articular abordagens diversificadas, o que de

outra forma teria sido absolutamente impossvel, invalidando o tipo de observao que

me propus realizar.

Introduzindo a interpretao dos dados recolhidos e desta forma enquadrando a

minha investigao e anlise, evoquei os principais contributos tericos e empricos

relativos evoluo dos espaos, dos percursos e das relaes laborais dos

trabalhadores da Europa Meridional elegendo-se contextos comparveis em Frana,

Espanha e Itlia - , durante o perodo de intensa urbanizao e industrializao, iniciado

na ltima dcada de oitocentos e estabilizado entre o final da dcada de vinte e o incio

da de trinta. Entre a incomensurvel vastido de estudos relacionados com estas

temticas, debrucei-me sobretudo sobre aqueles que se relacionam directamente com a

minha abordagem, ou seja, os que atentam trama das relaes sociais, nas quais os

indivduos e os grupos se inserem e com as quais interagem, adaptando as suas

estratgias individuais e colectivas, nos espaos de produo e fora da produo, na

fbrica, na oficina e na comunidade territorial. Processo que se relaciona essencialmente

com a industrializao e a urbanizao, pelo que intercepta os debates em torno da

transformao das relaes laborais e da organizao do trabalho, da dualidade do

mercado de trabalho dos ciclos migratrios e de integrao. Naturalmente, no pude

deixar de ter em considerao o contributo dos estudos feministas sobre as questes de

gnero envolvidas nestes processos, bem como nas estratgias familiares e supra-

familiares.

81 John Breuilly, Labour and Liberalism in nineteenth Europe: essays in comparative history, p3

35

Com base nestas propostas metodolgicas, comecei por focar o desenvolvimento

de uma nova organizao espacial do trabalho, marcada pela concentrao territorial e o

aumento de escala das unidades de produo. Observei a agncia do Estado e dos

industriais mas tambm a resistncia dos antigos artesos e trabalhadores qualificados.

Relacionei este processo com a mobilidade geogrfica e social das populaes, a sua

concentrao e segregao scio-espaciais, a recomposio das suas redes de relao

nas novas comunidades de residncia e a consequente evoluo das suas proximidades e

distncias sociais.

Para a anlise dos processos espaciais utilizei diversas fontes complementares.

Revi os Inquritos industriais de 1881 e 1890 e os Censos operrios de 1917 e 1930.

No entanto, tendo em considerao o grau de incompletude destes dados, confrontei-os

com outros, nomeadamente os provenientes dos Anurios Comerciais de Portugal, onde

so elencadas anualmente e com maior rigor as unidades de produo registadas em

cada concelho e freguesia, bem como com os Recenseamentos gerais da populao que

a partir de 1890 a classificam segundo grandes divises profissionais Trabalhos

agrcolas, Pesca e Caa, Extraco de materiais minerais da superfcie do solo,

Indstria, Transportes, etc. - e em 1930 distinguem os diversos sectores de actividades

no seio de cada uma destas grandes divises. Analisei a evoluo da organizao

espacial do trabalho recorrendo ainda a fontes cartogrficas, iconogrficas e

fotogrficas, com especial destaque para os primeiros levantamentos areos realizados

no final do perodo em anlise, transpostos para plantas escala 1:1000.

Finalmente, procurei compreender as implicaes dos processos de concentrao

territorial e de aumento da escala das unidades de produo. Como tem vindo a ser

sublinhado alm-fronteiras, a principal consequncia deste processo foi a progressiva

perda de controlo sobre o processo produtivo por parte dos antigos artesos, atravs da

introduo de maquinaria ainda que rudimentar e/ou de uma mais sofisticada diviso de

tarefas, que permitiu aos industriais aumentar o ritmo e a superintendncia do trabalho

industrial.

Este foi um processo lento ao qual os antigos artesos ofereceram uma relevante

resistncia, particularmente nos pases da Europa Meridional, onde a oficina manteve

um lugar de destaque em complementaridade com a emergncia da Fbrica. Para avaliar

a agncia deste grupo social tive em considerao as fontes oficiais que a descrevem,

36

como o Boletim do Trabalho Industrial e a correspondncia dos administradores dos

concelhos para o governador civil. Confrontados com a inexorvel perda de controlo

sobre o processo produtivo, os artesos tornados trabalhadores qualificados lideraram

movimentos diversos contra a disciplina da fbrica e a precariedade do mercado de

trabalho. Estes so igualmente referenciados na imprensa local, regional e operria.

O desenvolvimento industrial teve um significativo impacte nas estruturas da

populao. Foi possvel finalmente avaliar o impacte destas transformaes na

composio social das populaes dos aglomerados de vocao industrial que

germinaram na rea de estudo, recorrendo aos recenseamentos da populao de 1890,

1911 e 1930, e ao exame de trs recortes temporais (1890-91, 1909-1910 e 1929-1930)

dos registos de casamentos das freguesias de So Tiago de Almada, Monte da Caparica,

Barreiro, Seixal, Arrentela, Amora e Paio Pires (optei por analisar todas as freguesias do

Seixal, tendo em considerao a diminuta extenso da amostragem da sede de

concelho), So Sebastio, Bocage a partir de 1915 (neste caso optei por analisar os anos

de 1897-1898 uma vez que os de 1890-91 no referiam a profisso do pai do noivo), e

Nossa Senhora da Anunciada, depois Marqus de Pombal, em Setbal, num total de

1894 registos. O critrio de seleco destas unidades administrativas foi a percentagem

de habitantes inscritos na rbrica Indstria, tendo como referncia o censo operrio de

1911, quando nas freguesias analisadas estes ultrapassam os 50% da populao activa.

Para alm da crescente homogeneidade destas comunidades, procurou-se avaliar

as suas condies materiais de existncia e as estratgias que estes puseram em prtica

para lidar com as mesmas. As diversas agncias, dos proprietrios imobilirios, das

autoridades e dos inquilinos, implicadas na produo dos espaos residenciais

destinados s classes trabalhadoras suburbanas foram examinadas recorrendo-se a

bibliografia especializada, a monografias locais e mais uma vez imprensa regional.

A nova organizao espacial do trabalho acarretou ainda a integrao na cadeia

de produo de largos contingentes de mo-de-obra indiferenciada, induzindo uma

profunda transformao das mobilidades e hierarquias entre os trabalhadores. A anlise

dos padres de mobilidade geogrfica e ocupacional das famlias trabalhadoras foi

analisada recorrendo a fontes escritas imprensa e monografias locais -, mas sobretudo

aos registos de casamentos supracitados. Nestes movimentos, como j foi referido,

agiram os prprios trabalhadores e as suas estratgias, que se reflectem com eloquncia

37

nestas mesmas fontes, onde se destacam redes de migrao, integrao e ofcio, que

progressivamente se diluem em mais alargadas relaes de entreajuda que estruturam

estas comunidades de pobreza e lugar82

.

Para alm destas estratgias, as famlias trabalhadoras procuraram diversificar as

suas fontes de rendimentos, mantendo a ligao terra e mobilizando todo o grupo

domstico para o trabalho assalariado. A complementaridade do trabalho nos campos

tambm se reflecte nos registos de casamentos mas o feminino invisvel uma vez que

as mulheres se assumem invariavelmente como domsticas. Para avaliar a sua extenso,

recorri aos estudos monogrficos da poca, aos recenseamentos da populao e s

propostas de admisso nos sindicatos nacionais fundados nos anos trinta, onde

finalmente as mulheres e o seu trabalho surgem com todo seu peso.

A nova organizao espacial do trabalho interferiu igualmente nos padres de

mobilidade social, processo que foi observado novamente com recurso aos registos

matrimoniais nos quais so registadas as profisses dos noivos e dos pais dos noivos.

Para alm de se poder verificar as taxas de ascenso, declnio ou imobilidade social, esta

fonte permite observar o surgimento de novas profisses decorrentes da diviso do

trabalho e da introduo de maquinaria ainda que rudimentar. A emergncia do trabalho

semi-qualificado foi ainda certificada a partir das propostas de admisso nos sindicatos

nacionais, onde distinguida a especialidade de cada trabalhador e os relatos da poca

que permitem enquadrar estes dados, particularmente os relatrios dos engenheiros-

chefes das circunscries industriais publicados no Boletim do Trabalho Industrial.

Ainda na primeira parte desta dissertao, recorrendo-se novamente aos registos

de casamento, e nomeadamente atravs da comparao entre a residncia e profisso

dos noivos e testemunhas, foi avaliado o impacte de todo este processo na evoluo das

proximidades e distncias sociais no seio destas comunidades. O principal objectivo

dessa anlise foi verificar at que ponto a fluidez do mercado de trabalho industrial

permitiu a superao dos antigos laos corporativos e comunitrios, induzindo a

germinao de mais alargadas solidariedades de base classista.

82

Eileen Yeo, Labour and Community, Past and Future: or why Merrie (White Male) England and

Mateship are not enough. In: Labour & Community: proceedings of the sixth national conference of the

ASSLH, Labour & Community, Wollongong, 1999, p3 e seguintes

38

O destaque que foi dado evoluo das proximidades e distncias sociais,

individuais e familiares, nas comunidades operrias, implicou a rejeio da dicotomia

liberdade individual e determinismo social e a considerao das relaes sociais como

redes de interdependncia em que o indivduo est inscrito. No negando o papel e

intencionalidade do indivduo, os diversos estudos que tm sido realizados sobre a

temtica, comprovaram que a sua margem de manobra limitada a um conjunto de

possibilidades finito83

. Esta margem delimitada pela origem social do indivduo mas

tambm pelo espao social em que se integra. A produo social do espao industrial e

das populaes operrias emerge assim como factor condicionante das trajectrias

individuais e familiares que interagem na Pennsula de Setbal e da estruturao das

relaes sociais nestas comunidades.

As redes sociais resultantes das estratgias familiares e profissionais para resistir

e lidar com a difuso do trabalho assalariado e com as condies materiais de existncia

nos espaos industriais so aqui conceptualizadas como recursos que progressivamente

se formalizam, constituindo o germe do movimento organizado dos trabalhadores.

Observar-se-o assim detalhadamente as redes densas baseadas em relaes face a

face na medida em que destas emanam as redes extensivas redes com escalas

translocais que foram fundamentais para a formao de uma identidade poltica de base

classista84

.

Procurando relacionar a dinmica associativa com a formao de comunidades

operrias, observei as diversas agremiaes no seu conjunto, como um tecido

associativo inserido num contexto territorial especfico. Neste sentido, tive em

considerao como o enquadramento scio-espacial induziu uma certa variao

geogrfica entre as associaes e a influncia que estas conquistaram nas comunidades

onde estavam sediadas - os espaos fsicos que ocupavam (concebidos como espaos de

sociabilidade), os servios que disponibilizavam (vislumbrando na multiplicidade de

funes um mais amplo papel integrador)