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A proteção ao consumidor no sistema jurídico brasileiro

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liado Federal - Subsecretária de lídíções Técnicas J**^ ! asília - ,lulíio-Seícnibro/2002 - Ano 39 - N' i r>3

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Brasília • ano 39 • nº 155julho/setembro – 2002

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (61) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva, Cláudia Moema de Medeiros LemosREVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Greyciane Souza Lins e Yuri G. B. BatistaREVISÃO DE PROVAS: Maria de Jesus Pimentel, Larissa dos Santos Aguiar, Claudane

Almeida Gonçalves, Ângela de Castro Mota, Alessandra AraújoVieira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Camila Luz Ferreira, Saulo Santos BrisenoCAPA: Renzo ViggianoIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. -- Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas, 1964– .v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº

11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pelaSubsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer partedesta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 39 · nº 155 · julho/setembro · 2002

A proteção ao consumidor no sistema jurídico brasileiro 7

O impasse do Mercosul 29

A União Européia e o direito eleitoral 47

A proteção internacional dos direitos humanos 51

A nova administração gerencial do Estado brasileiro e aprestação de serviços públicos de telecomunicações 61

Paradigma e aplicação do Direito: por uma compreensãoconstitucionalmente adequada do Direito Penal sob aperspectiva de um caso concreto 77

Nem um tostão da Previdência Social: o caso das bóias-frias idosas no semi-árido irrigado 93

O direito da concorrência e a defesa comercial: comple-mentaridade na defesa da ordem econômica 107

O princípio da proporcionalidade e o devido processolegal 125

A responsabilidade civil do Estado e o dano moral 143

A moralidade administrativa e sua densificação 153

A inconstitucionalidade material da súmula vinculante 175

Rússia – 1ª parte: origem e formação de um império 203

O cartel na legislação antitruste, sua relação com ofenômeno concentracionista (meio ou conseqüên-cia?) e seus reflexos prejudiciais aos direitos doconsumidor 215

Propostas de reforma do sistema tributário brasileiro 247

Sálvio de Figueiredo Teixeira

Werter R. Faria

Carlos Eduardo Caputo Bastos eJorge Fontoura

Alberto do Amaral Júnior

Antonela Diana Luz T. Motta

Lúcio Chamon Junior

Semira Adler Vainsencher eAdélia de Melo Branco

Giovani Ribeiro Loss

Mariá Brochado

Jair José Perin

Emerson Garcia

Sílvio Nazareno Costa

Hugo Hortêncio de Aguiar

Maria Cecília Mendes Borges et al.

Luís Alberto Mendonça Meato

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OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Heloisa H. T. Camargo Produção agrícola e alimentação – tendências para ofuturo 321

Resenha Legislativa

(artigos de contribuição da Consultoria Legislativa do Senado Federal)

Democracia em Jean-Jacques Rousseau 285

As agências reguladoras independentes – algumasdesmistificações à luz do direito comparado 293

Orlando Venâncio dos Santos Filho

Alexandre Santos de Aragão

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Sálvio de Figueiredo Teixeira

1. Razões e antecedentes históricos

A Revolução Industrial, como de restoas revoluções do fim do século XVIII, modi-ficou substancialmente as relações políticas,sociais e econômicas, culminando tambémno surgimento de uma nova categoria deindivíduos, os consumidores, que passarama sentir os efeitos da produção em série e daampliação das atividades empresariais ecomerciais. Desde essa época, há mais deduzentos anos, portanto, os participantes dachamada sociedade de consumo (mass con-sumption society ou Konsumgesellschaft) passa-ram a ter alterações em sua vida cotidiana,sob o influxo das demandas econômicas.

O Direito, em sua perspectiva de acom-panhar os fenômenos sociais, aqui recorda-do o aforismo latino ius oritur factum, hámuito protege o consumidor, em suas ves-

A proteção ao consumidor no sistemajurídico brasileiro

Sálvio de Figueiredo Teixeira é Ministrodo Superior Tribunal de Justiça. Membro daAcademia Brasileira de Letras Jurídicas.

Sumário1. Razões e antecedentes históricos. 2. O sis-

tema normativo brasileiro de proteção ao con-sumidor. 2.1. Constituição de 1988. 2.2. O Códi-go de Defesa do Consumidor. a) Codificação.b) Influência estrangeira. c) Estrutura do Códi-go de Defesa do Consumidor. 3. As principaisinovações do sistema brasileiro de proteção aoconsumidor. 4. A proteção contratual e o direi-to privado. 5. A desconsideração da personali-dade jurídica. 6. As ações coletivas e a defesa doconsumidor em juízo. 7. A inversão do ônus daprova. 8. A legitimação ativa nas ações coleti-vas. 9. Conclusão

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tes de comprador, locatário de bens e servi-ços, passageiro de transporte, segurado etc.Embora sem um tratamento sistematizado,é de longa data a disciplina legal, doutriná-ria e jurisprudencial dos direitos dessas ca-tegorias, como exemplificam os códigos ci-vis dos Países do tronco romano-germâni-co, vinculados à vertente do Civil Law.

A última metade do século XX, todavia,assistiu ao crescente avanço da indústria edo comércio, notadamente após a SegundaGuerra Mundial, a partir de quando os mer-cados se ampliaram para atingir a circula-ção universal da riqueza.

Nos últimos cinqüenta anos, a par dosurgimento dos blocos econômicos comu-nitários, entre os quais se destaca a UniãoEuropéia, assistimos ao agigantamento dosgrupos econômicos e empresariais e à con-centração da produção em empresas emvariados setores. E no crepúsculo do séculopassado, o fenômeno da globalização pos-sibilitou ainda mais que os fornecedores deprodutos e de serviços se unissem em corpo-rações internacionais de grande porte. En-quanto isso, do outro lado, permaneciam os“consumidores” em sua esfera individual,como destinatários finais dessa produção.

Nesse contexto, a sistematização do Di-reito do Consumidor surgiu como respostada ciência jurídica ao abismo entre as pode-rosas redes de fornecedores e os milhões deconsumidores, que se viam afastados da efe-tiva proteção de seus direitos. Percebeu-se,enfim, a insuficiência da concepção liberalindividualista para satisfazer essa nova rea-lidade da sociedade de consumo. A respeito,com aguçado espírito crítico, observou Kon-der COMPARATO muito antes da disciplinadogmática da matéria, ainda em 1974:

“A idéia de uma sistemática pro-teção do consumidor, nas relações demercado, é sem dúvida estranha à te-oria econômica clássica. Esta partia,com efeito, da noção de necessidadeeconômica individual, imaginandoque ela se exprimisse livremente nomundo das trocas, como imposição da

própria natureza, e como elementoformador da demanda global, à qualadaptar-se-ia, ex post factum, a ofertaglobal. Nessa concepção, não cabe poisfalar em proteção do consumidor, poisentende-se que é este, afinal de con-tas, quem dita as leis do mercado. Todaa discussão cinge-se ao aspecto dacapacidade econômica de consumo,ou seja, a aptidão do consumidor apagar o preço dos bens e serviços deque necessita” (1974).

Os avanços no tema partiram, ultima ra-tio, de uma constatação manifesta, a vulne-rabilidade do consumidor, que mais e maisse enfraquecia no plano individual, e visa-ram, na outra ponta, a um objetivo consen-sualmente admitido, a imprescindibilidadeda defesa desse consumidor.

O Direito deparou, então, com duas situa-ções aparentemente antagônicas:

De um lado, preservar as leis de merca-do e o desenvolvimento econômico, que seancoraram na globalização como expressãoda ordem capitalista;

De outro, evitar o esmagamento dos in-divíduos pelas corporações.

A solução mediadora adotada conferiuao Direito do Consumidor um caráter deintervenção estatal no mercado, hoje presen-te tanto nos países do Common Law quantodo Civil Law, a exemplo do que ocorre naEuropa continental e nos sistemas que lheseguiram o modelo, entre eles o brasileiro.

Além desse intervencionismo estatal, oDireito do Consumidor reflete outra tendên-cia contemporânea da ciência jurídica emtodos os seus ramos, a saber, garantir a efe-tividade do acesso à Justiça e aos direitosproclamados no ordenamento jurídico.

Os séculos XIX e XX, até a Segunda Gran-de Guerra, revelaram a fragilidade dos di-reitos declarados formalmente na Constitui-ção e nas leis ordinárias em garantir os indi-víduos e as células sociais contra o arbítrio eos excessos e abusos dos grupos políticos eeconômicos. As sociedades passaram a preo-cupar-se com os instrumentos para assegu-

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rar a inclusão de cada um e de todos comoprotegidos pela ordem jurídica, como aplica-ção do princípio democrático. O Direito doConsumidor inseriu-se nesse panorama,como registrou Antônio Herman BENJAMIN:

“Quanto maior for o número dosvulneráveis, maior será a sensibilida-de estatal. É que em uma sociedadedemocrática, compreensivelmente, aequação numérica tem enorme peso.Esta a razão para que o Direito, mui-tas vezes, fique ao lado da maioriamesmo que com a minoria esteja opoder e a riqueza. Daí que o Direitodo Consumidor não se justifica ape-nas como produto da sensibilidade dolegislador para com a vulnerabilidadedo consumidor. Igualmente relevanteno seu desenvolvimento é o fato de queos consumidores são imensamentemajoritários no mercado” (1991, p. 50).

A fim de atingir esse duplo propósito,proteger a parte mais frágil nas relações eco-nômicas e jurídicas e a ela assegurar o aces-so à Justiça, o Direito do Consumidor se bi-furcou em normas de direito material e nor-mas de direito processual, ora para equili-brar o vínculo entre as partes, ora para mol-dar os institutos processuais à defesa indi-vidual e coletiva dos direitos.

2. O sistema normativo brasileiro deproteção ao consumidor

2.1. Constituição de 1988

A analítica Constituição brasileira de1988, na procura de ampliar e reforçar os di-reitos e interesses individuais e coletivos, al-çou à categoria e nobreza dos direitos funda-mentais a defesa do consumidor e a incluiuentre os princípios da ordem econômica nosseus arts. 5º, XXXII, e 170, V, assim redigidos:

• “Art. 5º(...)XXXII – o Estado promoverá, na

forma da lei, a defesa do consumidor.”

• “Art. 170. A ordem econômica, fun-dada na valorização do trabalho hu-mano e na livre iniciativa, tem por fimassegurar a todos existência digna, con-forme os ditames da justiça social, ob-servados os seguintes princípios:

(...)V - defesa do consumidor.”

A Constituição Federal, além de disci-plinar a iniciativa legislativa na matéria, naórbita dos tributos, também estabeleceu, noart. 150, § 5º, que “a lei determinará medi-das para que os consumidores sejam escla-recidos acerca dos impostos que incidamsobre mercadorias e serviços”. E, em rela-ção à prestação de serviços públicos, direta-mente ou por concessão e permissão, o seuart. 175 atribuiu à lei ordinária dispor sobreos “direitos dos usuários”.

O Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias, por sua vez, em meio às nor-mas de aplicação da nova Constituição e detransição entre o regime anterior e o atual,determinou que o Congresso Nacional ela-borasse “código de defesa do consumidor”.

Como se vê, a opção do constituinte origi-nário se evidenciou em vários dispositivosdo texto constitucional em favor da defesa doconsumidor, impondo ao legislador ordiná-rio a tarefa de tornar efetivo esse propósito.

2.2. O Código de Defesa do Consumidor

a) CodificaçãoComo se vê, o Código de Defesa do Con-

sumidor, Lei nº 8.078, de 11.9.1990, não seoriginou, como na França, de uma simplesdecisão ministerial, tendo encontrado sus-tentação, ao contrário, na própria Consti-tuição. Por outro lado, a opção do constituin-te de 1988 por um código, e não por uma lei,contribuiu para dar coerência e homogenei-dade a esse novo ramo do direito, além defortalecer o tratamento da matéria.

A propósito, quando do debate duranteos trabalhos preparatórios de elaboração doCódigo, assinalou a doutrina:

“O constituinte, claramente, ado-tou a concepção da codificação, nos

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passos da melhor doutrina estrangei-ra, admitindo a necessidade da promul-gação de um arcabouço geral para oregramento do mercado de consumo.

Ora, se a Constituição optou porum Código, é exatamente o que temoshoje. A dissimulação daquilo que eracódigo em lei foi meramente cosméticae circunstancial. É que, na tramitaçãodo Código, o lobby dos empresários,notadamente o da construção civil,dos consórcios e dos supermercados,prevendo sua derrota nos plenáriosdas duas Casas, buscou, através deuma manobra procedimental, impedira votação do texto ainda naquela legis-latura, sob o argumento de que, por setratar de Código, necessário era respei-tar um iter legislativo extremamente for-mal, o que, naquele caso, não tinha sidoobservado. A artimanha foi superadarapidamente com o contra-argumentode que aquilo que a Constituição cha-mava de Código assim não o era”(GRINDVER; BENJAMIN, 1997, p. 9).

b) Influência estrangeiraSem embargo da controvérsia inicial so-

bre a codificação, inspirou-se o Código deDefesa do Consumidor em modelos legisla-tivos vigentes no estrangeiro. Com efeito,desde a Resolução n. 39/248 de 9/4/1985,da Assembléia-Geral da Organização dasNações Unidas, identificada como a origemdos direitos básicos do consumidor, alémda legislação comunitária européia, as le-gislações francesa, espanhola, portuguesa,alemã, mexicana, canadense e norte-ameri-cana foram as fontes de inspiração para oCódigo brasileiro. Como anota a mesma fon-te doutrinária,

“A maior influência sofrida peloCódigo veio, sem dúvida, do Projet deCode de la Consommation, redigido soba presidência do professor Jean Ca-lais-Auloy. Também importantes noprocesso de elaboração foram as leisgerais da Espanha (Ley General para laDefensa de los Consumidores y Usuarios,

Lei n. 26/1984), de Portugal (Lei n. 29/81, de 22 de agosto), do México (LeiFederal de Protección al Consumidor, de5 de fevereiro de 1976) e de Quebec(Loi sur la Protection du Consommateur,promulgada em 1979).

Visto agora pelo prisma mais es-pecífico de algumas de suas matérias,o Código buscou inspiração, funda-mentalmente, no direito comunitárioeuropeu: as Diretivas 84/450 (publi-cidade) e 85/374 (responsabilidadecivil pelos acidentes de consumo). Fo-ram utilizadas, igualmente, na formu-lação do traçado legal para o controledas cláusulas gerais de contratação,as legislações de Portugal (Decreto-Lein. 446/85, de 25 de outubro) e Alema-nha (Gesetz zur Regelung des Rechts derAllgemeinen Geschaftsbedingungen –AGB Gesetz, de 9 de dezembro de 1976).

Uma palavra à parte merece a in-fluição do direito norte-americano. Foiela dupla. Indiretamente, ao se usa-rem as regras européias mais moder-nas de tutela do consumidor, todasinspiradas nos cases e statutes ameri-canos. Diretamente, através da análi-se atenta do sistema legal de proteçãoao consumidor nos Estados Unidos.Aqui foram úteis, em particular, o Fe-deral Trade Commission Act, o Consu-mer Product Safety Act, o Truth in Len-ding Act, o Fair Credit Reporting Act e oFair Debt Collection Practices Act”(GRINDVER; BENJAMIN, 1997, p. 10).

Essa influência da legislação estrangei-ra, contudo, não impediu a elaboração deum Código adaptado à realidade brasileirae às suas peculiaridades, em que sobrelevaa desigualdade entre os mais abastados eos menos favorecidos, a acentuar a impo-tência e a hipossuficiência destes e a exigirdo Direito, em conseqüência, respostas cadavez mais eficazes para ampliar o acesso àJustiça.

c) Estrutura do Código de Defesa do Con-sumidor

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A Lei nº 8.078, publicada em 12/9/1990,resultou de quase dois anos de elaboraçãolegislativa, em cujo período o anteprojeto ini-cial, depois de intensos debates nas duas Ca-sas do Congresso e audiências públicas, so-freu modificações e aperfeiçoamentos propor-cionados pela participação de importantessegmentos da sociedade, como indústria, co-mércio, serviços, governo, consumidores, ci-dadãos, além da contribuição de juristas e es-pecialistas de reconhecida postura cultural.

O Código de Defesa do Consumidor con-ta com seis títulos, que tratam (a) dos direi-tos do consumidor, (b) das infrações penais,(c) da defesa do consumidor em juízo, (d) dosistema nacional de defesa do consumidor,(e) da convenção coletiva de consumo e (f)das disposições finais.

O título I contém sete capítulos, inician-do pelas disposições gerais (I) e abordandoa política nacional das relações de consu-mo (II), os direitos básicos do consumidor(III), a qualidade dos produtos e serviços, aprevenção e reparação dos danos (IV), aspráticas comerciais, como a oferta, a publi-cidade e os abusos (V), a proteção contratual(VI) e as sanções administrativas (VII).

O título II cuida especificamente das in-frações penais. E o título III, com importan-tes inovações também no campo processual,sobretudo nas áreas da legitimação das par-tes e dos efeitos da res iudicata, abrange, emquatro capítulos distintos, depois das dispo-sições gerais, as ações coletivas para a defesade interesses individuais homogêneos, asações de responsabilidade do fornecedor ea coisa julgada.

O título IV, por sua vez, trata do sistemanacional de defesa do consumidor, enquan-to o título V se ocupa da convenção coletivade consumo e o último, o VI, reserva-se àsdisposições finais.

3. As principais inovações do sistemabrasileiro de proteção ao consumidor

Importantes inovações e peculiaridadesextraem-se dessa sistematização, sendo de

notar-se de início a coexistência de normasde direito material e normas de direito pro-cessual, assim como relevantes alteraçõesna relação entre o direito público e o priva-do, tornando expressa a intervenção estatalna autonomia da vontade e na liberdade demercado, princípios reitores do direito pri-vado desde a construção do pacta sunt ser-vanda.

Entre as suas principais inovações, sa-lienta a doutrina:

“– formulação de um conceito am-plo de fornecedor, incluindo, a um sótempo, todos os agentes econômicosque atuam, direta ou indiretamente,no mercado de consumo, abrangendoinclusive as operações de crédito esecuritárias;

– um elenco de direitos básicos dosconsumidores e instrumentos de im-plementação;

– proteção contra todos os desviosde quantidade e qualidade (vícios dequalidade por insegurança e vícios dequalidade por inadequação);

– melhoria do regime jurídico dosprazos prescricionais e decadenciais;

– ampliação das hipóteses de des-consideração da personalidade jurí-dica das sociedades;

– regramento do marketing (ofertae publicidade);

– controle das práticas e cláusulasabusivas, bancos de dados e cobran-ça de dívidas de consumo;

– introdução de um sistema sancio-natório administrativo e penal;

– facilitação do acesso à Justiçapara o consumidor;

– incentivo à composição priva-da entre consumidores e fornecedo-res, notadamente com a previsão deconvenções coletivas de consumo”(GRINDEVER; BENJAMIN, 1991,p. 10-11).

Entre tantas, algumas merecem especialdestaque, como se procurará demonstrar aseguir.

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4. A proteção contratual e odireito privado

Ao proteger os contratos contra os abu-sos dos agentes econômicos, o Código per-mitiu a intervenção dos órgãos de proteçãoao consumidor, notadamente do Judiciário,nas cláusulas pactuadas entre as partes etambém nos contratos de adesão, interferin-do diretamente na autonomia da vontadepara cercear as condições que restrinjam asinformações ao consumidor e para caracte-rizar como “nulas de pleno direito” as cláu-sulas viciadas introduzidas nos contratospelos fornecedores de produtos e serviços.

O Direito do Consumidor incorporou, naverdade, o dirigismo contratual caracterís-tico das normas de direito econômico, deordem pública e, por isso mesmo, de aplica-ção imediata, como antes da vigência doCódigo de Defesa do Consumidor já procla-mava o Superior Tribunal de Justiça, entreoutros, no REsp n. 2.595-SP (DJ 1º/10/1990),julgado em 28.8.90, em cujo voto, como rela-tor, assinalei:

“Orlando GOMES, em obra dedi-cada ao Direito Econômico, analisan-do os aspectos jurídicos do dirigismoeconômico nos dias atuais, após assi-nalar que a sanção pela transgressãode norma de ordem pública é a nuli-dade, afirma:

‘Outro princípio que sofre altera-ção frente à ordem pública dirigista éo da intangibilidade dos contratos.Sempre que uma nova lei é editada nes-se domínio, o conteúdo dos contratosque atinge tem de se adaptar às suasinovações. Semelhante adaptação ve-rifica-se por força de aplicação imedia-ta das leis desse teor, sustentada comoprática necessária à funcionalidade dalegislação econômica dirigista.

Derroga-se com o princípio da apli-cação imediata a regra clássica do di-reito intertemporal que resguarda oscontratos de qualquer intervenção le-gislativa decorrente de lei posterior àsua conclusão’ (1977, p. 59).

Atento a essa qualidade das nor-mas de direito econômico, que se reves-tem do atributo de normas de ordempública, esta Corte vem prestigiando aaplicação imediata de tais normas,atingindo contratos em curso.”

Posteriormente, a mesma Corte veio reco-nhecer esse caráter de ordem pública das nor-mas do Código de Defesa do Consumidor, aoafastar, por exemplo, a cláusula contratualde eleição de foro (Conflitos de Competêncian. 19.105-MS, DJ 15/3/1999, e n. 32.868-SC,DJ 11/3/2002). Esses acórdãos receberam asseguintes ementas, no pertinente:

• “CONFLITO DE COMPETÊNCIA.CLÁUSULA ELETIVA DE FORO LAN-ÇADA EM CONTRATO DE ADESÃO.NULIDADE COM BASE NA DIFI-CULDADE DE ACESSO AO JUDICIÁ-RIO COM PREJUÍZO À AMPLA DE-FESA DO RÉU. CARÁTER DE OR-DEM PÚBLICA DA NORMA. CÓDI-GO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.INAPLICABILIDADE DO ENUNCIA-DO Nº 33 DA SÚMULA/STJ.– Tratando-se de contrato de adesão,a declaração de nulidade da cláusulaeletiva, ao fundamento de que estariaela a dificultar o acesso do réu ao Ju-diciário, com prejuízo para a sua am-pla defesa, torna absoluta a compe-tência do foro do domicílio do réu,afastando a incidência do enunciadonº 33 da Súmula/STJ.”• “COMPETÊNCIA. CONFLITO.FORO DE ELEIÇÃO. CÓDIGO DEDEFESA DO CONSUMIDOR. BAN-CO. CONTRATO DE ABERTURA DECRÉDITO EM CONTA ESPECIAL.– O Código de Defesa do Consumidororienta a fixação da competência se-gundo o interesse público e na esteirado que determinam os princípios cons-titucionais do acesso à Justiça, do con-traditório, ampla defesa e igualdadedas partes.– Prestadoras de serviços, as institui-ções financeiras sujeitam-se à orien-tação consumerista.

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– É nula a cláusula de eleição de foroinserida em contrato de adesão quan-do gerar maior ônus para a parte hi-possuficiente defender-se ou invocara jurisdição, propondo a ação de con-sumo em local distante daquele em quereside.– Conflito conhecido para declarar acompetência do Juízo de Direito da 2ªVara Cível da Comarca de Canoas.”

O advento do Código de Defesa do Con-sumidor contribuiu para acelerar e acentu-ar o processo de reforma que perpassa osramos do direito, principalmente o civil, ocomercial e o processual. Aliás, o Direito doConsumidor constitui-se expressivo passorumo à prevalência dos interesses sociaissobre os meramente individuais. A respei-to, já lecionava Darcy BESSONE, nas déca-das de 50/60:

“Tornou-se evidente que é neces-sário criar um sistema de defesas egarantias, para impedir que os fracossejam espoliados pelos fortes, assimcomo para assegurar o predomínio dosinteresses sociais sobre os individuais.

Todos, diz Ripert, apelam para oEstado, exigindo-lhe a ordem econô-mica. Premido por tão urgentes solici-tações, o Estado passa a dirigir ocontrato, não tanto segundo a vonta-de comum e provável dos contratan-tes, mas atentando, sobretudo, nas ne-cessidades gerais da sociedade. Legis-la em nome da ordem pública, cuja no-ção se alarga e enriquece. A lei deixade ser a regra abstrata e permanente,para se tornar um regulamento tem-porário e detalhado.

(...)Os princípios tradicionais, indivi-

dualistas e severos, sofrem freqüentesderrogações, em proveito da Justiça con-tratual e da interdependência das rela-ções entre os homens” (1960, p. 52-53).

A propósito, no âmbito do direito priva-do, no Brasil editou-se um novo Código Ci-vil (ainda em vacatio legis), para substituir o

anterior, de 1916, buscando a disciplina dasobrigações e dos contratos, assim como odireito societário, nos moldes da emergentesociedade de consumo, refletindo “umamudança de paradigmas que atribui ao mo-derno direito civil uma tônica social, orienta-da pela necessidade de realização da justiçaconcreta e pautada na chamada ética da si-tuação”. Depois de quase três décadas dediscussão e debates, finalmente se votou esancionou o novo diploma civil, não obs-tante a sua desatualização em diversos pon-tos, sobretudo em relação ao Direito de Famí-lia, em que as alterações estão muito aquémdas profundas inovações introduzidas naConstituição de 1988, esperando-se agora que,ainda no período da vacatio legis, ou em futu-ro próximo, advenham mudanças legislati-vas a atualizar o novo texto editado, compa-tibilizando-o com as diretrizes constitucionaise com a arejada e renovadora jurisprudênciaque a esta prontamente se incorporou1.

O Direito Comercial igualmente vem to-mando ares de vanguarda ao ampliar osdebates sobre as sociedades anônimas e alei de falências, agora inspirada no soergui-mento das empresas e não mais no encerra-mento definitivo de suas atividades.

Acerca dessa postura do direito privadoe da atualidade do Direito do Consumidor,confira-se o REsp n. 63.981-SP (DJ 20/11/2000), de que fui relator, com esta ementa:

“DIREITO DO CONSUMIDOR.FILMADORA ADQUIRIDA NO EX-TERIOR. DEFEITO DA MERCADO-RIA. RESPONSABILIDADE DA EM-PRESA NACIONAL DA MESMAMARCA (‘PANASONIC’). ECONO-MIA GLOBALIZADA. PROPAGAN-DA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SI-TUAÇÕES A PONDERAR NOS CA-SOS CONCRETOS. NULIDADE DOACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA,PORQUE SUFICIENTEMENTE FUN-DAMENTADO. RECURSO CONHE-CIDO E PROVIDO NO MÉRITO, PORMAIORIA.

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I – Se a economia globalizada nãomais tem fronteiras rígidas e estimulae favorece a livre concorrência, impres-cindível que as leis de proteção aoconsumidor ganhem maior expressãoem sua exegese, na busca do equilíbrioque deve reger as relações jurídicas, di-mensionando-se, inclusive, o fator ris-co, inerente à competitividade do co-mércio e dos negócios mercantis, sobre-tudo quando em escala internacional,em que presentes empresas poderosas,multinacionais, com filiais em váriospaíses, sem falar nas vendas hoje efetu-adas pelo processo tecnológico da in-formática e no forte mercado consumi-dor que representa o nosso País.

II – O mercado consumidor, não hácomo negar, vê-se hoje ‘bombardeado’diuturnamente por intensa e hábilpropaganda, a induzir a aquisição deprodutos, notadamente os sofistica-dos de procedência estrangeira, levan-do em linha de conta diversos fatores,dentre os quais, e com relevo, a respei-tabilidade da marca.

III – Se empresas nacionais se be-neficiam de marcas mundialmente co-nhecidas, incumbe-lhes respondertambém pelas deficiências dos produ-tos que anunciam e comercializam,não sendo razoável destinar-se aoconsumidor as conseqüências nega-tivas dos negócios envolvendo obje-tos defeituosos.

IV – Impõe-se, no entanto, nos ca-sos concretos, ponderar as situaçõesexistentes.

V – Rejeita-se a nulidade argüi-da quando sem lastro na lei ou nosautos.”

A referida jurisprudência brasileira, desua vez, tem-se manifestado em um sem-número de variados casos, a exemplo dosrelacionados a seguir, de aplicação no cam-po do direito material:

Cláusula de limitação de tempo de in-ternação (plano de saúde)

• REsp n. 251.024-SP (DJ 4/2/2002),2ª Seção

“DIREITO CIVIL E DO CONSUMI-DOR. PLANO DE SAÚDE. LIMITA-ÇÃO TEMPORAL DE INTERNA-ÇÃO. CLÁUSULA ABUSIVA. CÓDI-GO DE DEFESA DO CONSUMIDOR,ART. 51-IV. UNIFORMIZAÇÃO IN-TERPRETATIVA. PREQUESTIONA-MENTO IMPLÍCITO. RECURSO CO-NHECIDO E PROVIDO.

I – É abusiva, nos termos da lei(CDC, art. 51-IV), a cláusula previstaem contrato de seguro-saúde que li-mita o tempo de internação do segu-rado.

II – Tem-se por abusiva a cláusula,no caso, notadamente em face da im-possibilidade de previsão do tempoda cura, da irrazoabilidade da suspen-são do tratamento indispensável, davedação de restringir-se em contratodireitos fundamentais e da regra desobredireito, contida no art. 5º da Leide Introdução ao Código Civil, segun-do a qual, na aplicação da lei, o juizdeve atender aos fins sociais a que elase dirige e às exigências do bem comum.

III – Desde que a tese jurídica te-nha sido apreciada e decidida, a cir-cunstância de não ter constado doacórdão impugnado referência ao dis-positivo legal não é obstáculo ao co-nhecimento do recurso especial.”

Cláusula dúbia em contrato de adesão• REsp n. 311.509-SP (DJ 25/6/2001)“DIREITO CIVIL. CONTRATO DE

SEGURO-SAÚDE. TRANSPLANTE.COBERTURA DO TRATAMENTO.CLÁUSULA DÚBIA E MAL REDIGI-DA. INTERPRETAÇÃO FAVORÁVELAO CONSUMIDOR. ART. 54, § 4º ,CDC. RECURSO ESPECIAL. SÚMU-LA/STJ, ENUNCIADO 5. PRECEDEN-TES. RECURSO NÃO-CONHECIDO.

I – Cuidando-se de interpretação decontrato de assistência médico-hospi-talar, sobre a cobertura ou não de deter-

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minado tratamento, tem-se o reexamede cláusula contratual como procedi-mento defeso no âmbito desta Corte, ateor de seu verbete sumular nº 5.

II – Acolhida a premissa de que acláusula excludente seria dúbia e deduvidosa clareza, sua interpretaçãodeve favorecer o segurado, nos termosdo art. 54, § 4º do Código de Defesa doConsumidor. Com efeito, nos contra-tos de adesão, as cláusulas limitati-vas ao direito do consumidor contra-tante deverão ser redigidas com clare-za e destaque, para que não fujam desua percepção leiga.”

Perda das parcelas pagas em compro-misso de compra e venda

• REsp n. 158.193-AM (DJ 23/10/2000)

“I - É nula a cláusula que estabele-ce a perda integral das parcelas pa-gas em contrato de promessa de com-pra e venda de imóvel, pelo inadim-plente, consoante o artigo 53 da Leinº 8.078/90 (Código Brasileiro deDefesa do Consumidor).”

Contratos de arrendamento mercantil(leasing)

• REsp n. 248424-RS (DJ 5/2/2001)“4. O Código de Defesa do Consu-

midor aplica-se aos contratos de ar-rendamento mercantil”.

Extravio de mercadoria em transpor-te aéreo

• REsp n. 257.298-SP (DJ 11/6/2001)“RESPONSABILIDADE CIVIL.

AÇÃO REGRESSIVA. TRANSPORTEAÉREO. EXTRAVIO DE MERCADO-RIA. INAPLICABILIDADE DA CON-VENÇÃO DE VARSÓVIA. RELAÇÃODE CONSUMO. INCIDÊNCIA DOCÓDIGO DE DEFESA DO CONSU-MIDOR. INDENIZAÇÃO AMPLA.ORIENTAÇÃO DO TRIBUNAL. RE-CURSO PROVIDO.

– Nos casos de extravio de mer-cadoria ocorrido durante o transpor-te aéreo, há relação de consumo en-

tre as partes, devendo a reparação,assim, ser integral, nos termos doCódigo de Defesa do Consumidor, enão mais limitada pela legislaçãoespecial .”

• REsp n. 156.240-SP (DJ 12/2/2001)“RESPONSABILIDADE CIVIL.

TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIODA BAGAGEM. DANO MATERIAL.DANO MORAL.

– A indenização pelos danos ma-terial e moral decorrentes do extraviode bagagem em viagem aérea domés-tica não está limitada à tarifa previstano Código Brasileiro de Aeronáutica,revogado, nessa parte, pelo Código deDefesa do Consumidor.”

Atraso de vôo em viagem internacional• REsp n. 235.678-SP (DJ 14/2/2000)“TRANSPORTE AÉREO. ATRASO.

VIAGEM INTERNACIONAL. CON-VENÇÃO DE VARSÓVIA. DANOMORAL. CÓDIGO DE DEFESA DOCONSUMIDOR.

– O dano moral decorrente de atra-so em viagem internacional tem suaindenização calculada de acordo como CDC.”

Serviço de entrega rápida• REsp n. 196.031-MG (DJ 11/6/

2001)“DIREITO DO CONSUMIDOR.

LEI Nº 8.078/90 E LEI Nº 7565/86.RELAÇÃO DE CONSUMO. INCI-DÊNCIA DA PRIMEIRA. SERVIÇODE ENTREGA RÁPIDA. ENTREGANÃO EFETUADA NO PRAZO CON-TRATADO. DANO MATERIAL. IN-DENIZAÇÃO NÃO TARIFADA.

I – Não prevalecem as disposiçõesdo Código Brasileiro de Aeronáuticaque conflitem com o Código de Defesado Consumidor.

II – As disposições do Código deDefesa do Consumidor incidem sobrea generalidade das relações de con-sumo, inclusive as integradas porempresas aéreas.

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Revista de Informação Legislativa16

III – Quando o fornecedor faz cons-tar de oferta ou mensagem publicitá-ria a notável pontualidade e eficiên-cia de seus serviços de entrega, assu-me os eventuais riscos de sua ativida-de, inclusive o chamado risco aéreo,com cuja conseqüência não deve ar-car o consumidor.”

Fabricante de veículo automotor• REsp n. 195.659-SP (DJ 12/6/2000)“CÓDIGO DE DEFESA DO CON-

SUMIDOR. COMPRA DE VEÍCULONOVO COM DEFEITO DE FÁBRICA.RESPONSABILIDADE DO FABRI-CANTE.

1. Comprado veículo novo comdefeito de fábrica, é responsabilidadedo fabricante entregar outro do mes-mo modelo, a teor do art. 18, § 1º, doCódigo de Defesa do Consumidor.”

Fornecimento de água• REsp n. 263.229-SP (DJ 9/4/2001)“ADMINISTRATIVO. EMPRE-

SA CONCESSIONÁRIA DE FORNE-CIMENTO DE ÁGUA. RELAÇÃODE CONSUMO. APLICAÇÃO DOSARTS. 2º E 42, PARÁGRAFO ÚNICO,DO CÓDIGO DE DEFESA DO CON-SUMIDOR.

1. Há relação de consumo no for-necimento de água por entidade con-cessionária desse serviço público aempresa que comercializa pescados.

2. A empresa utiliza o produtocomo consumidora final.

3. Conceituação de relação de con-sumo assentada pelo art. 2º, do Códi-go de Defesa do Consumidor.

4. Tarifas cobradas a mais. Devolu-ção em dobro. Aplicação do art. 42, pa-rágrafo único, do Código de Defesa doConsumidor.

5. Recurso provido.”Fornecimento de energia elétrica• Ag/REsp n. 298.017-MG (DJ 27/8/

2001)“ADMINISTRATIVO. AGRAVO

REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL.

ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO PÚ-BLICO ESSENCIAL. CORTE DE FORNE-CIMENTO. CONSUMIDOR INADIM-PLENTE. IMPOSSIBILIDADE.

– Esta Corte vem reconhecendo aoconsumidor o direito da utilização dosserviços públicos essenciais ao seucotidiano, como o fornecimento deenergia elétrica, em razão do princí-pio da continuidade (CDC, art. 22).

– O corte de energia, utilizado pelaCompanhia para obrigar o usuário aopagamento de tarifa em atraso, extra-pola os limites da legalidade, existin-do outros meios para buscar o adim-plemento do débito.”

Atualmente, depois de o Superior Tribu-nal de Justiça admitir a aplicação do CDCàs operações bancárias e até mesmo às fi-nanceiras1, a Suprema Corte está a debatera constitucionalidade ou não do Código deDefesa do Consumidor em relação à limita-ção dos juros bancários. É que a Constitui-ção brasileira remete a regulação do siste-ma financeiro nacional à lei complementar,abrindo espaço para a discussão sobre a per-tinência de o conceito de serviço, expressono art. 3º, § 2º, CDC, incluir as atividades“de natureza bancária, financeira, de crédi-to e securitária”.

Outras situações, evidentemente, estãoa exigir maior elaboração doutrinária e ju-risprudencial, não só pela novidade do Di-reito do Consumidor nos ordenamentosnormativos como também pela complexida-de das relações econômicas na sociedaderecente. A própria noção de consumidorenseja controvérsias ainda por descortinar:o art. 2º o define como “toda pessoa físicaou jurídica que adquire ou utiliza produtoou serviço como destinatário final”, equi-parando a consumidor “a coletividade depessoas, ainda que indetermináveis, quehaja intervindo nas relações de consumo”.No ponto, o Superior Tribunal de Justiçaconsiderou inaplicável o CDC em alguns ca-sos, como exemplifica o REsp n. 218.505-MG(DJ 14/2/2000), de cuja ementa se colhe:

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“MÚTUO. REDUÇÃO DA MUL-TA CONTRATUAL DE 10% PARA2%. INEXISTÊNCIA NO CASO DERELAÇÃO DE CONSUMO.

– Tratando-se de financiamentoobtido por empresário, destinado pre-cipuamente a incrementar a sua ativi-dade negocial, não se podendo quali-ficá-lo, portanto, como destinatário fi-nal, inexistente é a pretendida relaçãode consumo. Inaplicação no caso doCódigo de Defesa do Consumidor.”

Entretanto, a qualificação de destinatá-rio final nem sempre é suficiente para abran-ger todos os casos na cadeia das relaçõesjurídico-econômicas. É o que se observa, porexemplo, na relação entre o taxista que ad-quire o automóvel para utilizá-lo em suaatividade lucrativa, como instrumento detrabalho, e o fabricante ou fornecedor. Emcaso de defeito do produto, seria questioná-vel a inclusão do comprador entre os con-sumidores, porquanto não propriamentedestinatário final do veículo. De outro lado,existe a relação entre uma fábrica de auto-móveis e seus fornecedores de peças, ambosde porte econômico elevado. A diferença quese evidencia entre um caso e outro não sesitua no destino final do produto, mas simna disparidade econômica entre as partesna relação jurídica, ou, em outras palavras,a hipossuficiência ou a vulnerabilidade deum lado em relação ao outro.

Nessa seara, a jurisprudência reconhe-ceu a incidência do CDC para o produtorrural que comprou adubo para sua ativida-de produtiva:

• REsp n. 208.793-MT (DJ 1º/8/2000)“1. A expressão ‘destinatário final’,

constante da parte final do art. 2º doCódigo de Defesa do Consumidor, al-cança o produtor agrícola que com-pra adubo para o preparo do plantio,à medida que o bem adquirido foi uti-lizado pelo profissional, encerrando-se a cadeia produtiva respectiva, nãosendo objeto de transformação ou be-neficiamento.”

Trata-se de situações ainda sob medita-ção da doutrina e da jurisprudência, que nãosedimentaram conclusões hábeis a respon-der à altura ao verdadeiro propósito de pro-teção do Direito do Consumidor ao econo-micamente mais vulnerável.

5. A desconsideração dapersonalidade jurídica

O Código de Defesa do Consumidor po-sitivou a doutrina da desconsideração dapersonalidade jurídica da sociedade, pro-clamando o seu art. 28 que poderá ser des-considerada também “a pessoa jurídica sem-pre que sua personalidade for, de alguma for-ma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízoscausados aos consumidores” (§ 5º).

Nesse ponto, o Superior Tribunal de Jus-tiça, na sua condição de Corte Suprema doPaís como guardião do direito infraconsti-tucional, tem aplicado o dispositivo em vá-rios de seus julgados, a exemplo dos REspsn. 252.759-SP (DJ 27/11/2000) e 63.652-SP(DJ 21/8/2000), das Turmas Especializadasem Direito Privado, com estas ementas:

“DOUTRINA DA DESCONSIDE-RAÇÃO DA PERSONALIDADE JU-RÍDICA. ART. 28 DO CÓDIGO DEDEFESA DO CONSUMIDOR. PRE-CEDENTES.

1. Não desqualificada a relação deconsumo, possível a desconsideraçãoda personalidade jurídica, provadanas instâncias ordinárias a existên-cia de ato fraudulento e o desvio dasfinalidades da empresa, ainda maisquando presente a participação dire-ta do sócio, em proveito próprio.”

“FALÊNCIA. DESCONSIDERA-ÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDI-CA. DUAS RAZÕES SOCIAIS, MASUMA SÓ PESSOA JURÍDICA. QUE-BRA DECRETADA DE AMBAS.

(...)– O juiz pode julgar ineficaz a per-

sonificação societária, sempre que forusada com abuso de direito, para frau-dar a lei ou prejudicar terceiros.”

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6. As ações coletivas e a defesa doconsumidor em juízo

O título III do Código do Consumidorocupa-se de importante parte a respeito daproteção ao consumidor, ao dispor sobre asua defesa em juízo.

Nesse título, a Lei nº 8.078/90 buscouabranger as atividades desenvolvidas peloconsumidor em juízo, na posição de autor,réu ou eventual beneficiário de ações coleti-vas ajuizadas por pessoas especialmente le-gitimadas.

As ações coletivas, que no Brasil ganha-ram excepcional relevo com a edição da Leinº 7.347, de 24.7.1985, receberam expressãoainda maior com o advento do Código doConsumidor.

Como assinalei em outra oportunidade,protegendo interesses de consideráveis par-celas da comunidade que se viam frustra-das na defesa de seus direitos, sem o devidoamparo legal, a Lei nº 7.347, de 24-7-1985,além de tornar realidade o princípio consti-tucional de acesso à tutela jurisdicional doEstado, representa significativa evolução nosentido da superação do modelo tradicionaldo processo civil, adequando-o à sociedadedos nossos dias, não mais de característicasindividualistas, mas predominantemente demassa, voltada para o interesse coletivo.

Prevista originariamente, no projeto de1984, para preservar o meio ambiente e bensou valores artísticos, estéticos, históricos,turísticos e paisagísticos, a “ação civil pú-blica”, ao ser instituída, viu-se também des-tinada à defesa do consumidor, tendo, inad-vertidamente, mantido o qualificativo “pú-blica”, que, diga-se de passagem, não lheassenta em rigor científico.

A “ação civil pública” constitui, além deinegável progresso jurídico, relevante ins-trumento político, na medida em que, pre-servando bens e valores caros a segmentossignificativos da coletividade, protege, am-para e defende a própria sociedade.

Na esteira dessa Lei 7.347/85 surgiu,em sua parte processual, como ação cole-

tiva, o Código de Defesa do Consumidor(Lei nº 8.078/90), tendo o legislador, inteli-gentemente, ainda feito a interação dessesdois diplomas, dispondo em ambos que ne-les sejam aplicadas, no que couber, as nor-mas do outro.

Destarte, tanto em uma como em outradessas duas leis, na parte processual o focose guiou para o acesso à Justiça.

Em se tratando do consumidor, no en-tanto, as normas processuais identificam-se nas ações individuais e nas coletivas.

Nas primeiras, o CDC contempla:a) a possibilidade de fixação da compe-

tência pelo domicílio do consumidor autornas ações de responsabilidade civil do for-necedor de produtos e serviços (art. 101, I);

b) a inadmissibilidade da denunciaçãoda lide nas ações de regresso intentadas pelofabricante, construtor, fornecedor, produtor,importador ou pelo comerciante que tenhapago o prejuízo ao consumidor prejudica-do (art. 88);

c) a possibilidade de chamamento aoprocesso especificamente previsto para osegurador da responsabilidade (art. 101, II)e diverso do instituto já definido no Códigode Processo Civil;

d) a reafirmação do direito constitucio-nal subjetivo de ação ao estabelecer que“para a defesa dos direitos e interesses pro-tegidos por este Código são admissíveis to-das as espécies de ações capazes de propi-ciar sua adequada e efetiva tutela” (art. 83);

e) a tutela específica das obrigações defazer e não-fazer (art. 84), mais de quatro anosantes de ser introduzida no Código de Pro-cesso Civil, permitindo que o juiz determine“providências que assegurem o resultadoprático equivalente ao do adimplemento”;

f) a ampliação da extensão subjetiva dacoisa julgada nas ações coletivas, tornan-do-a erga omnes ou ultra partes, conforme setrate de interesses difusos, coletivos ou in-dividuais homogêneos (art. 103).

Além dessas, a inversão do ônus da pro-va, a implantação de Juizados Especiais dePequenas Causas e Varas Especializadas

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para a solução de litígios de consumo e aassistência jurídica integral e gratuita parao consumidor carente vêm ao encontro dopropósito maior que inspirou o Código, oacesso à Justiça.

No campo das ações coletivas, todavia,o Direito do Consumidor no Brasil arrimou-se em dois pilares: ao positivar as categoriasde interesses difusos, coletivos e individuaishomogêneos e ao ampliar a legitimação ativapara a defesa dos consumidores em juízo.

O art. 81, parágrafo único, do Código deDefesa do Consumidor assim dispõe:

“Art. 81. A defesa dos interesses edireitos dos consumidores e das víti-mas poderá ser exercida em juízo in-dividualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletivaserá exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos,assim entendidos, para efeitos desteCódigo, os transindividuais, de natu-reza indivisível, de que sejam titula-res pessoas indeterminadas e ligadaspor circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos,assim entendidos, para efeitos des-te código, os transindividuais, denatureza indivisível de que seja titu-lar grupo, categoria ou classe de pes-soas ligadas entre si ou com a parte con-trária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos indivi-duais homogêneos, assim entendidosos decorrentes de origem comum.”

Exemplificando, no primeiro grupo es-tão os atingidos por propaganda enganosae por produtos nocivos. No segundo, con-tribuintes ante um mesmo tributo, as asso-ciações de pais de alunos e os sindicatos.No terceiro grupo, os alcançados por um atoilícito civil de mesma origem.

Os arts. 91 e seguintes, por sua vez, dis-ciplinam as ações coletivas para a defesa deinteresses individuais homogêneos.

Mais de uma década antes, em 1978, aotratar da legitimação coletiva, já preconiza-vam Mauro CAPPELLETTI e Bryant GARTH

algumas soluções para efetivar-se o acessoà Justiça: além da assistência judiciária aospobres, preocuparam-se com a representa-ção dos interesses difusos, assim entendi-dos, na expressão desses ilustres mestres,“os interesses coletivos ou grupais”. A pro-pósito, sobre a importância do tema para oprocesso civil, acentuaram:

“Centrando seu foco de preocupa-ção especificamente nos interessesdifusos, esta segunda onda de refor-mas forçou a reflexão sobre noções tra-dicionais muito básicas do processocivil e sobre o papel dos tribunais. Semdúvida, uma verdadeira ‘revolução’está-se desenvolvendo dentro do pro-cesso civil. Vamos examiná-la breve-mente, antes de descrever com maisdetalhes as principais soluções queemergiram.

A concepção tradicional do pro-cesso civil não deixava espaço para aproteção dos interesses difusos. Oprocesso era visto apenas como umassunto entre duas partes, que se des-tinava à solução de uma controvérsiaentre essas mesmas partes a respei-to de seus próprios interesses indi-viduais. Direitos que pertencessem aum grupo, ao público em geral ou aum segmento do público não se en-quadravam bem nesse esquema. Asregras determinantes da legitimidade,as normas de procedimento e a atua-ção dos juízes não eram destinadas afacilitar as demandas por interessesdifusos intentadas por particula-res” (1988, p. 49-50).

Linhas após, acerca da ampliação da le-gitimação ativa para defender essa catego-ria dos interesses, expressaram aqueles dou-trinadores:

“Em primeiro lugar, com relação àlegitimação ativa, as reformas legisla-tivas e importantes decisões dos tri-bunais estão cada vez mais permitin-do que indivíduos ou grupos atuem emrepresentação dos interesses difusos.

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Em segundo lugar, a proteção detais interesses tornou necessária umatransformação do papel do juiz e deconceitos básicos como a ‘citação’ e o‘direito de ser ouvido’. Uma vez quenem todos os titulares de um direitodifuso podem comparecer a juízo –por exemplo, todos os interessados namanutenção da qualidade do ar,numa determinada região –, é precisoque haja um ‘representante adequa-do’ para agir em benefício da coletivi-dade, mesmo que os membros delanão sejam ‘citados’ individualmente.Da mesma forma, para ser efetiva, adecisão deve obrigar a todos os mem-bros do grupo, ainda que nem todostenham tido a oportunidade de serouvidos. Dessa maneira, outra noçãotradicional, a da coisa julgada, precisaser modificada, de modo a permitir aproteção judicial efetiva dos interes-ses difusos.

(...)A visão individualista do devido

processo judicial está cedendo lugarrapidamente, ou melhor, está se fun-dindo com uma concepção social, co-letiva. Apenas tal transformação podeassegurar a realização dos ‘direitospúblicos’ relativos a interesses difu-sos” (p. 50-51).

CAPPELLETTI, Aliás, noutra oportuni-dade, em conferência pronunciada no Bra-sil, em Curitiba, em 18/11/1991, como a re-cordar Franz Klein, alertava para a dimen-são social do processo, que devia voltar-separa a ótica dos usuários da prestação ju-risdicional do Estado e não se prender ape-nas aos seus produtores e produtos e àsnormas (1992, p. 34-51).

Sem revolver aqui a evolução históricados interesses coletivos e difusos, é perti-nente salientar, todavia, que sua inclusãoentre os direitos fundamentais adveio dosmovimentos sociais das décadas de 1950 e1960, sobretudo nos Estados Unidos, ondeas manifestações das mulheres, dos negros,

dos ambientalistas e dos integrantes deparcelas excluídas da proteção estatal cul-minaram na edição do Civil Rights Act,em 1964, que, combatendo a segregaçãoracial nas escolas, mais tarde propicia-ram as políticas de ação afirmativa. (VerLEAL, 1998, cap. 7).

Desde então, os direitos coletivos e difu-sos passaram a exigir meios de concretiza-ção, que necessariamente dependiam de po-líticas públicas e mudanças de comporta-mento das empresas privadas.

Um desses instrumentos de concretiza-ção foi a ampliação do rol de pessoas legiti-madas para intentar as ações coletivas, comoo Ministério Público, as entidades não-go-vernamentais sem fins lucrativos e o indiví-duo, isoladamente ou como cidadão, no casoda ação popular brasileira, ao lado das as-sociações civis, das fundações e dos sindi-catos, que passaram igualmente a expandirseu poder de atuação conforme sua capaci-dade de organização na sociedade.

7. A inversão do ônus da prova

A par das transformações do Direito Pri-vado, o Direito Público, em especial o pro-cesso civil, sofreu mudanças significativas,entre as quais se insere, além de uma novavisão do instituto da res iudicata, a inversãodo ônus da prova, quer dizer, é direito bási-co do consumidor “a facilitação da defesade seus direitos, inclusive com a inversãodo ônus da prova, a seu favor, no processocivil, quando, a critério do juiz, for verossí-mil a alegação ou quando for ele hipossufi-ciente, segundo as regras ordinárias de ex-periência” (art. 6º, VIII).

Na jurisprudência do Superior Tribunalde Justiça, sobre o tema, exemplificam osREsps n. 140.097-SP (DJ 11/9/2000), 81.101-PR (DJ 31/5/1999), 122.505-SP (DJ 24/8/1998) e 203.225-MG (j. em 2.4.2002):

• “A regra contida no art. 6º/VIIIdo Código de Defesa do Consumidor,que cogita da inversão do ônus daprova, tem a motivação de igualar as

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partes que ocupam posições não-iso-nômicas, sendo nitidamente posta afavor do consumidor, cujo acionamen-to fica a critério do juiz sempre quehouver verossimilhança na alegaçãoou quando o consumidor for hipos-suficiente, segundo as regras ordiná-rias da experiência, por isso mesmoque exige do magistrado, quando desua aplicação, uma aguçada sensibi-lidade quanto à realidade mais am-pla onde está contido o objeto da pro-va cuja inversão vai operar-se. Hipó-tese em que a ré/recorrente está muitomais apta a provar que a nicotina nãocausa dependência que a autora/re-corrida provar que ela causa.”

• “CIVIL E PROCESSUAL – CI-RURGIA ESTÉTICA OU PLÁSTICA –OBRIGAÇÃO DE RESULTADO (RES-PONSABILIDADE CONTRATUALOU OBJETIVA) – INDENIZAÇÃO –INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA.

I – Contratada a realização da ci-rurgia estética embelezadora, o cirur-gião assume obrigação de resultado(responsabilidade contratual ou obje-tiva), devendo indenizar pelo nãocumprimento da mesma, decorrentede eventual deformidade ou de algu-ma irregularidade.

II – Cabível a inversão do ônus daprova.

III – Recurso conhecido e provido.”• “RESPONSABILIDADE CIVIL.

CIRURGIÃO-DENTISTA. INVER-SÃO DO ÔNUS DA PROVA. RES-PONSABILIDADE DOS PROFISSIO-NAIS LIBERAIS.

1. No sistema do Código de Defesado Consumidor, a ‘responsabilidadepessoal dos profissionais liberais seráapurada mediante a verificação deculpa’ (art. 14, § 4º).

2. A chamada inversão do ônus daprova, no Código de Defesa do Con-sumidor, está no contexto da facilita-ção da defesa dos direitos do consu-

midor, ficando subordinada ao ‘crité-rio do juiz, quando for verossímil aalegação ou quando for ele hipossufi-ciente, segundo as regras ordináriasde experiências’ (art. 6º, VIII). Isso querdizer que não é automática a inversãodo ônus da prova. Ela depende de cir-cunstâncias concretas que serão apu-radas pelo juiz no contexto da ‘facili-tação da defesa’ dos direitos do con-sumidor. E essas circunstâncias con-cretas, nesse caso, não foram conside-radas presentes pelas instâncias or-dinárias.

3. Recurso especial não conhecido.”• “Não há vício em acolher-se a in-

versão do ônus da prova por ocasiãoda decisão, quando já produzida aprova.”

É próprio ressaltar que o ônus da provasegue, no Brasil – e continua a seguir –, aregra geral de incumbir a quem alega o fatoconstitutivo do seu direito, como expressa oart. 333 do Código de Processo Civil de 1973.O Código de Defesa do Consumidor nãoderrogou essa regra geral, porém flexibili-zou sua aplicação ao permitir ao juiz inver-ter o ônus em duas situações: tratar-se dealegação semelhante à verdade, provavel-mente verdadeira, e estar o consumidor emposição hipossuficiente na relação jurídicade consumo estabelecida em cada caso le-vado a exame do Judiciário. As duas pre-missas para a inversão do ônus da prova,como se vê no art. 6º, CDC, devem fundar-sena experiência comum, no senso de julga-mento do magistrado.

8. A legitimação ativa nas ações coletivas

Afastando as limitações do art. 6º doCódigo de Processo Civil, segundo o qual“ninguém poderá pleitear, em nome próprio,direito alheio, salvo quando autorizado porlei”, nas ações coletivas, o legislador ordi-nário brasileiro inovou de forma louvávelem se tratando de legitimação ativa, o quetambém ocorreu no texto constitucional,

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dando especial relevo ao Ministério Públi-co, quer como custos legis, quer como partelegitimada, o que, ressalvados alguns exces-sos, tem contribuído em muito para a efeti-vidade dos processos coletivos. Aliás, a mis-são institucional do Ministério Público tem-se sobrelevado na solidificação da democra-cia, mediante a garantia dos instrumen-tos necessários e efetivos de cidadania. Arespeito, a jurisprudência tem reconheci-do o mérito da Instituição, como se extrai, en-tre outros, do REsp n. 34.155-MG (DJ 11/1/1996), por mim relatado e assim ementado:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CI-VIL PÚBLICA. MENSALIDADES ES-COLARES. MINISTÉRIO PÚBLICO.INTERESSE COLETIVO. LEGITIMA-ÇÃO ATIVA. DOUTRINA. PRECE-DENTES. RECURSO PROVIDO.

I – Sob o enfoque de uma interpreta-ção teleológica, tem o Ministério Públi-co, em sua destinação institucional, le-gitimidade ativa para a ação civil pú-blica versando mensalidades escolares,uma vez caracterizados na espécie ointeresse coletivo e a relevância social.

II – Na sociedade contemporânea,marcadamente de massa, e sob os in-fluxos de uma nova atmosfera cultu-ral, o processo civil, vinculado estrei-tamente aos princípios constitucio-nais e dando-lhes efetividade, encon-tra no Ministério Público uma insti-tuição de extraordinário valor na de-fesa da cidadania.”

Em várias outras hipóteses, o MinistérioPúblico tem reconhecida legitimidade paraatuar em defesa dos consumidores, comomostram estes precedentes do Superior Tri-bunal de Justiça:

Parcelamento do solo• REsp 174.308-SP, DJ 25/2/2002“ADMINISTRATIVO. PROCES-

SUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA(LEI 7.347/85). INTERESSES INDIVI-DUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMA-ÇÃO ATIVA AD CAUSAM DO MI-NISTÉRIO PÚBLICO.

1. O Ministério Público tem legiti-mação ativa ad causam para promoveração civil pública destinada à defesa dosinteresses difusos e coletivos, incluindoaqueles decorrentes de projetos referen-tes ao parcelamento de solo urbano.

2. Precedentes jurisprudenciais.”Plano de saúde• REsp 177.965-PR, DJ 23/8/1999 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO

COLETIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO.LEGITIMIDADE. INTERESSES INDI-VIDUAIS HOMOGÊNEOS. PLANODE SAÚDE. REAJUSTE DA MENSA-LIDADE. UNIMED.

– O Ministério Público tem legiti-midade para promover ação coletivaem defesa de interesses individuaishomogêneos quando existente interes-se social compatível com a finalidadeda instituição. Reajuste de prestaçõesde Plano de Saúde (UNIMED). Art. 82,I, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defe-sa do Consumidor). Precedentes.

– Recurso conhecido e provido.”Prêmio de seguro-saúde• REsp 286.732-RJ, DJ 12/11/2001 “RECURSO ESPECIAL. PROCES-

SUAL CIVIL E CIVIL. MINISTÉRIOPÚBLICO. LEGITIMIDADE. AÇÃOCIVIL PÚBLICA. CONTRATOS DESEGURO-SAÚDE. PRÊMIO. REAJUS-TAMENTO DE VALORES. ATO AD-MINISTRATIVO. DESCONFORMIDA-DE COM AS REGRAS PERTINENTES.

– Segundo as áreas de especializa-ção estabelecidas em razão da matériano Regimento Interno do Superior Tri-bunal de Justiça, compete à SegundaSeção processar e julgar feitos relati-vos a direito privado em geral.

– O debate sobre a legitimidade doMinistério Público para ajuizar açãocivil pública em favor dos consumi-dores do serviço de saúde prejudica-dos pela majoração ilegal dos prêmi-os de seguro-saúde situa-se no cam-po do Direito Privado.

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– É cabível ação civil pública pararequerer a suspensão de cobrança amaior de prêmios de seguro-saúde.Em tal caso, o interesse a ser defendi-do não é de natureza individual, masde todos os consumidores lesados quepactuaram com as empresas de segu-ro-saúde.

– O Ministério Público Estadualtem legitimidade para propor a açãoporquanto se refere à defesa de inte-resses coletivos ou individuais homo-gêneos, em que se configura interessesocial relevante, relacionados com oacesso à saúde.”

Contrato bancário por adesão• REsp 175.645-RS, DJ 30/4/2001“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CON-

TRATOS DE ADESÃO. LEGITIMIDA-DE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

– O Ministério Público possui le-gitimidade para promover ação civilpública tendo por objeto cláusulas decontratos bancários de adesão. Recur-so não conhecido.”

Ingresso de idosos em estádio de futebol• REsp 242.643-SC, DJ 18/12/2000“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINIS-

TÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.INGRESSO GRATUITO DE APOSEN-TADOS EM ESTÁDIO DE FUTEBOL.LAZER.

– O Ministério Público tem legiti-midade para promover ação civil pú-blica em defesa de interesse coletivodos aposentados que tiveram asse-gurado por lei estadual o ingresso emestádio de futebol. O lazer do idoso temrelevância social, e o interesse que deledecorre à categoria dos aposentadospode ser defendido em juízo pelo Mi-nistério Público, na ação civil pública.

– Recurso conhecido e provido.”Compra e venda de imóvel por adesão• EREsp 141491- SC“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO

COLETIVA. CUMULAÇÃO DE DE-MANDAS. NULIDADE DE CLÁUSU-

LA DE INSTRUMENTO DE COM-PRA-E-VENDA DE IMÓVEIS. JUROS.INDENIZAÇÃO DOS CONSUMIDO-RES QUE JÁ ADERIRAM AOS REFE-RIDOS CONTRATOS. OBRIGAÇÃODE NÃO-FAZER DA CONSTRUTO-RA. PROIBIÇÃO DE FAZER CONS-TAR NOS CONTRATOS FUTUROS.DIREITOS COLETIVOS, INDIVIDUAISHOMOGÊNEOS E DIFUSOS. MINIS-TÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA.RECURSO PROVIDO.

I – O Ministério Público é parte le-gítima para ajuizar ação coletiva deproteção ao consumidor, em cumula-ção de demandas, visando: a) a nuli-dade de cláusula contratual (jurosmensais); b) a indenização pelos con-sumidores que já firmaram os contra-tos em que constava tal cláusula; c) aobrigação de não mais inseri-la noscontratos futuros, quando presentecomo de interesse social relevante aaquisição, por grupo de adquirentes,da casa própria que ostentam a con-dição das chamadas classes média emédia baixa.

II – Como já assinalado anterior-mente (REsp. 34.155-MG), na socieda-de contemporânea, marcadamentede massa, e sob os influxos de umanova atmosfera cultural, o processocivil, vinculado estreitamente aosprincípios constitucionais e dando-lhesefetividade, encontra no Ministério Pú-blico uma instituição de extraordiná-rio valor na defesa da cidadania.

III – Direitos (ou interesses) difu-sos e coletivos se caracterizam comodireitos transindividuais, de nature-za indivisível. Os primeiros dizem res-peito a pessoas indeterminadas quese encontram ligadas por circunstân-cias de fato; os segundos, a um grupode pessoas ligadas entre si ou com aparte contrária através de uma únicarelação jurídica.

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IV – Direitos individuais homogê-neos são aqueles que têm a mesma ori-gem no tocante aos fatos geradores detais direitos, origem idêntica essa querecomenda a defesa de todos a um sótempo.

V – Embargos acolhidos.”Interesses individuais homogêneos• REsp 168.859-RJ, DJ 23/8/1999“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO

COLETIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO.LEGITIMIDADE. INTERESSES INDI-VIDUAIS HOMOGÊNEOS. CLÁUSU-LAS ABUSIVAS.

– O Ministério Público tem legiti-midade para promover ação coletivaem defesa de interesses individuaishomogêneos quando existente interes-se social compatível com a finalidadeda instituição.

– Nulidade de cláusulas constan-tes de contratos de adesão sobre cor-reção monetária de prestações para aaquisição de imóveis, que seriam con-trárias à legislação em vigor. Art. 81,parágrafo único III, e art. 82, I, da Leinº 8.078/90 (Código de Defesa doConsumidor). Precedentes.

– Recurso conhecido e provido.”Segurados INSS• REsp 211.019-SP, DJ 8/5/2000“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CI-

VIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDU-AIS HOMOGÊNEOS. INTERESSEPÚBLICO. MINISTÉRIO PÚBLICOFEDERAL.

– O Ministério Público possui le-gitimidade para propor ação coletivavisando proteger o interesse de todosos segurados que recebiam benefíciode prestação continuada do INSS, per-tinente ao pagamento dos benefíciossem a devida atualização, o que esta-ria causando prejuízo grave a todosos beneficiários.

– Sobre as atribuições dos integran-tes do Ministério Público, cumpre as-severar que a norma legal abrange

toda a amplitude de seus conceitos einterpretá-la com restrições seria con-trariar os princípios institucionais queregem esse órgão.

– Recurso provido.”Salário mínimo de servidor municipal• REsp 95.347-SE, DJ 1º/2/1999“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CI-

VIL PÚBLICA. DIREITOS E INTERES-SES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMI-DADE. RECURSO ESPECIAL.

1. Há certos direitos e interesses in-dividuais homogêneos que, quandovisualizados em seu conjunto, de for-ma coletiva e impessoal, passam a re-presentar mais que a soma de interes-ses dos respectivos titulares, mas ver-dadeiros interesses sociais, sendo ca-bível sua proteção pela ação civil pú-blica.

2. É o Ministério Público ente legi-timado a postular, via ação civil pú-blica, a proteção do direito ao salário-mínimo dos servidores municipais,tendo em vista sua relevância social,o número de pessoas que envolvem aeconomia processual.

3. Recurso conhecido e provido.”Nulidade de concurso público• REsp 180.350-SP, DJ 9/11/1998“PROCESSUAL. LEGITIMIDADE.

MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVILPÚBLICA. CONCURSO PÚBLICO.

– O Ministério Público é legitima-do a propor ação civil pública, visan-do à decretação de nulidade de con-curso público que afrontou os princí-pios de acessibilidade, legalidade emoralidade.

– Trata-se de interesses transindi-viduais de categoria ou classe de pes-soa e de direitos indivísiveis e indis-poníveis, de toda coletividade.

– Recurso improvido.”Em outros casos, contudo, a Corte não

admitiu a legitimidade ativa do MinistérioPúblico para defender interesse dos consu-

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midores porquanto não configurado, no seuentendimento, o interesse difuso ou coleti-vo. É o que se vê nestes dois julgamentos,relativos à cobrança de tributos e à aposen-tadoria e pensão de servidores públicos:

Cobrança de tributo• REsp 175.888-PR, DJ 3/5/1999“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CI-

VIL PÚBLICA PARA DECLARAÇÃODE INCONSTITUCIONALIDADE DELEI E DEFENDER DIREITOS DIVISÍ-VEIS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉ-RIO PÚBLICO PARA FIGURAR NOPÓLO ATIVO. EXTINÇÃO DO PRO-CESSO.

– O Ministério Público só tem legi-timidade para figurar no pólo ativode ação civil pública quando na defe-sa de interesse difuso ou coletivo, as-sim entendidos os transindividuais,de natureza indivisível, de que sejamtitulares pessoas indeterminadas eligadas por circunstâncias de fato(art. 81, parágrafo único, incisos I e IIda Lei 8.078), de que seja titular gru-po, categoria ou classe de pessoas li-gadas entre si ou com a parte contrá-ria por uma relação jurídica base.

– O pedido de suspensão de paga-mento de tributo e a respectiva repeti-ção de indébito não se insere na cate-goria de interesses difusos ou coleti-vos porquanto são divisíveis e indivi-dualizáveis. Interesse coletivo, na dic-ção da lei, não se confunde com inte-resse público ou da coletividade, poisaquele (interesse público) não enten-de como sendo uma simples realida-de quantitativa, dependente do núme-ro de indivíduos que o partilham. Opedido de sustação de pagamento detributo, cumulado com repetição deindébito, não tem conteúdo de interes-se público, a ser protegido pela açãocivil pública, que não pode substituira de repetição de indébito, pois, secuida de direito individual, determi-nado, quantificado, eis que cada con-

tribuinte efetua pagamento de quan-tia certa, em período considerado. Oscontribuintes não são consumidores,não havendo como se vislumbrar suaequiparação aos portadores de direi-tos difusos ou coletivos (Lei nº 7.347,art. 1º, IV).

– Em se tratando, in casu, de direi-tos individuais homogêneos, identifi-cáveis e divisíveis, titularidades equantificáveis, devem ser postulados,na esfera jurisdicional, pelos seus pró-prios titulares, já que, na sistemáticado nosso direito, salvo exceção legal,ninguém poderá pleitear, em nomepróprio, direito alheio.

– Recurso improvido. Decisãounânime.”

Aposentadoria e pensão de servidor• REsp 143.215-PB, DJ 7/12/1998“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTE-

RESSES INDIVIDUAIS DISPONÍVEIS.ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIOPÚBLICO FEDERAL.

– O Ministério Público Federal nãopossui legitimidade para propor açãocivil pública visando à manutençãode aposentadorias e pensões de servi-dores públicos da Universidade Fede-ral da Paraíba. Tratando-se de direi-tos individuais disponíveis, os titula-res podem deles dispor. Inexistênciade violação à Lei Complementar nº 75/93 e à Lei nº 7.347/85.

– Recurso especial desprovido.”Além do Parquet, as associações de defe-

sa dos consumidores vêm tendo reconheci-da legitimidade para atuar ativamente nasações coletivas, uma vez presente o interes-se difuso e coletivo. A propósito, ilustramos seguintes julgados do Superior Tribunalde Justiça:

• REsp 157.713-RS, DJ 21/08/2000“AÇÃO COLETIVA. DIREITOS

INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. AS-SOCIAÇÕES. LEGITIMIDADE.

– As associações a que se refere oartigo 82, IV, do Código de Defesa do

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Consumidor têm legitimidade parapleitear em juízo em favor de quantosse encontrem na situação alcançadapor seus fins institucionais, ainda quenão sejam seus associados.”

• Empréstimo compulsório sobre com-bustíveis

REsp n. 294.021-PR (DJ 2/4/2001)“6. A Lei da Ação Civil Pública foi

alterada pelo Código de Defesa doConsumidor, restando possibilitado oajuizamento de ações civis públicaspara a defesa também dos chamados‘interesses individuais homogêneos’,entre os quais se situam os do caso emcomento: consumidores de combustí-veis (gasolina e álcool) que passarama pagar, embutido no preço do bemconsumido, a exação prevista no De-creto-Lei nº 2.288, de 1986, denomi-nada ‘empréstimo compulsório sobreo consumo de combustíveis’.

7. O argumento de que a extensãode eficácia erga omnes somente é cabí-vel nas hipóteses previstas original-mente na Lei nº 7.347/85 cai por terradiante da autorização expressa parainteração entre a Lei da Ação CivilPública e o Código de Defesa do Con-sumidor (art. 21 da Lei nº 7.347/85,com a redação que lhe foi dada peloart. 117 da Lei nº 8.078/90). Assim,afasta-se a alegação de incompetên-cia do Juízo da 4ª Vara Federal deCuritiba para a concessão de ampli-tude territorial à sentença porquantotal amplitude está prevista no orde-namento jurídico nos arts. 16, da Leinº 7.347/85, e 103, da Lei nº 8.078/90, e é efeito da sentença em ação des-te gênero.

8. A Lei nº 7.347/85, em seu art. 5º,autoriza a propositura de ações civispúblicas por associações que incluam,entre suas finalidades institucionais,a proteção ao meio ambiente, ao con-sumidor, ao patrimônio artístico, es-tético, histórico, turístico e paisagísti-

co, ou a qualquer outro interesse difu-so ou coletivo.

9. A Associação Paranaense de De-fesa do Consumidor – APADECO –possui, no art. 2º do seu Estatuto So-cial, as seguintes finalidades: “art. 2º– A Associação Paranaense de Defe-sa do Consumidor – APADECO – tempor finalidade essencial promover adefesa do consumidor, de acordo comas normas do Código de Defesa doConsumidor (CODECON) e legislaçãocorrelata, como também dos contribu-intes e de quaisquer outras pessoas,relativamente aos danos causados aomeio ambiente e qualquer outro inte-resse difuso ou coletivo, na forma daLei de Ação Civil Pública e legislaçãovigente’.

10. O direito em questão é indivi-dual, embora homogêneo. São interes-ses metaindividuais, não são interes-ses públicos, nem privados: são inte-resses sociais. E, os interesses indivi-duais, coletivamente tratados, adqui-rem relevância social, que impõem asua proteção pela via especial.”

Planos de saúde• REsp 72.994-SP DJ 17/9/2001“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ENTIDA-

DES DE SAÚDE. AUMENTO DASPRESTAÇÕES. LEGITIMIDADE ATIVA.

1. O Instituto Brasileiro de Defesado Consumidor – IDEC tem legitimi-dade ativa para ajuizar ação civil pú-blica em defesa dos consumidores deplanos de saúde.

2. Antes mesmo do Código de De-fesa do Consumidor, o país semprebuscou instrumentos de defesa coleti-va dos direitos, ganhando força, sejacom a Lei n° 7.347/87, seja alcançan-do dimensão especial com a discipli-na constitucional de 1988. Sedimen-tados os conceitos centrais, não hárazão que afaste o presente feito docaminho da ação civil pública. O ins-tituto autor é entidade regularmente

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constituída e tem legitimidade ativapara ajuizar a ação civil pública deresponsabilidade por danos patrimo-niais causados ao consumidor.

3. Recurso especial conhecido eprovido.”

Consumidores excluídos de consórcio• REsp 222.569-SP DJ 27/8/2001“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CÓDI-

GO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.CONSÓRCIO. ASSOCIAÇÃO. LEGI-TIMIDADE DE PARTE ATIVA.

– A associação, que tem por finali-dade a defesa do consumidor, podepropor ação coletiva em favor dos par-ticipantes, desistentes ou excluídos,de consórcio, visto cuidar-se aí de in-teresses individuais homogêneos”.

•REsp 132.724-RS, DJ 19/2/2001“PROCESSO CIVIL. LEGITIMIDA-

DE AD CAUSAM.– Ação coletiva proposta por uma

associação em defesa de direito indi-vidual homogêneo de consorciadosdesistentes para obter a devoluçãoatualizada das prestações pagas;sentença de procedência que alcançatodos os ex-participantes do consórcio.Recurso especial conhecido e provido.”

• RESP 132063 / RS, DJ 6/4/1998“CÓDIGO DE DEFESA DO CON-

SUMIDOR, AÇÃO COLETIVA. LE-GITIMIDADE ‘AD CAUSAM’. ASSO-CIAÇÃO. CONSÓRCIO.

– A associação que tem por finali-dade a defesa do consumidor podepropor ação coletiva em favor dos par-ticipantes desistentes de consórcio deveículos, não se exigindo tenha sidoinstituída para a defesa específica dosinteresses de consorciados. Art. 82, IV,do CDC.

– Recurso conhecido e provido.”Entidade representativa de classe (far-

macêuticos)• REsp 119.122-SP, DJ 16/8/1999

“Têm as entidades representativas declasse legitimidade ativa para defender di-

reitos e interesses de seus associados, inde-pendentemente de autorização destes.

A associação de farmacêuticos tem legi-timidade para impugnar interpretação depreceito contido no Dec. 793/93 que, embo-ra dirigido às drogarias, atinge também asfarmácias.”

Condomínio em benefício dos condôminos•REsp 66.565-MG, DJ 24/11/1997

“DIREITOS CIVIL E PROCESSUALCIVIL. CONDOMÍNIO. DEFEITOS DECONSTRUÇÃO. ÁREA COMUM. LE-GITIMIDADE ATIVA. INTERESSESDOS CONDOMÍNIOS. IRRELEVÂN-CIA. PRESCRIÇÃO. PRAZO. ENUN-CIADO N. 194 DA SÚMULA/STJ.INTERESSES INDIVIDUAIS HOMO-GÊNEOS. SOLIDEZ E SEGURANÇADO PRÉDIO. INTERPRETAÇÃO EX-TENSIVA. LEIS 4.591/64 E 8.078/90(CÓDIGO DE DEFESA DO CONSU-MIDOR). PRECEDENTES. RECURSODESACOLHIDO.

I – O condomínio tem legitimidadeativa para pleitear reparação de danospor defeitos de construção ocorridos naárea comum do edifício, bem como naárea individual de cada unidade habi-tacional, podendo defender tanto osinteresses coletivos quanto individuaishomogêneos dos moradores.”

9. Conclusão

Ao focalizar o sistema jurídico brasilei-ro de defesa do consumidor, buscamos, antesde qualquer outra preocupação, dar as suasdiretrizes gerais, a partir do texto constitucio-nal, que lhe deu guarida, a começar por deter-minar a elaboração de um Código, que, porsua vez, adotou regras de direito material ede direito processual, em ambas as vertentesrevolucionando o direito brasileiro.

Quanto às primeiras, ao encontrar vigen-te no País uma legislação de direito privadoultrapassada, deu a este um novo vigor, che-gando mesmo a influenciar na elaboraçãofinal do novo Código Civil já aprovado e

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sancionado, para tanto encontrando a atu-ação arejada, fecunda e de vanguarda da ju-risprudência de ponta, na qual tem tido espe-cial relevo o Superior Tribunal de Justiça, aCorte maior do País na interpretação e apli-cação do direito federal infraconstitucional.

Quanto às normas processuais, sua in-fluência se faz sentir sobretudo em termosde coisa julgada, de inversão do ônus daprova e legitimação ad causam, sendo signifi-cativa a sua contribuição ao princípio do aces-so à tutela jurisdicional, uma das preocupa-ções maiores do processo civil contemporâ-neo e um dos seus princípios mais nobres.

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BESSONE, Darcy. Do contrato. Rio de Janeiro: Fo-rense, 1960.

CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso àjustiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. PortoAlegre, 1998.

COMPARATO, Konder. A proteção do consumi-dor: importante capítulo do direito econômico. Re-vista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Fi-nanceiro, ano 13, n. 15-16, 1974.

GOMES, Orlando. Direito econômico. São Paulo: Sa-raiva, 1977.

GRINOVER, A Pellegrini; BENJAMIN, A. Herman.Código brasileiro de defesa do consumidor. 5. ed. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1997.

LEAL, M. Flávio Mafra. Ações coletivas: história,teoria e prática. Rio de Janeiro: Sérgio Antônio Fa-bris, 1998.

______. Problemas de reforma do processo civilnas sociedades contemporâneas. Ciência Jurídica ,v. 6, n. 45, p. 34-51, maio/jun. 1992.

Notas1 Ao escrever sobre a fisionomia do novo Códi-

go Civil brasileiro, destaquei:“Três princípios foram confessadamente ado-

tados pela Comissão de 1969: da socialidade, daoperalidade e da eticidade.

Pelo primeiro, busca-se fazer prevalecer os va-lores sociais e coletivos sobre os individuais, dandoà nova codificação um perfil bem diferente do ante-rior, moldado para uma sociedade então predomi-nantemente rural.

Pelo segundo, procura-se dar exeqüibilidade,realização, efetividade, enfim, às normas civis ma-teriais, afastando o culto à forma e ao academicis-mo, ao fundamento de que não se deve tornar com-plexo o que deve ser simples e objetivo. Neste senti-do, para exemplificar, o tratamento dado à distin-ção entre prescrição e decadência, elencados os ca-sos daquela na parte geral e acopladas as normas dasegunda aos respectivos preceitos.

Pelo princípio da eticidade, por seu turno, onovo Código dá especial ênfase a valores aos quaiso Código de 1916 não deu relevo. O novo Códigoprioriza os valores da pessoa humana sobre o nor-mativismo técnico-jurídico, valorizando a boa-fé, aeqüidade, a justa causa e outros critérios, amplian-do a atuação do julgador, conferindo-lhe maiorpoder para realizar, no caso concreto, a soluçãomais justa e eqüitativa. Cuida-se aí, sem dúvida,do ponto mais alto do novo estatuto civil.

O legislador de 2001, por outro lado, introdu-ziu também alterações na própria estrutura do novoCódigo, dividindo-o em duas partes: uma geral,

onde dispõe sobre as pessoas, os bens e os fatosjurídicos; e outra, especial, a tratar, pela ordem, emcinco livros, do Direito das Obrigações (unificado),do Direito de Empresa, do Direito das Coisas, doDireito de Família e do Direito das Sucessões.

Em síntese, a par de um sem-número de inova-ções, muitas das quais de grande relevo para aciência jurídica e para a sociedade brasileira dosnossos dias, e sem embargo das múltiplas deficiên-cias que o texto contém, e que todos esperamossejam corrigidas legislativamente ainda antes dasua entrada em vigência, certo é que estamos aingressar em uma nova etapa do Direito Privadobrasileiro, com novas regras e a correção de muitascarências acumuladas ao longo do tempo, com arenovação de conceitos e princípios e a esperançade dias melhores, nos quais tenham maior proteçãoos direitos do cidadão e da pessoa humana” (O novocódigo civil. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002).

2 Entre outros, o Ag/Ag n. 296.516-SP (DJ5 / 2 / 2 0 0 1 ) .

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Werter R. Faria

1. Uma busca de explicação

Pelo Tratado de Assunção, a Argentina,o Brasil, o Paraguai e o Uruguai decidiramconstituir um mercado comum. A expres-são “mercado comum” refere-se a um pro-cesso de integração mais avançado que azona de livre comércio e a união aduaneira.A zona de livre comércio é constituída pordois ou mais Estados, com a finalidade detransformar seus mercados nacionais nummercado mais extenso, mediante a elimina-ção dos obstáculos ao comércio de bens eserviços, para facilitar sua circulação trans-fronteiriça. A união aduaneira é estabeleci-da por dois ou mais Estados para substituiros seus territórios aduaneiros por um só, nointerior do qual são eliminados e proibidosos direitos aduaneiros e todas as medidasde efeito equivalente, na importação e naexportação, e adotada uma tarifa aduanei-ra comum nas trocas com terceiros países.O mercado comum é instituído por dois oumais Estados com o objetivo de criar um es-paço sem fronteiras em que, além das mer-cadorias, as pessoas, os serviços e os capi-tais circulem livremente, graças à supres-são dos obstáculos existentes.

A zona de livre comércio atende a inte-resses exclusivamente econômicos, a união

O impasse do Mercosul

Werter R. Faria é Diretor-Presidente daAssociação Brasileira de Estudos da Integração(ABEI). Porto Alegre.

1. Uma busca de explicação. 2. Nova tenta-tiva de explicação. 3. Saída para o impasse: areforma de estrutura orgânica.

Sumário

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aduaneira corresponde a uma fase posteriorem que se mantém a livre circulação dosprodutos originários dos territórios integra-dos da zona de livre comércio, acrescida daaplicação da tarifa externa comum. Outracaracterística da união aduaneira reside noestabelecimento de uma fronteira única en-tre o conjunto dos territórios dos Estadosmembros e dos países terceiros. A fronteiraúnica decorre da adoção de uma legislaçãoaduaneira comum ou, pelo menos, suficien-temente harmonizada.

No mercado comum europeu, ainda pre-dominam os interesses mercantilistas, en-tretanto a comunidade evolui como sistemapolítico e administrativo, graças à transfe-rência de competências que pertenciam oupertencem aos Estados membros.

O mercado comum delineado no Trata-do de Assunção pretende lançar as basesde uma união cada vez mais estreita entreos povos dos Estados Partes, e fomentar aintegração da América Latina. Essa aspira-ção unionista está declarada no preâmbulodo Tratado, e não pode ser desdenhada naaplicação das suas disposições.

O objetivo do Tratado de Assunção en-contra-se exposto no art. 1º: a constituiçãode um mercado comum, caracterizado pelalivre circulação de bens, serviços e fatoresprodutivos entre os Estados Partes, median-te, entre outros, a eliminação dos direitosalfandegários e de qualquer outra medi-da de efeito equivalente. O fim dos acor-dos internacionais constitutivos das zonasde livre comércio e das uniões aduaneirastem relação exclusivamente com a livre cir-culação de mercadorias e as trocas comer-ciais.

Durante mais de quatro anos, o Merco-sul funcionou sem personalidade jurídica,e, quando os Estados Partes o personifica-ram, não o individualizaram como organi-zação de integração supranacional. Tornou-se flagrante a contradição entre o propósitodo Tratado – constituir um mercado comum,denominado Mercosul – e a escolha dos ins-trumentos para a sua realização. O modelo

intergovernamental repousa sobre a sobe-rania nacional dos Estados membros, e seajusta às organizações de cooperação, quedispensam cessões de competências.

O preâmbulo do Protocolo de Ouro Pre-to menciona os avanços alcançados e a im-plementação da união aduaneira, como eta-pa para a construção do mercado comum.Reafirma o objetivo expresso no Tratado deAssunção. No entanto, dispõe sobre “a es-trutura institucional definitiva dos órgãosde administração” do Mercosul como se nãolhe atribuísse personalidade jurídica de di-reito internacional público e não se tratassede organização de integração. Toda organi-zação de integração é supranacional, e, sefuncionar como organização de cooperação,não alcançará a reunião dos mercados na-cionais em um só, no interior do qual asmercadorias, as pessoas, os serviços e oscapitais circulem livremente, em conseqüên-cia da abolição, entre os Estado Partes, dasbarreiras levantadas no território de cadaum.

Três dos seis órgãos da estrutura doMercosul correspondem ao tipo intergover-namental, visto serem constituídos por re-presentantes dos governos dos Estados Par-tes. As decisões do Conselho do MercadoComum, do Grupo Mercado Comum e daComissão de Comércio do Mercosul sãoobrigatórias para os Estados Partes, no pla-no internacional. No interno, a aplicaçãoexige a incorporação dessas normas aos or-denamentos jurídicos nacionais. Antes dis-so, os governos devem adotar todas as me-didas necessárias para assegurar o futurocumprimento das normas emanadas dosórgãos do Mercosul com capacidade deci-sória.

Os atos desses órgãos imputam-se aoMercosul, cujo poder normativo, como su-cede em qualquer organização internacio-nal, e observa CARREAU (1994, p. 223),

“pode visar situações internas própri-as da organização considerada; maspode também – e é o fenômeno maisinteressante e mais revolucionário –

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dirigir-se a situações ‘externas’ e cri-ar obrigações jurídicas para os Esta-dos membros da organização, atémesmo para Estados não-membros”.

No momento em que são aprovadas asdecisões, resoluções ou diretrizes dos ór-gãos administrativos do Mercosul pelo Po-der Legislativo dos Estados Partes, e se in-corporam aos respectivos ordenamentos ju-rídicos, comparam-se às normas internas decada um dos países. No Brasil, uma normaposterior pode modificar ou revogar os atosunilaterais do Mercosul, mesmo aqueles quesejam de importância capital e possam com-prometer o seu bom funcionamento.

A função dos órgãos com poder de deci-são não está adequada à construção doMercosul. Compete ao Conselho, em sínte-se, a condução política do processo de inte-gração e a adoção de decisões para assegu-rar o cumprimento dos fins do Tratado deAssunção, e lograr a constituição final domercado comum. O Grupo exerce funçõesde órgão executivo do Mercosul. A Comis-são de Comércio tem a incumbência de as-sistir ao Grupo e de velar pela aplicação dosinstrumentos de política comercial comum,tomar decisões relativas à administração eaplicação da tarifa externa comum e dosinstrumentos de política comercial comumacordada pelos Estados Partes, bem comoacompanhar e revisar os temas e matériasrelacionados com a política comercial co-mum e o comércio intramercosul e com ter-ceiros países.

Todas as organizações internacionaispossuem um órgão investido na função decoordenar a ação dessas entidades com ados Estados membros, nos setores previstosnos tratados constitutivos e suas alterações.Incumbe ao Conselho a condução políticado processo de integração, como órgão su-perior do Mercosul, e a tomada de decisõespara o cumprimento dos objetivos do Trata-do de Assunção, entre os quais se destaca aconstituição do mercado comum. O Conse-lho tem em comum com os órgãos da mes-ma espécie das organizações internacionais

a atribuição decisória. Em vez de coordenara ação desenvolvida pelo Mercosul com ados Estados Partes, o Conselho dirige a pró-pria formação da entidade. Como órgão su-postamente mais indicado para desempe-nhar as principais atribuições deliberativas,seria necessário o funcionamento contínuoe com suporte material e humano adequado.

Tida em conta a tarefa de conduzir poli-ticamente o processo de integração, e tomardecisões para levá-lo a bom termo, não seexplica a participação no Conselho dos Mi-nistros da Economia ou seus equivalentes,salvo pela superioridade que alguns se ar-rogam sobre os outros Ministros. O estabe-lecimento do Mercosul é uma tarefa de polí-tica externa, e deve ser confiada, por via deregra, aos Ministros das Relações Exterio-res. Somente quando o Conselho tivesse quedeliberar sobre assuntos de ordem técnica,como os financeiros, monetários, educacio-nais, sanitários ou econômicos, justificar-se-ia a presença em suas reuniões dos Minis-tros da área em questão. Na ComunidadeEuropéia, como registra PHILIP (1993, p. 277),

“o Ministro presente não é sempre omesmo. Cada governo delega ao maiscompetente dos seus membros, a res-peito das questões inscritas na ordemdo dia. Se os trabalhos concernem, porexemplo, a questões ligadas à coope-ração política, os Ministros das Rela-ções Exteriores estarão presentes. Sedevem ser discutidos problemas maistécnicos, o Conselho será integradopelos Ministros da Fazenda, pelosMinistros da Agricultura, pelos Mi-nistros da Indústria, pelos Ministrosdos Negócios Sociais, etc. Aconteceigualmente que dois membros de ummesmo governo tomem assento jun-tos se o Conselho debate questões per-tencentes à esfera de competência quelhes é comum”.

Segundo o Protocolo de Ouro Preto, oGrupo Mercado Comum é o órgão executi-vo do Mercosul, hierarquicamente inferiorao Conselho e sem independência em face

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dos governos dos Estados Partes. Não se tra-ta, portanto, de órgão correspondente à Co-missão das Comunidades Européias, quetem o encargo de garantir o funcionamentoe o desenvolvimento do mercado comum.Essa missão está erroneamente afeta ao Con-selho, ao qual o Grupo propõe projetos dedecisão. Desse modo, são os governos dosEstados Partes que exercem as funções, tan-to deliberativas como executivas, de acordocom o princípio da intergovernabilidade sóapropriado às organizações internacionaisde cooperação.

O Mercosul teria conhecido dias melho-res e avançado em direção à livre circula-ção, quer de bens, quer de pessoas, de servi-ços e de capitais, se contasse com um órgãoindependente e verdadeiramente executivo.Porém, os seus membros não gozam de in-dependência, estão sujeitos às pressões dosinteresses nacionais e não podem-se dedi-car, salvo esporadicamente, ao exercício desuas funções internacionais.

Entre os quatro titulares do Grupo e osquatro suplentes por país, figuram obriga-toriamente representantes dos Ministéri-os das Relações Exteriores e da Economiaou equivalentes, órgãos cujos titularescompõem o Conselho. Os Bancos Centraisestão representados de modo também ne-cessário. Nenhum membro do Grupo pos-sui a independência necessária para ga-rantir o funcionamento e o desenvolvi-mento do Mercosul.

A Comissão das Comunidades Européias éo órgão-chave, o órgão-motor do mercadocomum porque dispõe de poder de decisãopróprio, assegurado pela escolha de seusmembros em função da competência geral eindependência. Por disposição do Tratadode Roma, os Estados membros ainda se com-prometem a respeitar o princípio da totalindependência.

É óbvia a conclusão de que o Grupo nãopode estar em posição inferior à do Conse-lho, ser coordenado pelos Ministérios dasRelações Exteriores e não possuir indepen-dência, atributo indispensável ao exercício

da função executiva ou administrativa quelhe cumpre desempenhar.

O terceiro órgão da estrutura do Merco-sul – a Comissão de Comércio - não tem ra-zão de existir, nesse nível, pois compete aoGrupo velar pelo cumprimento do Tratadode Assunção e dos acordos adicionais oucomplementares, em relação a todas as ma-térias a que se aplicam. O Protocolo de OuroPreto criou o novo órgão para assistir aoGrupo, mas o inseriu na estrutura do Mer-cosul, em pé de igualdade formal com osórgãos principais. A assistência que deveprestar ao Grupo indicava a qualificação deórgão subsidiário. No entanto, foi-lhe atri-buído o poder de tomar decisões relaciona-das com a administração e aplicação da ta-rifa externa comum e dos instrumentos depolítica comercial comum, bem como de exa-minar reclamações dos Estados Partes e dosparticulares dentro dos limites de sua com-petência.

Outros pontos reclamam revisão. O art.17 do Protocolo relativo à estrutura orgâni-ca do Mercosul dispõe incompletamentesobre a composição da Comissão de Comér-cio, limitando-se a fixar o número de titula-res e suplentes por Estado Parte. Dessemodo, os governos gozam de total liberda-de para designar os seus representantes.

O Protocolo cita as Seções Nacionais daComissão de Comércio como órgãos desta,incumbidos de apresentar-lhe reclamações“originadas pelos Estados Partes ou em de-manda de particulares – pessoas físicas oujurídicas – relacionadas com as situaçõesprevistas nos arts. 1 ou 25 do Protocolo deBrasília, quando estiverem em sua área decompetência”.

O regimento interno da Comissão deComércio estabelece que as Seções Nacio-nais são constituídas pelos representantesde cada Estado, sob a coordenação dos Mi-nistérios das Relações Exteriores.

Comete-lhes uma tarefa que não constade suas atribuições: responder as consultasapresentadas pelos Estados Partes por inter-médio das suas respectivas Seções Nacionais.

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Assim como o Grupo, a Comissão deci-de reclamações a que as Seções Nacionaisdispensarem a proteção dos seus Estados,cumpridos os trâmites do art. 26 do Proto-colo para a Solução de Controvérsia. Hácasos em que as reclamações de particula-res podem ter por objeto a sanção ou a apli-cação de medidas legais ou administrativasadotadas pelos Estados Partes, que alega-damente tenham efeito restritivo, discrimi-natório ou ensejem concorrência desleal,violando o Tratado de Assunção, os acor-dos celebrados no seu âmbito ou as normasemanadas dos órgãos do Mercosul com ca-pacidade decisória. Ora, não pode competiràs organizações internacionais a aprecia-ção da compatibilidade das medidas legaisou administrativas dos Estados Partes comas disposições de um Tratado e de suasmodificações, ou com as decisões dos ór-gãos deliberativos dessas entidades. Mes-mo um tribunal de justiça, como o das Co-munidades Européias, só garante o respei-to do direito na interpretação e aplicaçãodas normas dos Tratados constitutivos oudecide sobre a validade dos atos adotadospelas instituições comunitárias.

O controle da adequação das leis e dasdisposições administrativas internas aostratados e normas derivadas é da compe-tência intransferível dos órgãos do PoderJudiciário dos Estados, ademais de pressu-por a primazia das normas internacionaisconvencionais, que está em tempo de seradmitida em grau supralegal, tanto em rela-ção a normas anteriores como posteriores.

Esse controle precisa ceder lugar a ou-tro, também supra-estatal, sobre a compati-bilidade dos atos dos órgãos do Mercosulcom o Tratado de Assunção e de qualquernorma jurídica relativa à sua aplicação.

A revisão do atual sistema de solução decontrovérsia, antes mesmo do tempo previs-to no art. 44 do Protocolo de Ouro Preto, se-ria a oportunidade de criar um órgão juris-dicional permanente na estrutura do Mer-cosul, com a função de garantir o respeitodo direito na interpretação e aplicação do

Tratado de Assunção, seus protocolos e ins-trumentos adicionais ou complementares,bem como a legalidade dos atos obrigatóriose de alcance geral aprovados pelos órgãosdo Mercosul. A revisão da sua estrutura or-gânica, prescrita pelo art. 47 do menciona-do Protocolo, seria a oportunidade para seradaptada a uma indiscutível organizaçãode integração.

Os três órgãos com capacidade decisó-ria que integram a estrutura do Mercosulprecisam ser adequados ao objetivo do Tra-tado de Assunção. O mercado comum queos Estados Partes decidiram constituir é umaorganização internacional, que adquiriupersonalidade jurídica posteriormente, mascontinuou sob o controle absoluto dos Esta-dos Partes, por meio dos seus representan-tes no Conselho, no Grupo e na Comissãode Comércio. Os órgãos das entidades de in-tegração devem atuar por estas, como partesque as constituem. O órgão de execução, emespecial, deve velar, não só pelo funciona-mento e o desenvolvimento, como pelo res-peito da legalidade por parte dos Estados edos particulares. Para esse fim, é necessáriopossuir autonomia e representar o interessecomum, e não o dos Estados membros. Con-tudo, os interesses destes devem estar repre-sentados no órgão que, na expressão utiliza-da por ISAAC (1990, p. 45), sendo a

“encarnação dos interesses nacionais,assegura a inserção no sistema comu-nitário dos Estados e dos seus gover-nos, e toma para si a parte de leão”.

O Comitê de Representantes Permanen-tes, órgão de caráter diplomático, compostopor um delegado por Estado membro, pre-para as reuniões do Conselho e executa astarefas que este determine. A professoraSCHMITTER (1993, p. 181) assinala que,

“no fim de uma fase preparatória,apresenta o conjunto de pontos de vis-ta, os acordos ou desacordos entreseus membros e uma proposição decompromisso. O trabalho do CORE-PER serve de base da negociação paraos membros do Conselho”.

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As reuniões do Conselho do Mercosulsão coordenadas, em cada Estado Parte,pelos Ministérios das Relações Exteriores,quando seria preciso existir uma fase pre-paratória, que evitasse a improvisação e areprodução de divergências no interior doórgão em que se manifestam legitimamenteos interesses nacionais. Os trabalhos doConselho deveriam ser constantemente di-rigidos para a conciliação das divergênciase o estabelecimento do mercado comum.Temos visto o contrário, por parte de mem-bros do próprio Conselho, até mesmo a de-fesa da regressão do Mercosul à etapa dezona de livre comércio, que importaria nasubmissão da Argentina, do Brasil, do Pa-raguai e do Uruguai aos interesses mercan-tilistas patrocinados pelo governo norte-americano. No momento em que os gover-nos dos Estados Partes do Mercosul o fizes-sem retroceder à etapa de zona de livre co-mércio e firmassem o Acordo ALCA, come-çaria a sua dissolução na área que atual-mente abrange o México, o Canadá e os Es-tados Unidos. Dois processos de integraçãoque tenham uma só natureza acabam nãose distinguindo. A integração latino-ameri-cana se inviabilizaria e, no Brasil, a opçãoconstitucional pela integração latino-ame-ricana seria convertida em letra morta.

Os órgãos decisórios do Mercosul in-fluiriam sobre a evolução política internados seus Estados Partes se tivessem outraconstituição e competências que lhes fos-sem progressivamente transferidas. Opolitólogo WESSELS (1993, p. 103) assi-nala que

“nenhum dos âmbitos tradicionais emais modernos de atuação estatal en-contra-se hoje em dia fora do campode atividades da CE/União Euro-péia”.

O contrário se passa no Mercosul, por-que os Estados Partes não transferiram com-petências aos órgãos decisórios para adota-rem atos unilaterais que não pertencessemà ordem jurídica internacional. DUPUY(2000, p. 147) adverte que

“contrariamente às que constituem aordem jurídica interna de um Estado,as normas próprias da organização,em si mesmas são regras de direito in-ternacional”.

Por isso, estão sujeitas a incorporaçãoaos ordenamentos jurídicos nacionais. Comrespeito ao Brasil, essas normas podem sermodificadas ou revogadas pelo CongressoNacional.

A precariedade da construção do Mer-cosul, mostrada pelo impasse a que foi le-vado, só pode desaparecer com a reformadrástica da sua estrutura orgânica paraser adaptada a uma organização de inte-gração.

Para o funcionamento de uma zona delivre comércio bastariam os dois órgãos deadministração e execução do Tratado deAssunção. A realização do Mercado Co-mum exige um sistema organizacional pró-prio e independente: o órgão com poder dedecisão composto por representantes dosgovernos dos Estados Partes e o órgão compoder de iniciativa e de execução, por per-sonalidades escolhidas de comum acordoem função da aptidão para o exercício dassuas funções e da independência. Requerque a função consultiva da Comissão Par-lamentar Conjunta tenha caráter obrigató-rio na elaboração dos atos normativos, bemcomo a do Foro Consultivo Econômico-So-cial nos assuntos que digam respeito à vidaeconômica e social dos setores nele repre-sentados. Não pode prescindir de um órgãojurisdicional próprio, autônomo e perma-nente, que garanta o respeito do direito naatividade ou inércia dos órgãos do Merco-sul, vele pela interpretação uniforme do Tra-tado de Assunção, suas modificações e nor-mas derivadas e controle a validade destas.

A reforma deve imprimir cunho demo-crático nos órgãos do Mercosul, e criar maisum, igualmente independente, com funçãoconsultiva obrigatória nos assuntos de in-teresse das coletividades provinciais ou es-taduais e locais, que escolheriam os seusrepresentantes.

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2. Nova tentativa de explicação

A estrutura do Mercosul compõe-se deseis órgãos: três dotados de capacidade de-cisória (o Conselho, o Grupo e a Comissãode Comércio) e de competências, cada um,relativas à condução política do processode sua constituição, à execução das deci-sões tomadas para esse fim e à aplicaçãodos instrumentos de política comercial co-mum. Nenhum deles representa o interesseque deveria sobrepor-se ao dos Estados Par-tes. Para que isso acontecesse, o Grupo teriaque ser constituído por membros escolhidosde comum acordo pelos Estados Partes, emfunção das qualidades exigidas para a de-fesa do interesse geral do Mercosul, notada-mente a condição de independente.

O Conselho é integrado pelos Ministrosdas Relações Exteriores e, indevidamente,pelos Ministros da Economia ou seus equi-valentes dos Estados Partes; o Grupo, porrepresentantes desses Ministérios e dos Ban-cos Centrais; e a Comissão de Comércio, pormembros designados pelos governos dosEstados Partes.

Em suma, os Ministros das Relações Ex-teriores e os Ministros da Economia ou seusequivalentes dos Estados Partes comparti-lham as competências deliberativas e exe-cutivas dentro do Mercosul, diretamente oupor meio de outros membros de menor hie-rarquia.

Nenhum dos órgãos do Mercosul comcapacidade decisória possui autonomia emrelação aos governos dos Estados Partes, eos Ministros que constituem o Conselhodetêm o controle indireto do Grupo, investi-do de funções executivas, e da Comissão,encarregada de lhe prestar assistência, bemcomo tomar decisões relacionadas com aadministração e a aplicação da tarifa exter-na comum e dos instrumentos de políticacomercial comum.

O Mercosul é um ente personificado, comduração indefinida, atribuições próprias ecapacidade de representação internacional.Contudo, a sua estrutura orgânica não cor-

responde à natureza de uma organizaçãode integração.

As competências das organizações in-ternacionais de integração são as que lhestransferem os Estados membros, isto é, ospoderes jurídicos necessários para realiza-rem os fins enunciados no tratado constitu-tivo e suas modificações.

ESPADA (1995, p. 175) ensina que“as competências de uma Organiza-ção Internacional vêm a ser, em suma,os meios jurídicos de que esta dispõepara levar a cabo as atividades neces-sárias ao cumprimento de suas fun-ções.

Competências que são diversas emsua forma, natureza, objeto, ordena-mento jurídico em que são exercidas,eficácia... Contudo as competências detoda OI têm duas características:

– Estão destinadas à satisfaçãodos interesses comuns dos Estadosmembros, através do desenvolvimen-to (de) uma atividade própria do‘ente’. Por conseguinte, trata-se decompetências da Organização , nãodos membros individuais que a com-põem.

– São conferidas à Organizaçãopara o cumprimento de seus fins e odesenvolvimento das funções que lheforam atribuídas pelos Estados mem-bros no tratado constitutivo”.

A decisão de constituir um mercado co-mum tomada pelos Estados Partes do Tra-tado de Assunção presume o desenvolvi-mento da atividade necessária para aboliros obstáculos à livre circulação dos bens,serviços e fatores produtivos, e a criação denormas para o exercício das quatro liberda-des pelos respectivos beneficiários. A su-pressão dos entraves incumbe aos Estadosque os erigiram em suas leis, decretos e atosadministrativos. As normas sobre o exercí-cio das quatro liberdades podem ser estabe-lecidas pelos Estados membros, medianteacordos internacionais, ou pela própria or-ganização de integração.

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Para adotar normas, a organização in-ternacional necessita receber competênciados Estados membros, cuja atribuição constedo tratado constitutivo ou de suas alterações.

As normas adotadas por uma organiza-ção internacional não são, pela origem, nor-mas dos Estados membros. Desse modo, aaplicação delas em todos os Estados mem-bros requer a aplicabilidade direta pelos juí-zes e outros operadores do direito, ou a pré-via introdução nos ordenamentos jurídicosnacionais.

A aplicabilidade direta não é atributoexclusivo das normas aprovadas pelas or-ganizações de integração. As cláusulas dostratados internacionais suficientemente pre-cisas para serem aplicadas são auto-execu-táveis.

O Protocolo de Ouro Preto optou pelarecepção das normas emanadas dos órgãosdo Mercosul com capacidade decisória naordem interna dos Estados Partes. Em paí-ses como o Brasil, o ato de recepção competeao Congresso Nacional. A construção de ummercado comum não comporta esse forma-lismo por acarretar os riscos da demora e dadesaprovação. Outro fator de insegurança éa hierarquia das normas do Mercosul nosordenamentos dos Estados Partes. A hierar-quia está sujeita a variações, e nos paísesem que são equivalentes às leis podem serrevogadas ou alteradas.

A supranacionalidade, que o Mercosulnão possui, em vez de diminuir, aumenta oprotagonismo dos Estados nas relações in-ternacionais.

É verdadeira a observação feita por REU-TER (1981, p. 137) de que

“as organizações internacionais nãose deixam destacar dos Estados senãoparcialmente”.

Porém, quando se trata de organização deintegração, a separação deve ser suficiente-mente visível na personalidade jurídica, naestrutura institucional e na produção deatos de caráter obrigatório e alcance geraldiretamente aplicáveis nos Estados mem-bros. Esses atos, comparáveis às leis nacio-

nais, não podem deixar de ser superiores aestas, nem tampouco depender de qualquermedida de recepção pelos Estados membros(aplicabilidade direta). Por outro lado, têmde ser suscetíveis de criar direitos e obriga-ções em favor das pessoas (efeito direto) e oseu corpo distinguir-se dos ordenamentosnacionais.

Os Estados que instituem uma organi-zação internacional conservam íntegra a so-berania, pois esta não a possui. Os Estadossomente perdem as competências que trans-ferem para a organização de integração, querpelo tratado constitutivo, quer pelos poste-riores. São competências necessárias ao fun-cionamento da organização, e intangíveis.

Dado que o estabelecimento de um mer-cado comum é tarefa de integração, não decooperação, só pode caber a órgãos que con-centrem suas ações na realização desse ob-jetivo. Por sua própria natureza, a ativida-de tem de estar referida, permanentemente,às funções que os tratados atribuem a cadaórgão nos domínios da legislação, da exe-cução e da jurisdição.

Ao regular a função executiva, o Proto-colo de Ouro Preto sobrepõe o Conselho aoGrupo e à Comissão de Comércio, de modoque os Ministros das Relações Exteriores eos Ministros da Economia ou seus equiva-lentes controlem consensualmente o funcio-namento do Mercosul.

Os atos adotados sob a forma de deci-sões, resoluções e diretrizes têm origem nopoder de decisão do Conselho, do Grupo eda Comissão de Comércio. Os dois últimoscarecem de independência, e a presença noConselho dos Ministros da Economia ouseus equivalentes não condiz com a nature-za das competências e funções do “órgãosuperior do Mercosul, ao qual incumbe acondução política do processo de integra-ção e a tomada de decisões para assegurar ocumprimento dos objetivos estabelecidospelo Tratado de Assunção para lograr aconstituição final do mercado comum”.

A vontade que os três órgãos expressamem suas áreas de competência imputa-se ao

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ente internacional, porém se confunde coma dos Estados Partes.

Os atos normativos da Comunidade Eu-ropéia, cujos destinatários são os EstadosPartes ou seus cidadãos, dispensam o pro-cedimento de recepção e transposição paraproduzir efeitos na ordem interna de cadaum deles. Os atos comunitários do Parla-mento Europeu em conjunto com o Conse-lho, ou do Conselho e da Comissão, são di-retamente aplicáveis em todos os Estadosmembros e ocupam uma posição mais ele-vada que a das leis internas. Não poderiaser diferente porque a organização de inte-gração é um ente supra-estatal. Por essa ra-zão, em vez de interestatal ou intergoverna-mental, a sua estrutura precisa ser constitu-ída por órgãos integrados, com exceção doConselho.

COMBACAU e SUR (1995, p. 745) dis-tinguem do seguinte modo essas categoriasde órgãos:

“a) Os órgãos interestatais são cons-tituídos por representantes dos Esta-dos membros. Exprimem juridicamen-te a vontade da organização, mas po-liticamente as posições coletivas dosmembros. Seu caráter preponderantepermite que os Estados controlem aorganização. Porém, raramente sãoexclusivos, e a autonomia do sistemase concretiza pela existência paralelade órgãos integrados.

b) Os órgãos integrados são os com-postos por agentes da organização. Noexercício de suas funções, só depen-dem da própria organização, por con-ta da qual agem. Devem manter totalindependência no que concerne aosEstados membros. Entretanto, na mai-or parte das vezes são designadospelos órgãos interestatais, que dis-põem de algum controle inicial sobreo órgão integrado, mesmo que funcio-nalmente deva permanecer indepen-dente”.

As organizações de cooperação coorde-nam determinadas ações de interesse co-

mum dos Estados. Por isso, acordam entresi exercê-las em comum, no seio da organi-zação. Para esse fim, atribuem-lhe compe-tências de caráter estritamente funcional, depar com recursos humanos e materiais.

O Mercosul foi criado com a finalidadede tornar em um só os quatro mercados na-cionais no qual os bens, os serviços e fatoresprodutivos circulem livremente. O estabele-cimento do mercado comum não é uma ta-refa de cooperação, mas de integração eco-nômica.

A exigência de autonomia dos órgãos dosentes de integração decorre do objetivo deconstituir um espaço territorial mais amploque a superfície terrestre dos Estados mem-bros, onde são suprimidos os obstáculoscriados para proteger os mercados nacio-nais, como os direitos aduaneiros de impor-tação e os encargos de efeito equivalenteaplicados aos produtos dos outros Estadosmembros, a discriminação entre os seus tra-balhadores e as restrições impostas, quer àlivre prestação de serviços, quer aos movi-mentos de capitais das pessoas residentesem suas bases geográficas.

Antes de entrar em vigor o Protocolo deOuro Preto, o Conselho do Mercado Comume o Grupo Mercado Comum eram órgãos daadministração e execução do Tratado paraa constituição do Mercosul e, conseqüente-mente, órgãos comuns aos Estados Partes.Passaram a ser órgãos pertencentes à estru-tura do Mercosul quando este adquiriu per-sonalidade jurídica. Porém, continuaramfuncionando como se o Mercosul não fosseuma organização de integração, que temnecessidade irrecusável de poder de deci-são próprio em face dos Estados Partes.

O poder de decisão continua concentra-do nos Ministros das Relações Exteriores enos Ministros da Economia ou equivalentesdos Estados Partes. Além da concentração depoder, é injustificável a presença dos Minis-tros da Economia ou seus equivalentes noConselho, bem como dos representantes dassuas pastas e dos Bancos Cent rais no Gru-po. Essa participação no órgão dotado de com-

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petência normativa geral e política espelhaa hipertrofia de tais Ministérios.

A Comissão de Comércio talvez pudes-se ser mantida como órgão subsidiário, cu-jos membros exercessem as suas funçõescom independência, no interesse geral doMercosul.

A respeito dos outros três órgãos, cabemobservações sobre a composição de cada um,o papel inadequado que desempenham e aprópria inserção de um deles na estruturado Mercosul.

A Comissão Parlamentar Conjunta fazparte da estrutura do Mercosul como órgãorepresentativo dos Parlamentos dos EstadosPartes. Em qualquer espécie de representa-ção, a atividade é exercida exclusivamenteno interesse do representado. Atuando emrepresentação dos Parlamentos, a Comissãonão tem, em rigor, natureza de órgão da es-trutura do Mercosul por agir no interessedos Congressos Nacionais.

Apesar disso, o Protocolo confere encar-gos de colaboração à Comissão, quais se-jam:

a) procurar acelerar os procedimentosnecessários para a incorporação das nor-mas emanadas dos órgãos do Mercosul comcapacidade decisória aos ordenamentos ju-rídicos nacionais;

b) coadjuvar na harmonização das legis-lações dos Estados Partes, nas áreas perti-nentes, para lograr o fortalecimento do pro-cesso de integração;

c) examinar temas prioritários por soli-citação do Conselho do Mercado Comum;

d) encaminhar recomendações ao Con-selho, por intermédio do Grupo.

Como órgão de uma pessoa jurídica dedireito internacional, distinta dos EstadosPartes, o Mercosul não poderia ter qualquerespécie de interferência, ainda que benéfi-ca, nos procedimentos parlamentares deaprovação de atos normativos.

O fato de não poder enviar recomenda-ções diretamente ao Conselho inferioriza aposição da Comissão na estrutura internado Mercosul. A interposição do Grupo no

encaminhamento das recomendações dese-quilibra a posição da Comissão na estrutu-ra organizacional do Mercosul. É necessá-rio que tenha um órgão democrático em queos cidadãos estejam representados e parti-cipe na elaboração dos atos normativos,como ocorreu na Comunidade Européia atéa eleição por sufrágio universal e direto dosrepresentantes ao Parlamento Europeu.

É compreensível que, no início, seja com-posto por delegados designados pelos Par-lamentos nacionais, entre os seus membros,a exemplo do que se passou na Comunida-de Européia.

O Parlamento Europeu, no momento pre-sente, está composto de representantes dospovos dos Estados reunidos na Comunida-de, eleitos em cada um deles, e não maisdesignados pelos Parlamentos. Exerce com-petências ainda muito escassas, que vêmsendo ampliadas, quantitativa e qualitati-vamente, nas sucessivas fases do processode integração européia.

O Protocolo de Ouro Preto conceitua oForo Consultivo Econômico-Social comoórgão da estrutura do Mercosul, represen-tativo dos setores econômicos e sociais. Écomposto pelas Seções Nacionais, e estasdefinem os setores de maior representativi-dade e de âmbito nacional que as constituem.As entidades dos trabalhadores e empresá-rios participam paritariamente das reuni-ões do Plenário do Foro por meio de seusdelegados titulares e suplentes, que podemdestituir a qualquer tempo.

O Foro é órgão consultivo, e se manifestapor meio de recomendações ao Grupo Mer-cado Comum, enquanto as da ComissãoParlamentar são dirigidas ao Conselho.

A homologação por esse órgão do regi-mento interno do Foro acentua a posição deinferioridade que ocupa na estrutura doMercosul, maior do que a da Comissão Par-lamentar, pois o Regimento Interno destanão está sujeito à homologação.

O Protocolo toma como modelo do Foroo Comitê Econômico e Social da Comunida-de Européia, composto por representantes

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dos diferentes setores da vida econômica esocial, designadamente dos produtores,agricultores, transportadores, trabalhado-res, comerciantes e artesãos, assim como dasprofissões liberais e do interesse geral.

Cada Estado membro envia ao Conse-lho da Comunidade uma lista contendo umnúmero de candidatos dobrado em relaçãoao de lugares atribuídos aos seus nacionais.O Conselho tem duas limitações para no-mear os membros do Comitê, devendo:

a) ter em consideração a necessidade deassegurar uma representação adequada aosdiferentes setores da vida econômica e soci-al;

b) consultar a Comissão.Nomeados por um período de quatro

anos, os membros do Comitê são recondu-zíveis nas suas funções.

A Comissão pode obter o parecer dasorganizações européias representativas dosdiferentes setores econômicos e sociais inte-ressados nas atividades da Comunidadequando constitui o Comitê.

Os membros do Comitê não representamos Estados que os indicam e devem defen-der o interesse geral, a despeito da vincula-ção com uma categoria econômica ou social.Devem exercer as suas funções com plenaindependência, no interesse geral da Comu-nidade. A independência dos membros doComitê é protegida pelo mandato com pra-zo de duração. A nomeação deles é feita pelainstituição da Comunidade que reúne o po-der político e o poder legislativo, bem comoassegura a ligação entre a atividade da or-ganização e a dos Estados membros.

O Comitê deve ser consultado obrigato-riamente nos casos previstos no Tratado deRoma. O Conselho e a Comissão podemouvi-lo fora desses casos, sempre que julga-rem conveniente. Por sua vez, o Comitê temcompetência para emitir parecer por inicia-tiva própria.

A estrutura interna da Comunidade Eu-ropéia compõe-se de cinco instituições en-carregadas de realizar as suas tarefas, no-meadamente a criação de um mercado co-

mum. Duas de natureza consultiva (o Con-selho e a Comissão) são assistidas pelo Co-mitê econômico e social.

O Foro Consultivo consta da estruturado Mercosul entre os seus órgãos principais.Não goza do grau de independência doComitê Econômico e Social.

A Secretaria Administrativa do Merco-sul é o órgão de apoio operacional e prestaassistência a todos os outros. O Diretor daSecretaria é escolhido pelo Grupo MercadoComum e nomeado pelo Conselho, por doisanos, vedada a reeleição. A Secretaria foicriada para auxiliar o Grupo. O Protocolode Ouro Preto inseriu-a na estrutura doMercosul, apesar das características de ór-gão auxiliar, e ampliou as suas funções.

Uma das características da estruturainstitucional da Comunidade Européia é oequilíbrio entre as suas instituições. O Con-selho representa e defende os interesses dosEstados membros e a Comissão, o interessegeral, e garante o funcionamento e o desen-volvimento do mercado comum.

Em todos os órgãos do Mercosul comcapacidade decisória, os Ministros, repre-sentantes de Ministérios e de Bancos Cen-trais, bem como outras autoridades desig-nadas pelos governos, representam e defen-dem os interesses dos Estados Partes. O po-der de decisão atribuído ao Conselho, e,minimamente, ao Grupo e à Comissão deComércio, pertence aos Estados Partes, por-que exercido pelos seus representantes. Asdecisões podem ser tomadas sem obrigaçãode pedir o parecer dos órgãos consultivos.

O Mercosul resiste à incoerência e im-perfeição da sua estrutura orgânica porqueos povos da Bacia do Prata querem a inte-gração e preservação de sua identidade.

3. Saída para o impasse: a reformada estrutura orgânica

O processo de constituição do Mercosulpode ser dividido em duas fases: a primeiracomeça em 29 de novembro de 1991, com aentrada em vigor do Tratado para a sua cons-

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tituição, e termina em 15 de dezembro de1995, data em que entrou em vigor o Proto-colo Adicional sobre a estrutura institucio-nal do mercado comum.

Na primeira etapa de funcionamento, oMercosul não tinha personalidade jurídica,e a estrutura interna era composta pelo Con-selho do Mercado Comum e pelo GrupoMercado Comum, encarregados da adminis-tração e execução do Tratado de Assunção,dos acordos correlatos e das decisões des-ses órgãos. Integravam o Conselho os Mi-nistros das Relações Exteriores e os Minis-tros da Economia dos Estados Partes e oGrupo, representantes desses Ministérios,bem como dos Bancos Centrais.

O Protocolo de Ouro Preto dotou o Mer-cosul de personalidade jurídica de direitointernacional e implantou sua estrutura or-gânica. O Conselho e o Grupo conservarama mesma denominação e composição. O Pro-tocolo criou o terceiro órgão com capacida-de decisória, igualmente de caráter intergo-vernamental: a Comissão de Comércio doMercosul. Completam a estrutura orgânicatrês órgãos: a Comissão Parlamentar Con-junta, o Foro Consultivo Econômico-Sociale a Secretaria Administrativa do Mercosul.São órgãos auxiliares, de caráter consulti-vo, que, a despeito disso, integram a estru-tura do Mercosul, juntamente com os órgãosprincipais.

A Comissão Parlamentar Conjunta cons-tava do Tratado de Assunção, assim como aSecretaria Administrativa, esta como órgãocom função de apoio ao Grupo MercadoComum. Órgão realmente novo é o Foro Eco-nômico-Social, que se inspira no ComitêEconômico e Social da Comunidade Euro-péia, porém se molda ao centralismo queoprime o funcionamento do Mercosul.

Fica cada vez mais evidente a falta deajustamento dos órgãos do Mercosul às fun-ções de uma organização internacional.Assinala-se apenas o fato de que a vontadedos órgãos investidos de poder de decisãotraduz mormente a vontade comum dosMinistros das Relações Exteriores, dos Mi-

nistros da Economia ou seus equivalentesdos Estados Partes, dos representantes dosBancos Centrais e servidores públicos. OsMinistros das Relações Exteriores e da Eco-nomia ou seus equivalentes são os únicosque invariavelmente compõem o Conselho,qualquer que seja a ordem do dia das reuni-ões. No Grupo, três dos quatro membros ti-tulares, por país, são representantes daque-les Ministérios e dos Bancos Centrais e, porconseguinte, subordinados ou dependentesdos respectivos Ministros ou dirigentes. Oquarto membro pode ser designado, em cadapaís, entre servidores de outros Ministériosou terceiras pessoas. Os representantes dosBancos Centrais, ainda que não tenham vin-culação funcional com esses organismos,ficam sujeitos às instruções de suas cúpu-las.

Quando se trata de organização de inte-gração, a separação entre esta e os Estados-membros deve ser suficientemente acentua-da, quer pela personalidade jurídica, querpela produção de atos de caráter obrigató-rio e alcance geral, que se imponham aosEstados membros e aos particulares. Essesatos, comparáveis com as leis nacionais, massuperiores a estas, devem prescindir de qual-quer medida de recepção pelos Estadosmembros (aplicabilidade direta), ser susce-tíveis de criar direitos e obrigações em favordas pessoas (efeito direto) e o corpo de nor-mas jurídicas distinguir-se dos ordenamen-tos nacionais.

Nenhuma organização internacional ésoberana, no sentido em que o são os Esta-dos; por isso, quando as instituem, conser-vam a soberania em toda a sua integridade.

É necessário existir alguma forma de di-ferenciação entre as organizações interna-cionais e os Estados membros, como a von-tade própria ou autônoma da organização,relativamente ao cumprimento dos seus ob-jetivos. Embora as decisões do órgão encar-regado de formar a vontade da organizaçãose imputem a esta, não se pode reconhecê-lacomo própria da organização quando toma-da em oposição à realização dos objetivos

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visados com sua criação. Não será vontadedistinta da vontade dos Estados membros,mas destes.

Os atos das organizações de integraçãoprecisam estar sujeitos a um controle de tipojurisdicional. O Conselho e o Grupo têm aseu cargo a função de velar pelo cumpri-mento do Tratado de Assunção, dos proto-colos e dos acordos firmados no seu âmbitoe a Comissão de Comércio, pela aplicaçãodos instrumentos comuns de política co-mercial intramercosul e com terceiros paí-ses, organismos internacionais e acordosmercantis. Entretanto, os atos desses órgãosdeliberativos estão subtraídos a qualquercontrole de legalidade.

O Protocolo de Brasília para Solução deControvérsias aplica-se aos diferendos quesurgirem entre os Estados Partes a respeitoda aplicação e do não cumprimento das dis-posições do Tratado de Assunção, acordoscelebrados no seu âmbito e atos dos órgãoscom capacidade decisória. Os laudos dosTribunais Arbitrais são obrigatórios para osEstados Partes. Contudo, o não cumprimentojustifica unicamente a adoção de medidascompensatórias temporárias, como forma depressão econômica para a execução doslaudos.

RIDRUEJO (1994, p. 704) assinala osdois elementos que as diferenciam:

“a) a posse de um sistema perma-nente de órgãos que assegure a conti-nuidade da organização e afirme suaindependência em face dos Estadosmembros;

b) a possibilidade que devem teresses órgãos de manifestar uma von-tade distinta da dos membros, atra-vés de processos específicos de ado-ção de decisões”.

O Mercosul não possui supranacionali-dade, que, em vez de diminuir, aumentariao protagonismo dos Estados Partes. A es-trutura orgânica constante do Protocolo deOuro Preto é intergovernamental. Os Esta-dos Partes negaram-se não só a transferirpara o Mercosul parcelas de suas compe-

tências, como subordinaram o interesse ge-ral deste ao dos Estados Partes.

Os Ministros das Relações Exteriores e osMinistros da Economia ou seus equivalentesdos Estados Partes mantêm o controle doMercosul, mediante a composição e o funciona-mento do Grupo e da Comissão de Comércio.

Com referência aos outros órgãos, doistêm função consultiva e um presta apoiooperacional aos restantes. Sem embargo, osórgãos que dispõem de poder de decisão nãoprecisam ouvir a Comissão ParlamentarConjunta para elaborar normas sujeitas, deresto, à aprovação do Poder Legislativo dosEstados Partes para se incorporarem aosseus ordenamentos jurídicos. Também nãoprecisam solicitar parecer do Foro Consul-tivo Econômico-Social, mesmo para aprovarnormas suscetíveis de afetar os principaissetores da vida econômica e social.

A estrutura orgânica do Mercosul preci-sa ser reformada. Sendo uma organizaçãode integração, os interesses dos Estadosmembros e os interesses gerais do Mercosulnão podem confundir-se. Para que a sepa-ração de interesses seja efetiva, o Conselhodeve constituir-se por membros dos gover-nos dos Estados Partes que os representeme defendam os interesses nacionais nas de-liberações do órgão revestido de poder má-ximo de decisão. O Grupo deve tornar-seindependente dos Estados Partes e dos ou-tros órgãos, protegido contra a preponde-rância dos interesses nacionais e privados.O Conselho deve garantir a realização dosobjetivos do Tratado de Assunção, e o Gru-po, tornado independente dos Estados Par-tes, dos outros órgãos e dos interesses nacio-nais, assegurar o funcionamento e o desen-volvimento do Mercosul, bem como dispordo direito de iniciativa dos atos de compe-tência do Conselho.

A doutrina da Comunidade Européiaexplica que o poder de iniciativa acautela arepresentação dos interesses gerais e cons-titui um contrapeso ao poder normativo doConselho. Como escrevem MANGAS MAR-TÍN e NOGUERAS, (1996, p. 117),

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“o direito de iniciativa revela que seconfiou à Comissão a concepção e apreparação da política comunitária, eque lhe corresponde, quase de modoexclusivo, preparar os projetos norma-tivos, aplicando na concepção dasdecisões uma visão de conjunto ins-pirada no interesse comunitário; porconseqüência assume o papel de ‘mo-tor’ da Comunidade .

Isto significa que o Conselho nãopode agir por sua conta, por sua pró-pria iniciativa ou a pedido de um Es-tado membro ou contra a vontade daComissão e, agora, tampouco do Par-lamento Europeu”.

No órgão integrado pelos Ministros dasRelações Exteriores e pelos Ministros daEconomia ou seus equivalentes dos EstadosPartes – o Conselho -, estão presentes os in-teresses nacionais de cada um deles, quan-do não o de terceiro país, empenhado emdesfazer a crescente união entre os povoslatino-americanos. Na representação e de-fesa desses interesses, os membros do Con-selho podem encontrar soluções conjuntaspara problemas específicos. Não se imagi-ne, entretanto, que tenham condições paraconduzir politicamente o processo de inte-gração, na qualidade de representantes edefensores dos interesses nacionais dos seusrespectivos Estados.

Os membros do Conselho da Comuni-dade Européia estão na mesma condição.Porém, o órgão de natureza executiva – aComissão – goza de poder de decisão pró-prio e autônomo, rigorosamente delimitadonos tratados.

A estrutura dos poderes do Mercosulcaracteriza-se pela inexistência de separa-ção orgânica. O poder de decisão pertence atrês órgãos de que participam os EstadosPartes, representados por autoridades quedefendem os interesses destes. A diferençareside na hierarquia de tais representantes,e não nas matérias, não bem especificadas,em que podem tomar decisões. O Grupo é oórgão executivo do Mercosul e tem compe-

tência para propor projetos de decisão aoórgão superior do Mercosul, cumprir suasdecisões e adotar resoluções em matéria fi-nanceira e orçamentária, com base nas orien-tações do Conselho, entre outras atribuiçõesde natureza administrativa.

A competência da Comissão de Comér-cio supera a do Grupo, a despeito de ser ór-gão auxiliar deste. O Grupo pode tomar de-cisões em matéria financeira e orçamentá-ria, sob a orientação do Conselho, ao passoque a Comissão de Comércio tem competên-cia para aprovar diretrizes concernentes àadministração e aplicação da tarifa externacomum e dos instrumentos de política co-mercial acordados pelos Estados Partes.

Além de centro do poder de decisão naestrutura orgânica do Mercosul, o Conse-lho está colocado sobre o Grupo e a Comis-são de Comércio, cujos atos podem ser con-trolados pelos Ministros a que estão subor-dinados ou vinculados os membros dessesórgãos.

A composição do Conselho, do Grupo eda Comissão de Comércio determina a con-vergência das decisões para os Ministrosdas Relações Exteriores e os Ministros daEconomia ou seus equivalentes dos EstadosPartes. Isso choca com a idéia de que umaorganização internacional é distinta dosEstados membros, e estes não podem con-trolá-la, mediante órgãos compostos, todoseles, por Ministros, representantes de Mi-nistérios e de Bancos Centrais e outros ser-vidores da administração pública dos Esta-dos membros.

Mais que as outras entidades internacio-nais, as organizações de integração preci-sam contar com um só órgão constituído porrepresentantes dos Estados membros. Osmembros dos outros órgãos devem ser pes-soas escolhidas de comum acordo pelosgovernos dos Estados membros, em funçãoda sua aptidão para o cargo e segurançaquanto à independência no exercício.

Por outro lado, a integração projetadapelo Tratado de Assunção não visa exclusi-vamente ao aumento do comércio entre os

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Estados Partes: a realização de um mercadocomum é o primeiro objetivo do Tratado,como o do que institui a Comunidade Euro-péia, e consiste em construir um espaço semfronteiras tarifárias internas, protegido poruma tarifa externa comum, no qual as mer-cadorias, as pessoas, os serviços e os capi-tais circulem livremente.

A missão do Mercosul é completar essatarefa prodigiosa, que se deteve na elimina-ção dos direitos aduaneiros, determinadasmedidas de efeito equivalente e restriçõesaplicadas ao comércio entre os Estados Par-tes, e na adoção parcial da tarifa externacomum.

O crescimento do Mercosul exige profun-da reforma da sua estrutura orgânica, quemantenha o Conselho como órgão delibera-tivo, mas integrado por representantes dosEstados membros, ordinariamente os Minis-tros das Relações Exteriores. Em cada reu-nião, poderia variar a composição, de acor-do com a ordem do dia. Nas deliberaçõessobre agricultura, educação ou saúde, porexemplo, compareceriam os respectivos Mi-nistros. A visão política geral do processo deintegração pertenceria sempre e exclusiva-mente aos Ministros das Relações Exteriores.

Tratando-se de órgão não permanente, éindispensável que os trabalhos do Conse-lho sejam preparados por um órgão auxiliarpermanente, constituído por representantesdiplomáticos dos Estados membros. É inefi-ciente a coordenação, mesmo conjunta, dasreuniões do Conselho pelos Ministérios dasRelações Exteriores, como prescreve o art.7º do Protocolo de Ouro Preto.

O funcionamento permanente de um ór-gão encarregado de examinar os assuntosinscritos na ordem do dia, preparar as reu-niões do Conselho e facilitar a adoção dedecisões teria a vantagem adicional, apon-tada por GARCÍA (1994, p. 62), de suprir anecessidade de associar os governos dosEstados membros, de uma forma contínua,aos trabalhos do Mercado Comum.

É imperioso que o Grupo Mercado Co-mum seja órgão permanente, composto por

pessoas escolhidas pelos Estados membrosem razão de sua competência e independên-cia. Diferentemente do Conselho, que repre-senta os interesses dos Estados membros noâmbito da integração, a Comissão deve pro-mover o que convenha ao bom funciona-mento do Mercosul. Por essa razão, os mem-bros do Grupo não podem estar vinculadosaos governos dos Estados Partes.

O Tratado de Assunção descreve o Mer-cosul como organização internacional dotipo da Comunidade Européia, ou seja, or-ganização de integração econômica, criadapara unificar os mercados nacionais dosEstados membros. A construção de um sómercado pressupõe a existência de órgãosdotados de competências nitidamente dis-tintas, que realizem esse objetivo. O estabe-lecimento de um mercado comum só progri-de mediante decisões de que participem ins-tâncias supranacionais.

A falta de um órgão jurisdicional na es-trutura orgânica do Mercosul é coerente coma determinação de instituir uma organiza-ção de integração, personificada, com osinstrumentos da cooperação intergoverna-mental, sob a tutela dos governos dos Esta-dos Partes. Entretanto, constitui a maiorcausa da acumulação de problemas que asnegociações diplomáticas não têm sido ca-pazes de resolver.

O sistema de solução de controvérsiasdo Protocolo de Brasília não contribui parao desenvolvimento do processo de integra-ção porque não garante a aplicação e a in-terpretação uniforme das normas pertinen-tes, não controla a legalidade dos atos im-putados ao Mercosul, não sanciona as vio-lações cometidas pelos Estados Partes, nãotutela os direitos derivados das normas dosórgãos com capacidade decisória.

Outro órgão que, apesar de necessário,não faz parte da estrutura orgânica doMercosul é o que representaria os poderes re-gionais e locais, totalmente alijados do pro-cesso de integração. SALGADO (1996, p. 22)utiliza o termo participação com o signifi-cado de

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“capacidade de intervir, pesar e influirnos processos de tomada de decisões.Desta maneira, a participação conver-te-se em competência, entendida comopoder político, para incidir, precisa-mente, nas relações políticas, para to-mar parte nos processos decisórios e,se for o caso, para responsabilizar-seou co-responsabilizar-se na aplicaçãodos mesmos. Falamos, pois, de parti-cipação e de competência européiadas Regiões, o que significa a impli-cação direta das Regiões na estrutu-ração, no funcionamento da UniãoEuropéia, assim como sua participaçãona formação da vontade comunitária”.

Transcorridos mais de trinta e um anosda assinatura do Tratado que institui a Co-munidade Européia, a Comissão decidiucriar o Conselho Consultivo das Comuni-dades Regionais e Locais. Segundo escre-vem MANGAS MARTÍN e NOGARES naobra já citada (1996, p. 248, nota 9),

“sua natureza não era distinta da domilhar de comitês e grupos de traba-lho que auxiliam a Comissão em seutrabalho de iniciativa e de execução.Além de assessorar unicamente a Co-missão, carecia de representatividadepolítico-territorial, já que eram propos-tos por federações ou associações tran-seuropéias, e sua função consultivalimitava-se à política regional, e a ex-pressão de sua opinião dependia dapetição da Comissão”.

Mais de três anos após, o Tratado deMaastricht institucionalizou o Comitê dasRegiões, com natureza consultiva, integra-do por representantes das coletividades re-gionais e locais, nomeados pelo Conselho,por um período de quatro anos, medianteproposta dos respectivos Estados membros,e reconduzíveis por igual período.

A função do Comitê é assistir o Conse-lho e a Comissão na tomada de decisões.Esses dois órgãos devem consultá-lo noscasos previstos no Tratado e em todos osoutros em que acharem oportuno.

O Comitê representa as coletividades re-gionais e locais. CONSTANTINESCO, KO-VAR e SIMON (1995, p. 686) indagam porque a alínea 1 do art. 198-A denomina esseorganismo Comitê das Regiões, quando re-presenta o conjunto das coletividades infra-estatais? Teriam os redatores do Tratado aintenção de sublinhar a vocação regionaldo Comitê? Respondem dizendo que

“o precedente do Conselho Consulti-vo das Coletividades Regionais e Lo-cais foi, entretanto, rico em ensina-mentos a esse respeito! Esta denomi-nação enganosa deve, apesar de tudo,assegurar a representação das coleti-vidades intermediárias e dos municí-pios”.

Os citados autores explicam que as in-coerências e insuficiências das disposiçõesdo Tratado originam-se da diversidade dasestruturas territoriais dos Estados membros.

“Se é certo que todos os níveis decoletividades infra-estatais devem es-tar representados no Comitê das Re-giões, duas interrogações subsistem arespeito da qualidade dos represen-tantes e da ventilação do seu nomeentre as diversas coletividades no in-terior dos Estados.

Em determinados países membrosda Comunidade, a Região inexiste, ouentão constitui somente uma circuns-crição administrativa do Estado”.

MANGAS MARTÍN e NOGARES (1996,p. 249) referem-se ao fato de que

“nem todos os Estados membros têma mesma organização político-admi-nistrativa; alguns carecem de divisãoregional ou, se existem, as regiões ad-ministrativas não são comparáveis àsregiões dos Estados federais ou semi-federais, como a Alemanha, a Bélgica,a Espanha ou a Itália. É preciso reco-nhecer que o CR tem uma composiçãoheterogênea, no que respeita às pró-prias regiões; além disso, tem que de-bater e alcançar o consenso das suasopiniões com a dos Municípios”.

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Por fim, salientam que essa heterogenei-dade e dualidade do Comitê das Regiõestrouxe consigo certa tensão, e quiçá não sejaplenamente adequada a coabitação das re-giões e municípios no mesmo foro.

Não se propõe uma cópia servil da es-trutura institucional da Comunidade Euro-péia, mas que seja tomada como modelo dareforma que possa tirar o Mercosul do im-passe em que foi precipitado.

Há duas objeções previsíveis à reestru-turação do Mercosul sobre as quais deve-mos estar prevenidos: uma procura confun-dir adaptação de um modelo e cópia pura esimples; a outra exagera o custo do funcio-namento de órgãos permanentes, principaisou acessórios, como se não houvesse míni-mo e máximo.

A perda de oportunidade de maior cres-cimento no Mercosul devido aos conflitosinsolucionáveis pela via da arbitragem “adhoc” supera a soma dos gastos que um ór-gão jurisdicional permanente acarretaria, secriado com preocupação de austeridade edotação estritamente necessária de pessoal.

A precariedade da construção do Mer-cosul, mostrada pelo impasse a que chegou,somente desaparecerá com a revisão drásti-ca da sua estrutura orgânica.

Os governantes e todos os que se opõemou protelam a institucionalização do Mer-cosul deveriam pensar na responsabilida-de que assumem ao dificultar a transforma-ção de uma parte do continente latino-ame-ricano numa zona de prosperidade e debem-estar social.

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O Direito Comunitário, significativo des-dobramento jurídico da União Européia,tem-se manifestado inusitado e surpreen-dente em quase todos os seus múltiplos as-pectos.

A princípio mero processo de liberaliza-ção de comércio, a integração européiatransformou-se paulatinamente em sofisti-cado engendre jurídico e político, com umsistema todo próprio de elaboração legisla-tiva e de uniformização e aplicação do di-reito ao caso concreto. Um caleidoscópio denovidades, desde a superioridade hierárqui-ca da norma comunitária sobre o direito in-terno, ainda que constitucional, o que sur-preende à perspectiva tradicional do direi-to público, desde sempre conformada pelodogma da constitucionalidade. A previsãoconstitucional da possibilidade de delega-ção de poderes soberanos a instituições su-pranacionais é outra conditio sine qua non àparticipação na Europa comum.

Quatro instituições comunitárias se des-tacam, com funções também inovadoras: aComissão Européia, o Conselho de Minis-tros (dos Estados-membros), o Tribunal deJustiça das Comunidades Européias (noplural por se tratar de três instituições: Co-munidades Européias do Carvão e do Aço,de Energia Atômica e Econômica propria-mente dita) e, finalmente, o Parlamento Eu-ropeu, do qual cuidaremos no presente arti-go, no que concerne especificamente a seuprocesso eletivo.

A União Européia e o direito eleitoral

Carlos Eduardo Caputo Bastos eJorge Fontoura

Carlos Eduardo Caputo Bastos e JorgeFontoura são membros fundadores do CEDI,Centro de Estudos de Direito Internacional.

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Revista de Informação Legislativa48

Até 1979, o Parlamento Europeu eracomposto por delegações nacionais indica-das pelos respectivos Poderes Legislativos.Desde então, a escolha por sufrágio univer-sal e direto passou a realizar-se de cinco emcinco anos, gerando uma demanda de di-reito eleitoral totalmente peculiar, haja vis-ta a imensa diversidade entre as legislaçõesnacionais dos quinze países comunitáriose, mais que isso, a profunda diferença deculturas políticas existente.

Constituído por 626 membros não agru-pados em nacionalidades, mas em famíliaspartidárias, o Parlamento Europeu contacom as seguintes bancadas, com o númerode integrantes indicado em parênteses: Par-tido dos Socialistas Europeus (214); PartidoPopular Europeu (200); Grupo Liberal, De-mocrático e Reformista (41); Grupo da Es-querda Unitária Européia (33); Grupo Uniãopela Europa (36); Grupo dos Verdes no Par-lamento Europeu (28); Grupo da AliançaRadical Européia (20); Grupo dos Indepen-dentes pela Europa (17) e formalmente sempartido (37).

Única instituição comunitária que dis-cute e delibera em público, o Parlamento queestá sediado em Estrasburgo, território fran-cês próximo à fronteira germânica, preparapareceres e auxilia na elaboração das nor-mas comunitárias. Dispõe de um poder deco-decisão, tendo em vista ser a produçãolegislativa, Regulamentos e Diretivas prin-cipalmente, elaborada na Comissão Euro-péia e no Conselho de Ministros. Trata-se,de fato, abstraindo-se um esforço semânticopouco convincente, de um meio-poder irre-mediavelmente limitado, com as iniciativaslegislativas sendo de fato tomadas em Bru-xelas, muito além da instância legislativapor excelência. Aqui reside a grande críticaao modelo comunitário europeu: o único ór-gão escolhido pelo voto popular, universale direto, e que não delibera a huis clos, defato não legisla.

Os Tratados de Maastricht, de 7 de feve-reiro de 1992, e de Amsterdã, de 2 de outu-bro de 1997, procuraram atenuar o relativo

papel do Parlamento, permitindo-lhe “co-decidir” na elaboração legislativa, emitin-do pareceres vinculantes aos demais órgãos,em determinadas matérias. Desempenhaainda papel importante na elaboração e con-trole orçamentário, incumbindo-lhe a últi-ma palavra no que tange à destinação dosfundos comunitários, francamente utiliza-dos nos processos de desenvolvimento re-gional. Cumpre salientar estarem entre asdespesas obrigatórias, e que logo indepen-dem de voz parlamentar, aquelas referentesa subsídios agrícolas, quase a metade do“euro bilionário” orçamento do bloco. Tra-ta-se da Política Agrícola Comum, grande-mente responsável pela exclusão e subde-senvolvimento em muitos países periféricos,violadora ululante das mais comezinhasregras do comércio internacional.

Muito embora seja a uniformidade de in-terpretação e aplicação normativa uma mar-ca flagrante da “Europa do Direito”, na le-gislação eleitoral prevalece, ao contrário, aregra do tratamento nacional. Vale dizer queestudar direito eleitoral europeu é estudarcada um dos ordenamentos nacionais dosEstados comunitários, quinze leis eleitoraisque se aplicam a um específico processo elei-toral de escolha dos eurodeputados.

Não havendo, portanto, um sistema elei-toral comunitário, na recente eleição de 11,12 e 13 de junho de 1999, quando votaram298 milhões de eleitores, aplicou-se a lei decada país, dentro de um princípio de terri-torialidade já quase proscrito da Europa deinstituições comuns. Enquanto, por exem-plo, no Reino Unido utilizou-se um especí-fico sistema, o mesmo não ocorreu nos de-mais países, sem que isso tenha comprome-tido o bom funcionamento do processo. Dis-posições referentes ao direito de voto, suasrestrições, idade eleitoral, regime de obriga-toriedade do sufrágio, elegibilidade e desen-rolar das campanhas receberam tratamen-tos nacionais.

Outro tema não pacificado diz respeitoà exclusividade do mandato europeu, à suacompatibilidade com o exercício concomi-

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tante daquele nacional, o que é proibido ex-pressamente em apenas quatro países: Bél-gica, Grécia, Espanha e Áustria.

Merece referência ainda a peculiar facul-dade de que gozam os europeus de votaremnos Estados em que residem, como se nacio-nais fossem. E ainda mais, poderem ser can-didatos, em eleições administrativas, no paísde residência, o que pretende fomentar a“cidadania européia”. Tais concessões,acrescente-se, têm grande importância, con-siderado o direito de livre circulação e deestabelecimento de que dispõem.

Embora o Parlamento Europeu houves-se aprovado, em 1998, relatório indicando anecessidade de um processo eleitoral uni-forme, com disposições comuns, as razõespolíticas refratárias à europeização eleito-ral parecem muito fortes. Trata-se do recor-rente impasse de uma Europa que anseiapelo aperfeiçoamento de suas instituições,pelo seu aprofundamento, mas que conser-va incólume, em um outro lado inconfessá-vel, a velha índole nacional.

Eleições e democracia são conceitos im-bricados por relação de causa e efeito. Aotratarmos da questão eleitoral européia, nãohá como deixar de considerar o “déficit de-mocrático” crucial, que fatalmente decorrede um parlamento que não “legisla de cor-po inteiro”.

O sufrágio universal com o qual se vêmescolhendo os eurodeputados confere legi-timidade popular ao Parlamento Europeu.

Porém, a mera existência de um Parlamentoeleito diretamente, com clareza, não bastapara responder à exigência fundamental deuma Constituição democrática, nos termosda qual todos os poderes do Estado deri-vam do povo. É também necessário que seatente para a crucial questão da organici-dade das instâncias de poder, para que hajatransparência no processo de tomada dedecisões e representatividade nos órgãosresponsáveis pela adoção e implementaçãode tais decisões. O recente episódio de de-tecção e persecução de atos de corrupção dealtos funcionários da Comissão Européia,algo que se imaginava impossível em umaEuropa acrisolada dos velhos vícios repu-blicanos, demonstrou com modos didáticosquão importante é uma instituição parla-mentar ilesa, não mutilada pela conveniên-cia técnica de uma “polis” sem política.

A União Européia, relutante em iden-tificar-se como o ocaso da democracia li-beral, é, ao mesmo tempo, alvissareiro pre-núncio de formas inovadoras de salutarconvivência política, em que o Estado,apesar das aparências, continua exercen-do seu papel de liderança. Mais para aCiência Política do que para o Direito,cabe a consideração crítica do admirávelmundo novo que decorre do aprofunda-mento da União Européia, sem oposito-res válidos e ideologicamente consensual,à exceção dos remanescentes nacionalis-mos de ambas as extremas.

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Alberto do Amaral Júnior

Sirvo-me, como ponto de partida, da re-flexão de Alexy (1999b, p. 58 et seq.) quedestaca cinco características principais dosdireitos humanos:

1. A universalidade. Os direitos do ho-mem são universais em relação aos seus ti-tulares e destinatários. Os seres humanossão os únicos sujeitos com capacidade paraexercê-los. Creio, diversamente de Alexy, quefaltam razões plausíveis para não se atri-buir aos grupos e comunidades a titulari-dade dos direitos humanos.

2. São direitos morais. Alexy declara quea validade dos direitos morais independeda positivação efetuada pela norma jurídi-ca. É necessário, simplesmente, que se veri-fique a validade moral da norma que os con-sagram. A norma vale, no plano moral, quan-do é suscetível de ser justificada racionalmen-te perante todos aqueles que a aceitam. Osdireitos do homem são direitos morais sem-pre que puderem ser justificados em face dosindivíduos que os acolhem.

3. São direitos preferenciais. Os direitosmorais importam o direito à proteção porparte do ordenamento jurídico. Há, nessesentido, um direito moral que postula sejamos direitos humanos reconhecidos e tutela-dos pelas normas legais. A garantia e eficá-cia dos direitos humanos têm o mérito deconferir legitimidade à ordem legal vigente.Essa circunstância assinala a posição deprioridade que os direitos humanos ocupamno quadro das normas jurídicas existentes.

A proteção internacional dos direitoshumanos

Alberto do Amaral Júnior é Professor daFaculdade de Direito da Universidade de SãoPaulo.

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4. São direitos fundamentais. Os direi-tos do homem abrangem interesses e carên-cias essenciais aos seres humanos. Essesinteresses e carências precisam ser de talsorte que o seu respeito possa ser fundamen-tado pelo direito. A fundamentabilidadeexplica a prioridade que desfrutam diantedos demais direitos contemplados pela or-dem jurídica. Alexy ressalta que os interes-ses e carências são fundamentais quandosua violação ou não satisfação provocar amorte ou grave sofrimento dos indivíduosou quando afetar o núcleo essencial da au-tonomia. Pertencem a essa categoria os di-reitos liberais clássicos bem como os direi-tos sociais que asseguram as condições mí-nimas de existência.

5. São direitos abstratos. Os direitos dohomem, por terem natureza abstrata, reque-rem algum tipo de limitação para que sejamaplicados aos casos concretos. Esse fatopressupõe a ponderação entre os direitos emconflito, sugerindo a necessidade de se criarinstâncias autorizadas a realizar pondera-ções juridicamente obrigatórias. O Estado,nesse contexto, é necessário não apenascomo instância de concretização, mas tam-bém como instância apta a tomar decisõesque efetivem os direitos humanos (cf. ALE-XI, 1999a, p. 67-79).

O art. 28 da Declaração Universal dosDireitos do Homem de 1948 prevê que:“Todo homem tem direito a uma ordem so-cial e internacional em que os direitos e li-berdades estabelecidos na presente Decla-ração possam ser plenamente realizados”.Essa afirmação ressalta, em primeiro lugar,a importância da institucionalização dosdireitos humanos para a ordem interna einternacional. Há, na realidade, um verda-deiro direito à institucionalização dos di-reitos humanos que abrange o âmbito do-méstico e as relações externas.

Em segundo lugar, a ordem interna e in-ternacional devem privilegiar certos valo-res considerados essenciais para a convi-vência coletiva. A realização desses valoresconfere legitimidade à ordem instituída. Tra-

ta-se, pois, de um direito a uma ordem espe-cífica que proteja e tutele os direitos huma-nos. Logo, a plena realização dos direitoshumanos pressupõe regras e procedimen-tos que os institucionalizem. A institucio-nalização é, assim, condição necessária ain-da que não suficiente para a proteção dosdireitos humanos.

Em terceiro lugar, esse direito à institu-cionalização pertence a todos, sem distin-ção de raça, sexo ou religião. Ele é generali-zável a todos os seres humanos, onde querque se situem. Como tal, não se caracterizapor ser um privilégio atribuível a determi-nados indivíduos ou a algumas nações. Épossível mesmo dizer que, com o passar dotempo, referido direito à institucionalizaçãoconverteu-se em parte integrante da ordempública internacional. O caráter de normaconsuetudinária que possui atribuiu-lhe osentido de norma imperativa, que vinculaos indivíduos e governos.

O uso da expressão direitos humanos im-põe, antes de mais nada, um esclarecimentopreliminar. A palavra direito pode ser usa-da em sentido fraco e em sentido forte. Aprimeira acepção designa a exigência dedireitos futuros, ou seja, a proteção futurade certo bem. Já a segunda aponta para aproteção efetiva desse bem, a qual pode serreivindicada perante os tribunais para re-parar os abusos e punir os culpados (BOB-BIO, 1992, p. 67). Essa observação é impor-tante porque, antes de receber consagraçãonos textos constitucionais e nas convençõesinternacionais, os direitos humanos consi-derados essenciais para a convivência cole-tiva constituíam exigência de proteção fu-tura de determinado bem.

A primeira exigência que originou apreocupação com o tema dos direitos hu-manos foi a tentativa de controlar o poderdo Estado. Nesse sentido, os direitos indivi-duais aparecem como reação ao Estado ab-soluto que dominou a realidade européianos séculos XVII e XVIII.

O príncipe de Maquiavel foi, na históriado pensamento político, a primeira grande

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formulação do absolutismo, o qual teve asua construção filosófica definitiva no Le-viatã de Thomas Hobbes. Maquiavel assi-nala, em nítida ruptura com a herança anti-ga e medieval, que a ação política não sesubordina aos mesmos critérios utilizadospara a avaliação das condutas individuais.As noções de virtù e de razão de Estado enun-ciam uma nova forma de compreender a re-lação entre a moral e a política. Enquanto avirtù do governante consiste no senso deoportunidade para tomar as decisões neces-sárias visando à conservação do poder, arazão de Estado sugere que os negócios pú-blicos se submetem aos imperativos da pre-servação do governo, fato que não permite asua apreciação segundo os juízos morais.

Hobbes, por sua vez, parte de uma con-cepção negativa da natureza humana, con-forme a qual o homem é lobo do própriohomem. Antes da constituição da socieda-de política, os homens viviam num hipoté-tico estado de natureza, em que não haviagoverno nem direito.

A liberdade de tudo fazer e de tudo pos-suir, própria do estado de natureza, contras-ta com a insegurança permanente represen-tada pelo temor da morte violenta (HOBBES,1976, p. 88 et seq.). Por intermédio do con-trato social, os homens abandonam o esta-do de natureza e iniciam a vida em socie-dade; alienam a liberdade que outrora des-frutavam em troca da segurança fornecidapelo Estado.

O soberano adquire o direito de determi-nar, em última instância, as regras que defi-nem os comportamentos lícitos e ilícitos. Eleé, nessa condição, legibus solutus, ou seja, nãose obriga a respeitar as leis que estabelece.

Em reação ao absolutismo, a filosofia jus-naturalista sustentou que o homem é titularde direitos inatos, válidos em qualquer tem-po e lugar, independentemente da condiçãosocial ou situação geográfica. Para Locke, ogrande inspirador do liberalismo moderno,a função do Estado é tão-somente a de ga-rantir a liberdade. Locke argumenta, fiel àtradição jusnaturalista, que a organização

da sociedade política somente se justificapara permitir a preservação da liberdadenatural, eliminando-se os obstáculos queameaçavam a sua existência no estado denatureza (1967, p. 336-348).

As Constituições liberais do final do sé-culo XVIII e começo do século XIX inicia-ram a obra de positivação dos direitos indi-viduais no interior dos Estados. Em princí-pio, esses direitos pretendiam apenas ga-rantir a abstenção do Estado na esfera deação individual. Com a institucionalizaçãoda liberdade de organização partidária esindical, criam-se as condições para a exis-tência de um espaço público sem a interfe-rência estatal.

No início do século XX, o reconhecimen-to dos direitos econômicos e sociais intro-duz um novo aspecto em termos de proteçãoaos direitos humanos. Não se trata, agora, degarantir a liberdade em face do Estado, masde reivindicar a sua intervenção com o fim deassegurar a repartição da riqueza socialmen-te produzida. Essas transformações situa-vam-se, entretanto, no interior dos Estados,não atingindo as relações interestatais.

Até a primeira metade do século XX, aproteção dos direitos humanos no planointernacional era feita pelo mecanismo dasrelações interestatais. Não havia órgão deimplementação dos direitos humanos, e osindivíduos não tinham capacidade proces-sual no plano internacional (TRINDADE,1992, p. 25–40). Com o passar do tempo, essemecanismo revelou-se insuficiente. A sua es-fera de abrangência era limitada, benefician-do reduzido número de indivíduos.

A ausência de regras precisas nessamatéria conduziu ainda à prática de incon-táveis abusos. Alguns países, sobretudo osmais poderosos, passaram a exigir dos de-mais Estados o respeito a padrões mínimosde proteção aos seus nacionais. O desres-peito a tais padrões foi a causa das chama-das intervenções humanitárias, comuns nasegunda metade do século XIX.

A experiência dramática da segundaguerra mundial proporcionou mudanças

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significativas no campo dos direitos huma-nos. Os horrores do conflito trouxeram àbaila a necessidade de proclamar direi-tos, e também de garantir a sua aplicação.O preâmbulo da Carta da ONU enfatizou aimportância dos direitos fundamentais dohomem, da dignidade do valor do ser hu-mano, da igualdade de direitos dos homense das mulheres, enquanto nada menos doque seis artigos da Carta se referem expres-samente aos direitos humanos. Os direitoshumanos integram assim as finalidades daONU, e o desrespeito aos artigos que os con-sagram importa na violação da própria Car-ta das Nações Unidas.

O segundo pós-guerra foi caracterizadopela multiplicação e universalização dosdireitos humanos. A proliferação dos direi-tos humanos ocorreu, segundo Bobbio, detrês modos diferentes:

a) aumentou a quantidade de bens me-recedores de tutela;

b) foi estendida a titularidade de algunsdireitos a sujeitos diversos do homem; e

c) o homem não é mais visto como entegenérico, mas em razão da especificidadeque possui como criança, velho, doente, etc.

BOBBIO (1992, p. 68) observa que, comrelação ao primeiro processo, verificou-se apassagem dos direitos de liberdade − liber-dade de religião, de opinião, de imprensaetc. − para os direitos políticos e sociais, querequerem a intervenção direta do Estado.Com relação ao segundo processo, ocorreua passagem do indivíduo humano para su-jeitos diversos do indivíduo, como a famí-lia, as minorias étnicas e religiosas e mesmoa humanidade em seu conjunto, como sepode depreender do debate sobre o direitodas gerações futuras. Com relação ao tercei-ro processo, houve a passagem do homemgenérico para o homem específico, classifi-cado com base em múltiplos critérios de di-ferenciação (sexo, idade e condição física).Cada um desses aspectos revela diferençasespecíficas, que não podem ser tratadas damesma maneira (cf. RANGEL, 1992, p. 403-411 e 1969, p. 3-14. Cf. ainda POPPOVIC,

1996, p. 635-648. PINHEIRO, 1985, p. 353-359, 1990, p. 244-251 e 1993, p. 3. MELLO,1993, p. 115–127 e 1994, p. 13-23).

A Declaração Universal dos Direitos doHomem, proclamada e adotada em 10 dedezembro de 1948, iniciou a fase de positi-vação e universalização dos direitos huma-nos. Pela primeira vez na história, um siste-ma fundamental de princípios foi aceito pelamaior parte dos Estados. Não apenas os ci-dadãos de um Estado, mas todos os homenssão destinatários desses princípios. Já apositivação significa que os direitos huma-nos, mais do que proclamados, devem sergarantidos contra todo tipo de violação(BOBBIO, 1992, p. 68).

Os trabalhos preparatórios da Declara-ção tiveram início em fevereiro de 1947 como funcionamento da Comissão de DireitosHumanos da ONU. A Declaração foi, emprincípio, concebida como a primeira partede um sistema internacional de proteção dosdireitos humanos, que seria composto pornovas convenções e medidas de implemen-tação. A Declaração dos Direitos do Homeme do Cidadão, de 1948, não é um tratado,deixando por isso de vincular os Estados-membros da ONU. Esse fato não impediuque ela exercesse profunda influência naelaboração de instrumentos nacionais e in-ternacionais de tutela dos direitos humanos.

Longo caminho teve que ser percorridoaté que a Assembléia Geral da ONU adotasseem 1966 os Pactos sobre Direitos Civis e Polí-ticos e sobre Direitos Sociais, Econômicos eCulturais. A Assembléia Geral mostrou-seinicialmente favorável a um único pacto, queabarcasse ambas as categorias de direitos.

Em 1951, a Comissão houve por bemsugerir a adoção de um sistema de relatórios,cujo objetivo era permitir que os Estados-partes informassem acerca das medidas to-madas para a proteção dos direitos huma-nos. Da mesma forma, julgou-se oportunoregulamentar a apresentação de petições eprotocolos separados com a finalidade defacilitar a ratificação dos pactos por partedos Estados que não concordassem com a

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sua adoção. Nesse mesmo ano, decidiu-sepela elaboração de dois pactos: um sobredireitos civis e políticos, e outro sobre direi-tos econômicos, sociais e culturais.

A conclusão dos projetos de ambos ospactos ocorreu em 1954. A partir de então, aAssembléia Geral iniciou um sistema deconsultas aos diferentes governos sobre oteor das medidas sugeridas. As discordân-cias residiram sobretudo em relação ao sis-tema de implementação adotado.

A delegação holandesa defendeu a com-binação do sistema de relatórios com o dasreclamações interestatais e o das petiçõesindividuais. O direito de petição justifica-va-se porque os Estados, nos relatórios pe-riódicos, poderiam mencionar avanços nocampo da proteção dos direitos humanosque não encontram amparo na realidade.Optou-se finalmente pela inclusão do direi-to de petição em um protocolo facultativo.

Em 16 de dezembro de 1966, a Assem-bléia Geral adotou e abriu à assinatura, ra-tificação e acessão o Pacto dos Direitos Eco-nômicos, Sociais e Culturais, o Pacto dosDireitos Civis e Políticos e o Protocolo Fa-cultativo. O Pacto sobre os Direitos Sociais,Econômicos e Culturais e o Pacto sobre osDireitos Civis e Políticos entraram em vigorem 1976, quando se completou o númeromínimo de ratificações exigido.

No tocante às medidas de implementa-ção, vale lembrar que tanto o Pacto dos Di-reitos Civis e Políticos quanto o Pacto dosDireitos Econômicos, Sociais e Culturaiscontemplaram um sistema de relatórios; so-mente o Pacto dos Direitos Civis e Políticosinstituiu um Comitê dotado de competên-cia facultativa para receber e encaminharas reclamações que lhe fossem dirigidas.

O Protocolo Facultativo previu tambéma possibilidade de apresentação de petiçõesindividuais ao Comitê. A crítica que se temfeito ao Comitê ressalta que ele tem atuadomais como órgão de bons ofícios do que exer-cido funções de natureza judicial. Em de-zembro de 1993, foi criado o Alto Comissa-riado das Nações Unidas sobre os Direitos

Humanos. A ONU concluiu ainda grandenúmero de convenções e declarações relati-vas à proteção dos direitos humanos. Entreas convenções, cabe destacar: ConvençãoInternacional sobre a Eliminação de Todasas Formas de Discriminação Racial (1965);Convenção sobre a Eliminação de Todas asFormas de Discriminação contra a Mulher(1979); Convenção sobre os Direitos Políti-cos da Mulher (1952); Convenção Relativaà Luta contra a Discriminação no Campodo Ensino (1960); Convenção para a Preven-ção e Repressão do Crime de Genocídio(1948); Convenção sobre a Imprescritibili-dade dos Crimes de Guerra e Crimes de Lesa-Humanidade (1968); Convenção contra aTortura e Outros Tratamentos ou PenasCruéis, Desumanos ou Degradantes (1984);Convenção sobre os Direitos da Criança(1989); Convenção Internacional sobre a Eli-minação e a Punição do Crime de Apartheid(1973) (TRINDADE, 1991, p. 12).

Entre as Declarações, merecem ser lem-bradas: a Declaração sobre os Direitos daCriança (1959); a Declaração sobre a Elimi-nação de Qualquer Forma de Discrimina-ção Racial (1963); a Declaração que proíbe aTortura, o Tratamento Cruel e Desumano(1975); a Declaração sobre a Eliminação deTodas as Formas de Intolerância e Discrimi-nação com base na Religião ou Crença (1981).

No plano regional, a Convenção Euro-péia de Direitos Humanos, concluída em 4de janeiro de 1953, instituiu a Corte Euro-péia de Direitos Humanos, que começou afuncionar em 3 de setembro de 1953. Desde1998, os indivíduos têm acesso direto à Cor-te, o que facilitou a apuração de violaçõesaos dispositivos da Convenção Européia deDireitos Humanos. No continente america-no, foi adotada em Bogotá, em 1948, a De-claração dos Direitos e dos Deveres do Ho-mem; a OEA, por sua vez, incluiu os direi-tos humanos entre os princípios que devemorientar a ação dos Estados americanos. AConvenção Americana dos Direitos Huma-nos, fortemente influenciada pela Conven-ção Européia, foi adotada em 1969 e entrou

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em vigor em 1978. Merece destaque ainda aCarta dos Direitos Humanos e dos Povos,adotada pela OUA em 1981.

A proteção internacional dos direitoshumanos registrou progressos considerá-veis nas últimas décadas. Generalizou-se,em primeiro lugar, a consciência de que aproteção dos direitos humanos não se cir-cunscreve ao âmbito interno dos Estados.

No passado, sustentava-se que a prote-ção dos direitos humanos pertencia ao do-mínio reservado dos Estados, únicos agen-tes encarregados de promover a sua tutela.Mas o caráter vago e impreciso da chamadacompetência nacional exclusiva contribuiupara elevar em demasia o grau de discricio-nariedade dos governos nessa matéria.

Os Estados definiam o alcance e a exten-são do domínio reservado, obedecendo àlógica de seus interesses conjunturais. Nãohavia critério ou procedimento capaz deconferir rigor a esse conceito. Como resulta-do, as organizações internacionais reivin-dicaram o direito de estabelecer na práticaos limites da noção de domínio reservado.Os direitos humanos tornam-se objeto deinteresse internacional, que extrapola a com-petência exclusiva dos Estados.

Essa evolução somente foi possível gra-ças à existência de mecanismos que permi-tiam a compatibilização e a prevenção deconflitos entre as jurisdições nacionais e ainternacional (TRINDADE, 1991, p. 13). Aproteção internacional dos direitos huma-nos assume, sob esse aspecto, função subsi-diária, pois cabe aos Estados a tarefa de pro-movê-la no plano interno.

A atuação dos organismos internacio-nais tem início quando a proteção em causase revelar falha ou deficiente. Dessa consta-tação derivou o princípio do esgotamentodos recursos internos antes de se recorrer àtutela prestada pelos órgãos internacionais.

Os tratados sobre direitos humanos con-templam, via de regra, dispositivos com afinalidade de harmonizá-los com o direitointerno, facilitando a adesão e ratificaçãodos governos. São admitidas, desde que

compatíveis com o objeto e os propósitos dotratado, as cláusulas de reserva e limitaçãoou restrição de certos direitos em situaçõesde emergência. Tornou-se usual tambéminserir nos tratados cláusulas facultativasde reconhecimento da competência de ór-gãos de supervisão internacional paraexaminar petições ou comunicações indivi-duais e interestatais, bem como de reconhe-cimento da jurisdição compulsória de ór-gãos judiciais de proteção dos direitos hu-manos (TRINDADE, 1991, p. 8 et seq.).

Verificou-se, por outro lado, grande de-senvolvimento dos métodos de implemen-tação dos direitos humanos. Os indivíduosadquiriram capacidade processual para plei-tear direitos na esfera internacional. As con-venções internacionais sobre direitos huma-nos passaram a prever um sistema de peti-ções individuais e interestatais.

Qualquer pessoa pode dirigir uma recla-mação aos órgãos internacionais competen-tes, mesmo contra o seu próprio Estado. Jáas petições interestatais constituem meiosdestinados a permitir a implementação dasgarantias coletivas, que beneficiam um gru-po ou uma coletividade.

Esse sistema foi completado pela atribui-ção de capacidade de agir aos órgãos desupervisão criados pelos tratados de direi-tos humanos. Nos últimos anos, cresceuvertiginosamente o número de órgãos in-cumbidos de proceder a tal supervisão, deque são exemplos, entre outros, o Comitê deDireitos Humanos previsto no Pacto dasNações Unidas sobre os Direitos Civis ePolíticos, o Comitê sobre a Eliminação deTodas as Formas de Discriminação Racial(CERD), estabelecido pelo Tratado para aEliminação de Todas as Formas de Discri-minação Racial, e o Comitê para a Elimina-ção de Todas as Formas de Discriminaçãocontra a Mulher, instituído pelo Tratadopara a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação contra a Mulher (TRINDA-DE, 1991, p. 8 et seq.). Estes organismos rea-lizam investigações, requisitam informaçõesdos governos e produzem relatórios que têm

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contribuído para corrigir práticas de viola-ção dos direitos humanos.

Deve-se salientar ainda que a interpre-tação dos tratados sobre direitos humanosse submete a critérios próprios, distintos dosque determinam a compreensão dos trata-dos bilaterais clássicos. O interesse das par-tes cede lugar às considerações de ordempública como princípio que orienta o enten-dimento de suas cláusulas.

A ONU realizou em Viena, em junho de1993, a Segunda Conferência Internacionalde Direitos Humanos. Na oportunidade,duas posições marcaram os debates. En-quanto os EUA e as nações ocidentais sus-tentaram a universalidade dos direitos hu-manos, que deveriam sobrepor-se às sobe-ranias nacionais, muitos países subdesen-volvidos e em desenvolvimento, lideradospela China, afirmaram o relativismo dosdireitos humanos, que seriam a expressãodos valores ocidentais. Nesse sentido, con-forme se alegou, nações com diferentesgraus de desenvolvimento econômico e tra-dições culturais teriam concepções distin-tas dos direitos humanos.

Os EUA defenderam a posição segundoa qual nenhum país poderia, com base norelativismo, deixar de reconhecer e garantiros direitos humanos. A China e outros paí-ses em desenvolvimento ressaltaram que adefinição dos direitos humanos precisa le-var em conta as particularidades nacionaise os respectivos meios históricos, religiosose culturais.

Ambas as posições contêm, cada qual àsua maneira, partes da verdade. Os univer-salistas têm parcela de razão quando acu-sam seus adversários de invocar o relativis-mo para impedir a interferência externa como fim de evitar o extermínio das minoriasétnicas, as torturas físicas e morais, as per-seguições religiosas e a supressão dos di-reitos civis e políticos. Os relativistas, porsua vez, têm também parcela de razão quan-do acusam seus adversários de estabelecerrestrições à imigração, de não se preocupa-rem com a situação econômica das nações

atrasadas e de invocarem o tráfico de dro-gas como pretexto para intervir na sobera-nia dos países subdesenvolvidos (FARIA,1994, p. 53-60. Cf. PINHEIRO, 1998 e TRIN-DADE, 1997, p. 177-206).

O documento final da Conferência, con-temporizando as posições antagônicas, con-sagrou a universalidade, indivisibilidade einterdependência dos direitos humanos,enfatizando:

a) a universalidade dos direitos civis esociais;

b) a universalidade dos direitos humanos;c) o papel fiscalizador das entidades não

governamentais;d) a co-responsabilidade na promoção

dos direitos fundamentais;e) o desenvolvimento como condição

para a manutenção da democracia.Observou-se, ainda, que a comunidade

internacional deve envidar esforços com ofim de reduzir o peso da dívida externa paraos países em desenvolvimento, recomendan-do-se a ratificação sem reservas dos trata-dos sobre direitos humanos celebrados noâmbito das Nações Unidas.

O processo de multiplicação e universali-zação dos direitos humanos colidiu, nãoraro, com a política de poder dos Estados,denunciando o contraste entre validade eeficácia das normas, entre o mundo abstra-to das regras e o mundo concreto dos fatos.A ordem bipolar que organizou as relaçõesinternacionais durante quase cinqüentaanos transformou os direitos humanos emarma ideológica na disputa que opôs o blo-co ocidental liderado pelos EUA ao blocooriental comandado pela União Soviética.Enquanto os EUA acusavam a União Sovié-tica de desrespeitar as liberdades civis epolíticas, esta frisava a importância dos di-reitos econômicos e sociais para a constru-ção de uma sociedade justa e solidária.

A divisão ideológica impediu que a co-munidade internacional punisse os gover-nos que violassem os direitos humanos. Assanções econômicas aplicadas contra a Ro-désia e a África do Sul foram excepcionais e

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ocorreram apenas devido à posição perifé-rica que esses países ocupavam no cenáriointernacional.

Os direitos humanos estiveram, em mui-tos casos, a serviço dos interesses econômi-cos e estratégicos das grandes potências. Adisparidade de tratamento em relação àsviolações dos direitos humanos em diferen-tes partes do mundo revela a existência depolíticas seletivas, que flutuam ao sabor dasconveniências, ora mobilizando esforçospara pôr fim às perseguições de minoriasétnicas e religiosas e ao massacre de popu-lações inteiras, ora exibindo a mais profundaindiferença perante esses acontecimentos. Apassividade dos países ocidentais diante dasituação dos “intocáveis” na Índia ou domassacre da população maobere no TimorLeste comprovam claramente esse fato.

A seletividade decorre da combinação docomprometimento dos Estados com as nor-mas de proteção dos direitos humanos, pre-vistas nos tratados internacionais, com apolítica de poder que privilegia os seus in-teresses particularistas. Os governos procu-ram subordinar a preocupação com os di-reitos humanos ao cinismo da diplomaciarealista. O egoísmo que a orienta traça naprática os termos dessa submissão. O rea-lismo diplomático, repleto de meandros esinuosidades caprichosos, não visa a reali-zar interesses gerais, mas apenas a dilatar amargem de poder que cada Estado possui.

Há ainda outro fator que explica a ina-ção dos governos quando são cometidas vio-lações dos direitos humanos na esfera in-ternacional. Vigora uma espécie de cumpli-cidade em relação ao Estado infrator, de talsorte que mesmo aqueles que poderiam agirse sentem paralisados pelo temor de quevenham a sofrer a acusação de desrespeitoaos direitos humanos.

Não obstante essas limitações, as últimasdécadas testemunharam o aparecimento deum espaço internacional no qual os direitoshumanos tendem a ser objeto de interesse ge-ral. O espaço público internacional dos direi-tos humanos cristaliza-se a partir do final da

guerra fria e do progresso das tecnologias dainformação, que deu visibilidade imediata aoque se passa no interior dos Estados. A infor-mação sobre a violência perpetrada contralideranças civis, o assassinato de opositoresdo governo estabelecido e o extermínio de gru-pos étnicos circulam instantaneamente emtodos os recantos do globo. A intimidade so-berana é completamente devassada, obscu-recendo a distinção entre a vida domésticae a realidade internacional (LAFER, 1999,p. 154 et seq. Cf. LAFER, 1998, p. 117-236. Cf.ainda COMPARATO, 1999, p. 403-414).

A internacionalização da vida domésti-ca dos Estados, convertida em motivo dedebate e de preocupação de todos, é absolu-tamente inédita, sem paralelo nos períodoshistóricos precedentes. Os Estados não sãoos únicos componentes do novo espaço in-ternacional dos direitos humanos. Organiza-ções não governamentais se formam em níveltransnacional, travando com o Estado rela-ções de conflito e cooperação. A pressão dasorganizações não governamentais é decisivapara compelir os governos a adotar políticasde defesa dos direitos humanos. Cresce aconsciência de que os direitos humanos en-volvem responsabilidades compartilhadasentre instituições públicas e privadas.

A soberania deixa de ser vista como capaprotetora para os governantes que cometemgraves violações dos direitos humanos. Ouso do princípio de não ingerência paraacobertar crimes contra a humanidade édesacreditado, à medida que o direito deolhar parece servir de fundamento à idéiade responsabilidade sem fronteira.

Na vida internacional e na órbita domés-tica, existe um vínculo indissociável entredireitos humanos, democracia e paz. Sem agarantia dos direitos humanos, não há de-mocracia e, sem democracia, faltam as con-dições para a solução pacífica dos confli-tos. A proteção dos direitos humanos no ter-reno internacional pode ser valioso instru-mento para construção da democracia emdimensão cosmopolita (LAFER, 1994, p. 71.Cf. TRINDADE, 1999, p. 201-251).

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A institucionalização internacional dosdireitos humanos enfrenta, hoje, apesar dosavanços obtidos, importantes desafios. Emprimeiro lugar, existe um nítido contrasteentre a proliferação das normas internacio-nais de proteção dos direitos humanos e acriação de instituições destinadas a garan-tir-lhes eficácia. As últimas décadas teste-munharam o aparecimento de arranjos ins-titucionais variados que facilitam o enca-minhamento e a gestão dos assuntos inter-nacionais nos mais diversos âmbitos de ati-vidade. Os Estados, entretanto, relutam emoferecer às organizações internacionais osinstrumentos necessários para lidar com anova complexidade que surgiu. Verifica-se,desse modo, um descompasso entre as no-vas responsabilidades que as normas jurí-dicas delegam à comunidade internacionale a ausência de mecanismos capazes de as-segurar a sua efetivação. Enquanto a expan-são normativa e o desenvolvimento de inú-meras instituições outorgaram novas tare-fas à comunidade internacional, as políti-cas e procedimentos que se ocupam da apli-cação das normas e do fortalecimento dasinstituições são ainda bastante incipientes.

Em segundo lugar, a institucionalizaçãointernacional dos direitos humanos requera existência de normas secundárias, como éo caso das normas de julgamento, que insti-tuem autoridades judiciais competentespara apurar e punir os delitos cometidos. Odireito internacional clássico compunha-se,fundamentalmente, de normas primáriasque previam direitos e obrigações aos Esta-dos. Faltavam regras secundárias que cons-tituíssem órgãos encarregados de alterar asnormas vigentes e aplicar sanções aos com-portamentos desviantes.

Foi por isso que Kelsen comparou o di-reito internacional ao direito das socieda-des primitivas. O direito internacional en-contrava-se, nessa perspectiva, em um está-gio evolutivo inferior ao dos ordenamentosjurídicos nacionais. À centralização das or-dens jurídicas nacionais correspondia adescentralização do direito internacional.

Recentemente, porém, o direito internacio-nal tem experimentado uma grande mudan-ça representada, sobretudo, pela incorpora-ção das normas secundárias.

Esse fato é perceptível na formação dosblocos econômicos, especialmente da UniãoEuropéia, que se caracteriza pela criação deórgãos supranacionais, que receberam a mis-são de instituir e aplicar o direito comunitá-rio. Não obstante, as normas secundárias nocampo do direito internacional são reduzi-das, restringindo-se a setores específicos.

A experiência européia em matéria deinstitucionalização dos direitos humanosnão se repetiu, com a mesma densidade, emoutras regiões do mundo. O estabelecimen-to do Tribunal Penal Internacional simboli-za um esforço notável de adensamento dainstitucionalização internacional dos direi-tos humanos, cuja repercussão poderá sig-nificar uma revolução copernicana no di-reito internacional. É preciso reconhecer,contudo, que a efetivação do Tribunal PenalInternacional é algo em aberto, que somente ofuturo terá condições de comprovar.

Em terceiro lugar, a constituição de umespaço público internacional dos direitoshumanos não dispensa a elaboração de ins-tituições que expressem o propósito da co-munidade internacional de promover a tu-tela de determinados direitos diante da pro-babilidade de eventuais violações. Não ésuficiente afirmar que os Estados, principal-mente os mais poderosos, estão habilitadosa agir em nome da comunidade internacio-nal quando os direitos humanos são viola-dos. É imprescindível a presença de insti-tuições que indiquem quando e em que cir-cunstâncias a ação da comunidade interna-cional é legítima. A mera referência ao fato deque o comportamento dos governos reflete,em dado momento, os interesses da opiniãopública internacional não basta para legiti-mar as campanhas militares empreendidaspara defender os direitos humanos.

Em quarto lugar, a resistência, manifes-tada por vários países, em aceitar a univer-salidade dos direitos humanos é obstáculo

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ponderável para a sua institucionalizaçãointernacional. Afinal, numa situação de pre-domínio do relativismo não teria sentido ainstitucionalização internacional dos direi-tos humanos. A realização de diálogos in-terculturais, que identifiquem constelaçõesaxiológicas comuns nas diferentes culturas,é a única forma apta a propiciar a consoli-dação dos elos sociais que definem, em últi-ma instância, a eficácia internacional dosdireitos humanos.

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Antonela Diana Luz Teixeira Motta

Na década de 90, presenciamos umamudança significativa na organização daprestação de serviços de telecomunicações.O novo cenário do Direito de Telecomuni-cações derivou de um conjunto de reformasno Aparelho de Estado que tomaram corpono governo Fernando Henrique Cardoso,com o fim de frear o caráter intervencionistado Estado na economia privada, em comba-te à instabilidade econômica vigente. Foi,então, apresentado ao Direito Administra-tivo um período de reformulação de concei-tos e princípios, reforçando seu caráter detransformação constante, em consonânciacom a realidade econômico-social do mo-mento histórico.

A Reforma Administrativa brasileira éresultado de um contexto internacional decrise do papel do Estado, decorrente de umamudança profunda na economia mundial.O fenômeno de reavaliação da atuação es-tatal não é, no entanto, novidade para a his-tória geral. Como já observado anteriormen-te, a administração estatal é constantemen-te revista e atualizada conforme as forçaseconômicas e sociais dominantes, em prolda estabilização do mercado, do bem-estarsocial, do equilíbrio das forças políticas e,principalmente, em prol da governança doEstado, ou seja, do seu poder de implemen-tar políticas públicas efetivas e eficientes. Éo que Luiz Carlos Bresser Pereira caracteri-zaria como o “caráter cíclico da intervençãoestatal” (apud AZULAY NETO).

A nova administração gerencial do Estadobrasileiro e a prestação de serviços públicosde telecomunicações

Antonela Diana Luz Teixeira Motta é Mem-bro do Grupo de Estudos em Regulação de Te-lecomunicações, Núcleo de Regulação Setorialda Faculdade de Direito da UnB.

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Uma breve retrospectiva histórica podeexemplificar essa realidade (Supra). Repor-temo-nos ao século XVIII. O liberalismo nas-ceu em oposição ao regime absolutista e con-siderava abominável qualquer tipo de in-tervenção estatal na liberdade individual,em favor do coletivo. No contexto da revolu-ção industrial e da explosão do iluminis-mo, presenciando a emersão de teorias fortese inovadoras, como as teorias contratualistase do direito natural, a doutrina liberal trouxeà tona os interesses da classe burguesa , criadapelo novo modo de produção capitalista.

O Estado Liberal foi a maior expressãodo “Estado Mínimo”. Era composto por umpequeno núcleo estratégico e exercia apenasas funções típicas de Estado, tais como adefesa nacional, arrecadação e diplomacia.Possuía uma política de incentivo à inicia-tiva privada e de proteção da propriedade,sem maiores preocupações com a organiza-ção social, já que provinha de um regimeque sustentava uma sociedade estamental,estática e inexpressiva.

Todavia, o livre mercado gerou uma con-corrência desleal e desenfreada, que resul-tou na formação de grandes monopólios,aniquilando as empresas de pequeno porte.No final do século XIX, a situação da econo-mia mundial era caótica, culminando nocrack da Bolsa de Nova York, em 1929.

No campo social, a situação não era di-ferente: com a industrialização, surgiu umanova classe social, o proletariado, em situa-ção de pobreza, fome e doença. A Revolu-ção Russa alarmou os Estados capitalistasda ameaça socialista e pressionou-os paraa adoção de medidas de contenção social eeconômica (COELHO, 2000, p. 192).

Nos Estados Unidos, Franklin Rooseveltimplementa o New Deal, um plano de políti-ca intervencionista. Era o começo de umnovo período de intervenção estatal, que seintensificou ao fim da Segunda Guerra Mun-dial, com a necessidade de reconstrução dospaíses atingidos, com recursos do Estado,já que a iniciativa privada se encontravademasiadamente enfraquecida para fazê-lo.

Consolidou-se, destarte, o Estado Socialou Estado do Bem-Estar (Welfare State). Se-gundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, veri-ficou-se uma tendência de socialização, ouseja, de “preocupação com o bem comum,com o interesse público, em substituição aoindividualismo imperante, sob todos os as-pectos, no período do Estado Liberal” (1999,p. 19), que impulsionou o Estado a prestarserviços à população em grandes propor-ções e enfatizou uma forte orientação nacio-nalista no período, propiciando a instala-ção de regimes autoritários.

Assim, o Estado assumiu para si ativi-dades essencialmente privadas, como o for-necimento de energia elétrica, a exploraçãode petróleo e de minérios e a prestação deserviços de telecomunicações, configuran-do-as como serviços públicos e consolidandoa estatização da economia. Criou fundaçõese autarquias para melhor executar esses ser-viços, descentralizando a AdministraçãoPública; e as sociedades de economia mista eempresas públicas, como meio de intervençãono domínio econômico. Para incentivar asatividades da iniciativa privada de interes-se público, o Estado desenvolveu o fomento,através de meios honoríficos, outorga de pri-vilégios, financiamentos, incentivos fiscais,promoção industrial, inversões estrangeirase transferência de tecnologia (supra, p. 20).

O intervencionismo do Estado Social foiimprescindível para a promoção do desen-volvimento econômico e social, porque har-monizou o mercado econômico para rees-truturar as empresas privadas e desenvol-veu políticas sociais, o que possibilitou umadistribuição de renda mais igualitária. Noentanto, a burocracia administrativa e omodo tecnocrático de distribuição de fun-ções públicas desse modelo de Estado colo-caram sérios entraves ao desenvolvimentoda própria atuação estatal. A estrutura rígi-da de organização estatal não permitiu aadequação à nova ordem mundial que seformava.

Na segunda metade do século XX, a tec-nologia avançou numa velocidade jamais

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vista, o que propiciou uma redução signifi-cativa nos custos de transporte e comunica-ção. Encurtaram-se as distâncias, e o mun-do estava mais próximo, mais integrado.Presenciou-se, nesse período, um reaqueci-mento da economia mundial, com a dispu-ta internacional por avanços tecnológicose, principalmente, por mercados consumi-dores. A chamada “globalização da econo-mia” instalou-se definitivamente.

Nesse contexto, ocorreu uma diminuiçãono poder do Estado nacional, levando à for-mação de blocos regionais, na tentativa demanter seu poder regulador. A intervençãoestatal na concorrência do mercado internoperdeu o sentido, pois não se podia maisconter a competitividade internacional. Se-guiu-se o descontrole fiscal, com a perda docrédito público e a diminuição na capaci-dade de gerar poupança; a redução nas ta-xas de crescimento dos países desenvolvi-dos; o aumento do desemprego e os eleva-dos índices de inflação. Tornou-se necessá-rio diminuir as despesas estatais e conse-guir meios de reabastecer os cofres públi-cos, sob pena de um colapso nas finançasdo Estado.

Percebeu-se, então, que não mais se jus-tificava a manutenção dos monopólios es-tatais em atividades de cunho econômico.A burocracia do Estado Social impediu queas empresas estatais acompanhassem osavanços tecnológicos, perdendo eficiênciana prestação de serviços públicos e quali-dade nos seus produtos. Portanto, a explo-ração desses monopólios não era suficientenem mesmo para o seu financiamento,quanto mais para contribuir com acréscimona renda pública.

Foram implantadas, então, as primeiraspolíticas de respaldo neo-liberal, nos gover-nos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, ede Ronald Regan, nos Estados Unidos, queencontraram na privatização, na “publiciza-ção” e na terceirização um meio de descon-gestionar a Administração, eliminar gastose, ainda, angariar fundos para suas reser-vas. A idéia de Estado Mínimo Comprador

(Minimal Purchasing State) disseminou-sepelo mundo ocidental e ganhou adeptos atémesmo entre países oriundos de regimessocialistas, como a Rússia.

O modelo ideal de Estado não era mais ode produtor e executor de bens e serviços, esim o de promotor e regulador da atividadeprivada. Ele passa de patrocinador da eco-nomia a administrador de seus efeitos deacordo com o interesse público.

No Brasil, a política neoliberal apareceuinicialmente no governo Fernando Collor deMello, na tentativa de conter a dívida exter-na e o aumento da inflação, mas foi no go-verno de Fernando Henrique Cardoso queela se consolidou. Embora a Constituiçãode 1988 tenha representado um retrocessoburocrático no caminho a uma administra-ção pública gerencial (DI PIETRO, 1999,p. 33), foi elaborado, em 1995, o Plano Di-retor da Reforma do Aparelho do Estado, deli-neando qual seria a nova roupagem da Ad-ministração Pública brasileira, cuja execu-ção só se tornou viável por meio de Emen-das Constitucionais aprovadas pelo Con-gresso Nacional.

Em apresentação ao Plano Diretor, o Pre-sidente Fernando Henrique expõe seus ob-jetivos:

“É preciso, agora, dar um saltoadiante, no sentido de uma adminis-tração pública que chamaria de ‘ge-rencial’, baseada em conceitos atuaisde administração e eficiência, volta-da para o controle dos resultados edescentralizada para poder chegar aocidadão, que, numa sociedade demo-crática, é quem dá legitimidade àsinstituições e que, portanto, se torna‘cliente privilegiado’ dos serviçosprestados pelo Estado. É preciso reor-ganizar as estruturas da administra-ção com ênfase na qualidade e na pro-dutividade do serviço público; na ver-dadeira profissionalização do servi-dor, que passaria a perceber saláriosmais justos para todas as funções”(MINISTÉRIO..., 1995).

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Esse Plano Diretor e as medidas que osucederam implantaram no Brasil um siste-ma de parceria com a Administração Públi-ca, com a finalidade de deixar o Estado maisleve e os serviços mais eficientes, sem des-cuidar do fiel atendimento ao “cliente-cida-dão”. Ele criou os contratos de gestão para darmaior autonomia a organizações sociais eautarquias (muito embora os autores de di-reito administrativo afirmem que os contra-tos de gestão não estão sendo difundidos:teriam ficado só na retórica); e os contratos deconcessão, atos de autorização e termos de per-missão para delegar a particulares a execu-ção de atividades de interesse público; alémdo instituto da terceirização para delegar ser-viços administrativos a empresas privadas.

Porém, por mais que a política neolibe-ral adotada pela Administração Públicabrasileira exigisse seu afastamento da ges-tão do setor de produção de bens e serviços,era necessário zelar pela qualidade e conti-nuidade na prestação dos serviços públi-cos transferidos para a iniciativa privada,devido à sua grande utilidade pública. OEstado não poderia, simplesmente, deixaressas atividades ao sabor do mercado com-petidor, do controle pelo capital externo eda busca por lucros das empresas privati-zadas, sem que medidas fossem tomadas nosentido de proteger o interesse público narealização eficiente dos serviços envolvidos.

Nesse sentido, foram criadas agências re-guladoras, autarquias de caráter especial,autônomas, com patrimônio e receita pró-prios, poder normativo e capacidade deci-sória. Segundo Di Pietro, são atribuiçõesdesses órgãos públicos:

“(...) regulamentar os serviços queconstituem objeto da delegação, reali-zar o procedimento licitatório paraescolha do concessionário, permissi-onário ou autorizatário, celebrar ocontrato de concessão ou permissãoou praticar o ato unilateral de outor-ga da autorização, definir o valor datarifa e de sua revisão ou reajuste(quando for o caso), contratar a exe-

cução dos serviços, aplicar sanções,encampar, decretar a caducidade, in-tervir, fazer a rescisão amigável, fazera reversão de bens ao término daconcessão, exercer o papel de ouvi-dor de denúncias e reclamações dosusuários, enfim exercer todas asprerrogativas que a lei outorga ao po-der público na concessão, permissãoe autorização (1999, p. 132).”

A criação da ANATEL - Agência Nacio-nal de Telecomunicações - foi um dos ins-tantes decisivos na implantação de umanova política de atuação no setor de tele-comunicações no Brasil. Como não poderiadeixar de ser, esse setor precisava acompa-nhar as mudanças que estavam sendo in-troduzidas na Administração Pública emgeral, quer para permitir o enxugamento damáquina estatal, quer para garantir a insta-lação e fruição no país de novas tecnologiaspromissoras, como a telefonia celular, que aburocracia e ineficiência das empresas pú-blicas, debilitadas pela constante ingerên-cia política no seu funcionamento e pelosucateamento de seu patrimônio, não con-seguiam oferecer de maneira eficiente ou aces-sível para a crescente demanda surgida.

Uma visão panorâmica da evolução dosetor nos mostra que nem sempre o Estadofoi o encarregado de prestar os serviços detelecomunicações (ESCOBAR, 1999, p. 97-99).Nos tempos imperiais, os serviços telegráfi-cos e de telefonia eram explorados, na mai-oria das vezes, pela iniciativa privada, e aoutorga para instalação de linhas telefôni-cas era de competência da União apenas.

As bases para a concessão de linhas te-lefônicas só foram fixadas pelos Decretosnºs 8.452-A/1882 e 8.935/1883 e, a partirde então, as Constituições de 1891 e 1934estabeleceram que os serviços telegráficos(ou telefônicos, havia uma identidade entreambos os serviços) seriam explorados pelaUnião, Estados e Municípios, diretamenteou mediante concessão. A Constituição de1946 determinou que os serviços de “comu-nicação por eletricidade” (telegrafia e tele-

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fonia) interestaduais e nacionais seriam decompetência da União e, quando por ela nãoabrangidos, poderiam ser explorados pelosMunicípios e por particulares.

Com a Lei nº 4.117/1962, foi instituído oCódigo Brasileiro de Telecomunicações, regu-lamentado pelo Decreto nº 52.026/1963, for-mulando a primeira política nacional parao setor com a instalação do Conselho Nacio-nal de Telecomunições – Contel e da EmpresaBrasileira de Telecomunicações – Embratel, quegarantiram a modernização da infra-estru-tura e propiciaram a melhoria dos serviçostelefônicos e de transmissão de TV.

A Constituição de 1967 qualificou de ser-viço público federal os serviços de telecomu-nicações, o que acarretou a incorporação,pela União, de cerca de 900 empresas con-cessionárias e a instalação, pelo Decreto-Leinº 200/1967, do Ministério das Telecomu-nicações. A Lei nº 5.792/1972 criou a em-presa Telecomunicações Brasileiras S.A. – Tele-brás, e o Decreto nº 74.379/1974 a designoucomo concessionária geral para a explora-ção dos serviços públicos de telecomunica-ções em todo o território nacional.

A Telebrás era uma holding constituídapor uma empresa de longa distância – aEmbratel – e 27 operadoras locais, as Teles(Telesp, Telerj, Telebrasília, Telemig, etc.). Noentanto, no início dos anos 80, concomitan-temente à crise do Estado Social, surgem osprimeiros problemas da Telebrás. A empre-sa necessitava de profissionais mais prepa-rados tecnicamente e de investimento emtecnologia para acompanhar a moderniza-ção dos serviços de telefonia celular, comu-nicação de dados, serviços telemáticos, re-des de valor agregado, TV a cabo, etc., o queera imensamente dificultado pela politiza-ção das diretorias da holding e de suas sub-sidiárias, e pela sua baixa capacidade deinvestimento. Era, pois, inevitável a reestru-turação do setor de telecomunicações noBrasil, cujas principais etapas serão anali-sadas a seguir.

Em 1995, foi aprovada a Emenda Consti-tucional nº 8, que, modificando os incisos XI

e XII do artigo 21 da Constituição Federalde 1988, eliminou o monopólio estatal exer-cido pela Telebrás1. Um ano depois, foi edi-tada a “Lei Mínima” (Lei nº 9.295/1996), quedispôs sobre a exploração do Serviço MóvelCelular, do Serviço Limitado e do Serviço deTransporte de Sinais de Telecomunicaçõespor Satélite; sobre a utilização da rede pú-blica de telecomunicações para a prestaçãode Serviço de Valor Adicionado; e sobre acriação de uma Comissão Nacional de Co-municações, a CNC, para exercer as funçõesde órgão regulador dos serviços de teleco-municações.

Seguiu-se a licitação da concessão da Ban-da “B” do Serviço Móvel Celular, em abrilde 1997, dando o primeiro passo para esta-belecer um ambiente competitivo no setorde telecomunicações. Por fim, no dia 16 dejulho de 1997, foi editada a Lei Geral de Tele-comunicações – LGT (Lei nº 9.472), que, emsuma, dispôs sobre a organização dos ser-viços de telecomunicações, a criação do ór-gão regulador do setor – a ANATEL, a rees-truturação e desestatização das empresasfederais de telecomunicações e a aberturaoficial da competição no setor.

Estabelecido o arcabouço jurídico neces-sário, iniciou-se o processo de privatizaçãodo Sistema Telebrás. A princípio, a empresafoi subdividida em treze companhias: trêsholdings das concessionárias regionais detelefonia fixa; uma holding da operadora delonga distância (Embratel); oito holdings dasconcessionárias de telefonia móvel – Banda“A”; e ainda a Telebrás residual, que deve-ria depois desaparecer, por meio de proces-so de dissolução e liquidação.

Mais tarde, respeitando as etapas deimplantação do novo sistema estabelecidasna LGT, foram realizadas licitações para aschamadas empresas-espelho, criadas paraimplantar a concorrência no setor de telefo-nia fixa. Mediante termo de autorização, atais empresas foi permitido explorar os mes-mos serviços que as concessionárias adqui-rentes das empresas do antigo Sistema Te-lebrás, nas mesmas áreas de atuação des-

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tas. Foram licitadas, também, autorizaçõespara a atuação de empresas-espelhinho, idea-lizadas para atender pequenas áreas àsquais as empresas-espelho não teriam aces-so imediato.

A transformação do modo de prestaçãode serviços de telecomunicações exemplifi-cam o processo ocorrido em outros setoresantes monopolizados pelo Estado, como osetor de energia elétrica. Atividades queantes eram tidas invariavelmente como ser-viços públicos, que o Estado tinha a obriga-ção de prestar e de garantir a sua qualida-de, universalização e continuidade, hoje sãodelegadas a particulares.

Com isso, verificou-se a necessidade derever a amplitude do dever de atuação doEstado ante a nova situação apresentada.Questionamentos surgiram no âmbito deatuação do Direito Administrativo, e umdeles é quanto a abrangência do termo “ser-viço público”. Quais serviços poderiam serassim classificados? Qual o dever do Esta-do perante as atividades elencadas como tal?Quais as obrigações exigíveis dos particu-lares na prestação de serviços desse naipe?Dessa forma, procederemos à análise doconceito de serviço público, para que pos-samos melhor compreender a implicânciadessa classificação para a nova organiza-ção da Administração Pública.

Embora a maior parte da doutrina afir-me que a definição clássica do serviço pú-blico reúna três elementos – o subjetivo (ser-viço público é aquele prestado pelo Estado),o material (objeto do serviço público é a sa-tisfação das necessidades coletivas) e o for-mal (serviço público é aquele exercido sob re-gime de Direito Público) –, nem sempre, nopanorama de atuação da atividade estatal,todos foram considerados conjuntamente.

Segundo Dinorá Adelaide Musetti Grot-ti, a expressão apareceu pela primeira vezem um trecho do Contrato Social, de J. J. Rous-seau, abrangendo qualquer atividade esta-tal (GROTTI, 2000, p. 40). Desde então, mui-tas conotações lhe foram atribuídas. Para oEstado Liberal, o serviço público era todo

aquele prestado pelo Estado e destinado asatisfazer as necessidades coletivas. Só seconhecia a prestação desses serviços noâmbito do Direito Público. Na vigência doEstado Social, contudo, esse conceito absor-veu atividades comerciais e industriais, efunções que o modelo intervencionista daatividade estatal passou a considerar comoserviço público, sem fundamento no inte-resse coletivo da sua incorporação ao apa-relho do Estado, embora fossem essas fun-ções inseridas no regime de Direito Público.

Com a implementação do neoliberalis-mo no cenário político mundial, a idéia deinteresse público está, mais do que nunca,associada à prestação de serviços públicos.Esse enfoque no elemento material do servi-ço público chegou ao ponto de descaracteri-zar seu elemento subjetivo, permitindo aatuação de particulares como prestadoresde serviço público, se investidos desse po-der pelo Estado, por meio de instrumentoslegais e contratuais adequados.

Celso Antônio Bandeira de Mello con-ceitua o serviço público como sendo:

“(...) toda atividade de oferecimento deutilidade pelos administradores, pres-tados pelo Estado ou por quem lhe façaas vezes, sob um regime de direitopúblico – portanto, consagrador deprerrogativas de supremacia e de res-trições especiais –, instituído pelo Es-tado em favor dos interesses que hou-ver definido como próprios no siste-ma normativo” (2000, p. 575).

Ele entende que as atividades desenvol-vidas pelo Estado relativas à exploração daatividade econômica, por meio das empre-sas públicas e sociedades de economia mis-ta, por exemplo, representam serviços gover-namentais e não serviços públicos. Neste sen-tido:

“Quando o Estado interfere, suple-mentarmente, na exploração de ativida-de econômica, ao desenvolver ativida-des desta natureza estar-se-á diantede serviços governamentais e não de ser-viços públicos” (supra, p. 594, 599).

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E em sua definição de serviços governa-mentais, afirma que são

“(...) os que correspondam à explora-ção de atividade econômica pelo Es-tado, em concorrência com os parti-culares ou sob regime de monopólio[caso das atividades elencadas no ar-tigo 177 da Constituição Federal]2, masque são perfeitamente inconfundíveiscom os serviços públicos”3.

Quanto aos serviços oferecidos pelas or-ganizações sociais “publicizadas”, como asaúde e a educação, ele acredita que só cons-tituem serviços públicos quando realizadosdiretamente pelo Estado e que o controleestatal dessas atividades, quando delega-das aos cuidados da iniciativa privada, con-figura o exercício normal da polícia admi-nistrativa do Estado, sem prejuízo do seu ca-ráter privado. São esses serviços públicos nãoprivativos do Estado, em que “ingressam os ser-viços que o Estado pode desempenhar, imprimin-do-lhes regime de Direito Público, sem, entretan-to, proscrever a livre iniciativa do ramo de ativi-dades em que se inserem” (MELLO, 2000, p. 586).

Sobre os serviços oferecidos mediantedelegação do poder público, por meio doscontratos de concessão e permissão, Ban-deira de MELLO considera-os serviços pú-blicos privativos do Estado, mas não necessa-riamente prestados por ele; enquanto as ati-vidades desenvolvidas sob autorização dopoder público consistem em atividades pri-vadas, sobre as quais o Estado exerce o seupoder de polícia em garantia do bem-estarsocial. Sendo assim, o autor atenta para aincoerência do texto constitucional ao men-cionar a expressão “autorização” no seuartigo 21, XII4, quando deveria ter-se referi-do apenas a “concessão ou permissão”, poiso objeto desse ato administrativo é “facultarao particular, discricionariamente, a práti-ca de ato material de interesse particular,não reservado ao poder público, mas cuja prá-tica seria vedada sem a prévia expedição doato em causa” (supra, p. 585).

Hely Lopes Meirelles tem outra classifi-cação para os serviços públicos. Conside-

rou um sentido amplo de serviço público,que compreende dois tipos de atividadesdesenvolvidas pela Administração Pública:os serviços públicos, ‘stricto sensu’, e os servi-ços de utilidade pública. Para ele:

“(...) o que prevalece é a vontade so-berana do Estado, qualificando oserviço como público ou de utilidadepública, para sua prestação direta ouindireta, pois serviços há que, pornatureza, são privativos do PoderPúblico e só por seus órgãos devemser executados, e outros são comunsao Estado e aos particulares, poden-do ser realizados por aquele e es-ses” (1998, p. 286).

Meirelles tem, a esse respeito, uma visãoinstitucional-subjetivista, centrada no ele-mento Estado, que se contrapõe claramenteà posição material de Bandeira de Mello,cujo foco é o interesse público legitimadorda atividade do Estado na esfera de poder aele conferida.

É necessário ressaltar, porém, que, como advento de sua morte em 1990, o saudosomestre Meirelles não pôde vivenciar, detodo, o processo de reforma da Administra-ção Pública. Restam alguns de seus concei-tos um tanto obsoletos quanto à visão atualde administração gerencial, uma vez queguardam relação com a ótica burocráticaconsolidada no tempo de seus enriquece-dores estudos. Mesmo assim, é válido con-ferir o que o ilustre jurista tem para dizer arespeito do tema proposto.

Assim conceitua serviços públicos:“Propriamente ditos, são os que a

Administração presta diretamente àcomunidade, por reconhecer sua es-sencialidade e necessidade para a so-brevivência do grupo social e do pró-prio Estado. Por isso mesmo, tais ser-viços são considerados privativos doPoder Público (...)“ (supra).

Conceitua também os serviços de utili-dade pública:

“São os que a Administração, re-conhecendo a sua conveniência (não

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essencialidade, nem necessidade)para os membros da coletividade, pres-ta-os diretamente ou aquiesce que se-jam prestados por terceiros (concessio-nários, permissionários ou autoriza-tários), nas condições regulamenta-das e sob seu controle, mas por contae risco dos prestadores, mediante re-muneração dos usuários” (supra).

A Constituição Federal estabelece, em seuartigo 175, que “incumbe ao poder público,na forma da lei, diretamente ou sob regimede concessão ou permissão, sempre atravésde licitação, a prestação de serviços públi-cos”. Decorre daí, claramente, que a inten-ção do legislador constituinte era vinculara prestação de serviços públicos aos parti-culares por meio dos instrumentos de con-cessão e permissão. A Constituição Federalabraçou, nesse trecho, a tese de Bandeira deMello ao estabelecer a competência para aprestação dos serviços públicos, dispondoque, fora as atividades prestadas diretamen-te pelo Poder Público, só é serviço públicoaquele prestado mediante regime de conces-são ou permissão.

A Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995),por sua vez, em seu artigo 2º, II, assim defi-ne “concessão de serviço público”:

“[É] a delegação de sua prestação,feita pelo poder concedente, median-te licitação, na modalidade de concor-rência, à pessoa jurídica ou consórciode empresas que demonstre capacida-de para seu desempenho, por sua con-ta e risco, por prazo determinado”.

E quanto à “permissão de serviço públi-co”, disserta o inciso IV do mesmo artigo:

“[É] a delegação, a título precário,mediante licitação, da prestação deserviços públicos, feita pelo poderconcedente à pessoa física ou jurídicaque demonstre capacidade para seudesempenho, por sua conta e risco”.

Temos, aqui, que a hipótese inversa doque prevê a Constituição Federal também éverdadeira. Se vimos que os institutos ide-ais para a delegação de serviços públicos

são a concessão e a permissão, a Lei de Con-cessões determina que todo serviço presta-do mediante concessão ou permissão é ser-viço público.

A esse respeito, assevera Di Pietro:“O art. 175 da Constituição faz re-

ferência apenas à concessão e à per-missão como formas de prestação deserviços públicos. Mas o art. 21, inci-so XII, arrola os serviços que a Uniãopode executar diretamente ou medi-ante autorização, concessão ou per-missão. Além disso, na legislação or-dinária e na doutrina a autorização émencionada também como forma dedelegação de serviços públicos ao ladoda permissão e da concessão” (1999,p. 122).

Ela entende que foi criada uma grada-ção entre a delegação da execução de servi-ços públicos a particulares e a outorga deconsentimento ao particular para a utiliza-ção privativa de bem público, caracterizan-do o uso da autorização, permissão e con-cessão para prestação de serviços públicosou, simplesmente, para uso de bem público.Segundo a autora, a Constituição fundamen-ta a concessão e permissão de serviços públi-cos, em seu artigo 175, e a autorização de ser-viço público, em seu artigo 21, inciso XII.

Quanto à autorização, concessão e per-missão de uso de bem público, são previs-tas por alguns artigos da Lei nº 9.074, quetrata da outorga desses institutos jurídicos,como, por exemplo, os artigos 5º, inciso III,13 e 14; porém, foge aos objetivos deste tra-balho analisar os institutos da autorização,concessão e permissão de uso público, aosquais se remete Di Pietro, por se tratar deuma hipótese de atuação do poder de polí-cia da Administração Pública sobre a inte-gridade da res pública, e não de efetiva pres-tação de serviço, sem prejuízo, no entanto,da importância dessa classificação.

Miguel Reale também admite a hipótesede prestação de serviços públicos por meioda autorização, alegando que o legisladorestabeleceu uma “gradação entre a autori-

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zação, a permissão e a concessão de serviçopúblico, segundo o índice de participaçãoou de controle do Poder Público no concer-nente aos bens e aos serviços” (1969, p. 152).

Porém, percebe-se que alguns autorespartem de uma premissa dúbia: a de que oartigo 21, XII, da Constituição Federal per-mita a utilização da autorização para dele-gar a execução de serviços públicos pelaAdministração Pública a particulares. Oinfortúnio não está na inclusão da autori-zação nesse dispositivo, mas na interpreta-ção que a ele se tem conferido.

A proposta do artigo 21 da ConstituiçãoFederal não é, na verdade, elencar os servi-ços públicos prestados pela União, mas ape-nas atribuir a ela a obrigação de zelar pelosinteresses primordiais da população, deli-mitando os serviços estatais, e não necessaria-mente os serviços públicos. De um modogeral, esse artigo institui os pontos culmi-nantes da atuação do Poder Público Federal,fixando os limites do poder de polícia e atri-buindo o poder para implementar políticasdesenvolvimentistas.

Quanto aos setores da atividade econô-mica especificados no artigo, a intenção, aoenfatizar a atuação da União no seu funcio-namento, foi de ressaltar seu caráter de inte-resse público. O inciso VIII, por exemplo,obriga a União a fiscalizar as operações fi-nanceiras, os serviços de seguro e a previ-dência privada; o inciso X a incumbe demanter o serviço postal e o correio aéreonacional; os incisos XI e XII exigem que aUnião explore, diretamente ou medianteautorização, concessão ou permissão, osserviços de telecomunicações, radiodifusãosonora e de sons e imagens, fornecimentode energia elétrica, etc.

Não foi à toa que a Emenda Constitucio-nal nº 8 retirou da redação do inciso XI doartigo 21 a expressão “serviços públicos detelecomunicações”, fazendo menção apenasa “serviços de telecomunicações”5. O fatode ter sido confiada à União Federal a ex-ploração exclusiva dos serviços de teleco-municações não é suficiente para classifi-

cá-los como serviços públicos, eis que, nocenário atual, alguns desses serviços são deinteresse restrito, e mesmo os de interessecoletivo têm uma forte característica de ativi-dade econômica. Igual raciocínio é utilizávelpara dizer o porquê da não inserção das ati-vidades enumeradas no inciso XII do mesmoartigo na categoria de serviço público.

Além do mais, considerar que o artigo21 enumera serviços públicos é negar a pos-sibilidade de que os Estados, Municípios eDistrito Federal possam prestá-los, por meiode sua máquina administrativa própria. E opróprio artigo 21 esclarece, quando diz, emseu inciso XIV, que compete à União “orga-nizar e manter a polícia civil, a polícia mili-tar e o corpo de bombeiros militar do DistritoFederal, bem como prestar assistência finan-ceira ao Distrito Federal para a execução deserviços públicos, por meio de fundo próprio”.

Já o elemento formal do conceito clássi-co de serviço público é de relevância contro-versa para o novo Direito Administrativo,mas a face mais expressiva da doutrina ain-da considera o regime de Direito Públicoindispensável para caracterizar a naturezapública de uma atividade.

Bandeira de Mello nega veementementea hipótese de prestação de serviço públicosob regime de Direito Privado, afirmandoque são dois os elementos componentes doserviço público: o “substrato material”, queconsiste na prestação de utilidade ou como-didade fruível diretamente pelos adminis-trados, e o “traço formal”, o regime de DireitoPúblico. E assevera:

“(...) o primeiro elemento do serviçopúblico é absolutamente insuficientepara configurá-lo, (...) tal substratopode existir inúmeras vezes sem que,entretanto, se possa falar em serviçopúblico. (...) Este só existirá se o regi-me de sua prestação for o regime ad-ministrativo, ou seja, se a prestaçãoem causa configurar atividade admi-nistrativa pública, em uma palavra,atividade prestada sob regime de DireitoPúblico” (2000, p. 579).

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E complementa, em nota explicativa:“É por isso que noções como ‘ser-

viço público econômico’, por exemplo,(isto é, serviço estatal prestado sob re-gime fundamentalmente de DireitoPrivado), não servem para nada. Épossível que, talvez, possam interes-sar a economistas ou politólogos, maspara a área jurídica seu préstimo énenhum. Antes, é pior do que ne-nhum, pois só podem induzir a con-fusões e causar equívocos aos menosavisados” (supra).

O regime de Direito Público é tido comoessencial para a prestação de serviços pú-blicos porque exige uma participação ativado Estado na promoção, regulação e fiscali-zação dessas atividades. Durante a vigên-cia da Administração Pública Burocrática,o Estado Social assumiu um sólido compro-misso acerca da qualidade, universalidade econtinuidade na prestação desses serviços.

Com a reforma do Estado, a Administra-ção Gerencial lançou mão das parcerias coma iniciativa privada, o que não descaracteri-zou o interesse público envolvido no ofere-cimento de serviços adequados. No entan-to, isso não quer dizer que a tutela desseinteresse público requer que toda atividadeantes desenvolvida pelo Estado continue aser realizada sob regime público.

De volta ao artigo 175 da ConstituiçãoFederal, seu parágrafo único, inciso I, defi-ne que cabe à lei dispor sobre o regime jurí-dico das empresas concessionárias e per-missionárias de serviço público6. Com essedispositivo, a Constituição Federal inequi-vocamente manifestou sua intenção de per-mitir a prestação do serviço público tantoem regime jurídico de direito privado quan-to de direito público, por contrato de con-cessão e termo de permissão que, como ex-plicitado acima, são os instrumentos ade-quados para delegar poderes de execuçãode serviço público.

As agências reguladoras e as demaisautarquias de regime especial, como o CADEe o DNER, exercem a função protetora do

Estado junto aos serviços privatizados, a fimde garantir que a população não quedarádesprovida de serviços eficientes. Exigir quetodas as empresas trabalhassem sob regimepúblico, no entanto, dificultaria o estabele-cimento da concorrência tão estudada e ide-alizada no processo de desestatização.

A LGT, amparada pelas diretrizes cons-titucionais, organizou os serviços de tele-comunicações em serviços de interesse res-trito e serviço de interesse coletivo e, quantoao regime jurídico de prestação desses ser-viços, permitiu que fossem explorados emregime público ou privado, deixando a car-go da ANATEL a sua regulação. Veremosagora qual a importância dessa disposiçãodas atividades para o seu reconhecimentocomo serviços públicos.

O Regulamento dos Serviços de Teleco-municações (Resolução nº 73/1998), em seuartigo 17, define serviço de telecomunica-ções de interesse coletivo: “é aquele cuja pres-tação deve ser proporcionada pela presta-dora a qualquer interessado na sua fruiçãoem condições não discriminatórias, obser-vados os requisitos da regulamentação”,que será prestado em regime público ou pri-vado, conforme definido pelo Poder Execu-tivo por meio de Decreto.

O artigo 18, por sua vez, conceituou ser-viço de telecomunicações de interesse res-trito como “aquele destinado ao uso do pró-prio executante ou prestado a determinadosgrupos de usuários, selecionados pela pres-tadora mediante critérios por ela estabeleci-dos, observados os requisitos da regulamen-tação”, que, de acordo com o disposto noartigo 19 do mesmo diploma legal, só seráprestado em regime de direito privado.

Essa diferenciação tem como finalidadedelimitar a extensão do interesse públiconos serviços de telecomunicações, para quea regulação a que se propôs a ANATEL pos-sa funcionar de acordo com as necessida-des da população, sem influenciar injustifi-cadamente os serviços visados por umaquantidade reduzida de consumidores. As-sim, os serviços de interesse coletivo estão

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sujeitos a condicionamentos necessáriospara que sua exploração atenda aos inte-resses da coletividade, enquanto os servi-ços de interesse restrito só estão regulados aponto de não permitir que sua prestaçãoprejudique os interesses dessa mesma cole-tividade.

O ato da ANATEL nº 3.807, de 23 de ju-nho de 1999, classificou os serviços de tele-comunicações quanto aos interesses a queatendem, conforme determinou o artigo 62da LGT. Considerou-se de interesse coleti-vo os serviços: telefônico fixo comutado, deTV a cabo, de distribuição de sinais Multi-ponto Multicanal, de distribuição de sinaisde televisão e de áudio por assinatura viasatélite, especial de televisão por assinatu-ra, especial de radiochamada, avançado demensagem, especial de radiorrecado, espe-cial de freqüência padrão, especial de bole-tim meteorológico, especial de sinais de ho-rários, móvel global por satélite, radiocomu-nicação aeronáutica, móvel celular, rede detransporte de telecomunicações, móvel es-pecializado, radiotáxi especializado e teles-trada.

Os serviços classificados como de interes-se privado foram: especial para fins científi-cos e experimentais, especial de radioautoci-ne, limitado privado, limitado de radioestra-da, limitado estações itinerantes, móvel pri-vado, radiotáxi privado, radiochamada pri-vado, redeprivado, móvel aeronáutico, rádiodo cidadão e radioamador.

Entretanto, para alguns serviços de tele-comunicações, o referido Ato da Anatel re-meteu às características de abrangência eutilização a sua definição como de interes-se coletivo ou de interesse restrito. São elesos serviços: especial de radiodeterminação,especial de supervisão e controle, especialde radioacesso, limitado especializado, redeespecializado, circuito especializado e mó-vel marítimo.

Não é difícil perceber, após essa expla-nação, que os serviços de interesse restritonão configuram, de maneira alguma, servi-ços públicos, devido à sua baixa relevância

para o interesse público. É difícil classifi-car, porém, entre os serviços de interessecoletivo, quais os que poderiam ser consi-derados como tal.

Para resolver a questão colocada, reme-tamo-nos à disposição dos serviços de tele-comunicação entre os prestados sob regimepúblico ou privado. A LGT, em seu artigo65, estabeleceu que cada modalidade de ser-viço será destinada à prestação exclusiva-mente no regime público ou privado, ou ain-da concomitantemente nos dois regimes. ORegulamento dos Serviços de Telecomuni-cações, já referido acima, conceitua, em seuartigo 13, serviços de telecomunicações ex-plorados no regime público:

“(...) são aqueles cuja existência, uni-versalização e continuidade a própriaUnião compromete-se a assegurar, inclu-indo-se neste caso as diversas moda-lidades do serviço telefônico fixo co-mutado, de qualquer âmbito, destina-do ao uso do público em geral”,

mas assevera, em seu artigo 14, que“os serviços de telecomunicações ex-plorados no regime privado não es-tão sujeitos a obrigações de universa-lização e continuidade, nem prestaçãoassegurada pela União”.

É certo que o compromisso da União emassegurar a universalização e continuida-de é inerente ao regime de direito públicopara qualquer serviço público. No entanto,a LGT propôs ainda uma diferença inova-dora para a distinção entre serviços públi-cos e privados, referente à essencialidade doserviço prestado. O §1º de seu artigo 65 as-sim dispõe: “não serão deixadas à explora-ção apenas em regime privado as modali-dades de serviço de interesse coletivo que,sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres deuniversalização”. Significa dizer que se de-terminado serviço de telecomunicações deinteresse coletivo é reconhecido como essen-cial, são intrínsecos à sua prestação deve-res de universalização, característica quedetermina a aplicação do regime de direitopúblico.

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A tabela abaixo demonstra precisamen-te a diferença na prestação dos serviços detelecomunicações nos dois regimes e a in-tensidade da intervenção do Estado em cada

É inevitável concluir que apenas os servi-ços de interesse coletivo prestados sob regi-me jurídico de direito público podem ser con-siderados serviços públicos. O forte caráterde atividade econômica contido nos serviçosprestados sob regime privado nem mesmopermitem a intervenção direta da União nagarantia do interesse público que os classifi-cou como serviço de interesse coletivo.

A LGT determinou que os serviços pres-tados sob regime público devem ser delega-dos mediante contrato de concessão ou,quando de cunho transitório o serviço, pe-rante termo de permissão, sendo ainda osserviços sob regime privado facultados me-diante ato de autorização. Para as empre-sas autorizadas, em regra, não é exigida li-citação para a obtenção do direito de explo-ração do serviço, exatamente porque a elasé conferido o papel fundamental de promo-ver a competição no setor, diversificar a ofer-ta de serviços e, assim, dar ao usuário alter-nativas de escolha, contribuindo ainda para

As operadoras têm deveres de universalização eo Estado submete-se à continuidade

Necessidade de outorga para exploração doserviço

Regime de price cap durante pelo menos 3 anos

Concessão ou permissão

O direito de atuação nasce da outorga, que oEstado não é obrigado a dar

Licitação

Prazo: limitado conforme ato de outorga (20 anosno caso das concessionárias privatizadas do

Sistema Telebrás)

Obrigação de continuidade na prestação doserviço assegurada pelo Estado

As operadoras não têm esses deveres

Não há outorga para exploração do serviço, masapenas para direito de uso de bem público

(freqüências)

Liberdade de preços

Autorização

Tem direito de atuar desde que atenda requisitoseventualmente impostos

Preenchimento das condições estabelecidas. Podehaver licitação no caso de limitação técnica

(freqüências)

Caráter permanente, exceto no caso de uso defreqüências (prazo limitado) ou de interesse

público

Interferência estatal restrita à manutenção domercado

Regime PrivadoRegime Público

um deles, por meio das funções reguladora,organizadora, fiscalizadora e legisladoraoutorgadas à ANATEL pela AdministraçãoFederal7.

melhorar a qualidade dos serviços de tele-comunicações. A missão das concessioná-rias, porém, é um tanto mais complexa.

O contrato de concessão impõe às em-presas contratadas o dever de possibilitar oacesso de qualquer pessoa ou instituição deinteresse público aos serviços de telecomu-nicações, independentemente de sua locali-zação e condição sócio-econômica. Além dis-so, devem as concessionárias garantir a pres-tação ininterrupta dos serviços e a sua quali-dade, sem paralisações injustificadas. Essesrequisitos foram implantados pela própriaLGT, que atribuiu às concessionárias de ser-viços de telecomunicações obrigações de uni-versalização e continuidade, que se concreti-zaram por intermédio do Plano Geral de Metaspara Universalização do STFC e do PlanoGeral de Metas de qualidade para o ServiçoTelefônico Fixo Comutado (Decreto nº 2.592/98 e Resolução nº 30/98, respectivamente).

As metas exigidas dos serviços presta-dos em regime público constituem o que o

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inciso IV do artigo 175 da Constituição Fe-deral definiu como a obrigação de manter ser-viço adequado8, que a lei de concessões, emseu artigo 6º, § 1º, conceitua como “o quesatisfaz as condições de regularidade, con-tinuidade, eficiência, segurança, atualida-de, generalidade, cortesia na sua prestaçãoe modicidade das tarifas”, e impõe sua ne-cessária observância a todas as empresasconcessionárias e permissionárias.

Desta feita, a concessão e a permissãocobram das empresas envolvidas atençãoespecial sobre a atividade por elas desen-volvidas, a fim de reprimir sua característi-ca de atividade econômica, privada, em proldo grande interesse público envolvido nosserviços que se propõem a oferecer. Essagrande interferência da Administração Pú-blica na prestação de serviços de telecomu-nicações por meio dos institutos da conces-são e da permissão é que definem, em abso-luto, o seu conteúdo de serviço público. Emoutras palavras, serviço público de telecomu-nicações é todo aquele prestado mediante contra-to de concessão ou termo de permissão.

Quanto aos serviços de telecomunica-ções submetidos ao regime público, a LGTse limitou a incluir entre os serviços presta-dos sob regime público as diversas modali-dades de serviço telefônico fixo comutado,sem, contudo, restringir que outros serviçosfossem incluídos nessa classificação. A deli-mitação fez-se pelo Decreto nº 2.534/98, de-nominado Plano Geral de Outorgas, que de-terminou o oferecimento do serviço telefônicofixo comutado nos regimes público e privado(art. 1º), aplicando-se aos demais serviços detelecomunicações o regime privado (art. 4º).

A exploração do serviço telefônico fixocomutado pode, então, ser delegada pormeio de concessão ou permissão, submeten-do a empresa prestadora ao regime de direi-to público e exigindo desta o cumprimentodos objetivos de universalização e continui-dade, e ainda por meio de ato de autoriza-ção, sob regime privado, eximindo das em-presas autorizadas as obrigações impostasa suas concorrentes de Direito Público.

Se não é exigida das empresas autoriza-das do serviço telefônico fixo comutado, co-nhecidas como “empresas-espelho” e “em-presas-espelhinho”, a prestação do “servi-ço adequado” mencionado na Constituição,não se pode dizer que os serviços realiza-dos por elas sejam concebidos como servi-ços públicos. Então, são serviços públicos tão-somente os serviços prestados pelas empresas detelefonia fixa submetidas ao regime jurídico dedireito público.

Mas os contratos de concessão foram,contraditoriamente, também utilizados paradelegar a exploração dos serviços de telefo-nia celular. A Lei Mínima, de julho de 1996,determinou que a prestação do serviço mó-vel aconteceria mediante outorga de conces-são e embasou a licitação da Banda “B”, emabril de 1997. Mesmo depois das diretrizesintroduzidas pela LGT ante a instabilidadedo período de instalação do programa deprivatização, a concessão foi ainda utiliza-da para delegar a exploração das empresasda Banda “A”, decorrentes da privatizaçãodo Sistema Telebrás. A grande maioria dasempresas prestadoras de serviço celular é,destarte, concessionária de serviços de tele-comunicações.

Já foi visto que o instituto da concessão ésuficiente para definir a classificação deuma atividade como serviço público, prin-cipalmente no setor de telecomunicações,que obriga as concessionárias a garantirema continuidade e universalização dos servi-ços prestados. Resta definir se a celebraçãodo contrato de concessão afasta a liberdadeconferida às empresas de telefonia celular,pela submissão destas ao regime privadodeterminada no Plano Geral de Outorgas.A LGT, em seu artigo 83, parágrafo único,assim explica a concessão de serviços detelecomunicações:

“(...) é a delegação de sua prestação,mediante contrato, por prazo determi-nado, no regime público, sujeitando-sea concessionária aos riscos empresa-riais, remunerando-se pela cobrançade tarifas dos usuários ou por outras

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receitas alternativas e respondendodiretamente pelas suas obrigações epelos prejuízos que causar”.

A afirmação expressa na LGT de que aconcessão de serviços de telecomunicaçõesdeve caracterizar submissão ao regime pú-blico afasta a hipótese do artigo 175, I, daConstituição Federal. Ou seja, definitivamen-te não é o caso de prestação de serviços pú-blicos, mediante concessão, em regime jurí-dico de direito privado, porque a lei expres-samente negou essa possibilidade. Assim,as empresas concessionárias do serviço móvelcelular são legítimas prestadoras de serviçospúblicos, sob regime jurídico de Direito Público(embora o Plano Geral de Outorgas não te-nha admitido essa possibilidade), e devemser submetidas ao compromisso de univer-salização e continuidade de seus serviços,previsto no artigo 63, parágrafo único, daLGT9 embora o Plano Geral de Metas deQualidade para o Serviço Telefônico FixoComutado e o Plano de Metas para a Uni-versalização do STFC, como os nomes ex-plicitam, só sejam aplicáveis ao serviço detelefonia fixa.

Em suma, serviço público de telecomunica-ções é todo serviço prestado mediante concessãoou permissão da Administração Pública, pelasempresas de serviço telefônico fixo comutado oude serviço móvel celular submetidas ao regimejurídico de direito público .

Afigura-se viável tal conclusão, apesarde toda a dificuldade de conceituação e de-limitação do que seria serviço público emmeio à nova organização da AdministraçãoPública brasileira. Muitos autores, inclusi-ve, já abandonaram essa denominação, pre-ferindo utilizar outros termos, como “servi-ço estatal”, “serviço governamental”, “ser-viço universal” ou “serviço de interesse co-letivo”, mais abrangentes e menos compro-metedores da atuação do Poder Público. Noentanto, ainda possui relevância conside-rável o estudo do termo serviço público, por-que ele compromete a delimitação de outrostemas jurídicos de grande aplicação práti-ca, como o conceito de “servidor público” e

a delegação de competência, pela Constitui-ção Federal, das atividades estatais aos ór-gãos públicos e entes federados.

Nem tudo, portanto, é passível de mo-dernização. Está certo que é necessário fle-xibilizar a interpretação de antigos institu-tos, ou até mesmo afrouxar o apego ao posi-tivismo jurídico exacerbado, para garantiruma implementação efetiva da Administra-ção Gerencial e de seus benefícios para opaís. Contudo, não se pode permitir pen-dências e contradições que restrinjam osdireitos da população ou provoquem dúvi-da e desconfiança quanto à extensão e oslimites da cidadania.

É imprescindível a reconstrução do Direi-to Administrativo brasileiro em sua nova fase;uma reforma geral, ou ainda melhor, uma res-tauração minuciosa, delicada, incontroversa.O Estado de Direito, agora mais do que nun-ca consolidado, deve mais do que zelar pelosdireitos constitucionais dos cidadãos. É suaobrigação fornecer meios para que eles pró-prios possam exercer a sua cidadania.

Notas1 Redação original: “Art. 21. Compete à União:

(...) XI – explorar, diretamente ou mediante conces-são a empresas sob controle acionário estatal, osserviços telefônicos, telegráficos, de transmissão dedados e demais serviços públicos de telecomunica-ções, assegurada a prestação de serviços de infor-mações por entidades de direito privado atravésda rede pública de telecomunicações explorada pelaUnião; XII – explorar, diretamente ou medianteautorização, concessão ou permissão: a) os servi-ços de radiodifusão sonora, de sons e imagens edemais serviços de telecomunicações; (...)” Novaredação “Art. 21. Compete à União: (...) XI – explo-rar, diretamente ou mediante autorização, conces-são ou permissão, os serviços de telecomunicações,nos termos da lei, que disporá sobre a organizaçãodos serviços, a criação de um órgão regulador eoutros aspectos institucionais; XII – explorar, dire-tamente ou mediante autorização, concessão oupermissão: a) os serviços de radiodifusão sonora ede sons e imagens; (...)”.

2 Art. 177 da CF/88: “Constituem monopólioda União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas depetróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos flui-

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dos; II – refinação do petróleo natural e estrangeiro;III – a importação e exportação dos produtos ederivados básicos resultantes das atividades previs-tas nos incisos anteriores; IV – o transporte marítimodo petróleo bruto de origem nacional ou de deriva-dos básicos de petróleo bruto de origem nacional oude transporte, por meio de conduto, de petróleo bru-to, seus derivados e gás natural de qualquer origem;V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o repro-cessamento, a industrialização e o comércio de mi-nérios e minerais nucleares e seus derivados (...)”.

3 Idem.4 Art. 21 da CF/88: “Compete à União: (...) XII

– explorar, diretamente ou mediante autorização,concessão ou permissão: a) os serviços de radiodi-fusão sonora e de sons e imagens; b) os serviços einstalações de energis elétrica e o aproveitamentoenergético dos cursos de água, em articulação comos Estados onde se situam os potenciais hidroener-géticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a in-fra-estrutura aeroportuária; d) os serviços de trans-porte ferroviário e aquaviário entre portos brasilei-ros e fronteiras nacionais, ou que transponham oslimites de Estado ou Território; e) os serviços detransporte rodoviário interestadual e internacionalde passageiros; f) os portos marítimos, fluviais elacustres; (...)”.

5 Ver nota explicativa nº 1 .6 Art. 175 da CF/88 (transcrito no parágrafo 46

deste texto), em seu parágrafo único: “A lei dispo-rá sobre: I – o regime das empresas concessionáriase permissionárias de serviços públicos, o caráterespecial de seu contrato e de sua prorrogação, bemcomo as condições de caducidade, fiscalização erescisão da concessão ou permissão; II – os direi-tos dos usuários; III – política tarifária; IV – aobrigação de manter serviço adequado”.

7 Inspirada em tabela publicada no PanoramaSetorial da Gazeta Mercantil, 1999.

8 Ver nota explicativa nº 6 .9 “Art. 63: Quanto ao regime jurídico de sua

prestação, os serviços de telecomunicações classifi-cam-se em públicos e privados. Parágrafo único. Ser-viços de telecomunicações em regime público é oprestado mediante concessão ou permissão, comatribuição a sua prestadora de obrigações de uni-versalização e de continuidade”.

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Lúcio Chamon Junior

De tempos em tempos, novas questõessão trazidas à baila por Acórdãos dos Tri-bunais e, refletindo determinada tendênciadoutrinária ou posicionamento científico,permitem-nos, mais do que nunca, enten-der a importância da formação de uma ar-gumentação jurídico-filosófica como pilar deuma decisão.

Assim é que, se tomarmos como exem-plo a Alemanha, perceberemos que os deba-tes em torno da noção de dolo eventual fo-ram inflamados com a decisão de um casopelo BGH: o de dois sujeitos que enforca-ram um terceiro com uma correia de courosem querer, todavia, matá-lo (cf. ROXIN,1997, p. 424).

Esses casos são importantes como for-ma de alertar-nos para o fato de que o casoconcreto apresentado e reconstruído argu-mentativamente (GÜNTHER, 1988, p. 229et seq.) no bojo do processo serve como pon-to de partida para discussões dogmáticassempre elucidativas, especialmente nos hardcases, tomando aqui emprestadas as palavrasde Ronald DWORKIN1 (1999, p. 146 et seq.).

Nos últimos tempos, a doutrina brasilei-ra se viu em polvorosa e a discussão se acen-deu quando da decisão do TJRS que, seguin-do o parecer do Procurador de Justiça parao caso, Lenio Streck, determinou uma relei-tura do § 4o, IV, do art. 155 do Código Penalbrasileiro, a partir de uma pretensa inter-pretação constitucionalmente adequada.

Paradigma e aplicação do Direito: por umacompreensão constitucionalmenteadequada do Direito Penal sob aperspectiva de um caso concreto

Lúcio Chamon Junior é Professor de Socio-logia Jurídica e Direitos Humanos da Faculda-de de Direito de Sete Lagoas. Membro funda-dor do Instituto de Ciências Penais — ICP emBelo Horizonte e Mestrando em Ciências Pe-nais pela UFMG.

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Estabelece o Código Penal, no que dizrespeito ao crime de furto, que, uma vez estecometido mediante concurso de pessoas,essa circunstância qualifica o crime conse-qüentemente aumentando não só o máxi-mo, mas também o mínimo abstratamentecominado à figura simples do caput. Assimé que o furto simples tem cominada penamínima de um e máxima de quatro anos,tendo a forma qualificada nos moldes do § 4ºdo mesmo artigo pena mínima de dois emáxima de oito anos. Percebe-se, assim, niti-damente, que a pena do furto qualificado abs-tratamente prevista é, em linguagem matemá-tica, duas vezes maior tanto no que diz res-peito ao mínimo bem como ao máximo.

Por outro lado, o texto legal, no art. 157,traz-nos que o concurso de pessoas quandodo crime de roubo não permite a verificaçãode qualificação, mas sim de uma causa deaumento de pena que pode majorá-la, deacordo com o caso concreto, de um terço àmetade — § 2º. Devemos, então, ressaltarque a pena privativa de liberdade comina-da ao roubo simples, ao qual se aplica a re-ferida majorante, é mínima de quatro e má-xima de dez anos de reclusão. A título deesclarecimento, mas sem referência diretacom o caso, alertamos também para a exis-tência da figura do roubo qualificado. Tra-ta-se do chamado latrocínio pela doutrina ese encontra regulamentado no § 3º do entãoartigo.

Constata-se, portanto, que, enquanto oconcurso de pessoas no furto duplica apena, qualificando o fato, por sua vez noroubo há um aumento de pena de um terçoà metade, sem influir em qualquer mínimoou máximo abstratamente cominados.

Isso levou o eminente Procurador de Jus-tiça do Rio Grande do Sul a entender queuma leitura que mantivesse a qualificaçãolegalmente definida seria inconstitucionaljustamente por não respeitar uma compre-ensão constitucional, vez que violado esta-ria o princípio da isonomia. Entendimentoesse foi seguido pelo acórdão do Tribunaldaquele Estado, já fazendo surgir ecos em

terras distantes, como no Tribunal de Alça-da de Minas Gerais2.

Adiante, realizaremos a reconstrução daargumentação desenvolvida por Streck demaneira a assinalar os pontos mais relevan-tes para a discussão, bem como a devidadivergência existente entre o TJRS — e o re-ferente Procurador — e o entendimento doDesembargador de Minas.

Pautando-se em uma leitura principio-lógica do Direito, o parecerista do caso en-tende que mantida e desenvolvida deve sera chamada “constitucionalização do direi-to penal”. É assim que pretende levar adi-ante a interpretação da qualificadora emapreço e nessa trilha é desenvolvido o seuraciocínio.

Nesse sentido, afirma o autor que enten-de “a partir da doutrina de Friedrich Mül-ler, Eros Roberto Grau e H. G. Gadamer quea norma é sempre o resultado da interpreta-ção de um texto jurídico”. É verdade quenorma não é o texto legal, mas capaz de serobtida mediante interpretação de texto le-gal, sem todavia se esgotar o Direito neste.A problemática de uma tentativa reducio-nista, como a que pode advir de uma inter-pretação equivocada do trecho citado, cen-tra-se no fato de que o leitor menos atentopode ser levado a confundir norma comosempre referente a um texto (lei), o que, to-davia, não pode ser considerado, sobretudoapós o giro hermenêutico realizado porDworkin em que não mais se entende o or-denamento como formado por tão-somenteregras — como pretendeu Kelsen3 (1996,p. 215 et seq.) —, mas sim composto de re-gras e princípios, sendo estes entendidos en-quanto fruto de uma história social reinter-pretada criticamente.

Parece-nos, todavia, que é nesse sentido,o de uma visão principiológica, que o autorpretendeu sua argumentação, pois refere-se,sempre, ao princípio da isonomia e ao prin-cípio da proporcionalidade como centraispara a superação da controvérsia. Tanto éverdade que o Procurador afirma seguir eacompanhar a moderna teoria constitucio-

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nal, mencionando Canotilho, Hesse, Mül-ler e Bandeira de Mello, entre outros.

Voltando à comparação do furto frenteao roubo, afirmou outrora o autor que “oque muda é tão-somente a denominação; nocaso de furto, o concurso de pessoas é chamadode qualificadora; no caso do roubo, a participa-ção de mais de duas pessoas é chamada causa deaumento de pena...”. Destarte, para Streck, nocaso em tela há uma diferença tão-somentede nomenclatura, sem qualquer reflexo dog-mático, sendo que, apresentando-se subs-tancialmente semelhantes, também o mes-mo tratamento deveria ser dispensado tan-to a uma quanto à outra.

Continua na construção do raciocínioafirmando que tais elementos hão de ser in-terpretados e aplicados tendo em vista oprincípio da isonomia: enfim, deveria o Ju-diciário “elaborar uma releitura das leis sobos parâmetros da devida proporcionalida-de prevista na Constituição Federal”. A ra-zão da necessidade de uma proporcionali-dade reside, para o autor, não somente nofato de ambas causas que elevam a pena sereferirem ao concurso de pessoas, mas, maisque isso, repita-se, por possuírem a mesma“natureza jurídica”, tratando as diferençascomo meras distinções de nomenclatura.

A proporção, pela argumentação erigi-da, deve haver em decorrência da igualda-de de situações. Pleiteando a inconstitucio-nalidade do art. 155, § 4o, IV, traz-nos aindao fato de que no furto o concurso de pessoascoloca em risco somente o patrimônio, en-quanto no roubo “a presença de mais pes-soas coloca em risco sobremodo a integri-dade física da vítima. Não obstante isto, oCódigo Penal valoriza mais a coisa (proprie-dade privada) que a vida/integridade física”.

Mais adiante, o raciocínio nos remete àconclusão alcançada: em desrespeito aoprincípio da isonomia — em razão da nãoexistência de proporcionalidade entre ele-mentos iguais, ainda que em circunstânciasdistintas —, a qualificadora específica dofurto, embora vigente, não é válida. Isso por-que, para o autor, o crime de roubo, sendo

mais gravoso que o furto, permite que a penaseja aumentada tão-somente de um terço àmetade, quando no furto, em que a gravida-de seria menor, a pena estaria duplicada pelomesmo fato. “De maneira bem mais simples,pode-se dizer que, para o ‘legislador’ brasi-leiro, cometer um furto mediante participa-ção de mais de uma pessoa é circunstânciamais gravosa que cometer um roubo em cir-cunstâncias semelhantes!!!”

Quando da conclusão, afirmou aindaque,

“enquanto o poder encarregado defazer as leis não elaborar as necessá-rias readaptações legislativas, cabe aoPoder Judiciário, em sua função inte-gradora e transformadora, típica doEstado Democrático de Direito, efetu-ar as correções das leis, utilizando-sedos modernos mecanismos herme-nêuticos, como a interpretação confor-me à Constituição...”.

E, por concluir, entende que não se podeaplicar o § 4o, IV, do art. 155, mas que, emtotal respeito a uma interpretação constitu-cionalmente adequada, deve-se aplicar, me-diante emprego da analogia, quando da ocor-rência de concurso de pessoas no crime defurto, o aumento estabelecido para a figurade concurso prevista no art. 157, § 2o.

O Desembargador Amilton Bueno deCarvalho, Relator do caso, não só adota aposição de Streck, como também doutrina,no sentido de que o princípio da isonomia— “isos- igual, e nomos- lei: quer dizer igual-dade perante a lei” — deve ser seguido, re-chaçando a aplicação da qualificadora. Pre-tendendo uma análise textual, alcança oDesembargador-Relator uma conclusão fá-cil: “Tudo idêntico: no qualificar, no furto, eno majorar, no roubo, ‘concurso de duas oumais pessoas’”. Porém, o eminente magis-trado se depara, ao seu ver, com situaçãoinsuportável, já que “os iguais são tratados,pois, desigualmente”, porque, enquanto oconcurso no furto duplica a pena, quandodo roubo, tão-somente a majora no máximoaté a metade.

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“Aliás — argumenta ainda o De-sembargador-Relator — estaria atéjustificado se ocorresse o inverso: rou-bo, delito mais sério ao agredir vio-lentamente a pessoa, mereceria (esta-ria justificado, leia-se) até percentualmaior (leia-se pena mais forte) do quefurto”.

No mais, segue o entendimento do Pro-curador de Justiça, aceitando a aplicaçãoanalógica do § 2o do art. 157. No mesmo sen-tido, e de acordo, posiciona-se o Presidente,e Revisor, Desembargador Paulo MoacirAguiar Vieira.

Já o Desembargador-Vogal Aramis Nas-sif, embora se alinhe também no sentido detodos acima citados, teve seu entendimentomodificado, pois, antes, rejeitava a tese. Emmomentos anteriores, o então Desembarga-dor-Vogal lembrava que, se qualificado fos-se o crime de roubo nos moldes e circuns-tâncias do furto, alcançar-se-ia pena cujoquantum seria

“inviável, injusto e desproporcional(...) Este o valor que o legislador quisevitar: a pena para o roubo em pata-mar tão elevado, se qualificado fosse.Vejo, na distinção entre qualificadorae causa de aumento, a inteligência dolegislador para evitar o dano penal aocondenado pela rapina violenta”.

Quando da conclusão de seu posiciona-mento anterior, colava ainda um trecho deFigueiredo Dias, em que este, sendo daque-la melhor linhagem lusitana, afirma quecontinua “a preferir os caminhos da dog-mática que aí está e progride à sedução de‘dogmáticas alternativas’ que se podem, atodo momento, volver em alternativas à dog-mática, incompatíveis com a regra do Esta-do de Direito...”.

Todavia, também seduzido pelos argu-mentos do Procurador e demais julgadoresdo caso, acabou por entender que há de seaplicar a analogia, vez que no roubo a cir-cunstância é mais grave e permite aumen-to de pena proporcionalmente inferior aofurto.

Assim é que o Acórdão da Apelação Cri-minal n. 70000284455 da 5a Câmara Crimi-nal do TJRS foi, pela unanimidade, pela nãoaplicação da qualificação, mas sim pela in-terpretação que lança mão da analogia para“beneficiar” o réu.

Em sentido semelhante, temos o Desem-bargador Alexandre Victor de Carvalho, que,na Apelação Criminal n. 313.0121 julgadapelo TAMG, também entendeu que incons-titucional seria a qualificadora do furto:

“Acontece que, malgrado a claraproximidade entre as hipóteses aquitratadas (furto qualificado por concur-so de agentes e roubo majorado pelamesma condição), a lei ordinária aelas dispensa tratamento injustifica-damente desigual e, por isso, deixa demerecer aplicação mediante uma in-terpretação conforme à Constituição”.

Divergindo, porém, do Acórdão gaúcho,entendeu o julgador mineiro que não se devepretender a aplicação do aumento de penaestabelecido para o roubo visto que se trata-ria de analogia in mallan partem. A esse pon-to retornaremos adiante.

Realmente, a elaboração doutrinária re-alizada pelo culto Procurador do Rio Gran-de do Sul é digna de ser reconhecida comouma efetiva tentativa de realizar uma inter-pretação constitucionalmente adequada.Para tanto, lança mão de autores respeita-dos e cujas lições não podem ser desconsi-deradas quando de uma reconstrução para-digmática de questões tocantes ao Direito.

Todavia, e aqui se encontra nosso pri-meiro ponto divergente frente aos escritosora sob análise, preferimos seguir correntedoutrinária que julgamos mais acertadapara um enfoque aos moldes de um EstadoDemocrático de Direito. Ao lançar mão deautores como Canotilho e Bandeira de Mello,exemplificadamente, o autor realiza umaanálise sob um pano de fundo não maisadequado e de acordo com o momento atualdo Direito.

A importância de um paradigma se deveao fato de que é este o “cenário” intersubje-

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tivamente compartilhado, significando, se-gundo Klaus Günther, que “un paradigmecontient une interprétation globale cohéren-te des normes et des intérpretations norma-tives relatives à certaines descriptions gé-néralisées de situation” (1992, p. 269-297).Assim é que Habermas (1987, p. 31), desdea sua Teoría de la acción comunicativa, expli-citava-se no sentido de ser o mundo da vida“delimitado por la totalidad de las interpre-taciones que son presupuestas por los par-ticipantes como un saber de fondo”4. Nãodistante está Günther quando complementa:“L’interprétation globale cohérente est liée àun ensemble determiné d’intérpretations desituation généralisées et colectivement par-tegées” (1992, p. 269-297).

Assim, se pretendemos realizar uma res-posta no mínimo compromissada ao Esta-do Democrático de Direito, devemos trilharo caminho aberto por R. Dworkin, K. Gün-ther e J. Habermas. A teoria da interpreta-ção de R. Alexy (1997, p. 136) entendemosser inadequada a um Estado Democráticode Direito porque é típica de um Estado deBem-Estar Social: ao tratar os princípios ju-rídicos como comandos de otimização —ponderáveis no caso concreto —, o autorrealiza uma leitura eticizante do Direito. Aopretender referida leitura, estar-se-ia retor-nando ao Estado de Bem-Estar em que aqui-lo que era bom para nós, como grupo social, éque guiava não só o debate justificante, mastambém o de aplicação jurídica. Nesse sen-tido, por exemplo, é também a doutrina deCanotilho (1993, p. 171 et seq.), que pareceseguir toda a tradição antes reinante no Tri-bunal Constitucional Alemão e que se con-vencionou chamar de “Jurisprudência dosValores”. Suponhamos que em determina-do caso concreto certo sujeito, ao tentar sub-trair o carro de uma casa, vê-se surpreendi-do pelo dono do automóvel, que, disparan-do contra o veículo, vem a matar dolosamen-te o assaltante. Se tratarmos essa questãocomo uma ponderação de valores, estare-mos, sem dúvida alguma, abrindo no míni-mo margem para a indeterminação absolu-

ta: o que vale mais nesse caso, a vida ou opatrimônio? Pior que isso, estar-se-ia per-mitindo a infiltração de uma hierarquia devalores no campo de Direito, significandouma mutação insuportável do código doDireito que é binário (Habermas) e não gra-dual como pretende Alexy. Essa orientaçãotem raízes na filosofia fenomenológica deM. Scheller e N. Hartmann, donde se pode-ria concluir que a teoria de H. Welzel é tam-bém típica desse período, o que pode ser re-fletido por sua noção do fim do Direito Pe-nal como tutela dos bens ético-socialmentevaliosos: “El Derecho Penal quiere protegerantes que nada determinados bienes vitalesde la comunidad (valores materiales) (...) Lamisión central del Derecho Penal reside,pues, en asegurar la vigencia inquebrantablede estos valores de acto...”(1976, p. 12).

Após essa breve incursão, devemos ain-da nos distanciar de uma outra leitura rea-lizada pelo parecerista. Ao pretender imporao Direito Penal uma palpável medida pro-porcional entre as fases de aplicação dapena, o autor permite-nos verificar quãoimpregnado é ainda o pensamento do Di-reito pelo positivismo.

Não dizemos aqui que o pano de fundoda discussão instaurada seja o positivismo,mesmo porque isso seria um equívoco denossa parte, já que com o próprio positivis-mo uma leitura principiológica como a pre-tendida por Streck jamais seria possível:basta lembrarmos da teoria de Kelsen e suafalta de operacionalidade quando presen-tes novos elementos não textualmente ex-plícitos.

Por outro lado, o eminente Procurador,ao se voltar a questões de proporcionalida-de, “perigosidade” e “gravidade” dos cri-mes e respectivas penas, esquece-se de queé extremamente inviável trabalhar com de-terminadas categorias em abstrato no cam-po de aplicação do Direito. É o caso concre-to e as circunstâncias concretas reconstruí-das argumentativamente no curso do pro-cesso que nos permitem concluir pela inter-pretação das características do próprio fato5.

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Uma pretensa equiparação e ponderação emníveis abstratos é tão difícil que nos faz lem-brar determinada crítica imposta à teoria dainterpretação de Kelsen. Para este a inter-pretação pela Ciência do Direito — comoato de conhecimento — não faria mais quedeterminar a moldura de todas leituras pos-síveis de determinada norma levando emconsideração o sentido das palavras emsuas múltiplas conexões e sem qualquer re-ferência ao caso concreto (1996, p. 387 etseq.). A interpretação seria uma atividadeque iria pretender esgotar as múltiplas lei-turas possíveis de determinado texto.

A falha desse pensamento, como asse-vera Neuenschwander Magalhães (1999,p. 429 et seq.), encontra-se no fato de ser im-possível, a priori, estabelecer todos os senti-dos possíveis de certo texto. Seguindo umalinha bem ao gosto da filosofia analítica,Kelsen se esquece de que, em abstrato, e semo alicerce fornecido pelo caso concreto, éimpossível estabelecer o sentido atribuívela determinada norma, isto é, interpretá-la.

Destarte, em certa medida cabe a mesmacrítica à análise realizada pelo Procuradore seguida pelo TJRS. Não obstante esse pon-to, outro que nos faz ainda lembrar o positi-vismo: era comum sob esse paradigma cien-tífico lidar com aquilo capaz de ser medido,mensurado, pesado e determinado, muitoem razão da influência exercida pelas ciên-cias naturais e exatas daquele período. To-davia, e agora décadas à frente desse racio-cínio, devemo-nos lembrar que a Ciência,como um subsistema social (Luhmann), nãomais se submete a compreensões semelhan-tes às do positivismo, seja em razão, justa-mente, da evolução do sistema, no sentidoda teoria luhmanniana, seja em função deum rompimento paradigmático, em umacompreensão habermasiana. O pensamen-to positivista se vinculava a questões mate-máticas como maneira de garantir e afirmaro caráter científico do estudo do Direito, mascom isso não realizava mais que uma “ses-são de análise” na pretensão de alcançaruma auto-afirmação.

Superada essas duas questões funda-mentais, podemos adentrar à análise docaso concreto. Defendendo a aplicação doprincípio da isonomia, Streck conclui quetanto a qualificadora quanto a causa de au-mento teriam, ao menos no caso concreto, amesma “natureza jurídica”.

Tentando aqui superar a utilização determos como “natureza jurídica”, que nadamais refletem a tentativa fracassada da mo-dernidade em classificar — como as ciên-cias biológicas? — os institutos jurídicos deacordo com suas características, navegare-mos por outros argumentos. Primeiramentenão se pode pretender enxergar como iguaisaquilo que não os são. A qualificadora, aoelevar o mínimo e o máximo de uma penaabstratamente cominada, porque legalmen-te determinada, incide em uma das três fa-ses de dosimetria quantitativa da pena.Automaticamente está, então, vinculado ojuiz a analisar as questões — circunstân-cias judiciais do art. 59 — e determinar apena-base sob a ótica do novo quantum de-terminado pela qualificadora (LOPES,1993, p. 220 et seq.).

A causa de aumento, por sua vez, vem aser aplicada na terceira fase, sendo geral-mente representada por frações ou múlti-plos. A razão disso decorreu do fato de seter adotado na legislação pátria, como é sabi-do, o sistema tripartido de pena (N. Hungria)em prejuízo ao sistema bipartido (R. Lyra).

Mediante uma simples olhadela, pode-se perceber que não se trata de institutosiguais, que mereçam um tratamento igual.Isso porque enquanto a causa de aumentopode elevar a pena para além do máximocominado, a qualificadora tem tão-somenteo condão de elevar esse máximo. Além dis-so, determinada causa de aumento pode atédeixar de ser aplicada pelo juiz se concor-rente com outra também cominada na ParteEspecial. Por outro lado, é impossível dei-xar de aplicar a qualificadora quando ocor-ra a circunstância descrita tipicamente. Es-sas são algumas características que nos per-mitem constatar que ambos institutos não

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podem ser tratados de maneira idêntica,pois, como brevemente analisado, não se tra-ta de estruturas similares.

Não obstante, o parecerista entende quetais institutos, no caso concreto, deveriamser enfocados sob o princípio da isonomia,sendo considerada inconstitucional a nor-ma oriunda do art. 155, § 4º, IV, pela viola-ção ao princípio da proporcionalidade fren-te ao art. 157, § 2º.

Aqui devemos retomar a linha anterior-mente iniciada: além de ser inadequado umpensamento em abstrato, outra questão sefaz pertinente: o que é “proporcionalida-de”6? Podemos compreender esta como ade-quação dos meios aos fins, ou ainda, comouma estrita correspondência entre elementosiguais. Se entendêssemos proporcionalida-de como adequação dos meios aos fins, terí-amos que desenvolver uma teoria sobre apena e, muito longe de ser a questão em dis-cussão, não é nossa pretensão. Se compre-endermos proporcionalidade de acordocom o segundo sentido, também nada servepara a solução do caso, porque circunstân-cia qualificadora e causa de aumento depena são institutos bem diferentes. Nessesentido, poder-se-ia, então, falar em propor-cionalidade entre elementos diferentes. To-davia, o equívoco é manifesto: não se podesubmeter a uma mesma medida aquilo quepossui padrões de mensuração diversos.Não há como se referir a proporcionalidadeentre institutos distintos e, além disso, emabstrato. É claro que, em determinada hipó-tese concreta, poder-se-ia alegar que a mul-ta cumulativamente aplicada seria “despro-porcional” à pena privativa de liberdadedeterminada. Na verdade, o que nesses ca-sos ocorre é uma aplicação inadequada dassanções abstratamente previstas, tendocomo substrato o caso reconstruído no de-senrolar do processo. A utilização de expres-sões matemáticas, como “proporcional” emcasos como este, remete-nos ao pensamentopositivista e de base iluminista.

O que mais nos impede de concordar é aimpossibilidade de se estabelecer uma equa-

ção, fórmula ou função que nos permita en-contrar a devida proporção, quanto maisentre elementos heterogêneos. Além disso,a putativa controvérsia existente se dá pelofato de se operacionalizar em nível abstrato.

Se imaginarmos duas situações concre-tas e exemplificativas, porém possíveis deocorrer, podemos refutar a preocupação doparecerista no sentido de que o “legislador”estaria considerando “mais grave” o con-curso de pessoas no caso do furto.

Suponhamos que no exemplo 1 (E1) o su-jeito-agente, juntamente com seus compar-sas, subtrai do quintal de determinada pes-soa bens de pequeno valor, mas capazes depermitir a aplicação do art. 155. Não possu-indo o réu maus antecedentes, tendo sidopequeno o prejuízo da vítima, sendo favo-ráveis todas as demais circunstâncias judi-ciais, além de não existir qualquer agravan-te ou atenuante, bem como causas de au-mento ou de diminuição, a pena aplicadaseria de dois anos.

Imaginando situação quanto ao crime deroubo em que a aplicação se daria no míni-mo, no que tange à pena-base e causa deaumento (mínimo de 1/3), a pena aplicadaseria de cinco anos e quatro meses (E2).

Levando-se em consideração dois casos-problema hipotéticos (E1 e E2), embora ple-namente possíveis de serem verificados naprática, podemos perceber que, frente à penadeterminada pelo caput dos arts. 155 e 157,o acréscimo quando do roubo foi superiorao do furto em quatro meses.

Não queremos com isso estabelecer qual-quer relação de proporção, mas, pelo con-trário, refutar dito princípio nessa seara,pois isso poderia permitir entendimentoscomo o do autor que, repita-se, outrora afir-mou que “para o ‘legislador’ brasileiro, co-meter um furto mediante participação demais de uma pessoa é circunstância maisgravosa que cometer um roubo em circuns-tâncias semelhantes!!!” Quando se partepara uma análise que leva em consideraçãodados concretos, pode-se perceber que a as-sertiva acima não é adequada, mesmo por-

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que é tão-somente o caso concreto que servede alicerce ao juiz na aplicação de determi-nada norma, e não qualquer regra de pro-porcionalidade, mas sim um juízo de ade-quabilidade — appropriateness (Günther).

Percebe-se, portanto, que, de um pontode vista que leve em consideração o fato con-creto, isto é, uma perspectiva de aplicaçãonormativa, não há a pretendida discrepân-cia como outrora levantada e questionada.A razão de alcançarmos essa conclusão fun-da-se, sobretudo, pela via de análise do casoconcreto.

Assim, observa-se que, sob a perspecti-va de um discurso de aplicação, o fato háque ser, em primeiro momento, completa-mente descrito argumentativamente no bojodo processo, sendo que, em um segundo ní-vel, há que ser verificada a coerência nor-mativa, equivalendo dizer que deverá ser,em uma visão deontológica, aplicada a nor-ma, ou normas, adequada àquele caso con-creto. É essa a tese de Klaus GÜNTHER(1988, p. 229 et seq.) segundo a qual confli-tos normativos — exceto aqueles logicamen-te inconsistentes7 — “are not foreseeable sin-ce we know neither all application situati-ons nor all the possible constellations of fe-atures in situations” (p. 239).

Destarte, como concluído anteriormen-te, não há como, sob a égide de um discursode aplicação, com a devida exceção ressal-tada, trabalhar com um conflito abstrato denormas, pois, como normas prima facie apli-cáveis a um caso concreto, devem as mes-mas ser interpretadas, e consideradas con-correntes, frente ao caso concreto.

Não há qualquer inconsistência lógicaquando observamos o princípio da isono-mia e a qualificadora do furto ou a causa deaumento do roubo. Superando uma leiturade solução de controvérsias sob uma pers-pectiva de certo modo positivista, percebe-mos que o caso concreto em muito pode-nosajudar.

Todavia, o conflito de normas em umdeterminado caso há que ser trabalhado,argumentativamente, no que diz respeito ao

plano de adequabilidade àquele caso deter-minado, e não se pode referir, como discur-so de aplicação, à justificação daquela mes-ma norma. “The conflict of norms cannot bereconstructed as a conflict of validity claimsbecause conflicting norms or competing se-mantic variants enter a relation with one ano-ther only in a concrete situation”(GÜNTHER,1988, p. 239).

Diferentemente do discurso de aplicação,que diz respeito ao juízo de adequabilidade— sense of appropriateness —, o discurso dejustificação traz à tona razões que, como opróprio nome já nos permite concluir, justi-ficam não só a validade da norma, comotambém a própria norma.

Uma vez levantado pelo parecerista queo “texto da lei (art. 155, § 4o, IV, do CódigoPenal) continua vigente; sua validade, po-rém, é que vem confortada por uma inter-pretação constitucional” (grifo nosso), valea pena compreender o discurso de justifica-ção. É certo que a validade de determinadanorma há que ser aferida perante a Consti-tuição, enfim, perante o Direito entendidocomo um sistema constituído não só de re-gras, mas também de princípios.

Em um discurso de justificação adentramtodas aquelas questões que, perante o Direi-to, isto é, mediante de uma produção jurídi-ca do próprio Direito, apresentam razõescapazes de justificar a validade, no sentidode que são razões que preenchem a discus-são de produção por meio das condições insti-tucionais de um “devido processo democrático”.Não se deve, portanto, confundir o fato deque a validade da norma é aferida perante oDireito e não frente a razões que penetram adiscussão democrática.

O discurso de justificação não pode ser,também, confundido com o discurso de apli-cação, pois isso pode permitir inadequadascompreensões acerca daquilo devido em umcaso concreto: exemplo disso é a teoria deAlexy que, embora pretenda uma aplicaçãodeontológica, realiza uma leitura axiológi-ca. Para ALEXY (1993, p. 9 et seq.), os prin-cípios, partindo de uma crítica a Dworkin,

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seriam comandos de otimização, cuja apli-cação, no caso concreto, estaria determina-da pela atratividade — “interessante ounão” — frente a outros princípios. A proble-mática dessa concepção — seguida inclusi-ve por Canotilho — é o tratamento dispen-sado aos princípios como valores — aquilomais “interessante” ou “atrativo” — e nãocomo normas — aquilo que é “devido”8.

Essa maneira de pretender a construçãode uma teoria da interpretação pode até serparadigmaticamente enfocada sob a óticade um Estado de Bem-Estar Social, épocaque influenciou e permitiu o surgimento da“Jurisprudência dos Valores” na Corte Cons-titucional Alemã. Todavia, essa perspecti-va é extremamente eticizante, típica do Wel-fare State. A visão republicanista marcavaesse paradigma, sendo que, como afirmaHabermas, naquele período “la política seconcibe como una forma de reflexión de unentramado de vida ético”(1999, p. 231). Avisão de mundo daquele período era mar-cada por um alargamento do ético: daquiloque é interessante, bom, gera bem-estar a nósconsiderados como determinado grupo. Apluralidade existente era subjugada a umsegundo plano e não considerada sequerquando da aplicação do Direito, já que típi-ca era uma leitura axiológica que refletia aentão visão de mundo compartilhada. Nes-se sentido, e exemplificadamente, pode-seperceber, na doutrina penal, a já referida te-oria do bem jurídico desenvolvida porWelzel, bem como ainda a teoria da culpa-bilidade levada a cabo, em sua última for-ma, por E. MEZGER (1956, p. 195-217).

Pois bem, em um Estado Democrático deDireito a interpretação jurídica não maispode ser concebida como um exercício éti-co, senão como uma aplicação do Direitoadequada ao próprio Direito, no sentido deque a norma, diferentemente de Alexy, háque ser entendida como norma (devido) enão como valor (atrativo).

A discussão de questões éticas, repita-se, daquilo que é bom e que também se referea projetos de auto-realização, não deixa de

ser relevante, mas, atente-se, há que ser le-vada em consideração em um discurso dejustificação da norma. Os valores existentesem uma sociedade como a atual são múlti-plos: não se pode falar em perda de valoresou em sua rarefação. Se se proceder dessaforma, estar-se-á atuando de acordo comuma visão típica do Estado de Bem-Estar: apressuposição de um standard a ser seguidocomo o “correto” na vida ética — e tambémjurídica, por via de conseqüência. Na consi-deração de um pluralismo, valores hão queser levados em conta quando de uma dis-cussão, v.g., legislativa, mas não judicial.

Além de razões éticas, no discurso dejustificação também se fazem presentes ra-zões pragmáticas e morais. Enquanto as ra-zões éticas dizem respeito àquilo que é bomao grupo, as razões morais pretendem-sereferir ao justo, a todos. Quanto às razõespragmáticas, podemos entendê-las comoreferentes a questões políticas, econômicas,educacionais, etc. Todavia, não se pretendeafirmar aqui que qualquer razão pragmáti-ca seja, v.g., alheia a questões éticas: nadanos impede verificar a implementação deuma política de bem-estar, que leve em con-sideração uma leitura de meios e fins e tam-bém de projetos de auto-realização.

Dessa forma, razões pragmáticas, éticase morais são capazes de justificar a norma.Tais razões, e aqui fazemos bem em explici-tar, não concedem de per si a validade, umavez que esta há que ser aferida perante oDireito, mas que, justamente, permite-nosjustificar a norma válida.

Assim, se empregarmos duas expressõesda teoria dos sistemas de Luhmann, embo-ra seja esta epistemologicamente e de orien-tação distinta ao raciocínio aqui desenvol-vido, podemos elucidar o que estamos a afir-mar.

Se a sociedade moderna é uma socieda-de complexa, no sentido de existirem inú-meras possibilidades a serem levadas emconta e selecionadas pelo sistema social, ofato de esse mesmo sistema selecionar, emdeterminada situação, uma única alternati-

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va entre as várias existentes demonstra queos sistemas sociais modernos são contingen-tes, no sentido de que poderia esse mesmosistema ter selecionado outra que não aque-la alternativa. Assim, complexidade — exis-tência de várias possibilidades — e contin-gência — que se refere a um não estabeleci-mento de uma relação de causalidade e ne-cessidade — são duas noções inerentes àmodernidade. Nesse sentido, sendo o Direi-to, para LUHMANN (1983, p. 45), um siste-ma social funcionalmente diferenciado detodos os demais subsistemas sociais, tam-bém será, portanto, um sistema complexo econtingente9.

Podemos, então, afirmar que o fato de oLegislativo ter, pelo devido processo legis-lativo, orientado-se no sentido de reconhe-cer determinada expectativa, isso se deu emum contexto complexo. Equivale dizer quea expectativa normativa, outra expressão deLuhmann, chancelada poderia não ter sido aadotada, e sim uma outra — o que inclusivedemonstra o paradoxo do sistema social.

Destarte, retomando a linha de discus-são até então traçada, podemos perceber queas razões pragmáticas, éticas e morais po-dem, historicamente, justificar determinadaorientação legislativa. Todavia, uma vez quea norma válida e justificada por um devidoprocesso legislativo será considerada váli-da perante o Direito, não há que se preten-der descartar qualquer discurso de justifi-cação da própria norma. É claro que não sepode pretender fazer do discurso de aplica-ção, no curso do processo, uma discussãoacerca de razões políticas (cf. DWORKIN,1999a, p. 147 et seq., 1999b, p. 261-269. cf.ainda HABERMAS, 1998, p. 274 et seq.) ouéticas, mas isso não nos impede trazer ra-zões que, ainda que novas, permitam-nosjustificar essa mesma norma válida frente adiversas outras razões, v.g., políticas.

É aqui que se faz interessante a análiseda política criminal como conjunto de argu-mentos que podem ser levados em conside-ração na discussão acerca do reconhecimen-to legislativo de determinada expectativa de

comportamento. Fácil é perceber, muito em-bora em nosso país seja impossível verificaruma linha, sequer, de política criminal, que,quando da discussão no fabrico de um diplo-ma legislativo penal, sempre são invocadasas chamadas “razões de política criminal”.Como razões pragmáticas, podem sempre sereferir a um discurso de justificação, mas nãode aplicação. É nesse sentido que está a mere-cer uma releitura, sob essa perspectiva, a teo-ria de Claus Roxin10, no que tange à preten-são de vincular o juízo de culpabilidade aquestões de política criminal sempre deter-minadas, e abertas, no caso concreto.

Como dito, razões pragmáticas, aindaque posteriores ao diploma, podem justifi-car a norma, na medida em que demonstraesta ser adequada não em um sentido apli-cativo, mas à estabilização de expectativaspor meio do próprio Direito Penal. Tais ra-zões, ao justificarem a norma, servem, igual-mente, como contra-razões a uma possíveldiscussão em torno de uma pretensa mudan-ça legislativa da própria norma em questão.

Se seguirmos seja a posição do TJRS, sejao posicionamento mais cauteloso do Desem-bargador do TAMG, perceberemos que ha-verá a desclassificação do furto qualificadopara o furto simples (art. 155, caput). A penamínima aplicada ao furto simples é de umano, enquanto ao furto qualificado o quantummínimo abstratamente previsto é de dois anos.

A Constituição da República, em seuart. 98, I, estabeleceu que deverão os Esta-dos e a União, de acordo com as respecti-vas competências, criar juizados especiaispara que, no que importa, tenham por com-petência o julgamento e a execução no to-cante a infrações penais de menor potencialofensivo. Dito mandamento constitucionalculminou, em 1995, com a promulgação daLei 9.099/95, que, justamente, dispõe sobrejuizados especiais criminais e cíveis.

No art. 61 da referida Lei, está determi-nado que

“infrações penais de menor potencialofensivo para os efeitos desta Lei [são]as contravenções penais e os crimes a

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que a lei comine pena máxima não su-perior a 1 (um) ano, excetuados os ca-sos em que a lei preveja procedimentoespecial”.

Nesse sentido, é bastante elucidativo ofato de que o furto, ainda que em sua formasimples, não se trata de uma infração depequeno potencial ofensivo. Mas, por outrolado, é possível ao mesmo ser aplicada adisposição existente no art. 89 e que diz res-peito à suspensão condicional do processo:

“Art. 89. Nos crimes em que a penamínima cominada for igual ou inferiora 1 (um) ano, abrangidas ou não poresta Lei, o Ministério Público, ao ofe-recer a denúncia, poderá propor a sus-pensão do processo, por 2 (dois) a 4(quatro) anos, desde que o acusadonão esteja sendo processado ou nãotenha sido condenado por outro cri-me, presentes os demais requisitosque autorizariam a suspensão condi-cional da pena (art. 77 do CP)”.

Muito longe de aqui pretendermos dis-correr sobre o instituto da suspensão condi-cional do processo, queremos três aspectosressaltar. O primeiro diz respeito à expres-são “pena mínima cominada”. A pena mí-nima cominada, embora muitos assim pos-sam não entender, trata-se do quantum de-terminado de maneira abstrata e que servi-rá de parâmetro, juntamente com o máximocominado, à aplicação da pena-base nosmoldes ordenados pelo art. 59 do CódigoPenal. Não se soma aqui qualquer eventualcausa de aumento ou possíveis agravantes:estar-se-ia atropelando toda a discussão edescrição completa do caso a serem feitasprocessualmente, em nítida inadequaçãointerpretativa, bem como em desrespeito aoprincípio da presunção da inocência. Quan-do o texto se refere à pena cominada, trata-sedaquela em abstrato determinada, e pretenderconsiderar qualquer causa de aumento não émais ater-se ao cominado, mas ilicitamenteproceder à terceira fase de aplicação de pena.

O segundo ponto trata da infelicidadedo texto legal ao se referir ao Ministério Pú-

blico como possivelmente único legitimadoa propor a suspensão. Longe de desenvol-ver aqui os argumentos, posicionamo-nosno sentido de uma interpretação constitu-cionalmente adequada sob o entendimentode que a suspensão pode ser também con-cedida tanto ex officio pelo juiz, quanto apedido do interessado. Evita-se, assim,inclusive, a não concessão por razões de“política criminal” inadequadamente le-vadas em conta, porventura, pelo mem-bro do Ministério Público, quando de umdiscurso de aplicação.

Finalmente, e antes como um alerta, de-vemos perceber, e denunciar, que a vedaçãoda concessão da suspensão do processoàqueles réus que têm outros processos emandamento fere, frontalmente, o princípio dapresunção da inocência, sendo, portanto,vedação inválida porque inconstitucional.

Pelo exposto, pode-se perceber que, nocaso do furto, seja como pretendido pelo jul-gador do TAMG, seja como aplicado peloTJRS, poderia ser adequada a suspensãocondicional do processo, uma vez que apena mínima cominada é de um ano. Abs-tratamente pode-se perfeitamente imaginara suspensão, devendo no caso em concretoserem verificados os pressupostos.

Do ponto de vista de uma política crimi-nal, orientada à tutela dos chamados bensjurídicos pelo Direito Penal, a questão deveser devidamente enfocada. O crime de furtoé, especificamente, um crime que geralmenteé realizado na clandestinidade, de maneirasorrateira, em que o sujeito-agente subtrai acoisa de outrem quando se encontra em umasituação favorável, enfim, quando da ausên-cia de outras pessoas ou quando não se sentevigiado por qualquer outro meio.

Quando se pensa em furto realizadomediante concurso de pessoas, nítido fica ocaráter de certa “organização” e distribui-ção de “tarefas” entre os co-autores. O pla-nejamento de como vai-se dar a ação deliti-va, a observação do possível cenário daempreitada criminosa, a discussão de táti-cas e idéias são certamente marcantes.

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Dessa maneira, o furto mediante concur-so de pessoas demonstra-se como crime ex-tremamente sui generis: diferentemente doestelionato, roubo ou extorsão, a presença dosautores não se faz presente, ou melhor, não senecessita fazer presente perante outras pes-soas. O planejamento e o envolvimento devários sujeitos concede a esse tipo de delito a“quase” certeza de consumação e sucesso.

Assim, em uma leitura política, que nãoserve para determinar o senso de adequa-bilidade da norma, mas tão-somente parajustificá-la inclusive perante prentensas propos-tas legislativas, permitir a suspensão condi-cional do processo como abarcando a figu-ra do furto mediante concurso de pessoasseria, do ponto de vista pragmático, nãoaconselhável. Se por um lado a certeza desucesso da empreitada criminosa é bemmaior pelo fato da segurança fornecida pelaparticipação de outros agentes — que dimi-nui os riscos como possível flagrante ou le-gítima defesa —, por outro, se realizada fos-se uma reforma legislativa como esperadapor Streck11 no sentido da “constitucionali-zação” da norma em questão, certa tambémserá a impunidade visto que plenamenteaplicável poderá ser, em dependência docaso concreto, a suspensão do processo.

Político-criminalmente trata-se, portan-to, de algo a ser descartado, o que, como ar-gumento trazido à baila por razões prag-máticas, permite-nos justificar politicamen-te a norma do art. 155, § 4o, o que nuncasignifica uma discussão ou um argumentoa ser trazido quando do discurso de aplica-ção de determinada norma.

Destarte, e aqui concluindo esse ponto,a norma juridicamente válida também podeser plenamente enfocada sob o prisma polí-tico, mas com isso não devemos pretenderfazer qualquer referência à sua aplicação.Seja por uma linha político-criminal ao gos-to da law and order, em que o espetáculo ofe-recido à sociedade pela mídia é indispensá-vel, seja sob a ótica de uma política criminaldemocrática e orientada por uma perspecti-va que tenha em vista o caráter fragmentá-

rio do Direito Penal e a busca da repressãoda criminalidade, a norma em questão éadequada à tutela subsidiária dos chama-dos bens jurídicos.

No caso concreto apresentado pelo Acór-dão do TJRS, inclusive, parece-nos que ple-namente possível seria a suspensão condi-cional do processo nos moldes acima levan-tados. Indícios demonstram que se preen-cheriam todos os pressupostos necessáriosà concessão do sursis (art. 77 do CP). O fatode terem sido os réus A. A. A. e C. G. S. con-denados, respectivamente, a oito e novemeses de reclusão, e, posteriormente, subs-tituídas as penas privativas de liberdade porpenas restritivas de direito, demonstra opreenchimento de todos os pressupostospara concessão do sursis.

A não reincidência é patente, em razãoda falta de qualquer referência à agravanteestabelecida no art. 61, I — muito embora àsatenuantes haja referência quanto à confis-são espontânea, bem como à menoridade.

Também o inciso II do art. 77 estaria sa-tisfeito. Embora não nos tenha sido acessí-vel a dosimetria em suas etapas, podemosperceber que fora a pena-base aplicada —de acordo com o art. 59 — em seu mínimolegal — um ano. A razão de assim concluir-mos é o fato de estar explícito na ementa doAcórdão que “atenuante pode deixar a penaaquém do mínimo abstrato”. E como as cir-cunstâncias descritas no art. 77, II, estão con-tidas no art. 59, podemos concluir que satis-feita também estaria aquele pressuposto, mor-mente o fato de ter sido concedida substitui-ção da pena e satisfeito o inciso III do art. 44,além de terem os réus sido, em primeira ins-tância, condenados a regime aberto.

No caso concreto, embora a denúncia sereferisse ao fato qualificado tanto sob a pers-pectiva do concurso de pessoas como porarrombamento, o certo é que, não provado oarrombamento, e desconsiderada a qualifi-cadora por concurso de pessoas, o TJRS de-veria, ex officio, reconhecer que se tratava defurto simples, pouco importando causas deaumento — do roubo em analogia (!) —, de-

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vendo-se proceder à aplicação da suspensãocondicional do processo, ainda que em graude recurso, pois, por ser direito do réu, a sus-pensão não poderia deixar de ser analisadapelo Poder Judiciário quando da decisão —art. 5o, XXXV, da Constituição da República.

Não importa que tenha sido oferecida adenúncia sob a forma qualificada. Constata-da a desclassificação do fato, imediatamentedever-se-ia aplicar à situação, agora sim, com-pletamente descrita no curso da argumentação pro-cessualmente levada a cabo, as normas aplicáveis.

A suspensão condicional do processo épatente, ainda que em grau de recurso: se sepretender que o processo se finda com a de-cisão passada em julgado, até esta há possi-bilidade da suspensão do processo que ain-da se encontra em desenvolvimento. Nadaimpede, ao nosso ver, que, após a desclassi-ficação realizada no curso de um processo,seja oferecida a suspensão do mesmo, ain-da mais porque, ao ser proposta a suspen-são pelo Ministério Público, quando do ofe-recimento da denúncia, há que se conside-rar instaurado um processo visto que, emrespeito ao contraditório, a parte ré deveráser ouvida e tomar ciência das condições pelojuiz fixadas. E o processo nada mais é que umprocedimento em contraditório, enfim.

Não obstante esse equívoco cometidopelo TJRS, outro é ainda mais instigante.Pode-se considerar possível a aplicação doaumento estabelecido ao roubo no caso defurto mediante concurso de pessoas que foradesclassificado para furto simples?

Segundo Lenio Streck, seria possível o“uso analógico para os casos de furto quali-ficado por concurso de agentes — do per-centual de acréscimo decorrente da majora-ção do concurso de pessoas no roubo”. Pre-tendeu o autor, assim, realizar uma inter-pretação constitucionalmente adequada,uma “filtragem hermenêutico-constitucio-nal”, no que foi seguido pelos Desembarga-dores, chegando inclusive Bueno de Carva-lho a afirmar que

“procura-se, respeitosamente, ‘racio-nalizar’ o sistema, fazendo presente o

princípio da isonomia. A forma desuperar é o uso da analogia para be-neficiar, com aplicação ao furto quali-ficado pelo concurso do mesmo per-centual incidente no roubo majorado”.

Respeitosamente, dizemos nós, pedimosa devida licença para discordar, in totum,do ponto acima tratado. O princípio da le-galidade, sob o aspecto da reserva legal,anterioridade da lei penal e taxatividade,há que ser lembrado se se pretende, realmen-te, uma interpretação orientada pela Cons-tituição. Como princípios, admitem aplica-ção coerente, em um caso concreto, com ou-tros princípios, não significando, por exem-plo, que o princípio da anterioridade da leipenal seja absoluto: perante o caso concre-to, a lei penal poderá retroagir para benefi-ciar o réu, mas isso trata-se de uma questãoa ser analisada no caso concreto; inclusiveo que é “benefício” em uma dada situação.

Todavia, em respeito à reserva legal, proi-bidas, em princípio, estão todas e quaisquerpretensões interpretativas que lancem mãoda analogia. A chamada “interpretação ana-lógica” pela doutrina é possível de ocorrernaquelas hipóteses em que a própria normadetermina. Do contrário, ilícito é realizar umjuízo negativo ou agravante mediante o usoda analogia.

Se se conclui pela inconstitucionalida-de do art. 155, § 4º, IV, dever-se-ia então pro-ceder à aplicação do caput do art. 155 e nãopretender aplicar o dispositivo referente aoroubo. O emprego da analogia está, aqui sim,realizando uma violação à Constituição.

Talvez por receio da repercussão de de-cisão tão inovadora, preferiram os Desem-bargadores ser mais “cautelosos”, e, sob oargumento do uso da analogia para “bene-ficiar” o réu, ganharam os louros de umadecisão sui generis.

Nessa controvérsia, mais acertado seriao argumento trazido pelo Desembargadordo TAMG. Para Victor de Carvalho,

“Um (sic) vez afastada a validadedaquele dispositivo, aponto como so-lução para o caso a aplicação do

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art.155, caput, do mesmo diploma le-gal. Não considero acertada a aplica-ção do aumento de pena do roubo emconcurso de pessoas para o caso emcomento, como ocorreu no voto já men-cionado, para superar a questão, ten-do em vista que se trataria de analo-gia in mallan partem, que não é permi-tida pelo Direito Penal (...) a majora-ção da pena que ocorre no roubo cujocometimento se dá em concurso deagentes não deve ser analogicamenteutilizada, posto que prejudicaria oagente.” (Grifo nosso)

Devemos ainda comentar uma passagemno texto que nos chamou a atenção. ParaStreck,

“enquanto o poder encarregado defazer as leis não elaborar as necesssá-rias readaptações legislativas, cabe aoPoder Judiciário, em sua função inte-gradora e transformadora, típica doEstado Democrático de Direito, efetuaras correções das leis, utilizando-se paratal dos modernos mecanismos hermenêu-ticos...”

Sem adentrarmos a questão do papel doJudiciário em um Estado Democrático deDireito, não é novidade deste a chamada“correção das leis”. Tal noção, muito embo-ra não lembrada por Lenio Streck, liga-se ànoção aristotélica de que se deve sempreproceder à “correção das leis”. Esta não setrata da realização de analogias para sanarpossíveis “lacunas”, senão a consideração docaso concreto, pois tão-somente perante o fatoconcreto é que a norma adquire “normativida-de”, isto é, sentido. Não esquece Aristóteles aimpossibilidade de, de antemão, estabele-cer todas as hipóteses fáticas capazes deocorrer, como maneira a se fazerem presen-te no diploma normativo (cf. OLIVEIRA,2001, p. 63 et seq.). Corrigir a lei é intepretá-la frente ao caso concreto, dando-lhe, portan-to, sentido, o que nos permite concluir comKlaus Günther na esteira de que as normassó podem ser consideradas concorrentes naaplicação quando tão-somente realizada es-

teja a descrição exaustiva do caso concreto.Para finalizar, pois longas por demais já

se fizeram nossas palavras, devemos recap-tular a necessidade de distinção dogmáticaentre causa de aumento e qualificadora, lem-brando ser inadequada a tentativa de esta-belecer um juízo de proporcionalidade en-tre elementos distintos.

Terminando, e aqui estamos em plenoacordo com Streck, há uma crescente neces-sidade de se realizarem leituras constitucio-nalmente adequadas e este caso concretoanalisado é um bom exemplo para confir-mar que se encontra a hermenêutica em crise.

Notas

1 Embora Dworkin pareça se referir a todos oscasos como sendo “hard cases”, não parecia seresse o seu intuito em seu livro Taking rights serious-ly, em que abre um capítulo específico para tratarde determinados casos jurídicos aos quais atribui aqualidade de “casos difíceis”.

2 Nesse sentido, cf. voto vencido do Desembar-gador Alexandre Victor de Carvalho na ApelaçãoCriminal n. 313.012-1, julgada em 26/09/2000 peloTribunal de Alçada de Minas Gerais.

3 Aqui estamos realizando uma leitura da teo-ria kelseniana por meio das críticas erigidas porDworkin ao positivismo.

4 É certo que não se pode confundir paradigmacom mundo da vida: este é muito mais totalizante,enquanto aquele é sempre próprio.

5 Cf., nesse sentido, autor pátrio central na com-preensão do Estado Democrático de Direito: Mene-lick de Carvalho Netto (1999, p. 473 et seq.).

6 Sobre possíveis interpretações do princípio daproporcionalidade, cf. Paulo BONAVIDES (2000,p. 356 et seq.).

7 Cita o autor um exemplo: “‘You ought not tolie under any circumstances’ versus ‘You ought tolie under some circumstances’”. O disparate lógicoaqui existente faz com que, na concepção do autor,o conflito possa ser resolvido em nível que não leveem conta a reconstrução do caso concreto.

8 Para uma crítica dessa perspectiva, cf. JürgenHABERMAS (1998, p. 281 et seq.), Klaus GÜN-THER (1992, p. 241).

9 Depois da introdução do conceito de autopoie-sis: Niklas LUHMANN, Raffaele de GIORGI (1993,p. 59 et seq.) Niklas LUHMANN (1995, p. 59 etseq.).

10 Cf., no sentido esboçado, Claus ROXIN (1981,p. 73): “Si trasplantamos, en consecuencia, esta idea

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rectora del fin de la pena a la categoría del delitoque estamos discutiendo, resultará, ciertamenteque en caso de no poder actuar de otro modo que-dan excluidas culpabilidad y punibilidad; pero si— dando por supuesto el libre albedrío — se com-prueba que el autor (aún) podía actuar de otromodo, con ello no se ha decidido aún su punibili-dad. Hay que partir, por el contrario, de la base deque el legislador se ha preguntado además si polí-tico-criminalmente (esto es, desde el punto de vistade prevencíon especial o de prevención general) esnecessario el castigo”. Na página 178, constrói umpensamento a ser detidamente analisado: “Trastodo lo dicho, se puede afirmar, en contra de losataques de la crítica, la tesis de que cuando falta laculpabilidad también faltan las necessidades pre-ventivas, general y especial, de una pena”. Maissurpreendente ainda é a afirmação presente em seuDerecho Penal: “Un error de prohibición puede ex-cluir la responsabilidad incluso cuando exista cul-pabilidad (disminuida), y considerarse invencible ensentido jurídico cuando una renuncia al castigo sea com-patible con las funciones preventivas del Derecho penal ”.[itálicos nossos] (p. 881).

11 Afirma o parecerista que, “enquanto o poderencarregado de fazer as leis não elaborar as necessáriasreadaptações legislativas, cabe ao Poder Judiciário,em sua função integradora e transformadora (...)efetuar as correções das leis”.

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Semira Adler Vainsencher & Adélia deMelo Branco

1. Introdução

Eu já perdi as esperanças,cada dia que passa está pior.

Na última década do século XX, no Bra-sil, a economia e o setor rural estiveram relati-vamente estagnados. Nesse período, não fo-ram criadas novas ocupações nem foram in-ventados novos produtos e processos produ-tivos. Ocorreu, de fato, o contrário: uma desa-tivação produtiva, com relativa estagnaçãodos complexos agroindustriais, além de que-das do emprego e da produção. Crescerammesmo, na referida situação de crise, apenaso setor de subsistência e as formas relativa-mente integradas de agricultura familiar, quese mostraram mais resistentes aos efeitos daqueda nas taxas de crescimento do trabalho edas rendas agrícolas (DELGADO, 2000).

Nesse contexto histórico, surgiu um ele-mento novo no espaço rural brasileiro, queviabilizou a inclusão de amplos segmentosda economia familiar e, em particular, o pró-prio setor de subsistência da economia ru-ral, na forma de um seguro de renda míni-ma para idosos e inválidos: a ConstituiçãoFederal de 1988.

Nem um tostão da Previdência Social: ocaso das bóias-frias idosas no semi-áridoirrigado

Semira Adler Vainsencher é Mestre em Edu-cação pela Universidade de Boston, nos Esta-dos Unidos, e pesquisadora da Fundação Joa-quim Nabuco.

Adélia de Melo Branco é Doutora em An-tropologia pela Universidade de Manitoba, noCanadá, e pesquisadora da Fundação JoaquimNabuco.

Sumário1. Introdução. 2. Previdência Social no Bra-

sil: um breve reflexo. 3. Caracterização do semi-árido nordestino. 4. As condições de vida e detrabalho das mulheres rurai. 5. Consideraçõesfinais

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As (os) agricultoras (es) passaram a usu-fruir, então, do direito à aposentadoria,igualmente às (aos) demais trabalhadoras (es)brasileiras(os) residentes nos setores urba-nos do País. Isso veio representar uma gran-de esperança de vida para idosas(os) einválidas(os).

Por vezes, a quantia repassada às(aos)idosas(os) ou inválidas(os), por parte do Es-tado, representa a única renda do núcleo fa-miliar. Em sendo assim, destina-se ao susten-to de todos os componentes da família e temfuncionado, em verdade, até como uma for-ma de reter a população residente em áreasinóspitas, evitando que muitos continuemfugindo, em massa, para municípios de mé-dio e grande portes do território nacional.

A população feminina, nesse contexto(em particular, o conjunto das mulheres che-fes-de-família, seja essa condição em cará-ter permanente ou temporário), constitui-seum dos setores mais vulneráveis da popu-lação. Além da ausência de programas quecontemplem as suas necessidades específi-cas, o contexto histórico-social e culturalvigente contribui para que haja um eviden-te desequilíbrio nas relações de gênero, legi-timando a subordinação e a discriminaçãoda mulher (BRANCO, 2000). Não se podenegar, entretanto, que alguns avanços, emtermos de políticas e programas sociais, fo-ram alcançados por esse contingente, nasúltimas décadas do século passado, o que,certamente, contribuiu para minimizar a dis-criminação das mulheres.

O presente trabalho pretende evidenciar,nesse sentido, que, apesar do grande avan-ço conquistado na área dos direitos huma-nos, ainda existe um contingente populaci-onal impossibilitado de obter a sua aposen-tadoria, ficando completamente à margemdos direitos sociais e humanos existentesem um Estado de Bem-Estar Social: o das(os)bóias-frias1 idosas(os)2, que abandonaram asáreas rurais de sequeiro3, durante os perío-dos de estiagens prolongadas, e preferiramtrilhar os caminhos desconhecidos da mi-gração na tentativa de melhor sobreviver.

Tal segmento se vê obrigado a vivenciar umfinal de vida perverso e vicioso, ou seja, umavelhice humilhante sem renda própria, àmercê das caridades de outrem4.

Os dados empíricos que serão apresen-tados provêm de duas pesquisas distintas5,desenvolvidas em 1999, cujas populações-alvo englobaram tanto as trabalhadoras ru-rais aposentadas, residentes nos municípiosde Patos e Ouricuri, Estados da Paraíba e dePernambuco, respectivamente, quanto asmigrantes bóias-frias, que trabalham no pe-rímetro irrigado de Petrolina e até hoje nãoconseguem se aposentar. Junto às distintaspopulações – a contemplada e a não-con-templada pela Previdência Social – foramrealizadas entrevistas longas e de profun-didade, em que as mulheres tiveram a opor-tunidade de relatar, com os mínimos deta-lhes, os seus problemas cotidianos, discor-rendo sobre as suas angústias e expectati-vas futuras.

Através deste artigo, as autoras desejamdar uma contribuição, mesmo que bem mo-desta, à melhoria das condições de vida detodas(os) as(os) trabalhadoras(es) bóias-friase, em particular, àquelas mulheres cujo suorirriga, também, as plantações do Vale do SãoFrancisco.

2. Previdência Social noBrasil: uma breve reflexão

Fazendo-se uma breve retrospectiva his-tórica da proteção social, no Brasil, caberialembrar que a primeira regra concernente àPrevidência Social6 advém do Príncipe Re-gente, Dom Pedro de Alcântara, na segun-da década do século XIX. Segundo OLIVEI-RA (1966), ele foi a primeira autoridade aconceder, através do decreto de 1º de outu-bro de 1821, a aposentadoria aos mestres eprofessores, após trinta anos de serviço, eassegurar um abono de um quarto dos gan-hos aos que continuassem em atividade.

A expressão aposentadoria aparece, ape-nas, no art. 75 da Constituição de 1891, ondese lê: “a aposentadoria só poderá ser dada

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aos funcionários públicos em caso de inva-lidez no serviço da Nação”. E o termo previ-dência vem surgir, pela primeira vez, naConstituição de 1934, sem, contudo, ser ad-jetivado de social7. A Seguridade Social, poroutro lado, possui institutos próprios, entreeles o Ministério da Previdência e Assistên-cia Social (MPAS), o INSS, o Conselho Nacio-nal de Previdência Social, o Conselho Nacio-nal de Assistência Social, o Ministério da Saú-de etc., e os seus princípios estão descritos naConstituição de 1988. Um dos princípios maisrelevantes refere-se à questão da solidarieda-de8, que estipula: os ativos devem contribuirpara sustentar os inativos (MARTINS, 2001).

Sempre se espera, em todos os sentidos,que o tempo traga evoluções, principalmen-te quando 150 anos já se passaram. No en-tanto, não foi isso o que o tempo trouxe paraas trabalhadoras rurais, no que tange às re-gras de proteção social a elas referente. Atépoucos anos atrás, o segmento femininocontava com mecanismos bastante precáriosde proteção à velhice, isto é, os benefíciosconcedidos pelo antigo PRORURAL (Pro-grama de Assistência ao Trabalhador Ru-ral), que eram assaz limitados. E apesar doantigo sistema prover ao trabalhador rural,de ambos os sexos, a aposentadoria por ida-de aos 65 anos, os seus valores correspon-diam, somente, a 50% do salário mínimo eas pensões por morte eram limitadas a 30%do salário mínimo (SILVA, 2000).

Na legislação brasileira, de uma manei-ra geral, a aposentadoria da mulher recebedestaque no artigo 165 do inciso XIX daConstituição Federal de 1967, sob o títuloDa ordem econômica e social, que determi-nava o usufruto desse direito aos trinta anosde trabalho, com salário de contribuiçãointegral (Jornal Fêmea, 1995). Contudo,tanto as aposentadorias por idade quan-to aquelas por invalidez só eram concedi-das ao chefe ou arrimo da família, excluin-do-se, assim, as trabalhadoras rurais e osdemais membros de sua família do conjun-to da população com acesso a esse direito(SILVA, 2000).

De acordo com OLIVEIRA (1966), pode-se definir a aposentadoria como uma garan-tia constitucional, de longa duração, cujoobjetivo é o de proporcionar a manutençãoda renda do segurado e a de seus depen-dentes. Para isso, impõe-se um determina-do ônus a trabalhadores e empresas, ou seja,à população economicamente ativa. Comouma política de proteção social e tendo sidocriada, segundo os seus precursores, parareduzir as desigualdades sociais, é impor-tante salientar que, em relação à qualidadede vida no campo, a Previdência Rural ocu-pa um espaço social de suma relevância: elarepresenta a maior contribuição à renda e àsubsistência das famílias rurais pobres9.

Cabe mencionar que, desde a criação daLei Orgânica da Previdência Social - LOPS,a aposentadoria por idade ou por velhice jáfazia a diferenciação de cinco anos entrehomens e mulheres (Jornal Fêmea, 1995). Issoteve sua origem na dupla jornada de traba-lho das mulheres, ou seja, no fato de que,mesmo inseridas no mercado de trabalho,elas eram as únicas responsáveis por todosos trabalhos do lar: os afazeres domésticose a “previdência doméstica” (o cuidado comos filhos, com os membros doentes e com osidosos de sua família), sem qualquer ônuspara o Estado.

A promulgação da Constituição de 1988representou uma grande conquista para apopulação feminina, assegurando, entreoutros, a universalização dos direitos hu-manos, sem fazer distinção entre os sexos.Em sendo assim, pela primeira vez na his-tória do Brasil, as trabalhadoras rurais pas-saram a ter os mesmos direitos previdenciá-rios que os seus companheiros de trabalho.Estabelecendo o piso de um salário-mínimopara todas(os) as(os) trabalhadoras(es) ru-rais e os seguintes limites da aposentadoriapor idade - homens, 60 anos, e mulheres, 55anos -, a Constituição passou a garantir, ain-da, os direitos das mulheres em regime deeconomia familiar, bem como os direitos àaposentadoria por tempo de serviço, inde-pendentemente de essas trabalhadoras se-

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rem, ou não, chefes ou arrimos de família.Foi permitida, inclusive, a contagem do tem-po de trabalho realizado antes da publica-ção da lei que homologou tais direitos, mes-mo que as mulheres não tivessem contribuí-do, previamente, para algum sistema previ-denciário.

Assim, o art. 201 da Constituição dispõeque “a Previdência Social será organizadasob a forma de regime geral, de caráter con-tributivo e de filiação obrigatória, observa-dos os critérios que preservem o equilíbriofinanceiro e atuarial, e atenderá, nos termosda lei, a:

I - cobertura de eventos de doença, inva-lidez, morte e idade avançada;

II - proteção à maternidade, especialmen-te à gestante (art. 7º, XVIII);

III- proteção ao trabalhador em situaçãode desemprego involuntário (art. 7º, II, daLei Fundamental);

IV- pensão por morte do segurado, ho-mem ou mulher, ao cônjuge ou companhei-ro e dependentes;

V- salário-família e auxílio-reclusão paraos dependentes dos segurados de baixa ren-da” (MARTINS, 2001).

Pode-se afirmar que a ausência dos di-reitos das trabalhadoras rurais é resultantedos contratos tradicionais de gênero, nos quaisas mulheres são as únicas encarregadas decuidar da casa e dos filhos, ao passo que oshomens têm a responsabilidade de prover odomicílio dos bens materiais e financeiros.Ao lado do trabalho não remunerado, porsua vez, grande parte das mulheres que exer-cem ocupações produtivas, fora de casa,enfrentam discriminações salariais e rece-bem a metade - ou pouco mais - dos saláriospagos aos homens, pelo mesmo tipo de tra-balho executado. Embora as discriminaçõessejam comuns às vidas de todas as traba-lhadoras idosas, nos campos socioeconômi-co e cultural, tais aspectos se apresentammais perversos, ainda, quando se referemàquelas mulheres da área rural. No campocultural, por exemplo, as famílias rurais re-presentam muito melhor o modelo tradicio-

nal de contrato de gênero: as condições dotrabalho doméstico sempre foram muitomais severas para tais famílias. Uma parterazoável delas não conta, inclusive nos diasde hoje, com certas facilidades presentes emdomicílios urbanos, tais como água enca-nada, energia elétrica e uma série de eletro-domésticos que contribuem para facilitar osserviços no lar. Além disso, as famílias ru-rais são, geralmente, maiores que as urba-nas. Todos esses fatores contribuem para queo trabalho de casa da mulher rural seja mui-to mais desgastante que o da mulher urba-na (SILVA, 2000).

Após a Constituição de 1988, segundoCastro & Lazzoni (2001), as aposentadoriasforam agrupadas em três grupos:

• Aposentadoria por invalidez – é um be-nefício devido ao segurado, decorrente desua incapacidade para o trabalho, sem pers-pectiva de reabilitação para o exercício deatividade capaz de lhe assegurar a subsis-tência;

• Aposentadoria por tempo de serviço – éum benefício devido ao segurado que tenhacumprido o tempo de serviço exigido paraobter os seus proventos integrais: compro-var 35 anos de serviço se for homem e 30anos de serviço, se for mulher; e

• Aposentadoria por idade – é um benefíciodevido ao segurado após o cumprimentodas carências exigidas, completar 65 anosde idade, se homem, e 60 anos de idade, semulher. Esses limites são reduzidos em cin-co anos para os trabalhadores rurais deambos os sexos e para os que exerçam suasatividades em regime de economia familiar,neste incluídos o produtor rural, o garim-peiro e o pescador artesanal (artigo 202, I,da Constituição de 1988).

Diante de toda essa normatização, opovo brasileiro acreditou, então, que o pro-blema da aposentadoria das (os) trabalha-doras (es) rurais havia sido solucionado. Oque se observa na prática, contudo, é umarealidade bem diferente: no tocante aos be-nefícios previdenciários, o segmento popu-lacional das (os) bóias-frias idosas (os), a des-

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peito de todos os avanços e vantagens sociaisexistentes no Brasil e da utilização do dum-ping social10, continua totalmente desprote-gido e, ao mesmo tempo, excluído, dentrodo sistema, vivendo um drama único e parti-cular. É esse segmento populacional, preci-samente, o objeto de estudo das autoras.

Antes de ser apresentada uma análise dasituação, considera-se importante caracteri-zar, ainda que brevemente, a região onde estáinserido o cerne do problema em destaque.

3. Caracterização do semi-árido nordestino

A Região Nordeste ocupa uma área de1.539.000 km2, correspondente a 18% do ter-ritório brasileiro, e abriga uma população de45, 5 milhões de habitantes, o que representa29% do total da população nacional. EssaRegião produz cerca de 16% do PIB brasilei-ro e o seu PIB per capita corresponde a 56% doPIB per capita do Brasil. Ali vive cerca de meta-de da população pobre do País. Em termosgeográficos, o Nordeste se mostra heterogê-neo, apresentando uma grande variedade deaspectos físico-climáticos (DUARTE, 1999).

Inserida nesse contexto e localizada nosEstados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba,Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte eSergipe, a região semi-árida envolve umaárea de 900.505 km2 (LINS, 1989). A regiãopossui baixos índices de desenvolvimentoe uma qualidade de vida de extrema insufi-ciência, onde estão presentes o analfabetis-mo, a baixa expectativa de vida, o desem-prego, a precariedade da saúde e a concen-tração de terra e riqueza nas mãos de pou-cos. Tudo isso alcança graves proporções,ainda, devido às secas periódicas que atin-gem a região, consideradas como fatoresagravantes dos problemas já existentes. Avulnerabilidade da população, portanto,encontra-se intimamente ligada à pobreza,sobretudo na zona rural, onde a economiaregional depende, basicamente, da pecuá-ria extensiva e da agricultura de subsistên-cia (ANDRADE, 1985, 1986).

O peso da agricultura de subsistência,na economia agrária brasileira, é algo quepossui raízes históricas em nossa própriaformação econômica, vinculada ao es-cravismo e à grande propriedade (GUI-MARÃES NETO, 1997). Dessa maneira,não sofreu mudanças significativas com osprocessos de industrialização e moderniza-ção da agricultura. Muito pelo contrário: osetor de subsistência, elemento remanescen-te do período colonial, fortaleceu-se após aabolição da escravatura, transportando-separa a atualidade praticamente sem trans-formações.

A pobreza da população, portanto, naregião semi-árida pode ser explicada pelapermanência da distribuição desigual daposse e do uso da terra, no Brasil. Na Re-gião Nordeste, em geral, os estabelecimen-tos rurais com menos de 50 hectares repre-sentavam 75% do número de imóveis, e aárea por eles ocupada correspondia a 12%da área total da Região (INCRA, 1992). Nooutro extremo da distribuição de terras, osimóveis com áreas superiores a 200 hecta-res representavam 7% do total de imóveisexistentes e ocupavam 68,6% da área daRegião Nordeste. Ainda conforme o INCRA,65% da área aproveitável para a agricultu-ra, em 1992, estavam ocupadas por imóveiscom áreas iguais ou superiores a 200 hecta-res (DUARTE, 1999).

Segundo o mesmo pesquisador, a pobre-za rural é agravada, sobremaneira, pela ins-tabilidade do trabalho assalariado tempo-rário, situação em que, no ano de 1992, en-contravam-se 2, 5 milhões dos 6, 6 milhõesde trabalhadores rurais nordestinos. Essasrelações de trabalho possuem um importan-te significado em períodos de seca, já queelas podem ser facilmente desfeitas, liberan-do os proprietários rurais do ônus de man-ter a mão-de-obra em uma conjuntura eco-nômica tão adversa e deixando a popula-ção rural sem alternativa de trabalho.

As pesquisas realizadas pela SUDENE,na década de 70, apontam que os efeitos daseca recaíam, mais pesadamente, sobre as

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camadas menos favorecidas da populaçãorural: os pequenos proprietários e os traba-lhadores sem terra. Um dos estudos revela,inclusive, que 69% daqueles inscritos nas fren-tes de trabalho eram não-proprietários, comuma maior predominância de parceiros(42% dos inscritos). Entre os proprietários(31% dos alistados nas frentes de trabalho),95% possuíam imóveis rurais com áreas de,no máximo, 25 hectares (Pessoa & Cavalcan-ti, 1983). Esses dados confirmam a relaçãoentre a estrutura fundiária, a pobreza e a seca,na região semi-árida do Nordeste brasileiro.

Durante os períodos de longa estiagem,o Governo procura implementar medidaspaliativas, entre elas a distribuição de alimen-tos, de água (por meio de carros-pipa) e detrabalho (através das frentes de emergência).Até a década de 70, as atividades realizadaspelos alistados, nas frentes de trabalho, con-sistiam na construção ou na recuperação deobras públicas, tais como açudes, barragense estradas. A partir da seca de 1979-1983,porém, sob a justificativa de manter os alista-dos em seus lugares de residência, as frentesde trabalho passaram a realizar as suas ativi-dades nos próprios imóveis rurais, benefici-ando, assim, os seus proprietários.

Além das medidas mitigadoras governa-mentais, de caráter emergencial, observa-se,nos últimos anos, que tem ocorrido umamobilização por parte da sociedade civil12,levando as Organizações Não-Governamen-tais – ONGs que atuam nas áreas rurais desequeiro a desenvolver projetos no sentidode educar a população a conviver com o fe-nômeno da seca. Entretanto, a despeito deas ONGs possuírem uma excelente perfor-mance, as suas ações são de caráter pontuale, dessa forma, não conseguem beneficiargrande parte da população atingida pelasestiagens (BRANCO, 2000).

Nas últimas décadas, verifica-se umamudança no processo migratório, que pas-sou do inter-regional para o intra-regional.Segundo os estudiosos do assunto, isso foiresultado da crise econômica que gerou ele-vados índices de desemprego nos grandes

centros urbanos industrializados do País.Os nordestinos, por outro lado, tendem amigrar mais, hoje em dia, para as cidadesde médio porte, dentro da própria RegiãoNordeste, devido a uma série de fatores, taiscomo: a grande distância entre o lugar deorigem do migrante – as áreas interioranasda Região – e o seu lugar de destino, já que amaioria dos centros urbanos está localiza-da na Região Sudeste ou nas áreas costei-ras; as elevadas despesas envolvidas com amudança, devido à distância física entre olugar de origem e o lugar de destino; e o au-mento das oportunidades de emprego, emmuitos municípios de médio porte do Nor-deste, bem como a maior facilidade de aces-so aos mesmos.

Um dos centros migratórios mais impor-tantes, nos últimos anos, é o pólo Petrolina(PE)/Juazeiro (BA), no Vale do São Francis-co, lugar de destino de milhares de nordes-tinos. Tal região atrai migrantes de todo osemi-árido, já que oferece elevadas oportu-nidades de trabalho na agricultura irriga-da, bem como em outras atividades. O mu-nicípio de Petrolina, em particular, alvo dopresente estudo, possui um alto nível dedesenvolvimento sócio-econômico, produzvárias frutas para fins de exportação e vemrecebendo, constantemente, investidores detodas as regiões do Brasil, bem como demuitos países importadores.

4. As condições de vida e detrabalho das mulheres rurais

A situação das mulheres rurais, comoum todo, e, mais especificamente, daquelasque residem na região semi-árida nordesti-na, é de extrema dificuldade. Por sua vez,os problemas referentes às suas condiçõesde trabalho se apresentam como relevantesfatores de expulsão. As poucas oportunida-des de trabalho remunerado, nas ativida-des ligadas à pecuária e à agricultura – ati-vidades de maior importância no semi-ári-do de sequeiro –, costumam priorizar a uti-lização da mão-de-obra masculina. E, no

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caso da agricultura familiar, os homens fi-cam à frente da produção de culturas desti-nadas à comercialização, ao passo que asmulheres se dedicam à produção de outras,voltadas, apenas, para o consumo da pró-pria família, ficando sem acesso à renda.

Segundo as declarações das migrantesentrevistadas, nos seus lugares de origemnão havia água, elas trabalhavam no roça-do, de sol a sol, pouquíssimo ou nada retira-vam do solo para sobreviver e não recebiam,via de regra, qualquer remuneração pelo tra-balho realizado. Como as dificuldades eramimensas, só podiam apelar, mesmo, para asfrentes de emergência. Nesse sentido, aoabandonarem a sua terra natal, as referidasmulheres não fugiam, somente, da falta deoportunidade de trabalho, do desemprego:fugiam, também, de uma vida extremamenteprecária (BRANCO; VAINSENCHER, 2001).

Isso evidencia a ausência de um com-promisso político, por parte dos governan-tes, voltado para o desenvolvimento dasáreas rurais de sequeiro, o que obriga a po-pulação a conviver com uma infra-estrutu-ra altamente inadequada. E as conseqüên-cias dessa situação recaem mais duramentesobre a mulher, por ser ela a principal res-ponsável por certos fatores imprescindíveisà sobrevivência como, por exemplo, a repro-dução da unidade familiar, o abastecimen-to de água, o desempenho de atividadesdestinadas à alimentação da família, o cui-dado com os filhos, com os idosos e com osdemais membros da unidade de reprodu-ção da força de trabalho que possam vir aadoecer, entre outros.

Além disso, as estatísticas demográficasevidenciam que, em relação ao emprego agrí-cola, as mulheres das áreas rurais começama trabalhar mais cedo e permanecem até ida-des mais avançadas, no exercício de ativi-dades agrícolas12. O trabalho feminino ru-ral é encontrado com freqüência, sobretudo,na categoria por conta própria, muito comumàs economias rurais que utilizam a mão-de-obra familiar. Nessas economias, não exis-te, na prática, uma separação entre casa e

trabalho agrícola. Como a produção familiarocorre em espaço contíguo ao domicílio, aprópria trabalhadora rural tem dificuldadede diferenciar, entre as atividades que reali-za, aquelas que efetivamente geram valoreconômico. Os cuidados com a horta, comos animais domésticos e a preservação dealimentos, quase nunca são contabilizadascomo ocupações, no sentido econômico. Istoé, muitas vezes, o fator responsável de asestatísticas não conseguirem captar adequa-damente a participação das mulheres ruraisno produto social. Para a mulher rural, emregime de economia familiar, o trabalho agrí-cola é uma extensão de suas tarefas domés-ticas, e, portanto, trabalhar na lavoura é omesmo que trabalhar em casa. Desta feita, astrabalhadoras rurais idosas acumulam, aolongo de suas vidas, uma série de desvanta-gens: dupla jornada de trabalho, discrimi-nação salarial e/ou trabalho sem remune-ração e a vivência de uma entrada precoce ede uma permanência mais longa nas ocu-pações das atividades rurais (SILVA, 2000).

No entanto, cabe deixar claro que, doponto de vista da mulher rural, o direito àaposentadoria alcança uma dimensão quevai além da econômica. Isso porque, até pou-co tempo, as atuais aposentadas não tinhamacesso a uma renda, ou seja, não recebiamqualquer remuneração pelas atividades querealizavam, quando se dedicavam à agri-cultura familiar. Segundo BRANCO &VAINSENCHER (2001), o simples fato depoder contar com um salário vem proporcio-nar, às trabalhadoras, níveis de liberdadeindividuais antes desconhecidos. Nos seuslugares de origem, o trabalho que realiza-vam para o seu sustento e o dos membros dafamília não era remunerado, estando circuns-crito aos limites geográficos do espaço priva-do, ao rol das atividades domésticas, desca-racterizando-se como trabalho produtivo.Essa peculiaridade que envolve o trabalhofeminino, em geral, e que se apresenta muitobem traduzida na expressão invisibilidade dotrabalho feminino, torna as próprias mulheresinvisíveis, mesmo que a sua presença seja

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marcante e que a sua força de trabalho sejaimprescindível para a sobrevivência do gru-po familiar. Por sua vez, a passagem do do-mínio privado para o domínio público, atra-vés do trabalho remunerado, proporcionaàquelas mulheres dois elementos fundamen-tais para que elas adquiram força e confiançaem si mesmas e vivenciem um intenso pro-cesso de mudanças, no tocante à sua condi-ção de gênero: suas vidas e suas habilidadesadquirem visibilidade e importância.

Diante do exposto, o direito das mulhe-res rurais à aposentadoria, quando alcan-çassem os 55 anos de idade13, promulgadocom a Constituição de 1988, veio trazer umagrande mudança na trajetória das mesmas,permitindo que mantivessem a sua própriaautonomia financeira quando atingissem aidade de parar de trabalhar14. De acordo comSILVA (2000), a distribuição por gênero, dosbenefícios rurais concedidos, indica que asmulheres foram responsáveis por 66% dasconcessões no período 1992/1994. Em 1993,por exemplo, foi concedido o total de 702, 4mil benefícios para as mulheres e 335,1 milpara os homens. A maior participação dasmulheres, no total dos benefícios previden-ciários rurais, reflete, pelo menos, dois ele-mentos:

1. o limite de idade cinco anos inferiorao exigido aos homens, na aposentadoriapor idade; e

2. o fato de as mulheres receberem muitomais pensões por viuvez do que os homens,já que a esperança de sobrevida feminina émaior que a masculina, especialmente nosestratos dos mais idosos.

Uma pesquisa na área demográfica re-velou, recentemente, que “muitos são osmatizes adicionais do processo de envelhe-cimento da população brasileira. Entre eles,com certeza, um dos mais importantes éaquele referente ao processo de feminizaçãoda velhice, fruto dos amplos diferenciais novolume de idosos, por sexo. Em outras pala-vras, é muito maior o número de mulheresque sobrevivem até atingir o limiar inferiordo grupo etário idoso e, uma vez fazendo

parte dele, nele permanecem por muito maistempo que os homens” (MOREIRA, 1998).Ainda de acordo com o mesmo autor, “a di-mensão do índice de idosos e sua evoluçãotemporal apontam, claramente, para a ne-cessidade de políticas sociais que contem-plem o fato de que a maior fração da popu-lação idosa nacional será constituída pormulheres que sobreviverão por muitos anosmais do que seus companheiros, os seusprincipais provedores na velhice. A maiorsobrevivência feminina e sua maior longe-vidade, provavelmente, implicarão que asmesmas viverão por muito tempo sozinhas,dependentes de arranjos institucionais desuporte na velhice. Também contribuirãopara um maior volume de pagamentos depensões de mais longa duração, gastos quetenderiam a assumir participação crescenteentre os atuais benefícios previdenciários”.

Vale destacar, agora, os depoimentosde algumas mulheres idosas, pequenasproprietárias de terra nas áreas de sequeiro(municípios de Patos e Ouricuri), que con-seguiram tirar todos os documentos reque-ridos pela Previdência Social15 e lograramse aposentar. Elas declararam:

“Essa aposentadoria foi uma gra-ça de Deus! Eu posso viver descansa-da com o meu velho e tenho o tostãoda feira e dos remédios” (pequena pro-prietária rural, 63 anos).

“Os tempos de hoje são melhor doque no passado. Hoje, nós, velhos, tempensão. No tempo do meu pai e do meuavô, os velho ficava desprotegido” (pe-quena proprietária rural, 69 anos).

“Eu sou uma velha satisfeita! Meudinheiro da pensão dá prá eu com-prar meus remédios e até prá eu fazeruma feirinha pros meus filhos” (pe-quena proprietária rural, 65 anos).

“Ainda bem que, hoje em dia, oGoverno olha prá nós. Esses tempossão melhor que antigamente, quan-do ninguém podia se mexer sem di-nheiro. Os velho de hoje, pelo menos,têm o que comer e ajudar os filhos na

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necessidade” (pequena proprietáriarural, 67 anos).

Como é possível constatar, há um gran-de reconhecimento, por parte das mulheresidosas que residem nas áreas rurais, no to-cante ao usufruto da aposentadoria. Issovem corroborar com a necessidade que asmesmas têm de recebê-la. Percebe-se, no en-tanto, que elas enfrentam, ainda, muitas di-ficuldades, na obtenção dos documentosexigidos para a aposentadoria. Se nas zo-nas urbanas essa é uma tarefa difícil, imagi-ne-se, então, o sofrimento daquelas que ha-bitam as zonas rurais. Inúmeras trabalha-doras não possuem, sequer, a própria certi-dão de nascimento. No caso das migrantes,a situação fica ainda mais difícil: para obtê-la, elas teriam que regressar aos seus luga-res de origem, o que demandaria empreen-der recursos financeiros e tempo para essafinalidade. Assim, a despeito da campanha“Nenhuma Trabalhadora Rural Sem Docu-mento”, lançada pela ANMTR – Articula-ção Nacional das Mulheres TrabalhadorasRurais, em 1997 (Jornal Fêmea, 1997), mui-tas trabalhadoras, como, também, migran-tes, continuam sem possuir os documentosde identificação pessoal e, portanto, sem aces-so à Previdência Rural: faltam-lhes informa-ções importantes, além de condições finan-ceiras para conseguir tirar tais documentos.

Faz-se necessário deixar registrado aqui,também, o importante papel que o Sindica-to dos Trabalhadores Rurais vem desempe-nhando na região do Vale do São Francisco.O STR, contudo, não tem condições de apoiaras(os) trabalhadoras(es) diaristas, de formamais efetiva, na conquista dos seus direitos.A despeito das lutas empreendidas, obser-va-se a existência de um segmento da popu-lação feminina trabalhadora rural – o dasbóias-frias idosas – que não consegue maisarranjar um trabalho assalariado. Por suavez, esse contingente populacional não pos-sui mais qualquer título de posse de terra,tampouco habita na zona rural e, em sendoassim, vê-se impossibilitado de apresentaros requisitos necessários, exigidos pela Pre-

vidência Social, para poder aposentar-secomo trabalhadora rural. Os depoimentosregistrados abaixo são bastante ilustrativos:

“Eu mesmo vivo louca prá me apo-sentar, mas já estou sem fé. Dei entra-da nos papel e foi um sacrifício prá euconseguir tudo. Tive até que ir emTauá16. Mas, eu acho que não vai sair,não. Teve uma entrevista com o INPSe me perguntaram muita coisa que eunão sabia responder. Quando eu dis-se isso para o pessoal do Sindicato17,eles falaram prá mim que eu devia tertido a orientação deles. Mas como? Seeu não sabia? Aí, eu acho que eu mecompliquei com essas perguntas. Eusó queria que desse certo prá eu meaposentar!” (bóia-fria, 57 anos).

“Eu já desisti do meu aposento. Elespedem tanta coisa! Eu nunca tirei ne-nhum documento18. Achava que nãoprecisava. Agora, depois de velha, euacho que nem posso mais tirar certidão.Será que eu posso?” (bóia-fria, 60 anos).

“Eu vivo uma vida muito sacrifi-cosa aqui. Estou com 58 anos e aindanão consegui me aposentar. O Sindi-cato diz que eu não sou ‘fichada’ e oINPS diz que eu não sou trabalhado-ra rural. Isso é conversa? O que é queeu peço? Não é trabalho de roça? Euvivo em cima dos caminhão de loteprá lote, atrás de trabalho. Eu sou quenem rebutalho” (bóia-fria, 58 anos).

Alguns fatores são fundamentais paramudar tal cenário. Entre eles, talvez um dosmais importantes seja a implementação depolíticas públicas, voltadas à educação das(os) trabalhadoras (es) rurais idosas (os), acer-ca dos seus direitos como cidadãs (os).

5. Considerações finais

Eu não tenho muita ilusão, não.Acho que vou morrer aperriada.

Não restam dúvidas: a Previdência So-cial, na atualidade, representa um poderoso

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instrumento de eqüidade, em relação à ga-rantia dos direitos das (os) trabalhadoras (es)rurais. E a criação de ações afirmativas19 emprol do contingente rural feminino20, basea-da na perspectiva de gênero, significa, tão-somente, o pleno reconhecimento da duplajornada de labor que as trabalhadoras ru-rais enfrentam, bem como das especificida-des que vivenciam.

As mudanças que vêm ocorrendo no per-fil populacional, por sua vez, colocaram avelhice nas discussões demográficas do pre-sente, bem como a feminização da velhice noepicentro delas. Tudo isso porque, hoje emdia, é muito maior o número de mulheresque sobrevivem até atingir o limiar inferiordo grupo etário idoso, e que permanece, nele,por muito mais tempo que os homens. Bastaobservar os dados atuais da Previdência So-cial Rural: do total de beneficiários, 64, 5%são mulheres.

Em se tratando da população rural e,particularmente, de sua população femini-na, um dos grandes benefícios da Previdên-cia tem sido o de elevar o poder de manu-tenção da mesma no campo. Em outras pa-lavras, mediante a garantia de uma rendamínima para as trabalhadoras rurais, assuas famílias passaram, também, à condi-ção de beneficiárias e, em sendo assim, osfluxos migratórios do campo para a cidadeforam reduzindo. Apesar de todos os avan-ços, porém, existem outras dificuldades con-cernentes às trabalhadoras idosas aposen-tadas rurais: grande parte delas vive sem ocompanheiro, é o verdadeiro chefe-de-famí-lia e sustenta os seus dependentes com umúnico benefício previdenciário. Esses pro-blemas serão, contudo, abordados em estu-dos posteriores.

A constatação da feminização da velhice,por outro lado, colocou em evidência, aindamais, a importância da extensão dos benefí-cios da Previdência às trabalhadoras rurais,bem como a necessidade de se criar políti-cas sociais que contemplem esse contingen-te populacional. Vivendo mais tempo queos homens (os seus principais provedores,

histórica e culturalmente) e permanecendoparte da velhice sozinhas, as mulheres pas-saram a depender da aposentadoria, comoum dos mais relevantes arranjos institucio-nais de suporte na velhice.

As trabalhadoras bóias-frias, contudo,não conseguiram inserir-se nesse contextode legalidade e de avanços constitucionais:elas representam, hoje, a própria exceção àregra ou o que NEVES (1992) cognomina desubcidadãs. Os empresários, ao fazerem usoda subcontratação, na Região do Vale doSão Francisco, ou seja, ao remunerarem umaparcela significativa das trabalhadoras pordia de trabalho e/ou por produção, optan-do por não contratá-las formalmente comoassalariadas, proferem uma sentença con-denatória em relação às mesmas (e aos seusdependentes), ainda que não tenham a in-tenção de fazê-lo, compelindo-as a perma-necer à margem de uma série de benefíciosprevidenciários, tais como a proteção à ma-ternidade, o salário-família e qualquer co-bertura financeira em casos de doença, in-validez, idade avançada e morte. Dessamaneira, ao atingir a velhice, essas mulhe-res viverão ao sabor de trabalhos temporá-rios, de remunerações incertas, à mercê dodesemprego – sua maior certeza, em especi-al após os quarenta anos de idade, por jáserem incluídas no setor idoso e, via de con-seqüência, sinônimo de baixa produtivida-de, segundo a visão dos empresários –, fa-zendo parte do contingente mais miserávele excluído da população brasileira.

Isso tudo em uma região próspera queproduz frutas para a exportação, que estáinserida, na atualidade, nos mercados con-sumidores regional, nacional e internacio-nal e junto a empregadores que optam, pre-ferencialmente, pela mão-de-obra feminina.E como se esses elementos não bastassem,em plena vigência de preceitos constitucio-nais modernos, elaborados com a finalidadede proteger as(os) trabalhadoras(es) rurais.

Nesse contexto, bastante atual é a dico-tomia apontada por NEVES (1992), no to-cante à noção de cidadania: esta, “mesmo

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quando incorporada ao texto constitucional,através da abrangência da declaração dedireitos, é principalmente um termo-ques-tão de política simbólica”. Com efeito, a fal-ta de identidade do ordenamento jurídicotorna ineficaz o conceito de cidadania. Asrelações de poder se sobrepõem às questõesde ilicitude. Para o referido autor, substitu-tivo ao conceito de cidadania, coexistem doisconceitos: a subcidadania e a sobrecidada-nia. Os sobrecidadãos são aqueles “gruposprivilegiados que, principalmente com oapoio da burocracia estatal, desenvolvemsuas ações bloqueantes da reprodução dodireito”. Os subcidadãos, por outro lado,“não têm acesso aos benefícios do ordena-mento jurídico, mas dependem de suas pres-crições impositivas”.

Em outras palavras, os sobrecidadãos“desfrutam dos direitos garantidos no orde-namento, utilizam-se do texto constitucionalem prol de seus interesses e, no entanto, seomitem em fazer valer esses mesmos direi-tos para os subcidadãos. Tudo se passacomo se o brocardo romano ‘dura lex sed lex’apenas tivesse eficácia para os subcidadãos.Estes são excluídos do ordenamento no queconcerne ao âmbito real dos direitos funda-mentais; isto porque, o aparelho coercitivoestatal somente incide sobre eles com eficá-cia, na hora do descumprimento de um de-ver jurídico” (VAINSENCHER, 1996).

É claro que a dicotomia supramenciona-da não é fator desejável e positivo dentro dasociedade. Em sendo assim, considera-se defundamental importância que a sociedadecivil (organizada e/ou não organizada)pressione as Delegacias Regionais de Tra-balho (D.R.T.), vinculadas ao Ministério doTrabalho, os próprios Órgãos da Previdên-cia Social, o Ministério Público do Trabalhoe que os países estrangeiros continuem uti-lizando, efetivamente, o dumping social como objetivo de que as trabalhadoras ruraisdiaristas sejam incluídas na categoria deassalariadas. Caso isso não venha a ocor-rer, o futuro das(os) bóias-frias idosas(os)continuará reproduzindo-se da forma injus-

ta e cruel que ora se apresenta, independen-temente de todas as garantias e direitos pro-mulgados pela Constituição de 1988 e dofato de viverem hoje, essas(es) trabalhado-ras (es), em pleno século XXI. Parafrasean-do o jusfilósofo Ferdinand Lassale, a inér-cia política permitirá que a presente CartaMagna, quanto aos direitos previdenciáriosdas bóias-frias, possa ser identificada como“uma mera folha de papel”.

Notas 1 São chamadas (os) de bóias-frias as(os)

trabalhadoras(es) rurais que trabalham sem vínculoempregatício formal e que são remuneradas(os) pordia de trabalho e/ou por produção. Em outras pa-lavras, existe uma relação de trabalho, mediante aprestação de serviços, entre empregador e trabalha-dor, mas o contrato de trabalho não é formalizado.

2 Neste artigo, apenas as mulheres que se enga-javam nas atividades da agricultura irrigada comotrabalhadoras bóias-frias foram escolhidas como cer-ne de estudo. No entanto, é importante frisar queos problemas relacionados à ausência de um con-trato formal de trabalho e à impossibilidade de con-seguir uma aposentadoria incidem sobre ambos ossexos. Assinar a Carteira de Trabalho e PrevidênciaSocial é obrigatório para o exercício de qualqueremprego, inclusive de natureza rural, ainda que emcaráter temporário, e para o exercício por conta pró-pria de atividade profissional remunerada (VIAN-NA, 1999).

3 Como áreas rurais de sequeiro denominam-seaquelas áreas não irrigadas, localizadas no semi-árido nordestino e afetadas pela seca.

4 Convém ressaltar que, embora este artigo ve-nha enfocar somente as bóias-frias (hoje, idosas), foirealizada também pesquisa com um grupo de tra-balhadoras assalariadas, em relação a determina-dos problemas e fatores por elas vivenciados.

5 A primeira pesquisa realizada se intitulou“Seca, Mulher e Globalização” e foi financiada peloIDRC – International Development Research Cen-tre , no Canadá. Contou com o apoio, também, daFundação de Amparo à Ciência e Tecnologia doEstado de Pernambuco (FACEPE). A segunda pes-quisa, “A Seca Nordestina de 1998: Dimensões eCaracterísticas Socioeconômicas – Segmento Gêne-ro”, foi financiada pela Superintendência do De-senvolvimento do Nordeste (SUDENE). Ambasforam realizadas no ano de 1999.

6 As autoras utilizam aqui o conceito de Previ-dência Social de Castro & Lazzari (2001), qual seja,

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“o sistema pelo qual, mediante contribuição, aspessoas vinculadas a algum tipo de atividade la-borativa e seus dependentes ficam resguardado(a)squanto a eventos de infortunística (morte, invali-dez, idade avançada, doença, acidente de trabalho,desemprego involuntário), ou outros que a lei consi-dera que exijam um amparo financeiro ao indivíduo(maternidade, prole, reclusão), mediante prestaçõespecuniárias (benefícios pecuniários) ou serviços”.

7 “A Seguridade Social é o gênero que envolve aPrevidência Social, a Assistência Social e a Saúde.A Previdência Social vai abranger, em suma, a co-bertura de contingências decorrentes de doença, in-validez, velhice, desemprego, morte e proteção àmaternidade, mediante contribuição, concedendoaposentadorias, pensões etc. A Assistência Socialirá tratar os hipossuficientes, destinando pequenosbenefícios a pessoas que nunca contribuíram parao sistema. A Saúde pretende oferecer uma políticasocial e econômica destinada a reduzir riscos dedoenças e outros agravos, proporcionando ações eserviços para a proteção e recuperação do indiví-duo” (MARTINS, 2001, p. 22).

8 “O princípio da solidariedade não tem previ-são expressa na Constituição, mas está implícitono inciso I do art. 3º da Lei Maior, quando determi-na que a República Federativa do Brasil tem comoobjetivo fundamental ‘construir uma sociedade li-vre, justa e solidária’” (MARTINS, 2001).

9 O perfil sócio-econômico e regional da(o)beneficiária(o) da Previdência Rural é o seguinte:majoritariamente feminino (64%), morador(a) deespaço rural ou micro urbano contíguo, com baixaescolaridade (ocorrendo isso com incidência maisalta junto à população nordestina), com predomi-nância absoluta de idosas(os) e relações de trabalhoassociadas ao regime de economia familiar, e, final-mente, com fraca participação de assalariadas (os) ediaristas (DELGADO, 2000).

10 Por dumping social denomina-se a pressãointernacional que vem sendo utilizada pelos paísesimportadores para evitar que os países exportado-res possam conquistar os mercados internacionais,às expensas da sub-remuneração de sua mão-de-obra, como, por exemplo, fazendo uso da subcon-tratação e do trabalho infantil, fatores responsáveispela diminuição dos custos de seus produtos, oque representa um fator de atração bastante com-petitivo dentro do mercado globalizado.

11 Entenda-se, aqui, por sociedade civil o con-junto de associações, instituições e indivíduos quetrabalham, criando elos, para garantir a participa-ção cidadã nas decisões da vida política. Nesse sen-tido, funciona em oposição ao Estado e ao mercado.

12 Esse foi um dos argumentos que assegurou àtrabalhadora rural o direito de se aposentar cincoanos antes que a trabalhadora urbana.

13 No caso, trata-se da aposentadoria por idade.14 Em 1994, porém, três anos após a publicação

da lei, 48% das trabalhadoras rurais ainda se apo-sentavam com mais de 60 anos (GALINDO; IR-MÃO, 2000).

15 A título de esclarecimento, VIANNA (1999)lista os documentos de identificação pessoal neces-sários ao preenchimento da ficha de registro para otrabalho agrícola: fotografias, título de eleitor, cer-tificado de reservista ou prova de alistamento mili-tar, carteira de identidade, CPF, carteira de habili-tação profissional, certidão de casamento, certidãode nascimento dos filhos menores de quatorze anose o comprovante de cadastramento no PIS.

16 Tauá é um município do Estado do Ceará.17 Quando as bóias-frias empregam a palavra

sindicato, estão-se referindo ao Sindicato dos Tra-balhadores Rurais da Região, entidade que luta,sempre, pelos direitos das(os) trabalhadoras(es)assalariadas(os). O referido sindicato, porém, nãotem condições de lutar pelos direitos das trabalha-doras diaristas.

18A Articulação Nacional de Mulheres Traba-lhadoras Rurais (ANMTR) vai lançar em todo opaís a campanha de documentação Nenhuma Tra-balhadora Rural Sem Documento para as trabalhado-ras rurais. O objetivo é o de chamar a atenção dasmulheres do campo em relação à necessidade deterem os seus próprios documentos e utilizá-los,principalmente, como reconhecimento da profissãode trabalhadora rural. As mulheres, em sua maio-ria, sempre utilizaram os documentos do marido.Segundo a ANMTR, dos 18,5 milhões de trabalha-doras rurais brasileiras, apenas três milhões delastêm a profissão reconhecida. A grande maioria sópossui título eleitoral e certidão de casamento.Quarenta por cento das mulheres rurais, por outrolado, são trabalhadoras familiares não remunera-das, já que não têm a profissão reconhecida e valo-rizada. Por sua vez, 60% do setor informal brasilei-ro é composto de mulheres. Através dessa campa-nha, a ANMTR espera que, num período de umano, 50% das trabalhadoras rurais possuam o blo-co de produtora (em conjunto ou individual), ououtro tipo de documento que comprove a sua con-tribuição, e que sejam criados meios mais fáceispara a confecção dos documentos, como, por exem-plo, o encaminhamento para que a Carteira de Iden-tidade seja feita na própria comunidade rural (Jor-nal Fêmea, n. 54, Brasília/DF, julho de 1997).

19 As ações afirmativas foram concebidas, nosEstados Unidos, como medidas para compensaros efeitos da discriminação racial. O termo ação afir-mativa foi usado, pela primeira vez, pelo Presiden-te John Kennedy, sendo depois utilizado para bene-ficiar alguns segmentos da população que, histori-camente, vêm sendo tolhidos de chances de parti-

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cipação, devido aos preconceitos e às barreiras exis-tentes. No caso brasileiro, as ações afirmativas re-lacionadas às mulheres vêm sendo implementadasnos últimos anos. Nas eleições municipais de 1996,por exemplo, elas obtiveram uma grande projeção,muito embora existam propostas anteriores, nocampo do mercado de trabalho e, mais recente-mente, em relação ao acesso ao crédito para mulhe-res chefes-de-família. Vale ressaltar que essa estra-tégia de promoção da igualdade tem sido questio-nada, pelo temor que os indivíduos possuem deserem injustos na tentativa de corrigir as injustiças.No entanto, precisa-se compreender que a socieda-de é dinâmica e que as soluções para as suas difi-culdades não trazem, somente, satisfações, como,ainda, insatisfações. E que não se deve, em nomede insatisfações futuras, deixar sobreviver injusti-ças presentes. Faz-se necessário, primeiro, resolvê-las, e, então, deixar vir novas demandas (BUAR-QUE & VAINSENCHER, 2001).

20 A concessão da aposentadoria por idade àstrabalhadoras rurais, com limite de idade cinco anosinferior ao das suas companheiras urbanas, bemcomo ao dos homens trabalhadores rurais, é umganho das trabalhadoras rurais e um reconhecimen-to da dupla jornada de trabalho que elas possuem.

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Giovani Ribeiro Loss

1. Introdução

A nova dimensão econômica mundialvem provocando profundas alterações naseconomias nacionais, restringindo o cam-po de atuação dos Estados e forçando a re-visão nos limites do intervencionismo1. Tra-ta-se do fenômeno da globalização2, tal comoexplica José Eduardo FARIA:

“Abertura política, estabilizaçãoeconômica e reforma social foram osgrandes desafios da América Latina,ao longo da última década. O maiorproblema de várias nações do conti-nente foi ter de enfrentá-las ao mesmotempo, pois as respectivas lógicas, rit-mos, processos e horizontes temporaisdesses três desafios são tradicional-mente distintos e muitas vezes confli-tivos”(1998, p. 127).

Sob influência desse processo3, o Estadobrasileiro4, principalmente a partir do finaldos anos 805, implementou importantes al-terações no meio jurídico.

O direito da concorrência e a defesacomercial: complementaridade na defesa daordem econômica

Giovani Ribeiro Loss é advogado associa-do do escritório Pinheiro Neto – Advogados,em São Paulo.

Sumário1. Introdução. 2. O direito da concorrência e a

defesa comercial. 2.1. O direito da concorrência:breves comentários. 2.2. A defesa comercial: bre-ves comentários. 2.3. As diferenças óticas: carac-terização. 2.4. O direito comunitário da concor-rência. 3. A relação atual: o problema. 3.1. Art. 91:conflito de competência. 3.2. O inciso XIX doart. 21: impropriedade. 4. A complementarida-de na defesa da ordem econômica. 5. Conclusão.

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A intervenção direta estatal deixou deser supletiva à iniciativa privada, como naConstituição de 1967, sendo limitada aosimperativos da segurança nacional ou a re-levante interesse coletivo, conforme defini-dos em lei6. O Estado brasileiro passou aenfatizar a função de agente regulador enormativo, evidenciada pelo artigo 174, ca-put, da Constituição de 19887.

Também no âmbito da concorrência em-presarial, naturalmente, o fenômeno da glo-balização trouxe conseqüências, do que tra-ta Elizabeth FARINA ([19- -?], p. 63):

“Quais são as conseqüências des-se processo, no sentido de definiçãodas estratégias empresariais? O resul-tado é simples: pressão competitiva. E apressão vem de dois lados; o primeiro ladoé a competição de produtos. Produtos im-portados ou produtos que vão ser produ-zidos por empresas que vão fazer investi-mento direto nos espaços nacionais, nasregiões que integram os mercados co-muns.(...) O outro tipo de pressão compe-titiva que se cria é a pressão competitivapela compra das próprias empresas, istoé, você pode ser ineficiente e alguém enxer-gar que a sua empresa bem administradaseria um bom negócio”. (Grifo nosso)

O aumento da concorrência entre empre-sas, tanto externa, pelo crescimento do co-mércio exterior, quanto interna, pela entra-da de novos players no mercado nacional,ensejou, claramente, uma maior importân-cia jurídica do seu controle, o que fala Ges-ner OLIVEIRA ([19- -?], p. 4):

“Do ponto de vista da importân-cia da defesa da concorrência, gosta-ria de ressaltar que tanto no plano in-ternacional quanto no doméstico, o pro-cesso de globalização aumenta a impor-tância da defesa da concorrência, e não ocontrário. (...) Com o processo de de-sestatização e desregulamentação naseconomias maduras, o que ocorre éque o monitoramento dos mercadostornou-se mais importante. Essa foi aexperiência americana, essa foi a ex-

periência britânica e essa é a expe-riência, em geral, de países que dimi-nuem o grau de intervenção do Esta-do na economia. Ou seja, a menor par-ticipação do Estado na economia cor-responde à maior necessidade de mo-nitoramento dos mercados”. (Grifonosso)

Nesse sentido, deve-se considerar que aconcorrência empresarial possui duas im-portantes faces, ambas merecedoras da de-vida atenção do Estado, quais sejam: a con-corrência interna, que seria aquela que en-volve apenas os estabelecimentos dentro deum mesmo mercado 8, e a concorrência ex-terna, envolvendo os estabelecimentos loca-lizados fora do mercado, por meio das ope-rações de comércio exterior.

Uma mesma empresa pode possuir, emuitas vezes possui, concorrentes internose externos ao mesmo tempo; uma situação, éclaro, não exclui a outra. A respeito da exis-tência de duas faces do direito da concor-rência, veja-se Mauro GRINBERG:

“I. O direito interno da concorrên-cia:”

“O direito da concorrência empre-sarial tem sido objeto de grandes dis-cussões e de um extraordinário desen-volvimento nos anos recentes, daí de-correndo a grande importância dadaaos órgãos de aplicação de tal direito,notadamente a Secretaria de DireitoEconômico – SDE, órgão do Ministé-rio da Justiça, e o Conselho Adminis-trativo de Defesa Econômica – CADE”.

(...)“II. O direito externo da concorrên-

cia:”“A história do direito externo da

concorrência é menos linear e por oraainda incipiente, sendo certo que es-peramos poder traçá-la com maioresdetalhes em futuro breve”.

(...)“III. Conclusão:”“O direito da concorrência pode

ser visto como um direito de duas fa-

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ces, a interna e a externa, ambas mere-cedoras de apreciação dos que se de-dicam a tal estudo” (1996, p. 29).

No mesmo sentido, Gesner OLIVEIRA ex-plica as várias concepções do termo “con-corrência desleal”:

“...a concorrência desleal se refere porvezes à entrada de produtos estran-geiros mediante, por exemplo, a práti-ca de dumping. (...)

Trata-se de discriminação de pre-ços entre mercados diferentes, passí-vel de punição pelas regras da OMCrecepcionadas pela legislação brasi-leira (...).

Por fim, a concorrência deslealpode-se referir a práticas de concor-rentes domésticos, sendo neste casotratada pela lei de defesa da concor-rência e portanto da competência doCADE, da Secretaria de Direito Eco-nômico (SDE) e da Secretaria de Acom-panhamento Econômico (SEAE) dosministérios da Justiça e Fazenda, res-pectivamente”(2001).

É o estudo da relação entre os dois insti-tutos legais, do “Direito da Concorrência” eda “Defesa Comercial”, como instrumentosde política econômica9 , que implicam a re-gulação10 do fenômeno da concorrência, in-terna e externa, respectivamente, que se pre-tende realizar no presente trabalho.

A manutenção da Ordem Econômicanacional11, como se verá, está diretamenteligada ao emprego de tais institutos, o queimplica a necessária sintonia de sua utili-zação para o bem da “saúde” do mercado eda coletividade.

2. O direito da concorrência e a defesacomercial

2. 1. O direito da concorrência: brevescomentários

Em atenção à fiscalização12 das ativida-des econômicas13 relativas à concorrência in-terna, o Estado brasileiro promulgou a Lei

8.884/94, visando atender aos reclames deum novo contexto globalizado, em que seintenta proteger os interesses da coletivida-de (art. 1º, parágrafo único), analisando-seeficiências e antieficiências14, distribuiçãoeqüitativa dos benefícios e, ao mesmo tempo,incentivando a função social das empresas efomentando o desenvolvimento da indústria.

De fato, o intuito da criação de dispositi-vo legal com a natureza de proteção da con-corrência já existia no Brasil, tendo seu iní-cio sob a égide da Constituição de 1937, coma edição do Decreto-Lei 869/38, que veioregulamentar o art. 141 daquela Constitui-ção, não tendo sido tal dispositivo, contu-do, colocado em prática.

As Leis 4.137/6215 e 8.158/9116 se desta-caram na história do direito concorrencialbrasileiro, antes da Lei 8.884/94, restandoclaro, contudo, que o propósito de tais nor-mas era exclusivamente o caráter repressi-vo, o que não satisfaz as necessidades eco-nômico-jurídicas concorrenciais do contex-to atual.

Pela Lei 8.884/94, o legislador alterou anatureza jurídica do CADE – Conselho Ad-ministrativo de Defesa Econômica, existen-te desde a Lei 4.137/62, conferindo-lhe aposição de autarquia federal, vinculada aoMinistério da Justiça, e consagrando-lhe ospapéis educativo, preventivo e repressivo17.

O papel educativo do CADE consiste nadifusão da cultura da concorrência, pro-movida por meio de palestras, seminários, in-tercâmbios, página na internet, fórum perma-nente da concorrência, entre outros métodos.

O papel preventivo, por sua vez, dá-sepor meio da análise de “atos de concentra-ção”, como, por exemplo, fusões, aquisições,joint ventures, holdings e contratos entre em-presas concorrentes.

O papel repressivo, por fim, consiste, emsuma, na instauração de processos admi-nistrativos acerca da verificação de possí-veis infrações contra a ordem econômica.

Ademais, a Lei 8.884/94 também forma-lizou os procedimentos administrativos naanálise de casos, determinando os papéis

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da Secretaria de Direito Econômico – SDE,do Ministério da Justiça, e da Secretaria deAcompanhamento Econômico – SEAE, doMinistério da Fazenda, e iniciou a estrutu-ração de um Sistema Brasileiro de Defesada Concorrência, baseado não só nessa lei,mas também nas demais legislações quederam origem às Agências Regulatórias.

A análise do princípio constitucional dalivre concorrência18, promovida pela Lei8.884/94, deve observância ao caput doart. 170, buscando-se, por meio de sua invio-labilidade, assegurar a concorrência comomeio de alcance aos fundamentos da ordemeconômica, quais sejam, a valorização dotrabalho humano, a livre iniciativa e a exis-tência digna a todos, conforme os ditamesda justiça social, atendendo aos interessesda coletividade. Tal raciocínio resulta de suacaracterística de instrumento de política eco-nômica19, o que deixa claro a Professora Isa-bel VAZ (1993, p. 9):

“Assim como é preciso repensar oconceito de desenvolvimento, impõe-se uma análise crítica do regime daconcorrência no Brasil. Defende-se aopinião segundo a qual a concorrên-cia empresarial “não é um valor-fim,mas um valor meio” classificadacomo instituto jurídico filiado às nor-mas do Direito econômico. E nestacondição, adquire a natureza de ins-trumento de realização de uma políti-ca econômica, cujo escopo principalnão é simplesmente reprimir práticaseconômicas abusivas e sim estimulartodos os agentes econômicos a parti-ciparem do esforço de desenvolvimen-to, tal como descrito por Perroux” 20.

No que tange, também, à relação das leisda concorrência com os valores políticos,cite-se Robert PITOFSKY, presidente da Fe-deral Trade Commission – FTC:

“It is bad history, bad policy, and bad law toexclude certain political values in interpretingthe antitrust laws.‘By ‘political values’ I mean,first, a fear that excessive concentration of eco-nomic power will breed antidemocratic political

pressures, and second, a desire to enhance indivi-dual and business freedom by reducing the rangewithin which private discretion by a few in theeconomic sphere controls the welfare of all” (1979).

2.2. A defesa comercial: breves comentários

A defesa comercial brasileira tem origemmais recente do que o direito da concorrên-cia. Apesar de o Brasil ter-se tornado signa-tário dos Códigos Antidumping e de Subsí-dios e Medidas Compensatórias do GATT(General Agreement on Tariffs and Trade), atualOrganização Mundial do Comércio – OMC,ao final da Rodada de Tóquio, em abril de1979, somente em 1987 esses acordos torna-ram-se parte integrante do ordenamento ju-rídico pátrio.

Até a implementação desses Códigos,estiveram em vigor severos meios de contro-le administrativo de importação, quais se-jam, a pauta de valor mínimo e os preços dereferência (BRASIL, [19- -?]), instrumentosque conflitavam com as normas do GATT21,tornando-se fonte de desgaste permanentenos foros internacionais.

O período entre 1945 e 198022 é denomi-nado pela doutrina econômica como “subs-titutivo das importações”23, significando oprocesso de desenvolvimento interno quetem lugar e se orienta sob o impulso de res-trições externas24, o que já expressa a inten-ção eminentemente protecionista da políti-ca brasileira de comércio exterior.

Destacam-se na história da defesa co-mercial brasileira as Leis 2.145/53 e 3.244/57. A primeira criou a antiga CACEX, Car-teira de Comércio Exterior, e a segunda re-gulava a atuação da antiga CPA, Comissãode Política Aduaneira, sendo denominadaLei de Tarifas Alfandegárias25, tendo intro-duzido no Brasil a pauta de valor mínimo26

e o preço de referência27 já citados. Com a implementação de instrumentos

de política econômico-comercial que a co-munidade internacional indicava seremadequados para a defesa da indústria do-méstica, o Brasil passou a melhor se inserirno contexto do comércio internacional.

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Em dezembro de 1994, o Brasil incorpo-rou os resultados das negociações da Ro-dada Uruguai, com a edição do Decretonº 1.355, enquanto, concomitantemente,ocorreu a criação da Organização Mundialdo Comércio – OMC28, com o objetivo, pri-mordial, de institucionalizar as relações co-merciais no âmbito internacional.

Nesse contexto, o governo brasileiro de-cide pela criação de um órgão especializa-do na defesa comercial e, para tanto, em 1995,cria o Departamento de Defesa Comercial –DECOM29, da Secretaria de Comércio Exte-rior – SECEX30, do Ministério do Desenvolvi-mento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC,responsável pela instauração e instrução deprocessos relativos a essa matéria.

Ressalte-se que a investigação e defini-ção de práticas anticoncorrenciais, no quetange à defesa comercial, cabe aos países,mesmo que membros da OMC, na conformi-dade com suas legislações internas, nãodevendo a OMC decidir sobre a aplicaçãoda legislação interna dos Estados. Isso sig-nifica que a incorporação da defesa comer-cial nos contornos da OMC é facultativa, nãoobstante a decisão interna poder ser subme-tida à própria OMC, por se tratar de temaobjeto de tratado internacional dessa orga-nização (BELTRAME, 2001, p. 123).

A competência para aplicação dos dis-positivos de defesa comercial no Brasil,relacionados ao dumping , subsídios e sal-vaguardas, que, originariamente, perten-cia, conjuntamente, ao Ministério da Fa-zenda e ao MDIC, por força da MedidaProvisória 2.113-27 e do Decreto 3.756/01,passou a ser da Câmara de Comércio Exte-rior – CAMEX.

Os institutos de defesa comercial podemser assim definidos31:

• Medidas antidumping32 – visamprevenção contra o dumping, que é aexportação por uma empresa de pro-duto a preço de exportação inferioràquele praticado para produto simi-lar nas vendas para o seu mercadointerno (valor normal33).

• Medidas compensatórias – vi-sam proteger o mercado contra ossubsídios, que são concessão de umbenefício, em função das seguinteshipóteses:

1. haja, no país exportador, qualquer for-ma de sustentação de renda ou de preçosque, direta ou indiretamente, contribua paraaumentar exportações ou reduzir importa-ções de qualquer produto; ou

2. haja contribuição financeira por umgoverno ou órgão público no interior do ter-ritório do país exportador.

• Medidas de salvaguarda –medidas que objetivam aumentar,temporariamente, a proteção a umaindústria doméstica que esteja so-frendo prejuízo grave ou ameaça deprejuízo grave decorrente de au-mento, em quantidade, das impor-tações, em termos absolutos ou emrelação à produção nacional.

2. 3. As diferenças óticas: caracterização

Ambos os institutos aqui tratados, do di-reito da concorrência e da defesa comercial,tal como já referido, envolvem questões re-lativas ao fenômeno da concorrência34,mesmo que por ângulos diferentes.

Antes de tudo, deve-se considerar que,para efeito de comparação entre a defesacomercial e o direito da concorrência queaqui se fará, apenas a função repressiva doCADE deva ser objeto de análise.

Apesar de ambos os institutos envolve-rem o fenômeno da concorrência, a defesacomercial, tal como a análise das infraçõescontra a ordem econômica, atinge o ato ob-jeto de apreciação a posteriori35, o que impe-de qualquer similitude desse instituto comas demais funções do CADE, ou seja, a fun-ção educativa e a função preventiva.

2.3.1. Natureza punitiva X naturezacompensatória

Um dos diferentes ângulos pelo qual sepode distanciar o direito da concorrência ea defesa comercial refere-se às implicações

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resultantes da caracterização de condutasanticoncorrenciais.

Não se trata aqui da existência de dife-rentes sanções, mas sim de naturezas jurí-dicas díspares para as implicações resul-tantes de tais institutos.

O direito da concorrência consagra anatureza punitiva em suas implicações, es-tabelecendo a Lei 8.884/94 penas pesadasaos infratores da ordem econômica, con-substanciadas, primeiramente, em pena demulta, prevista no art. 23, e, possivelmente,em penas alternativas, previstas no seuart. 2436, quando exigir a gravidade dos fa-tos ou o interesse público geral. A respeitodas penas para o caso de infrações contra aordem econômica, cite-se João Bosco Leopol-dino da FONSECA (1999, p. 105):

“Quanto às penas cominadas pelalei, é de assinalar-se que devem serefetivamente pesadas, de tal forma adesestimular a infração da ordem eco-nômica. As penas não poderiam serleves, porque, se o fossem, seriam umincentivo para descumprir a lei: seriamais interessante pagar as multas (sesuaves) e continuar infringindo alei37”.

De fato, o próprio art. 23, inciso I, da Lei8.884/94, que trata das penas às empresas,deixa claro o intuito punitivo da lei ao des-tacar, quando se refere à pena a ser aplica-da: “a qual nunca será inferior à vantagemauferida, quando quantificável”.

O objetivo da Lei de Defesa da concor-rência, portanto, no que se refere às implica-ções da configuração de infrações contra aordem econômica, é claramente sanciona-tório, buscando por meio de sua naturezapunitiva a repressão das condutas conside-radas ilegais.

O raciocínio empregado na defesa co-mercial, por sua vez, apresenta-se, no quetange às suas implicações, bem diferente. Anatureza jurídica dos dispositivos de defe-sa comercial é uma das grandes questõeslevantadas pela doutrina. Acorda-se38, nopresente trabalho, com a posição levantada

por Tércio Sampaio FERRAZ, José Del CHI-ARO e Mauro GRINBERG (1994, p. 95):

“Em conclusão, a imposição dosdireitos antidumping e compensatóriosnão constitui pena imposta ao impor-tador, mas uma imposição para-tari-fária de direito econômico internacio-nal que reequilibra, para o mercadointerno, um equilíbrio de competitivi-dade rompido”.

De fato, as medidas de defesa comercialobjetivam constituir o preço do bem ou ser-viço em situação de normalidade. Com oobjetivo de neutralizar os efeitos danosos àindústria nacional, fruto das importaçõesrealizadas a preço de dumping, são criadosdireitos antidumping, que deverão ser iguaisou inferiores à margem de “dumping” cal-culada, buscando-se, assim, o equilíbrio dasrelações comerciais no mercado. No mesmosentido, as medidas compensatórias têmcomo objetivo, tão-somente, compensar osubsídio concedido, direta ou indiretamente,no país exportador, para fabricação, produ-ção, exportação, ou ao transporte de qualquerproduto, cuja exportação ao Brasil cause danoà indústria doméstica. No caso das medidasde salvaguarda, também, o que se busca éuma proteção ao setor da indústria momen-taneamente em crise, de forma alguma umapunição aos concorrentes desse setor.

A própria ordem internacional repudiadisposições punitivas em relação às medi-das de defesa comercial, o que, inclusive,vem sendo um problema para os EstadosUnidos, já que o Anti-dumping Act of 1916prevê que, na apuração de dumping, haven-do condenação, as penas podem variar en-tre indenização, multa ou prisão (BELTRA-ME, 2001).

2. 3. 2. Mercado relevante X mercado doproduto

Deve-se ressaltar que, também quanto àanálise do mercado, diferem-se essas duasformas de proteção à concorrência desleal.Enquanto o direito da concorrência requera determinação do chamado “mercado rele-

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vante”, para a identificação da capacidadede o agente distorcer a concorrência, a defe-sa comercial, de forma mais simples, exige,tão-somente, a determinação do mercado doproduto.

De fato, a determinação de um mercadorelevante é dos pontos mais polêmicos dodireito da concorrência. A definição de ummercado relevante envolve, em suma, doisaspectos, quais sejam: o aspecto do produtoe o aspecto geográfico, decorrendo sua rele-vância da necessidade de se avaliarem ascondições de concorrência (FONSECA,2001, p. 153).

A Resolução 15/98 do CADE definemercado relevante do produto e mercadorelevante geográfico:

“Um mercado relevante do produtocompreende todos os produtos/servi-ços considerados substituíveis entresi pelo consumidor devido às suascaracterísticas, preços e utilização.Um mercado relevante de produtopode eventualmente ser composto porum certo número de produtos/servi-ços que apresentam características fí-sicas, técnicas ou de comercializaçãoque recomendem o agrupamento”.

“Um mercado relevante geográficocompreende a área em que as empre-sas ofertam e procuram produtos/ser-viços em condições de concorrênciasuficientemente homogêneas em ter-mos de preços, preferências dos con-sumidores, características dos produ-tos/serviços. A definição de um mer-cado relevante geográfico exige tam-bém a identificação dos obstáculos àentrada de produtos ofertados por fir-mas situadas fora dessa área. As fir-mas capazes de iniciar a oferta de pro-dutos/serviços na área consideradaapós uma pequena mas substancialelevação dos preços praticados fazemparte do mercado relevante geográfi-co. Nesse mesmo sentido, fazem partede um mercado relevante geográfico,de um modo geral, todas as firmas le-

vadas em conta por ofertantes e de-mandantes nas negociações para a fi-xação dos preços e demais condiçõesna área considerada”.

Importante notar que devem ser analisa-das as chamadas barreiras à entrada paradeterminação de um mercado relevante, ouseja, as condições de acesso ao mercado.Deve-se destacar que importações não sãoconsideradas entrada, committed entry; em-bora sejam fundamentais para disciplinaro mercado, são consideradas uncommittedentry39.

No caso da defesa comercial, diferente-mente do direito da concorrência, o merca-do considerado na análise de defesa comer-cial é o de identidade (ou similaridade) físi-ca dos bens, ou seja, envolve análise apenasdo mercado de produtos, não se fazendoanálise do mercado geográfico.

Tal raciocínio tem fundamento lógico, jáque o que importa à defesa comercial, comose verá, é a proteção do mercado interno,não sendo necessária análise do espaço ge-ográfico específico das importações.

2.3.3. Coletividade X produtores domésticos

O parágrafo único do art. 1º da Lei8.884/94 deixa claro que a coletividade40 éa titular dos bens jurídicos protegidos pelaLei de Defesa da Concorrência41. Nesse sen-tido, percebe-se a importância desse postu-lado como fator de desenvolvimento, restan-do certo que seu ímpeto não é a defesa doconcorrente, mas da concorrência e de seusbenefícios para a coletividade e para o mer-cado, conforme avisa Gabrielle MARCEAU(1997, p. 19):

“O eventual erro de julgamentopor parte das autoridades de defesada concorrência, nesses casos, impli-ca a geração de maiores preços paraos consumidores e a coibição das con-dutas em relação às quais a lei anti-truste de qualquer país deseja justa-mente estimular e proteger: condutascompetitivas, voltadas, ainda que nãoexclusivamente, para a redução de

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preços. A dificuldade de distinguirconcorrência de predação tem levadoeconomistas e advogados a proverpossíveis testes ou regras prontaspara reconhecer predação em preço.Tais testes buscam distinguir os com-petidores não-eficientes dos eficientes.Não há, entretanto, nenhum consen-so em como identificar práticas pre-datórias domésticas ex ante. A dificul-dade ocorre porque a linha divisóriaentre um preço altamente competitivoe um preço predatório é bastante tê-nue. Não existe uma única definiçãoaceita do que constitui predação. Daíque essa prática é basicamente defini-da em razão de sua conseqüência: aeliminação do concorrente eficiente,aquele cuja existência, de certa forma,representa um benefício para os con-sumidores”42.

Considera-se, por conseguinte, que sãoprejudicados pela prática de infrações à or-dem econômica, primeiramente, a coletivi-dade e, somente secundariamente, as pes-soas físicas e jurídicas. A esse respeito, cite-se João Bosco Leopoldino de FONSECA(2001, p. 222):

“É preciso salientar que o titulardos bens protegidos pela lei antitrus-te é a coletividade, como consta doparágrafo único do art. 1º da lei. Asinfrações tipificadas nos arts. 20 e 21caracterizam, acima de tudo, ofensasao mercado, e só secundariamente aosindivíduos. Os prejudicados seriam,assim, a coletividade e, secundaria-mente, pessoas físicas e jurídicas”.

Seguindo esse entendimento, a Lei8.884/94 permite a representação a qual-quer interessado, em seu artigo 30, que dei-xa claro: “a SDE promoverá averiguaçõespreliminares, de ofício ou à vista de repre-sentação escrita e fundamentada de qual-quer interessado”.

Também no caso da defesa comercial,busca-se a proteção do funcionamento re-gular do mercado, por meio da manutenção

da concorrência. Sobre o objetivo43 da legis-lação antidumping, cite-se José Del CHIARO,João Marcos SILVEIRA e Selma M. FerreiraLEMES (1997, p. 64):

“Nesse sentido, em face do expos-to no item 2 acima, é indubitável que ofundamento e objetivo da legislaçãoantidumping é a PROTEÇÃO DO MER-CADO”.

Logicamente, esse também é um interes-se da coletividade, devendo-se destacar, con-tudo, que a lógica da titularidade dos direi-tos protegidos pela defesa comercial não é amesma do direito da concorrência.

Não obstante ser a coletividade tambéminteressada na imposição de medidas dedefesa comercial, a titularidade dos bensjurídicos protegidos pelo Decreto 1.355/94é dos players do mercado afetados pelo dano.

Consideram-se prejudicados, portanto,para fins de defesa comercial, em primeiroplano, os produtores domésticos do setor domercado afetado pelo dumping ou pelo sub-sídio e, em segundo plano, a coletividade44.

A própria legislação de defesa comerci-al deixa claro esse entendimento, restringin-do a possibilidade de solicitar, por meio depetição, a investigação, com vistas à aplica-ção de medidas antidumping, compensató-rias ou de salvaguarda, aos produtores ouentidades de classe prejudicados45.

De fato, a defesa comercial, diferentemen-te do direito da concorrência, busca a defe-sa dos concorrentes, produtores domésticos,frente aos exportadores estrangeiros, deven-do-se ressaltar, contudo, que não deve serentendida essa afirmação como protecionis-mo à indústria nacional ineficiente46, massim defesa da economia nacional.

O interesse da coletividade, mesmo quesua titularidade seja indireta, permanecegarantido em função do cunho preponde-rantemente político da decisão sobre a apli-cação das medidas de defesa comercial, sen-do assegurado ao governo, em circunstân-cias excepcionais, mesmo na comprovaçãode dumping ou de subsídio acionável, porrazões de interesse nacional, ou seja, de in-

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teresse coletivo, a suspensão da aplicaçãodo direito antidumping ou compensatório,sua redução, ou mesmo sua inaplicação 47.

2.4. O direito comunitário da concorrência

O direito comunitário da concorrência écondição indeclinável para o funcionamen-to de um mercado comum e contingêncianatural de sua existência, consubstancian-do-se na instituição de mecanismos de con-corrência comuns aos países participantesdesse mercado (CAMPELLO, 2001, p. 139).

Nesse particular, a relação entre o direi-to da concorrência e a defesa comercial apa-rece como ponto importante de análise paraa harmonização das normas do direito daconcorrência, o que não constitui um temanovo no âmbito da OMC48.

De fato, uma das conseqüências eviden-tes da internacionalização do comércio é oaumento das práticas anticompetitivas emnível internacional e a realização de opera-ções entre empresas que provocam efeitosem mais de um país; por isso, discute-se acriação de um direito da concorrência emnível internacional, mesmo fora do âmbitodos mercados comuns.

As regras atuais a esse respeito apresen-tam-se claramente insuficientes e os traba-lhos realizados na OCDE49, Organizaçãopara Cooperação e Desenvolvimento Econô-mico, tanto quanto na OMC50, por serem demeras recomendações, não surtiram grandesefeitos para os Estados. Mesmo existindo vá-rios grupos de estudo51 sobre o tema, não seencontrou, ainda, um denominador comum52.

O que se pretende esclarecer no presentetrabalho, no que tange aos mercados co-muns e à concorrência, é a importância daconvergência entre o direito da concorrên-cia e a defesa comercial, em particular dasnormas antidumping, no plano regional.

Tendo sido suprimidas barreiras e en-traves de origem estatal às liberdades de tro-ca, com a consecução de um espaço econô-mico de mercado único, torna-se especial-mente necessário um maior controle das re-lações de concorrência, o que só pode ocor-

rer pela quebra da defesa comercial e expan-são da abrangência da defesa da concorrên-cia, com a devida constituição de regras co-muns aos países-membros desse mercado.

Assim fez a União Européia, que, com aconsecução de uma União Aduaneira, porintermédio do Tratado de Roma, considerouesgotado o fundamento jurídico da políticaanti-dumping intracomunitária, que se funda-mentava, no período de transição, no art. 91desse tratado, criando uma política comumfrente ao dumping, baseada no art. 133.

No que tange ao Mercosul, esse raciocí-nio também fora desenvolvido, embora nãocolocado em prática, constando do art. 2º daDecisão 18/96 do Mercosul, que aprovou oProtocolo de Fortaleza, que as investigaçõesde dumping realizadas por um Estado Parteserão efetuadas de acordo com as legislaçõesnacionais somente até dezembro de 2000. É oque também defende o CADE, conforme seuRELATÓRIO anual 1998/99 (p. 176):

“Assim, parece razoável suporque a defesa de uma posição mais for-te no sentido de substituição do pa-drão de prova atual do antidumpingpara o de preço predatório incorreriaem benefícios líquidos para o País. Umamudança dessa natureza no âmbito doMercosul pareceria, além disso, opor-tuna ao proporcionar o fortalecimentoe a consolidação das relações comer-ciais na União Aduaneira, concentran-do as aspirações contidas na letra e noespírito do Protocolo de Fortaleza”.

A queda de barreiras estatais ao comér-cio, em nível comunitário, facilita a realiza-ção das práticas anticompetitivas interco-munitárias, sendo esse o principal funda-mento da convergência do direito da con-corrência e da defesa comercial nesse pla-no, objetivando-se, com isso, a manutençãodo bom funcionamento do mercado53.

3. A relação atual: o problema

O problema a ser analisado no presenteponto refere-se à relação atual entre os ór-

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gãos e as legislações que tratam do direitoda concorrência e da defesa comercial noBrasil. A primeira observação a ser feita éque o CADE e a CAMEX mantêm relaçãoincipiente, restringindo-se essa à troca deinformações quando do surgimento de ca-sos que envolvem esses institutos.

A legislação que trata da defesa comer-cial no Brasil não possui qualquer disposi-tivo que envolva sua relação com a legisla-ção do direito da concorrência, o que é justi-ficável, mesmo que não desejável, tendo emvista que seu ângulo de visão é voltado ex-clusivamente para o comércio exterior.

Diferentemente, no que tange à legisla-ção do direito da concorrência, é necessárioque existam dispositivos dessa natureza,levando-se em conta as conseqüências docomércio exterior dentro do mercado inter-no. No direito concorrencial brasileiro, essetema é tratado por dois dispositivos da Lei8.884/94, quais sejam, o art. 91 e o incisoXIX do art. 21, que, como se verá, criam con-fusão sobre a relação entre esses institutos.

3.1. Art. 91: conflito de competência

A interpretação dada ao art. 9154 da Lei8.884/94 cria conflito de competência entreo CADE e a CAMEX, ainda não analisadopela doutrina. A transcrição de parte do Votodo então Conselheiro-Relator Mércio Felsky,no Processo Administrativo nº 0800.013002/95-97, é pertinente para evidenciar o pro-blema:

“A distinção entre os conceitos(dumping, underselling e preço preda-tório), frise-se, tem conseqüências prá-ticas, uma vez que, como regra geral, aimportação de produtos com dumpingescapa à competência do CADE e àsnormas de defesa da concorrência, comexceção do caso de país não membroda OMC, conforme o art. 91 da Lei8.884/94”55.

Como se vê, o CADE, analisando o art. 91,considerou-se competente para os casos dedumping provenientes de países nãomembros da OMC. No mesmo sentido, o

ex-presidente do CADE, Gesner OLIVEI-RA, (2001c) afirma:

“Ao contrário do que freqüente-mente se imagina, casos deste tipo nãosão tratados pelo Conselho Adminis-trativo de Defesa Econômica (CADE),exceto quando o país de origem dodumping não for membro da OMC” .

De fato, ao art. 91 da Lei 8.884/94 pode-ria realmente ser dada essa interpretação,com base na informação negativa que trans-parece em sua redação, confira-se:

“Art. 91. O disposto nesta Lei nãose aplica aos casos de dumping e sub-sídios de que tratam os Acordos Rela-tivos à Implementação do Artigo VIdo Acordo Geral sobre Tarifas Adua-neiras e Comércio, promulgados pe-los Decretos nº 93.941 e nº 93.962, de16 e 22 de janeiro de 1987, respectiva-mente”.

Ocorre que o DECOM, órgão responsá-vel pela instauração e instrução de proces-sos relativos à defesa comercial, em seu re-latório anual de 1999, apresenta dados quecomprovam a análise de inúmeros proces-sos de países que não são membros da OMC.Fundamenta-se sua competência no Decre-to 1.355/94, que criou o procedimento deanálise do dumping sem fazer distinção en-tre países signatários ou não-signatários daOMC, seguindo a tradição dos instrumen-tos de defesa comercial anteriores, revoga-dos pela edição daquele decreto, que tam-bém não faziam qualquer distinção.

A esse conflito criado pela interpretaçãodada ao art. 91 da Lei 8.884/94 sugere-sesolução no presente trabalho, consideran-do-se sua importante função esclarecedora,merecendo essa questão análise da doutrina.

A propósito da solução a ser dada, antesde tudo, deve-se ressaltar a posição do Su-premo Tribunal Federal56, que entende terforça de lei ordinária o direito internacionalquando incorporado pela legislação pátria.

Assim sendo, o Decreto 1.355/94, resul-tado da Rodada Uruguai, mesmo que sob aforma de Decreto, teria força de lei ordiná-

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ria, o que implicaria a revogação de qual-quer competência sobre dumping conferidaao CADE, já que o Decreto 1.355/94 é de30.12.94, enquanto a Lei 8.884/94 é de11.06.94, portanto anterior57.

Vencido o aspecto formal, buscando-seagora uma análise mais sistemática do pro-blema, deve-se observar que as diferencia-ções entre os procedimentos dos dois insti-tutos, ressaltadas no presente trabalho, dei-xam claro que o procedimento de análise daLei 8.884/94 é totalmente diferenciado da-quele indicado pela ordem internacional,podendo, se utilizado, causar problemaspara o Brasil nos foros internacionais.

Como se não bastasse, a criação de umprocedimento específico para países não-signatários da OMC, com caráter punitivo,é contrária ao princípio da nação mais fa-vorecida, adotado pela OMC e aplicado àdefesa da concorrência brasileira58.

Por tudo isso, é de se concluir sobre esseconflito que a CAMEX é o órgão competentepara a análise de qualquer caso de dumping,seja ele de país signatário ou não da OMC,restando ao CADE, contudo, importante fun-ção quanto às conseqüências do dumpingpara a defesa da ordem econômica no mer-cado nacional.

3. 2. O inciso XIX do art. 21: impropriedade

O inciso XIX do art. 21 da Lei 8.884/94 trata exatamente da conseqüência dodumping para o mercado interno. A Lei8.158/9159, em seu art. 3º, inciso XIV, já tra-zia vedação à importação, exportação e co-mercialização de mercadoria abaixo do pre-ço praticado no país exportador. O art. 3ºda Lei 8.158/91 inspirou o art. 21 da Lei8.884/94, que trouxe novamente a questão dodumping para a concorrência, agora em seuinciso XIX, mas com algumas modificações.

Esse dispositivo, como diz Carlos Fran-cisco MAGALHÃES (1994), analisando o re-vogado inciso XIV do art. 3º da Lei 8.158/91,realiza importante função 60, objetivandopunição ao importador que tira proveito dodumping como preço predatório:

“Na lei 8.158 foi realmente umapunição, especialmente para o impor-tador, aquele que traz a mercadoria eque realmente é o responsável pelospreços predatórios praticados aqui”.

O problema a ser levantado quanto a esseinciso é que sua redação padece de certaimpropriedade, restando claro que o intuitoda crítica no presente trabalho é construti-vo em que pese a elaboração da nova Lei deDefesa da Concorrência brasileira.

Como se sabe, ao direito concorrencialnão é relevante a relação entre o exportadore o importador do produto dumpiado, essarelação é objeto da defesa comercial, sendoimportante ao direito da concorrência o re-passe do preço dumpiado ao mercado inter-no, com a possível configuração do preçopredatório. Esse também é o entendimen-to de Carlos Francisco MAGALHÃES(1994, p. 55), em comentários ao incisoXIV do art. 3º da Lei 8.158/91:

“Nós não vemos, sob o ponto devista da legislação concorrencial úni-ca e exclusivamente, não vemos ne-nhuma infração no fato de o importa-dor trazer uma mercadoria dumpia-da, vamos falar assim, a preço real-mente fora dos custos normais, quan-do acresce a este preço valores tais quecoadune a mercadoria com os preçospraticados no Brasil. Quer dizer que oimportador que não pratica preçospredatórios na revenda não estariasujeito a sanções previstas neste dis-positivo, o que é diferente na imposi-ção tarifária, cujo mérito eu não gos-taria de entrar”.

Por essa razão, a redação dada ao incisoXIX parece totalmente imprópria, já que, nãoobstante a ausência do termo “comercializar”,a existência de qualquer discriminação apaíses não-signatários do Código Antidum-ping e Subsídios da OMC não tem razão deser. Afinal, os prejuízos causados ao merca-do interno pela comercialização de merca-doria dumpiada proveniente de país mem-bro ou não da OMC são os mesmos. Da mes-

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ma forma, não importa a que preço a merca-doria foi importada, se a preço de custo ounão; o que importa é o preço de revenda des-sa mercadoria para o mercado interno, se épredatório ou não.

A necessidade de alteração do incisoXIX, art. 2161, é clara e necessária, devendo olegislador fazê-la com vistas a esclarecer acoletividade, maior interessada.

4. A complementaridade na defesa daordem econômica

No que tange às similitudes entre o di-reito da concorrência e a defesa comercial,POSNER (1998, p. 335) faz uma importanteconstatação, que merece reflexão:

“Although the anti-dumping andcountervailing-duty provisions are notconventionally classified as antitrust laws,they rest, or at least purport to rest, onsimilar policies”.

Para Posner, tanto o dumping quanto ossubsídios representam desvios de eficiên-cia e de preços competitivos, guardando apolítica de defesa comercial, portanto, ex-trema similaridade com a política do direitoda concorrência.

Essa conclusão a que chegou Posnerleva a um raciocínio simples, mas que o di-reito brasileiro ainda não ponderou: a com-plementaridade entre essas duas políticas.

No Brasil, de fato, essa complementari-dade encontra ainda mais fundamentos,porquanto, no direito brasileiro, o direito daconcorrência ganhou nítida posição de ins-trumento de política econômica, garantin-do-se a concorrência como valor-meio paraa consecução do desenvolvimento econômi-co, interesse da coletividade62. A esse respei-to, cite-se Paula FORGIONI (1998, p. 171):

“Tendo-se em mente os objetivos daLei Antitruste, aparece clara, conjunta-mente com o aspecto instrumental des-se tipo de norma, sua aptidão para ser-vir à implementação de políticas pú-blicas, especialmente de políticas eco-nômicas entendidas como ‘meios de

que dispõe o Estado para influir demaneira sistemática sobre a economia’”.

A política da defesa comercial tambémtem esse condão, o cunho político das deci-sões de defesa comercial é reconhecido pelaprópria OMC, uma vez que a imposição ounão de direitos antidumping ou compensa-tórios é uma faculdade e não uma obriga-ção. Nesse sentido, cite-se José Del Chiaro,João Marcos Silveira e Selma Ferreira Lemes:

“Sempre condicionada à isenta eobjetiva constatação e comprovaçãoda prática de dumping , a imposiçãode direitos antidumping , no entanto,envolve um juízo de conveniência eoportunidade, tratando-se preponde-rantemente de uma decisão política”63.

Já que instrumentos de política econô-mica (NUSDEO, 2000, p. 193), ligados, decerta forma, à política de Estado e à políticade governo64, incoerente qualquer conflito en-tre esses institutos, devendo ser estabelecidauma sintonia na aplicação dessas políticas.

A defesa da ordem econômica, consis-tente na manutenção do funcionamento re-gular do mercado, conforme os ditames cons-titucionais do art. 170, é obrigação do Esta-do brasileiro, necessitando para o corretoexercício dessa função a regulação da con-corrência tanto no âmbito das atividades docomércio interno quanto no âmbito das ati-vidades do comércio exterior, que, natural-mente, também tem conseqüências diretaspara o mercado.

Por essa razão, defende-se a idéia de queo direito da concorrência e a defesa comer-cial são instrumentos de política econômi-ca complementares na defesa da ordem eco-nômica, sendo necessário que suas funçõessejam exercidas em harmonia, objetivandoa proteção da concorrência, enquanto va-lor-meio para o desenvolvimento e o bem-estar da coletividade.

5. Conclusão

Como se sabe, a política governamental65

tem grande influência sobre o desenvolvi-

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mento econômico e social do Estado. A esserespeito, cite-se Michael E. PORTER (1989,p. 700):

“A taxa potencial de aprimora-mento de uma economia é fixada peloritmo em que melhora a quantidade e,especialmente, a qualidade dos fato-res. Para conseguir alta produtivida-de, as empresas devem ter acesso àreserva de recursos humanos avança-dos e especializados, ao conhecimen-to científico, às informações econômi-cas, à infra-estrutura e a outros fato-res de produção, que estejam semprese aprimorando. As condições de fa-tores devem, também, estimular asempresas a melhorar suas vantagenscompetitivas com o tempo. A políticagovernamental tem um papel em cadauma dessas áreas”.

O direito da concorrência e a defesa co-mercial, nesse particular, aparecem comoimportantes instrumentos da política eco-nômica, complementares na manutenção dofuncionamento regular do mercado e nabusca do bem-estar da coletividade, deven-do, por essa razão, serem interpretados eaplicados em sintonia.

Os dispositivos da Lei de Defesa daConcorrência que tratam do tema no Brasil,aqui analisados, acabam não exercendo afunção de promover a política harmônica,causando confusão na interpretação e nacompetência desses institutos.

Sugere-se, por isso, nesta breve conclu-são, um estudo mais aprofundado acercadessa questão, buscando-se a formulação dedispositivos capazes de vincular esses doisinstitutos, visando à regulação harmônicadas atividades de comércio interno e exter-no, tão importante para a coletividade.

Notas1 A esse respeito, cite-se Pedro Mercado PACHE-

CO: “Por otro lado, los desarrollos en la teoría eco-nómica durante los últimos años habían puesto unénfasis especial en la consideración de la estructura

institucional en la que se enmarcaba todo problemaeconómico. La clave para comprender teorías comola de la Elección Pública o de los property rights estáen la reformulación estatal...” ([19- -?], p. 165).

2 Michael Pettis, em ensaio publicado no jornalValor Econômico dos dias 11/05 e 18/05/2001,adaptação de seu livro mais recente “The volatilitymachine: emerging economies and the threat of financialcollapse”: “As primeiras ondas de globalização, to-das elas muito semelhantes à atual, correspondemmais ou menos aos vários estágios da revoluçãoindustrial – e nisso não há nenhuma coincidência.Tal como a nossa versão dos anos 90, cada umdaqueles estágios anteriores caracterizou-se por umaexpansão formidável do comércio e dos investimen-tos internacionais, um progresso admirável nosmeios de transporte e nas comunicações, além dadifusão aparentemente irrestrita de aplicações co-merciais derivadas das inovações tecnológicas ”.

3 Em 1994, dá-se a implantação da Tarifa Ex-terna Comum – TEC, que insere o Brasil no novocenário do comércio internacional, mais especial-mente no Mercosul.

4 Inicialmente, a abertura comercial brasileiraobjetivava, primordialmente, a redução da espiralinflacionária e o desenvolvimento do parque indus-trial por meio da exposição à concorrência.

5 A partir dos anos 70, com o aumento da par-ticipação dos países em desenvolvimento no mer-cado mundial, os países ricos passaram a utilizarintensamente restrições não tarifárias para prote-ger suas indústrias, tais como, quotas de importa-ção, normas técnicas, de qualidade, meio ambien-te, condições de trabalho e leis comerciais de coibi-ção à entrada de produtos estrangeiros.

6 Constituição Federal de 1988, art. 173.7 A respeito da Ordem Econômica na atual Cons-

tituição, cite-se o Prof. Eros Roberto Grau, em aná-lise dos entendimentos dos Professores Washing-ton Peluso Albino de Souza, Tércio Sampaio FerrazJúnior e José Afonso da Silva: “a ordem econômica naConstituição de 1988 contempla a economia de mercado,distanciada porém do modelo liberal puro e ajustada àideologia neoliberal (Washington Peluso Albino deSouza); a Constituição repudia o dirigismo, porémacolhe o intervencionismo econômico, que não sefaz contra o mercado, mas a seu favor (Tércio Sam-paio Ferraz Júnior); a Constituição é capitalista,mas a liberdade apenas é admitida enquanto exer-cida no interesse da justiça social e confere priori-dade aos valores da economia de mercado (JoséAfonso da Silva)” [grifo nosso] (1990. p. 212).

8 Refere-se a “mercado” no presente sentido,como os mercados geográficos nacionais, ou seja,como a comercialização na área geográfica que com-preende as fronteiras de um país.

9 O Prof. Calixto SALOMÃO FILHO trata daclassificação do direito antitruste e da regulaçãocomo instrumentos de política econômica ou ga-

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rantias institucionais. Conclui o Prof.: “Não é pos-sível resolver definitivamente, ao menos do pontode vista dogmático, a questão da classificação doantitruste e da regulação como instrumentos depolítica econômica ou garantias institucionais”. Noque tange ao sistema brasileiro, especificamente:“O raciocínio institucional não exclui, portanto, dalógica regulatória os objetivos de política econômi-ca. Apenas impede a submissão da regulação aesses últimos” (2001, cap. v).

10 Tal como no livro do Prof. Calixto SalomãoFilho utilizamos o vocábulo “regulação” no pre-sente trabalho de uma forma bastante ampla (2001,p. 15).

11 De fato, o conceito de Ordem Econômica é dedifícil determinação, encontrando várias conotações,sendo essa expressão até mesmo criticada por pro-fessores renomados, a exemplo do Prof. Eros Ro-berto Grau. Vital Moreira, em seu livro A ordemjurídica do capitalismo, revela três sentidos da ex-pressão “ordem econômica”, citados pelo Prof. ErosRoberto GRAU (1988, p. 69), quais sejam: o modode ser empírico de uma determinada economia con-creta; conjunto de todas as normas (ou regras deconduta) qualquer que seja a sua natureza (jurídi-ca, religiosa, moral, etc.), que respeitam à regula-ção do comportamento dos sujeitos econômicos;ordem jurídica da economia. Parece importantetambém citar o conceito simplificado dado porWashington Peluso Albino SOUZA: “um con-junto de princípios que, funcionando harmonio-samente, oferecem-nos tanto a concepção de ‘sis-tema econômico’ quanto a de ‘regime econômi-co’” (1999, p. 189).

12 É pela intervenção indireta do Estado na ati-vidade econômica normatizando-a e regulando-a,por força do art. 174 da Constituição de 1988, quese busca assegurar o direito constitucional à livreiniciativa, por meio da garantia à livre concorrên-cia, enquanto condição para que o abuso da liber-dade de comércio e da indústria não comprometa ofuncionamento regular dos mercados e a exploraçãodos meios de produção, de acordo com as aptidõese as disponibilidades dos agentes econômicos”.

13 A promoção da livre concorrência, objetivoprimordial da Lei 8.884/94, apresenta-se comomanifestação da livre iniciativa, que, por sua vez,constitui-se como fundamento do Estado Democrá-tico de Direito (art. 1º, IV, da CF/88) e da ordemeconômica nacional (art. 170, caput, da CF/88).

14 A análise econômica do direito da concorrên-cia, verificada pela jurisprudência, determina quesomente a presença de ganhos de eficiência podejustificar autorização, de ato ou conduta, por par-te dos órgãos de defesa da concorrência, devendo aavaliação dos efeitos líquidos em termos de eficiên-cia ser passo conclusivo a ser realizado. O critério

de avaliação pela “Rule of reason” (Regra da ra-zão), consagrado no direito concorrencial brasilei-ro, consiste exatamente nisso.

15 A influência da legislação americana sobre aLei 4.137/62 é clara.

16 A edição da Lei 8.158/91 criou dualidadeindesejável de legislações concorrenciais, já que, ten-do revogado apenas parte da Lei 4.137/62, ambasas leis continham definição de ilícitos concorrenciais,o que veio a ser solucionado pela promulgação daLei 8.884/94.

17 Tais papéis estão normatizados na legislaçãoconcorrencial brasileira, tanto na Lei 8.884/94 quan-to nas resoluções do Conselho.

18 Foi somente na Constituição de 1988 que alivre concorrência alcançou a configuração de prin-cípio “Da Ordem Econômica e Financeira”.

19 Tal como diz o Prof. Calixto Salomão Filho,ver nota 9, a lógica regulatória não deve-se subme-ter apenas aos interesses da política econômica,devem ser asseguradas as garantias institucionais.

20 VAZ (1993, p. 9). No mesmo sentido, asseve-ra Luís Cabral Moncada que: “a concorrência é en-carada como o melhor processo de fazer circular eorientar livremente a mais completa informaçãoeconômica, quer em nível do consumidor quer emnível dos produtores, esclarecendo as respectivaspreferências. É por isso que a sua defesa é objeto depolítica econômica”([19- -?], p. 313).

21 Tais dispositivos eram extremamente prote-cionistas, atingindo indiscriminadamente as impor-tações, independentemente da comprovação dedano ao mercado interno.

22 No período do Brasil República anterior a 1945,não existiam normas de regulação do comércio in-ternacional, sendo o crescimento industrial brasilei-ro baseado nas exportações.

23 De fato, esse termo tem várias conotações,mas essa é a conotação mais difundida na AméricaLatina.

24 GUEDES; PINHEIRO (1996). Asseveram asautoras que, segundo Rogério Werneck, ocorreramduas fases de substituição de importações no país.A primeira, pós Segunda Guerra, denomina-se faseclássica, baseando-se a restrição externa na balan-ça comercial, predominando as restrições quantita-tivas. Na segunda fase, que se inicia na década de70, a restrição externa se fundamenta no endivida-mento do país.

25 Foi essa lei que primeiro considerou a questãodo dumping, sendo ela posteriormente modificadaem parte pelo Decreto-Lei 730/69.

26A pauta de valor mínimo constituía-se em umarelação de produtos estrangeiros com pré-fixaçãoda base de cálculo para o Imposto de Importação(art. 9º Lei 3.244/57). O Decreto-Lei 730-69 veioespecificar quando seria permitido à CPA estabele-cer a pauta de valor mínimo.

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27 O preço de referência constituía-se em medi-da corretiva quando acentuada a disparidade depreços de importação, incidindo como base de cál-culo do Imposto de Importação.

28 A criação da OMC, sucessora do GATT, ins-titucionaliza internacionalmente as relações comer-ciais e facilita a implementação das regras acorda-das entre países-membros.

29 O DECOM divide-se em 3 gerências e 1 con-sultoria: GEAPE – Gerência de Produtos Agrope-cuários; GERIN – Gerência de Produtos Intermediá-rios; GEMAC – Gerência de Metais e Bens Acaba-dos; e COTEC – Consultoria Técnica e Normativa.

30 A SECEX divide-se em 4 departamentos:DECEX – Departamento de Operações de Comér-cio Exterior; DEINT – Departamento de Negocia-ções Internacionais; DECOM – Departamento deDefesa Comercial; e DEPOC – Departamento dePolítica de Comércio Exterior.

31 Os conceitos aqui citados são fundamenta-dos no Manual de Defesa Comercial, da Secretariade Comércio Exterior – SECEX, do Ministério daIndústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior –MDIC (BRASIL, [19- -?]).

32 Importante diferenciação conceitual destacouo Professor Welber BARRAL, ([19- -?], p. 129-144).O dumping caracteriza-se pela discriminação de pre-ços entre mercados nacionais distintos, enquanto ounderselling pode ser identificado a partir da vendade produtos abaixo de seu preço de custo. Por fim,o preço predatório é a venda de produtos a preçosimpraticáveis no mercado interno.

33 O valor normal é, em princípio, o preço semimpostos, ex fabrica, e à vista, pelo qual a mercado-ria exportada é vendida no mercado interno do paísexportador, em volume significativo e em opera-ções comerciais normais, isto é, vendas a compra-dores independentes e nas quais é auferido lucro. Amargem de dumping , assim, vai ser a diferença en-tre o valor normal e o preço de exportação.

34 A relação entre dumping e concorrência é bemretratada: “Daí concluir-se que a melhor maneira dese evitar o dumping é privilegiar todas as formas decompetição” (1996).

35 Apenas no caso das salvaguardas sua atua-ção será preventiva, já que o dano potencial podeser objeto de salvaguardas, como será melhor ex-plicado.

36 O art. 24 da Lei 8.884/94 traz penas alterna-tivas a serem aplicadas em conjunto com as mul-tas, condicionando-as à necessidade no caso con-creto. Interessante destacar que a quebra de paten-tes de titularidade do infrator é uma das possibili-dades aventadas pela lei. Em resposta à Consulta031/99, realizada pelo Ministério da Saúde, cujoRelator foi o Conselheiro Mércio Felsky, o CADEconsiderou ser possível a utilização desse disposi-

tivo para o caso de medicamentos, é claro, com aatenção dos requisitos legais.

37 Esse é o raciocínio da análise econômica dodireito.

38 Em posição contrária: Tavoralo ([1997?],p. 249). No mesmo sentido, MÉLEGA (1991, p. 353).

39 Processo Administrativo 0800.013002/95-97, Representante Labnew Indústria e ComércioLtda. e Representadas Merck S.A. Químicas e MBBioquímica Ltda.

40 Os prejudicados poderão, por si próprios,ingressar em juízo para garantir seu direto subjeti-vo material que foi lesado, em conformidade com oart. 29 da Lei 8.884/94.

41 Seguindo esse entendimento, a Lei 8.884/94permite a representação a qualquer interessado, emseu artigo 30, que deixa claro: “a SDE promoveráaveriguações preliminares, de ofício ou à vista derepresentação escrita e fundamentada de qualquerinteressado”.

42 Segundo a autora, vários aspectos dessa afir-mação simples remanescem não resolvidos. A au-tora pergunta: O que é um competidor eficiente? Oque é eficiência? Que período temporal de referên-cia deve ser tomado para análise? Deve a predaçãodizer respeito somente com eficiência? Existe algu-ma circunstância em que um ofertante menoseficiente deveria ser protegido? Devem tentativasde predar ser punidas? A história do Sherman Actidentifica “eficiência econômica” com “produçãoem escala a baixo custo unitário”, o que teria quever com a própria competitividade interna e exter-na das empresas e com o próprio bem-estar doconsumidor.

43 No mesmo sen t ido : RODRIGUES ( 1 9 9 6 ,p. 29).

44 O Relatório Anual do CADE 1998/99, emsua página 172, traz a seguinte afirmação, que cor-robora com o entendimento expressado: “No en-tanto, diferentemente do antitruste, o foco de aná-lise na determinação do dano na prática de dum-ping não é o consumidor mas as empresas nacio-nais”.

45 Circular SECEX, n. 20, de 02.04.96, traz osrequisitos da petição a ser apresentada pelos peti-cionários.

46 Ver BELTRAME; LACERDA (2001, p. 123).Os autores José Del Chiaro, Tércio Sampaio e Mau-ro Grinberg também fazem essa ressalva.

47 Regulamentação Antidumping, Decreto1.602/95, art 64, e Regulamentação de MedidasCompensatórias, Decreto 1.751/95, art. 73.

48 “ A Carta de Havana de 1984 é considerada oprimeiro documento internacional a tratar dotema...” (SANTOS, 2001, p. 43).

49 Ver nota 50. A autora Maria Cecília Andradedestaca que a OCDE adotou a “Recomendação do

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Conselho referente à cooperação entre Estados-membros sobre as práticas restritivas ao comércioque afetem o comércio internacional”, em 1967, em1973, a “Recommendation Concerning and Concili-ation Procedure on Restrictive Business PracticesAffecting International Trade”, finalmente, em1976, as “Diretrizes comportamentais para empre-sas internacionais”.

50 Em vários instrumentos legais da OMC po-dem ser encontrados dispositivos relacionados comos princípios da política da concorrência.

51 Existem grupos de estudo no âmbito daOCDE, da UNCTAD, Conferência das NaçõesUnidas sobre Comércio e Desenvolvimento, do Ban-co Mundial e da OMC.

52 A cooperação entre as agências de defesa daconcorrência visando o combate aos cartéis de ex-portação, pela introdução do princípio do “positivecommity”, é um dos pontos fundamentais da agen-da na defesa da concorrência internacional. Esseprincípio transfere a iniciativa para os Estados cu-jos interesses são afetados, aos quais é dada a op-ção legal de requisitar a outro Estado que inicie osprocedimentos de execução apropriados (RELA-TÓRIO..., 1998/1999, p. 175).

53 SALOMÃO FILHO (1998, p. 40). No mesmosentido, FORGIONI (1998, p. 397).

54 Referidos regulamentos da OMC tratamda legislação ant idumping e de medidas com-pensa tór ias .

55 P. A. 08000.013002/95-97, Representante La-bnew e Comércio Ltda. e Representadas Merck S.A.Indústrias Químicas e MB Bioquímica Ltda., Votodo Conselheiro-Relator Mércio Felsky, p.2.

56 Vide decisão no R.E. 71.154. No mesmo sen-tido: REZEK (1995, p. 106).

57 Lei posterior derroga lei anterior.58 OLIVEIRA (2001, p. 51). O RELATÓRIO

anual do CADE 1998/99 trata do tema na suapágina 170.

59 Por influência do Anti-dumping Act of 1916,dos Estados Unidos, que prevê, na apuração dedumping , penalizações de indenização, multa ouprisão, a Comissão, responsável por elaborar ante-projeto da lei concorrencial brasileira de 1988, inse-riu dispositivo no anteprojeto, que vinha a ser oart. 23, alínea q. A Lei 8.158/91, que incorporouvários dos dispositivos antes previstos no referidoanteprojeto de 1988, reproduziu, em seu art. 3º ,inciso XIV, o antigo art. 23, alínea q, do anteprojeto,mantendo essa vedação.

60 Segundo Carlos Francisco Magalhães, antesda existência do dispositivo da legislação de 1991,já existiam precedentes na jurisprudência do CADEsobre problemas de importação com dumping e co-mercialização por preço predatório, o que im-pulsionou a criação de norma, com intuito puniti-vo específico para esses casos.

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61 As conseqüências da má redação acabam porser evitadas por força da regra da razão, consubs-tanciada na sistemática da lei em considerar infra-ção as condutas que acarretam os efeitos previstosno art. 20.

62 Ver nota 20. Isabel Vaz explica bem a questãoda concorrência como valor-meio.

63 Ver nota 44, p. 67.64 Tércio Sampaio Ferraz explica a relação da

Política de Estado, da Política de Governo e dodireito antitruste no Brasil ([19- -?], p. 124).

65 Aqui não se trata da política de governo ouda política de Estado, mas da junção de ambas.

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Mariá Brochado

1. Introdução

O pensamento jurídico contemporâneotem-se defrontado com um dos problemasmais importantes no que diz respeito à apli-cação do direito: a efetivação judicial dosdireitos fundamentais. O problema da de-claração desses direitos, parece, tem sido so-lucionado desde a Revolução de 1789, mashoje a grande questão é o momento da apli-cação, em que podem surgir conflitos entretais direitos ou princípios que resguardamo Estado Democrático de Direito, o que temexigido da jurisprudência constitucional,com base no desenvolvimento da Doutrina,um acentuado esforço hermenêutico.

Pretende-se com este artigo desenvolverum estudo sobre o tema candente do princí-

O princípio da proporcionalidade e odevido processo legal

Mariá Brochado é Especialista e Mestra emFilosofia do Direito pela Faculdade de Direitoda UFMG, Professora de Instituições de Direi-to da Universidade Estácio de Sá, em Belo Ho-rizonte, Professora de Filosofia do Direito eIntrodução ao Estudo do Direito da Faculdadede Direito do Médio Piracicaba, Professora deTeoria Geral do Direito do Curso de Pós-gra-duação em Direito do Instituto de EducaçãoContinuada da Pontifícia Universidade Católi-ca de Minas Gerais, Professora de Filosofia doDireito do Curso de Pós-graduação em Direitoda Ordem dos Advogados do Brasil – SeçãoMinas Gerais, Assessora Jurídica do Gabineteda Procuradoria Geral do Município de BeloHorizonte.

Sumário1. Introdução. 2. Questão prolegômena: o

processo na órbita constitucional. 3. O devidoprocesso legal. 3.1. Notícia histórica do institu-to. 3.2. As fases do devido processo legal: adje-tiva e substantiva. 3.3. O devido processo legalatualmente. Algumas considerações críticassobre o tema. 4. O princípio da proporcionali-dade ou razoabilidade e sua aplicação em ma-téria de direitos fundamentais. 4.1. Conceito esentidos do princípio da proporcionalidade. 4.2.A proporcionalidade e os direitos fundamen-tais. 5. A proporcionalidade e o devido proces-so legal. 6. O princípio da proporcionalidade eo devido processo legal no sistema jurídicobrasileiro. 7. Ainda algumas considerações so-bre o tema. 8. Tripla conclusão: Sistêmica, Téc-nica e Ontológica.

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pio da proporcionalidade, quer sob a óticateórico-jurídica, quer sob o prisma do seudesenvolvimento prático, envolvendo, por-tanto, as posições que tratam do denomina-do “devido processo legal”.

O trabalho desenvolve-se a partir de duasvertentes: a que considera o tema sob o pris-ma do due process of law e a que o consideracomo “princípio da proporcionalidade” etem como objetivo expor as posições doutri-nárias mais importantes sobre o assunto,demonstrando a necessidade de elevar otema a uma consideração jusfilosófica. Jus-tifica-se, portanto, pela relevância científicado tema e pela inegável atualidade.

2. Questão prolegômena: o processona órbita constitucional

Gustav Radbruch aborda a questão pro-cessualística numa perspectiva jusfilosófi-ca e, dentro da sua doutrina de basesneokantianas, relaciona o processo aos trêslados que, segundo ele, compõem o concei-to (ou idéia) de direito. São eles: “a idéia dejustiça, a de fim do direito e a da sua seguran-ça ou certeza” (1961, p. 118).

A idéia de fim no direito o coloca em si-tuação de dependência direta com o Estado,ou seja, com os fins preconizados por ele. Já ajustiça e a segurança colocam-no em posiçãode supremacia com relação ao próprio Esta-do, transbordando “em larga escala para forados próprios limites do Estado” (p. 118).

A justiça exige a generalidade e a igual-dade da norma jurídica para todos os seusdestinatários e a segurança exige a obriga-toriedade do direito positivo, sem se impor-tarem respectivamente com o fato de estar ageneralidade da norma jurídica de acordocom os fins estatais, ou a sua obrigatorieda-de ser ou não conveniente para o Estado.Assim, “mesmo que o ‘conteúdo’ do direitopossa ser predominantemente determinadopelos fins do Estado, o que, não obstante, per-manece indiscutível é achar-se a forma do ‘ju-rídico’, por definição, colocada fora e maisacima de toda influência desses fins” (p. 118).

O princípio da independência do juiz nãoé senão corolário da cautelosa separação fei-ta entre direito e atividade política. O direi-to nasce de fins, mas se torna independentedeles, impondo-se posteriormente por uma“autovalidade”, que se expressa na sua obri-gatoriedade (ou força vinculante) (p. 119).Qual seria o papel do processo diante des-sas três idéias?

Com relação à finalidade do direito, te-mos que o direito processual tem como obje-tivo auxiliar a realização do direito material;contudo, vale por si mesmo, “é obrigatório,não só no caso de não auxiliar coisa algu-ma, como até mesmo no de prejudicar essarealização” (p. 120). E Radbruch acrescentaque o direito não conhece imperativos hipo-téticos, inclusive o próprio direito proces-sual, cuja validade independe do seu valorcomo meio para atingir um fim. Até o direitoprocessual, com toda a sua definição finalís-tica, só conhece imperativos categóricos, quevalem por si mesmos, em face da obrigatorie-dade própria do direito positivo (p. 120).

A independência entre direito material edireito formal distingue dois tipos de rela-ção jurídica: a relação jurídica processual ea relação jurídica material. Tal distinção trazalgumas conseqüências práticas que vão-se concretizar sob a forma da segurança nodireito. Radbruch se refere à questão da pro-va em direito. Segundo ele, um advogadopode, por exemplo, pedir a absolvição doréu, alegando a falta de provas sobre a prá-tica de um determinado delito, mesmo sa-bendo pessoalmente da sua culpabilidade.Quando o faz, “não deixa de advogar o di-reito, conquanto esse direito seja um direitopuramente formal e não material” (p. 121).Essa obrigatoriedade do direito processual,ainda que em oposição ao material, justifi-ca-se pelo valor da segurança jurídica. As-sim, a sentença transitada em julgado ad-quire força independentemente de se encon-trar em harmonia com o direito material.

Podem aparecer situações em que hajatal injustiça e tal inadequação do direito aoseu fim, que o valor da segurança jurídica

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não consegue compensar. É o problema danulidade absoluta de certos casos julgados,em virtude de vícios que colocam em risco aprópria idéia de direito: “a razão que se ele-va contra a força obrigatória da sentença...éainda uma razão nascida dessa mesmaidéia de segurança, ou seja, a mesma quereclama a própria efetivação do direito ma-terial e formal” (p. 128).

Conceituando o processo em si mesmo ,como desenvolvimento autônomo, o que jus-tamente garante a sua obrigatoriedade ou“autovalidade”, como entende Radbruch,podemos entendê-lo como o “conjunto deatos, fatos ou operações que se agrupam deacordo com certa ordem, para atingir umfim, cujo objetivo fundamental é a decisãode um conflito de interesses jurídicos. Estesatos e formas, que movimentam a vida jurí-dica, fornecem-nos a primeira idéia de pro-cesso” (BARACHO, 1984, p. 117).

Sobre a discussão quanto à relação jurí-dica de direito processual, o jurista italiano ElioFazzalari não a admite inserida no conceitode processo, como anota Cintra, Grinover eDinamarco. Define processo como o proce-dimento realizado em contraditório, e, nolugar de uma composição restrita sob a for-ma de relação jurídica, deve-se possibilitaruma abertura à participação no processo,participação essa garantida constitucional-mente. Esclarecem ainda que, “na realida-de, a presença da relação jurídico-proces-sual no processo é a projeção jurídica einstrumentação técnica da exigência po-lítico-constitucional do contraditório”(1998, p. 283).

A idéia de processo se engrandece quan-do pressuposta como própria garantia dapessoa humana, ou seja, quando assim éconsiderada pelas Constituições dos Esta-dos democráticos. O processo aparece vin-culado à moderna concepção de Estado So-cial de Direito1, no sentido de que “o EstadoSocial de Direito, como Estado de Justiça,visto sob o ângulo do ordenamento consti-tucional e suas relações com as categoriasprocessuais, deve tornar possível a justiça a

todos os governados, com apoio nos direi-tos humanos mais importantes: o direito àjustiça e à jurisdição” (BARACHO, 1984, p.128)2. O Estado Social de Direito pode serentendido como Estado de Justiça no senti-do de que nele a mera legalidade formalpode ser substituída ou acompanhada deconsiderações sobre o conteúdo, apoiadasnão em valores do indivíduo isolado, masnos da pessoa associada, os quais podemconstituir-se em uma ordem baseada na so-lidariedade (ZAMUDIO, 1980, p. 76).

Dado que o processo é a própria formaque possibilita a garantia da pessoa huma-na; dada a relevância da tutela dessa ga-rantia por todos os ordenamentos jurídicosatuais, enquanto expressão da garantia adireitos humanos, torna-se imprescindívelsua positivação sob a forma de garantiasconstitucionais, em última análise, sob aforma de direitos constitucionais fundamen-tais3.

Partindo dessa conclusão, podemoscompreender melhor a extensão da necessi-dade de uma reflexão vinculada entre pro-cesso e Constituição no mundo contempo-râneo. Nesse sentido aparece o processoconstitucional, que, como explica José Al-fredo de Oliveira Baracho, “abrange, de umlado, a tutela constitucional dos princípiosfundamentais da organização judiciária edo processo; de outro lado, a jurisdição cons-titucional” (BARACHO, 1984, p. 125-126).

Como a proposta deste estudo é desen-volver os temas “princípio da proporciona-lidade” e “devido processo legal”, limitar-se-á ao aspecto tutelar constitucional do pro-cesso, enquanto engloba o direito de ação ede defesa e outros postulados que dessesdecorrem (p. 126). Não trataremos especifi-camente da organização judiciária enquan-to tutelada constitucionalmente, e nem dajurisdição constitucional enquanto contro-le judiciário da constitucionalidade das leis,atos administrativos e liberdades. Nossoobjetivo é principiológico e não estruturalou procedimental. Nesse sentido é que tra-taremos do princípio da proporcionalidade

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e de sua expressão no devido processo le-gal, com seus postulados fundamentais.

Ressaltemos, ainda, que o Direito Pro-cessual Constitucional não se apresentacomo ramo autônomo do Direito Proces-sual, mas sim, o que também é enfatizadopor Oliveira Baracho, como “uma coloca-ção científica de um ponto de vista metodo-lógico e sistemático, do qual se pode exami-nar o processo em suas relações com a Cons-tituição” (p. 125).

3. O devido processo legal

3.1. Notícia histórica do instituto

O instituto do devido processo legal temsua origem na Magna Carta do Rei João“Sem Terra”, já no limiar do século XIII, ini-cialmente concebido como simples limita-ção às ações reais. Foi positivado expressa-mente no art. 39 daquele documento, a prin-cípio sob a locução law of the land, “que as-segurava aos homens livres, notadamenteaos barões vitoriosos e aos proprietários daterra (state holder), a inviolabilidade de seusdireitos relativos à vida, à liberdade e, so-bretudo, à propriedade, que só poderiam sersuprimidos através da ‘lei da terra’” (CAS-TRO, 1989, p. 9-10). Aqueles direitos só pode-riam sofrer limitações segundo os procedimen-tos e por força do direito comumente aceito esedimentado nos precedentes judiciais.

Posteriormente a expressão law of the landfoi substituída pelo due process of law, in-gressando desde o primeiro instante nas co-lônias inglesas da América do Norte, sendoposteriormente consagrado em definitivopela Constituição Americana, como garan-tia fundamental, com as 5ª e 14ª Emendasàquele Diploma Legal (p. 11).

3.2. As fases do devido processo legal:adjetiva e substantiva

O due process of law sofreu imensa evolu-ção imerso dentro do sistema norte-ameri-cano, transformando-se num autêntico pa-râmetro de justiça, inspirando todo o orde-

namento jurídico da América do Norte. Essatransformação de simples garantia proces-sual em princípio de “justiça” entre o Esta-do e indivíduo e Estado e Sociedade foi, se-gundo Siqueira Campos, muito bem perce-bida pela jurística brasileira no pensamen-to de José Alfredo Baracho, a quem cita mui-to apropriadamente:

“‘As expressões law of the land edue process of law examinadas conjun-tamente, na Inglaterra e nos EstadosUnidos, deram origem à construçãojurisprudencial, com o objetivo de pro-teção aos direitos do indivíduo, emespecial em matéria de garantias pro-cessuais4. Com o tempo, a cláusula dodue process of law passou a ter maiorrelevo, alargando-se no âmbito dadoutrina. De uma garantia, em face dojuízo, passa a assegurar igualdade detratamento frente a qualquer autori-dade. Esta ampliação de sentido pro-piciou a limitação constitucional dospoderes do Estado’...” (apud CAS-TRO, 1989, p. 58).

E acrescenta que, pelo fato de a cláusulado due process of law ter sempre estado asso-ciada ao sistema de liberdades fundamen-tais, acabou assumindo nítida postura“substantiva” e limitadora do mérito dasações estatais, “tornando-se o paladino dosideais privatistas na luta contra o avançoavassalador do Estado que teve lugar a partirdo 1º pós-guerra” (CASTRO, 1989, p. 58-59).

Como podemos observar, o devido pro-cesso legal passou fundamentalmente porduas fases:

a) uma fase chamada adjetiva (proceduraldue process): com seu conteúdo clássico degarantia do réu, destinando-se apenas aoprocesso penal, continha a exigência de umprocedimento regular, a garantia do contra-ditório, da ampla defesa, da representaçãopor advogado, o direito ao julgamento porjúri legalmente constituído, entre outros.Posteriormente, a garantia processual esten-deu-se ao processo civil e ao processo admi-nistrativo.

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Nessa sua primeira fase (adjetiva), a ex-pressão devido processo pode ser definidacomo “o processo que é justo e apropriado.Os procedimentos judiciais podem variar deacordo com as circunstâncias, porém os pro-cedimentos devidos seguem as formas esta-belecidas no direito, através da adaptaçãodas formas antigas aos problemas novos,com a preservação dos princípios da liber-dade e da justiça” (BARACHO, 1980, p. 89).

Já em 1869, a Corte Suprema Americanahavia expressado uma tendência a consi-derar o due process of law como princípio res-tringente ao poder legislativo não somenteem relação a direitos processuais, mas tam-bém a direitos substantivos reconhecidospelo common law (STUMM, 1995, p. 154).Raquel Stumm, citando Juan Francisco Li-nares, exemplifica essa tendência com umcaso julgado pela Corte Americana sobre odireito de propriedade, em 1866, indicandojá uma visível evolução no primitivo con-teúdo do princípio do due process of law:

“A Corte manifestou-se contráriaa qualquer tipo de limitação: ‘O poderde regular não é o poder de destruir, e‘limitação’ não é equivalente de ‘des-truição’. Sob a pretensão de regulartarifas e fretes, o Estado não pode exi-gir a um trem de ferro transportar pes-soas e coisas sem remuneração, nempode esse poder fazer com que essedireito torne-se propriedade privadapara um uso público, sem justa com-pensação ou sem o devido processolegal’.

Nota-se já um acréscimo de con-teúdo ao princípio do devido proces-so legal, que de recurso técnico pro-cessual começa a adaptar-se a um ‘re-curso técnico axiológico que limitatambém o legislador’” (1995, p. 153),

indicando sua evolução para além das ga-rantias estritamente processuais.

b) uma fase substantiva: marcada por umaatribuição quase legislativa aos Tribunais;o due process passa a ser invocado para ava-liar a constitucionalidade de leis estaduais

e leis do Congresso, a partir da aplicação dachamada “regra da razão” (rule of reason),significando que uma lei, para ser conside-rada razoável, deveria parecer “sensata, dig-na de aplauso e compreensível aos intérpre-tes”. A questão problemática é que esse cri-tério de razoabilidade era aferido a partirdos critérios econômicos e sociais da CorteSuprema, e, se, segundo tais critérios, a leiparecesse razoável, era considerada comoem acordo com o processo legal regular(STUMM, 1995, p. 155). O Princípio da Ra-zoabilidade teve, assim, sua matriz na cláu-sula do devido processo legal americano,mais especificamente nesse seu segundomomento chamado “substantivo”.

Acrescentamos que a doutrina mencio-na três fases na evolução do conteúdo dodevido processo legal, sendo a terceira fasetambém substantiva, mas marcada pelo in-tervencionismo judicial em questões não-econômicas, que incluíam liberdade de ex-pressão, religião, direitos de participaçãopolítica e de privacidade. O primeiro mo-mento da segunda fase se caracteriza pelaintervenção da Suprema Corte em questõesde conteúdo econômico, “como reação aointervencionismo estatal na ordem econô-mica” (BARROSO, 1998, p. 201). Não ado-tamos essa divisão, nem a desenvolvemosmais rigorosamente, porque o objetivo des-sa exposição é apenas acentuar o momentode transição da fase meramente processua-lística do devido processo para a sua fasesubstantiva, quando aparece com vestes deprincípio da razoabilidade.

3.3. O devido processo legal atualmente

Atualmente o due process não tem limitesindefinidos como o foi no passado, logoquando se delineou seu caráter substanti-vo. A princípio, chegou-se até mesmo a in-vocar a chamada “doutrina da judicial noti-ce”, que implicava a presunção de inconsti-tucionalidade de toda a legislação social.“Hoje não compete mais à Suprema Cortedecidir sobre a necessidade ou plausibili-dade da legislação social, pois a presunção

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de inconstitucionalidade ou doutrina dajudicial notice, ‘segundo a qual cumpria aosEstados provar-lhe a necessidade’, não maistem aplicação” (STUMM, 1995, p. 158).

O devido processo legal atualmente temum conteúdo necessariamente aberto, pos-sibilitando aos juízes o controle da “razoa-bilidade e racionalidade das classificaçõeslegislativas” (p. 159).

No sistema americano, há uma nítida di-ferença entre lei e Direito. O conceito de di-reito se aproxima do conceito de justo, deprincípios gerais de Direito, de legítimo, não-arbitrário. “O controle judicial sobre a cons-titucionalidade das leis erigiu-se sobre a le-gitimidade das mesmas diante do Direito”.Subjacente ao conceito de Constituição estáa idéia de “revelação de uma justiça funda-mental”, do que decorre que toda lei que forconsiderada injusta será considerada in-constitucional (p. 159). Na cláusula do dueprocess, está a sujeição das regulações con-cretas do Direito positivo aos princípiossuperiores do direito (p. 160), não um direitofixado em regras imutáveis, “mas ao direitocomo síntese, como corpo de princípios,como método de criação normativa” (DAN-TAS apud BARROSO, 1998, p. 206).

A questão é saber o que legitima a com-preensão da Corte sobre o que é “o mais ra-zoável” a partir de seus próprios critérios, aponto de elevá-los acima dos critérios ado-tados pelo Poder Legislativo, considerando-os menos razoáveis quando da elaboraçãoda lei. O que se verifica na verdade é umpredomínio marcante do poder judiciáriosobre os outros poderes, fazendo com que aSuprema Corte acabe construindo a Consti-tuição. As decisões jurisprudenciais têmmuito mais força vinculante do que as pró-prias leis formais, inclusive no sentido derevogá-las.

Algumas considerações críticassobre o tema

Sobre o problema dos limites do poderjudiciário sobre os atos do poder legislati-vo, podemos contar com a riqueza dos ensi-

namentos do consagrado jurista-hermeneu-ta Emilio Betti, que, ao tratar da “discricio-nariedade absoluta (ou legislativa)”, expli-ca que se trata de uma discricionariedadesoberana, que só em caráter excepcionalpode ser delegada ao órgão judicial, quan-do se lhe faculta julgar por eqüidade.

Segundo Betti, na discricionariedade so-berana do poder legislativo, a interpretaçãovolta-se especificamente para o ordenamen-to estatal das competências estatais, no sen-tido de determinar preventivamente os li-mites da competência normativa e eventu-almente das diretrizes a ela assinalada pelaConstituição. “Por otra parte, ese poder develegiferar racionalmente [grifo nosso], de con-formidad con las exigencias político-admi-nistrativas emergentes de la vida social yadvertidas por la opinión pública, en cohe-rencia con el orden constituido según la ló-gica de la función normativa y en obsequioa sumos postulados de justicia, todo lo cualconstituye una exigencia si no metajurídi-ca, sí más allá del orden jurídico concreto,exigencia cuya observancia ni se lleva acabo ni se controla con operaciones ‘inter-pretativas’” (BETTI, 1975, p. 143-144). Emais adiante acrescenta: “La faculdad políti-co-legislativa de ‘crear leyes justas en el mar-co de la constitución’ no descansa propriamen-te en límites y controles jurídicos [grifo nosso],sino sólo en la crítica política en cuanto no seatenga a las exigencias de una, por otra parteelástica, interpretación adivinatoria de lastendencias de la opinión pública” (p. 146).

Betti não cogitou, em sua obra, de umapossível aferição de razoabilidade de atoslegislativos por parte do poder judiciário,apesar de ressaltar o dever do poder legife-rante de atuar racionalmente, de acordo comas necessidades sociais de sua época. Nãohá, nesse sentido, um controle judicial so-bre tal racionalidade. Ao contrário, enten-dia o jurista não haver mesmo qualquer con-trole jurídico sobre os atos criadores de leis.A interpretação feita pelo legislativo diz res-peito ao conhecimento das tendências daopinião pública, das necessidades político-

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sociais de um determinado momento histó-rico (o que ele chama “interpretación advi-natória”).

O que Betti não suscita é a possibilidadede uma interpretação dessa interpretação,ou seja, da interpretação do poder judiciá-rio (recorrendo ao princípio do due process oflaw substantivo) sobre o que o poder legisla-tivo entendeu como a medida mais razoá-vel (ou racional) a ser tomada diante de umanecessidade pública qualquer, o que o le-vou, a partir dessa “advinhação”, ou da suainterpretação própria, a promulgar uma leide tal conteúdo. Segundo o devido proces-so, até essa razoabilidade pode ser conferi-da, atestada ou não pelo poder judiciário,respaldando-se num princípio supremo,guardião da constituição. A questão é queesse princípio guarda conteúdo indeter-minado, indefinido, conteúdo esse que sóos casos que forem aparecendo podemdesvelar.

Em outras palavras, o due process signifi-ca que a interpretação política (ou “advi-nhatória”), característica do poder legisla-tivo, acaba sendo realizada pelo poder judi-ciário, quando passa a questionar a razoa-bilidade de uma lei, trabalho já desenvolvi-do pelo poder legiferante. É, na verdade, arevogação de uma lei pelo judiciário quan-do considerada não-razoável segundo pa-râmetros do próprio judiciário, “parâmetrosfundamentais de direito”, ou a uma “justi-ça fundamental”, que não se confundem,como já vimos, com o direito posto sob a for-ma de normas.

Nesse sentido, Laferrière enfatiza que ocontrole judicial da constitucionalidade dasleis se beneficia das garantias da imparcia-lidade do juiz, do procedimento judicial, dapublicidade, do debate contraditório, damotivação obrigatória da sentença judicialetc. Por outro lado, afirma que tal controledeve-se limitar ao orbe jurídico, sob pena dese deformar a instituição. Assim pondera:“... attribuer le contrôle de la constitution-nalité des lois à un juge, c’est mettre en reliefcette idée, essentielle si on veut éviter que

l’institution ne dévie et ne se déforme, quece contrôle est d’ordre strictement juridique,qu’il ne s’agit pas de rechercher si la loi estopportune ou non, bonne ou mauvaise, uti-li ou nuisible, mais uniquement de vérifiersi elle est conforme ou contraire à la consti-tution” (1947, p. 312).

De conteúdo substantivo indeterminado,o devido processo legal, como salienta LuísRoberto Barroso, “embora se traduza naidéia de justiça, de razoabilidade, expressan-do o sentimento comum de uma dada épo-ca, não se trata de cláusula de fácil apreen-são conceptual”, o que conclui referindo-semesmo a um voto proferido na SupremaCorte Americana, que transcrevemos: “De-vido Processo não foi ainda reduzido a ne-nhuma fórmula: seu conteúdo não pode serdeterminado pela referência a nenhum có-digo. O melhor que pode ser dito é que atra-vés do curso das decisões desta Corte elerepresentou o equilíbrio que nossa Nação,construída sobre postulados de respeito pelaliberdade do indivíduo, oscilou entre estaliberdade e as demandas da sociedade or-ganizada” (1998, p. 200).

Othon Sidou, ao tratar do contraditórioprocessual, explica que o princípio do con-traditório, “praticado nos sistemas jurídi-cos romano e subseqüentes, tomou hoje di-mensão maior, por imperativo das práticasdemocráticas, e é sintetizado na expressãodue process of law, adotada pelo constitucio-nalismo norte-americano” (1997, p. 163).

E ainda contamos com a seguinte afir-mação de Elio Fazzalari: “viene in ogni casorispettate, e utilizzato, il princípio del dueprocess of law, le cui caracteristiche essenziali,secondo l’elaborazione fattane dalla giuris-prudenza, consistono nelle garanzie che, nelnostro linguagio chamaremo del contradi-torio” (1994, p. 14).

Consoante crítica severa do professor Sal-gado, o devido processo legal nada mais édo que uma tentativa norte-americana delevar para o sistema americano a jurisdiçãonos moldes continentais, com o contraditó-rio judicial, a ampla defesa e o terceiro neu-

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tro, conhecidos antigos da tradição jurídicada Europa Continental. Posteriormente, porfalta de embasamento teórico e rigor técni-co, os juristas americanos acabaram trans-formando-o numa espécie de “cartola má-gica”, de onde se retiram muitas soluçõesjurídicas materiais, de índole semelhante àantiga e surrada eqüidade. Trata-se de umaexpressão vazia, em que cabe qualquer con-teúdo (1998).

4. O princípio da proporcionalidadeou razoabilidade e sua aplicação em

matéria de direitos fundamentais

4.1. Conceito e sentidos do princípio daproporcionalidade

Podemos conceituar o princípio da pro-porcionalidade ou razoabilidade como “umparâmetro de valoração dos atos do PoderPúblico para aferir se eles estão informadospelo valor superior inerente a todo ordena-mento jurídico: a justiça” (BARROSO, 1998,p. 204).

A idéia de proporcionalidade nasceu noDireito Administrativo, mas hoje constituium princípio de Direito Constitucional e,portanto, com foro constitucional. “Dissoresulta que não apenas a Administração e oPoder judiciário vinculam-se a ele, mas tam-bém o Legislativo” (STUMM, 1995, p. 110).

Com esse sentido de garantia constituci-onal, vinculando a qualquer poder, comoimperativo das práticas democráticas, oprincípio tem sua origem no due process oflaw substantivo americano, e na Alemanhaé considerado norma constitucional nãoescrita, derivada do próprio Estado de Di-reito (BARROSO, 1998, p. 213).

4.2. A proporcionalidade e os direitosfundamentais

O maior problema colocado pela Ciên-cia Jurídica atualmente é sobre a aplicabili-dade do princípio da proporcionalidade emcasos de restrições legislativas a direitosfundamentais individuais.

No tocante à relação entre normas quedeclaram direitos fundamentais e outrasnormas constitucionais, asseguramos deimediato que realmente há uma prevalên-cia ou hierarquia das primeiras com rela-ção às outras, como depreendido do enten-dimento de Joaquim Carlos Salgado. O jus-filósofo entende que, na interpretação deuma constituição material, “deve-se obser-var a preponderância das normas, segundoa ideologia (1996b, p. 32)5 adotada ou se-gundo os valores que formam o seu conteú-do”. Assim, num Estado social-democráti-co, sob o ponto de vista axiológico, os direi-tos fundamentais subordinam a priori todasas outras normas constitucionais, tendo mai-or peso nesse sentido (axiológico mesmo).“Nesse caso, dentro da própria declaraçãoou outorga de direitos há uma ‘hierarquia’ou ponderação, segundo formação escalona-da da própria ordem valorativa” (p. 33).

A doutrina alemã caracteriza o princí-pio da proporcionalidade (ou razoabilida-de)6 como o meio empregado pelo legisla-dor, que deve ser ao mesmo tempo adequadoe exigível ao fim almejado. “O meio é ade-quado quando, com o seu auxílio, se podepromover o resultado desejado; ele é exigí-vel quando o legislador não poderia ter es-colhido outro igualmente eficaz, mas queseria um meio não-prejudicial ou portadorde uma limitação menos perceptível a direi-to fundamental”7.

4.2.1. Proporcionalidade comoponderação

Robert Alexy faz exaustiva análise doproblema da aplicação do método pondera-tivo no caso de colisão entre princípios denatureza constitucional fundamental, utili-zando, inclusive, demonstrações com recur-sos à lógica simbólica. Resumiremos empoucas linhas algumas das suas conside-rações sobre o tema.

O autor parte do pressuposto de que nor-mas-regra se excluem e normas-princípio sim-plesmente colidem. Disso decorre que, numconflito entre regras que geram conseqüênci-

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as contraditórias, uma delas, pelo menos,deverá ser considerada inválida, caso a con-tradição não possa ser eliminada mediante aintrodução de uma cláusula de exceção.

Sobre esse tema, Emilio Betti consideraque os conflitos entre normas jurídicas notempo são considerados como geradores delacunas de colisão, “colisión entre las discre-pantes valoraciones legislativas viejas ynuevas”, surgindo a necessidade de elimi-ná-las, segundo a exigência de um cânonehermenêutico fundamental, qual seja, o datotalidade hermenêutica. Assim, a aplicaçãodas velhas regras de escolha sobre conflitosentre normas contraditórias, com a preva-lência da lex posterior sobre a lex anterior, ouda lex especialis sobre a lex generalis, com areserva de que a lex posterior generalis nonderogat legi priori special (desde que não hajaabsorção total da matéria), nada mais é doque aplicações particulares daquele câno-ne fundamental.

Hipótese distinta, assevera Betti, é o casode incongruência ou desarmonia, que pode as-sumir o caráter de uma “inconstitucionali-dade material sobrevinda” quando a lei pos-terior confluente seja constitucional (uma su-perlei). No que diz respeito a leis que tenhamsurgido anteriormente com procedimentoformal regular, “puede hablar-se de una in-validación sucesiva de la ley sólo respectodel contenido de la disciplina jurídica, y noya en el sentido de una inconstitucionali-dad formal sobrevenida, obstando a ésta elpostulado general de la persistencia de losvalores jurídicos, que se hace valer tambiénen la conservación de los preceptos jurídi-cos” (1975, p. 119-120).

Alexy entende que, no caso de colisõesentre princípios, a solução é totalmente dis-tinta, não se valendo das regras menciona-das por Betti. Assim esclarece: “Cuando dosprincipios entram en colisión – tal como esel caso cuando según un principio algo estáprohíbido y, según otro principio, está per-mitido – uno de los dos principios tiene queceder ante el otro. Pero, esto no significa de-clarar inválido al principio desplazado ni

que en el principio desplazado haya queintroducir una cláusula de excepción, másbien lo que sucede es que, bajo ciertas circuns-tancias uno de los principios precede al otro. Bajootras circunstancias, la cuestión de la preceden-cia puede ser solucionada de manera inversa”[grifo nosso] (1993, p. 89).

É isso que significa dizer que um princí-pio tem “maior peso” que outro, ou seja, nãose trata de invalidade, pois que ambos prin-cípios são igualmente válidos; a questão éque, diante de certas circunstâncias fáticas,um irá prevalecer (apenas naquele caso con-creto) sobre o outro. A isso se chama “maispeso”, e não validez ou invalidez, pois, se aquestão é de validade, há necessariamentea exclusão do que não é válido, o que não severifica no caso de colisão entre princípios.

Para a solução de colisões entre princí-pios, aparece a figura da “ponderação debens”, realizada constantemente pelo Tri-bunal Constitucional Alemão, ao que Alexyrecorre para dar muitos exemplos.

Tomados em si mesmos, os princípiospodem limitar a possibilidade jurídica documprimento do outro. Porém, como já es-clarecemos, isso não quer dizer que se inva-lidam, mas que um terá prevalência sobre ooutro sob certas condições oferecidas pelo casoconcreto, o que Alexy chama “relação deprecedência condicionada”.

A questão sobre a violação do princípioda proporcionalidade ocorre quando hádois princípios, como tais presumidos igual-mente válidos, que regulam de maneira di-versa interesses confluentes e conflitantes,e um deles deverá ser necessariamente ex-cluído diante das circunstâncias de fato.Alexy cita um caso concreto: a possibilida-de de realização de uma audiência oral con-tra um acusado que, devido à tensão pró-pria de tais atos, corre o risco de sofrer umenfarto (p. 90). Tal conflito deve ser solucio-nado, segundo o autor, recorrendo-se a umaponderação dos bens em questão: o deverdo Estado de garantir uma aplicação ade-quada do direito penal e o interesse doacusado em salvaguardar direitos funda-

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mentais garantidos pela constituição (direi-tos individuais à vida e integridade física emoral), cuja proteção também compete aoEstado.

Se da ponderação resultar que o interes-se do acusado tem, no caso concreto em ques-tão, peso maior que a intervenção estatal nosentido de realizar a audiência oral, e, seainda assim, a audiência for realizada, ha-verá discrepante violação ao princípio daproporcionalidade.

Como já anotado acima, o princípio daproporcionalidade se materializa na pon-deração, que implica a melhor adequabili-dade dos meios aos fins. E a melhor ade-quação é aquela que também é exigível, ne-cessária, em última análise, a menos preju-dicial ao “interesse fundamental” oposto.Repetimos: o meio é adequado quando, como seu auxílio, pode-se promover o resultadodesejado; ele é exigível quando não se pode-ria ter escolhido outro que, apesar de igual-mente eficaz, traria como conseqüência oprejuízo ou limitação ao exercício de algumdireito fundamental. Ora, se o objetivo dedar satisfatória aplicabilidade ao direitopenal pode ser alcançado por outra via quenão a audiência oral e que não coloque emrisco a vida do acusado, é mais ponderadoque se recorra a essa outra via, e não que secoloque em risco uma vida. Mesmo porque,segundo o conceito de que o processo é areconstituição dos fatos ocorridos, nessa re-constituição pode ficar provado que o acu-sado sequer cometeu algum crime. O objeti-vo da audiência é comprovar a realidadedos fatos alegados, realizar a justiça formale não prejudicar institucionalizadamente avida ou integridade física de alguém. E seassim o juiz procedesse, insistindo na reali-zação da audiência, poderia estar mesmoincorrendo em dolo eventual.

Ao pensamento de Alexy aditamos o pa-recer de Juan Carlos Gavara de Cara, paraquem

“el principio de proporcionalidadsignifica que la norma más débil esdesplazada en su aplicación tan solo

en la medida en que es obligatoriadesde un punto de vista lógico y siste-mático. Este planteamiento implicaque cuanto más intensa sea la inter-vención en el ejercicio de un derechofundamental a causa de la protecciónde los derechos de terceras personaso bienes jurídicos de rango constitu-cional, mayor debe ser la jerarquía delas razones que justifiquen dicha inter-vención”(1994, p. 284-285).

4.2.2. Proporcionalidade comocoordenação

Konrad Hesse já coloca a questão emoutros termos. Defende a tese de que a coli-são entre direitos deve ser solucionada nãopela ponderação de bens, mas pelo princí-pio da concordância prática, segundo o qual

“os bens protegidos jurídico-constitu-cionalmente devem, na resolução doproblema, ser coordenados um ao ou-tro de tal modo que cada um delesganhe realidade” (1998, p. 66).

O princípio da unidade da Constituiçãoimprime a necessidade de que a eficácia sa-tisfatória dos bens por ela tutelados só pos-sa ser alcançada quando traçados limitesde exercício para ambos, o que ele chama“tarefa de otimização”. “Os traçamentos doslimites devem, por conseguinte, no respecti-vo caso concreto, ser proporcionais; eles nãodevem ir mais além do que é necessário paraproduzir a concordância de ambos os bensjurídicos” (p. 67).

A crítica que Hesse faz ao critério daponderação de bens é o fato de que a finali-dade da proporção fica sempre adstrita àvariabilidade dos meios, fazendo prevale-cer um determinado valor de acordo com oselementos dados num caso. Proporção paraHesse é justamente uma “coordenação”,definida por uma necessidade a priori im-posta pela unidade constitucional de queos bens devem alcançar a sua máxima efi-cácia em acordo com outros bens que tam-bém devem alcançar sua eficácia. Assim,não há precedência de princípios, segundo

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a variação de dados concretos, mas uma pré-determinação principiológica de que bensdevem ser coordenados autolimitativamentenas suas eficácias. E exemplifica com o pro-blema da liberdade de opinião versus lei gerallimitadora, em que deve haver uma coorde-nação proporcional entre o exercício da liber-dade de opinião e os bens jurídicos protegi-dos pela lei geral. A proporcionalidade é, nes-se sentido, uma diretiva de coordenação paraos casos particulares, diretiva essa que, se-gundo Hesse, falta ao critério da ponderaçãode bens, “que cai sempre no perigo de aban-donar a unidade da Constituição” (p. 67).

4.2.3. Proporcionalidade comoponderabilidade

Ao mencionarmos “ponderabilidade”,referimo-nos ao critério de hierarquizaçãoque, segundo o jusfilósofo mineiro JoaquimCarlos Salgado, deve haver no momento daaplicação dos direitos fundamentais, já quese consubstanciam, acima de tudo, em “va-lores fundamentais”. Segundo ele, há umaresistência entre os constitucionalistas emadmitir o conceito de “hierarquia”, ao sereferirem a direitos fundamentais. Dissodecorrem propostas como “coordenação” denormas dessa natureza, ou “colisões” entreprincípios de tal índole, que devem ser so-lucionadas por ponderações de bens, etc. Oque não se cogita é estabelecer uma hierar-quia entre direitos considerados igualmentefundamentais. A questão é analisada em ou-tros termos quando levada à Filosofia do Di-reito, especificamente à axiologia jurídica.

Todo o problema da questão gira em tor-no do conceito de hierarquia, dos sentidosem que é tomado e do momento em que éempregado. Afinal, há ou não a possibili-dade de se estabelecer uma “hierarquia en-tre direitos fundamentais” e, se de fato exis-te tal hierarquia, em que momento e comoela realmente aparece?

Paulo Bonavides ressalta que nenhumanorma constitucional deve ser interpretadaem contradição com outra norma da Cons-tituição: “atentando-se, ao mesmo passo,

para o rigor da regra de que não há formal-mente graus distintos de hierarquia entrenormas de direitos fundamentais – todas secolocam no mesmo plano –, chega-se de ne-cessidade ao ‘princípio da concordânciaprática’, cunhado por Konrad Hesse, comouma projeção do princípio da proporciona-lidade” (1996, p. 386-387). Como podemosobservar, o constitucionalista adere à posi-ção de Hesse, que não admite hierarquiaentre normas de direitos fundamentais. Re-lembrando, o princípio da concordânciaprática implica a concepção de que os bensjurídicos sob análise devem sofrer limitaçõesrecíprocas e necessárias para que, no casoconcreto, possam vir a ter a maior efetividadepossível, não se cogitando de uma “hierar-quia entre eles”(DINIZ, 1998, p. 344-345). Ajurística constitucionalista adere quase una-nimemente a essa posição.

Alexy, como vimos, acaba por defendera possibilidade de uma hierarquização, nãoem nível formal, quando da declaração da-queles direitos, visto que a Constituição nãohierarquiza os direitos considerados por elaigualmente fundamentais, mas em sede deaplicação. Se se admitisse a priori uma hie-rarquia, alguns deixariam de ser tão funda-mentais quanto outros, o que estabeleceriainfinitamente um grupo menor de “direitosfundamentais”, levando ao último, o maisfundamental dos direitos, o que é totamenteincompatível com o paradigma de Estadoque declara direitos. No entanto, já há o di-ferencial de cada um ter sua esfera de inci-dência própria, como adverte Hesse.

Mas o problema salta quando se fala emsolução de conflitos ou colisões entre direi-tos fundamentais. A questão é complexa,pois aqui aparecem figuras clássicas do di-reito, tais como “o interesse das partes”, “apretensão resistida”, “o terceiro neutro eequidistante” que pretende a melhor solu-ção, ainda que por equiprobabilidade, sen-do que, em última instância, haverá de serecorrer a uma opção pelo “melhor direito”(expressão herdada do direito privado ar-caico, mas que deve ter acepção ampliada).

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Veja: formalmente todos aqueles direitosestão em pé de igualdade, mas quando apa-rece o conflito de interesses, ainda que setente solucionar o problema de maneira co-ordenada, de modo que cada um alcancesua realidade, como propõe o princípio daproporcionalidade de Hesse, fato é que ointeresse de uma das partes terá de se sobre-por ao da outra, para que seja efetivamenteexercido.

Evidentemente se se está diante de umasituação jurídica em que não é possível oexercício absoluto de dois direitos ao mes-mo tempo, um será exercido e outro não.Pode-se argumentar que, na verdade, um foiexercido limitadamente em face do outro,pois este era o alcance máximo de sua reali-dade (Hesse); mas veja que, para se delimi-tar esse alcance máximo, terá sido necessá-rio previamente ter comparado as possibili-dades de “alcances máximos” dos dois di-reitos. E porque prevaleceu um deles é quefoi possível estabelecer o alcance máximode cada um. Ou seja, o alcance axiológico deum foi mais amplo do que o alcance axiológi-co do outro. Isso significa que o alcance decada um fica condicionado pelo alcance dooutro dialeticamente, o que reclama, em últi-ma análise, o estabelecimento de uma hierar-quia que possibilite pôr fim à controvérsia.

Ressaltemos uma vez mais que a hierar-quia não se estabelece formalmente, comoprevine Bonavides, mas no momento daaplicação é que se faz necessária, não comoidentificação pré-estabelecida na lei, mas ex-traída de todo um esforço exegético-axiológi-co para solver o conflito. A essa propostahermenêutica Joaquim Carlos Salgado de-nomina “princípio de ponderabilidade”, oque esclarece: “há uma ‘hierarquia ou pon-deração’, segundo a formação escalonadada própria ordem valorativa”, que não seconfunde com o “pesar” dos alemães, queparte de uma hermenêutica lógica, e nãoaxiológica (1996b, p. 32-33), aqui proposta.

Nesses termos, o posicionamento críticodo filósofo dirige-se para a conclusão de quea falácia da discussão entre os juristas cons-

titucionalistas é a tentativa de solucionar oproblema dos direitos fundamentais, pro-blema axiológico por excelência, intrassiste-maticamente, o que não se resolve com crité-rios jurídicos simplesmente. Tal erro se as-semelha à tentativa epistemológica kelse-niana em explicar o sistema jurídico a par-tir dele mesmo, o que o levou a recorrer auma espécie de deus ex machina sob a formade norma fundamental.

Soluções de índole axiológica não sãopossíveis senão pela superação filosófica,com recurso às categorizações da Filosofiado Direito. É da natureza do valor a hierar-quia, ou seja, a preponderância de um valorsobre o outro8. Ao incorporá-los em declara-ções de direitos, as Constituições não osdesfiguram dos seus respectivos pesos, em-bora do ponto de vista formal sejam aparen-temente iguais. Por isso que o critério de so-lução de qualquer antinomia entre direitosfundamentais é o da ponderabilidade, segun-do o qual há prevalência de uns sobre osoutros no momento da aplicação, conside-rando-os sempre como valores que são e quenão deixam de ser por estarem positivadosem cartas jurídicas (SALGADO, 1998b).Ponderabilidade (tal qual coercibilidade), por-que sempre há possibilidade de sopesamen-to em instância de aplicação, mas que ja-mais macula a declaração universal positi-va e formal. Semelhante à coercibilidade, quenunca afasta do fenômeno jurídico a possi-bilidade de convivência entre cumprimentoforçado e cumprimento espontâneo do pre-ceito normativo.

5. A proporcionalidade e o devidoprocesso legal

O princípio da proporcionalidade é tidohoje como princípio norteador da própriaatividade do poder legislativo, que pode serquestionada judicialmente quanto a sua ra-zoabilidade. “Fica assim erigido em barrei-ra ao arbítrio, em freio à liberdade de que, àprimeira vista, se poderia supor investido otitular da função legislativa para estabele-

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cer e concretizar fins políticos. Em rigor, nãopodem tais fins contrariar valores e princí-pios constitucionais; um destes princípiosvem a ser precisamente o da proporcionali-dade, princípio não escrito, cuja observân-cia independe de explicitação em texto cons-titucional, porquanto pertence à natureza eessência do Estado de Direito” (BONAVI-DES, 1994, p. 283).

No constitucionalismo alemão, o princí-pio é invocado como o próprio fundamentodo moderno Estado de Direito. Já no consti-tucionalismo americano, encontra sua sedeno devido processo legal substantivo. NosEstados Unidos, o devido processo é consi-derado o princípio por excelência do Esta-do Democrático de Direito, estando aí em-butida a idéia de proporcionalidade ou ra-zoabilidade, como um de seus variados con-teúdos.

6. O princípio da proporcionalidade eo devido processo legal no sistema

jurídico brasileiro

A Constituição Brasileira de 1988 posi-tivou o devido processo em seu art. 5º, inci-so LIV, mas, no nosso sistema, não tem omesmo significado que no americano, poisa própria Constituição elenca todas as prin-cipais garantias processuais (contraditório,ampla defesa, juízo competente etc), o quecorresponderia ao devido processo adjetivo;e ainda elenca exaustivamente todos os direi-tos e garantias fundamentais individuais, co-letivas, sociais e políticas, o que corresponde-ria ao devido processo substantivo.

Alguns autores interpretaram sua ado-ção pelo sistema jurídico brasileiro no seusentido estritamente adjetivo, como PintoFerreira, que assim o definiu: “o devido pro-cesso legal significa o direito a regular ocurso da administração da justiça pelos juí-zes e tribunais. A cláusula constitucionalabrange de forma compreensiva:

a) o direito à citação, pois ninguém podeser acusado sem ter conhecimento da acu-sação;

b) o direito de arrolamento de testemu-nhas, que deverão ser intimadas para com-parecer perante a justiça;

c) o direito ao procedimento contraditó-rio;

d) o direito de não ser processado porleis ex post facto;

e) o direito de igualdade com a acusa-ção;

f) o direito de ser julgado mediante pro-vas e evidência legal, e legitimidade obtida;

g) o direito ao juiz natural;h) o privilégio contra a auto-incrimina-

ção;i) a indeclinabilidade da prestação ju-

risdicional quando solicitada;j) o direito aos recursos;l) o direito à decisão com eficácia de coi-

sa julgada” (1989, p. 175-176).O art. 44 do projeto constitucional de

1988 previa o princípio da razoabilidadecomo requisito de legitimidade dos atos daadministração pública, o que foi suprimidoda redação final. No entanto, ficou o princí-pio inscrito na cláusula do devido processolegal, nos moldes americanos.

Assim, há uma tendência da Doutrinaem afirmar que o princípio da proporciona-lidade, que não está expressamente positi-vado na Constituição, tem sua referêncianormativa na positivação do devido proces-so legal. Outra tendência, de bases germâ-nicas, entende ser o princípio inerente aoEstado de Direito, sendo desnecessária suainscrição constitucional nesse sentido.

De qualquer modo, juízes e tribunais bra-sileiros “têm encontrado no princípio da ra-zoabilidade, direta ou indiretamente, funda-mento constante para as suas razões de deci-dir”. Podemos exemplificar com os seguintesvotos proferidos em Tribunais de Justiça:

“É de se deferir liminar em açãodireta de inconstitucionalidade comrelação a lei estadual que determina apesagem de botijões de gás liquefeitode petróleo entregues ou recebidospara substituição à vista do consumi-dor. Além de violação ao princípio da

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proporcionalidade e razoabilidade dasleis restritivas de direitos, há evidenteplausibilidade jurídica da argüiçãoque aconselha a suspensão cautelarda lei impugnada, a fim de evitar da-nos irreparáveis à economia do setor,no caso de vir a ser declarada a in-constitucionalidade.”

“A norma legal que concede ao ser-vidor inativo vantagem pecuniáriacuja razão de ser revela absolutamen-te destituída de causa... ofende o prin-cípio da razoabilidade, que atua, en-quanto projeção caracterizadora dacláusula do substantive due process oflaw, como insuperável limitação aopoder normativo do Estado” (BARRO-SO, 1998, p. 217-219).

Alguns autores ressaltam que o princí-pio da proporcionalidade ainda se mostrade forma muito acanhada no sistema jurídi-co brasileiro, dado o apego à clássica con-cepção da separação dos poderes e da dis-cricionariedade dos atos do poder público,principalmente do poder político, que se en-contra hoje quase todo concentrado nasmãos da cúpula do Poder Executivo, comsuas “infindáveis Medidas Provisórias”9.

7. Ainda algumas consideraçõessobre o tema

Não poderíamos finalizar este estudo so-bre tema tão festejado na contemporaneida-de, sem antes suscitar, ainda que de formaacanhada, mais uma questão jusfilosófica.

Todo esse desenvolvimento remonta,como assegura o professor Joaquim SALGA-DO (1997b), a um tema antigo em direito: aeqüidade, que segundo ele não aparece sim-plesmente como método de integração de la-cunas jurídicas. É ela o supremo princípiodo direito, tanto na sua fase de formaçãocomo elaboração, quanto na de aplicação(que engloba a integração).

A eqüidade é definida por Aristótelescomo ponto intermediário, uma espécie determo proporcional, pois que em toda espécie

de ação em que há o mais e o menos tambémhá o igual.

“Se, pois, o injusto é iníquo, o justo é eqüi-tativo, como aliás pensam todos mesmo semdiscussão. E, como o igual é um ponto inter-mediário, o justo será um meio-termo” (1991,p. 84-85).

O eqüitativo e o justo são, na verdade, amesma coisa, com uma única diferença, quetorna o eqüitativo melhor:

“lo equitativo, siendo justo, no es lojusto legal, sino una dichosa rectifica-ción de la justicia rigurosamente le-gal. La causa de esta diferencia es quela ley necesariamente es siempre ge-neral, y que hay ciertos objetos sobrelos cuales no se puede estatuir conve-nientemente por medio de disposicio-nes generales” (ARISTÓTELES apudGARCIA MAYNES, 1956, p. 373).

Ponderar é justamente estabelecer ummeio termo entre propostas radicais, fazen-do concessões a ambas, pois se o excesso é omal, a carência também o é, como ensinavaAristóteles.

O próprio conceito de direito traz em si aconcepção do adequado. O jus, diz o filóso-fo Henrique Cláudio de Lima Vaz, é o que éadequado ao indivíduo na sociedade. Daíconceber-se a característica da eunomia dalei, que, segundo o filósofo, é o fato de a leiter de necessariamente ser aplicada eqüita-tivamente. E ainda segundo ele, não ser pos-sível uma eqüidade aritmética que implica-ria “dar um pedacinho da lei para cada um”,mas ela é por excelência geométrica, ou seja,a aplicação da lei segundo as necessidadescolocadas em questão. Assim, o conceito deeqüidade sempre ronda o direito, não sócomo método de integração normativa, mascomo próprio critério de aplicação da lei (emsentido amplo, envolvendo, inclusive, prin-cípios jurídicos), que, se for aplicada em todoo seu rigor, levada aos seus extremos, acabapor gerar injustiça. Como sempre enfatizaPadre Vaz, summum jus, summa in juria (1997).

Salgado enfatiza que se tem restringidomuito o conceito de eqüidade, como o justo

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no caso concreto. O conteúdo da eqüidadecomo princípio supremo do direito, comoidéia imanente ao fenômeno jurídico, ultra-passa em muito o seu caráter metodológico,ou seja, como um caminho corretivo dos ri-gores legais. Para ele, a proporcionalidade(ou razoabilidade) embutida no devido pro-cesso legal nada mais é do que manifesta-ção do princípio supremo da eqüidade, quese traduz, em última instância, na adequa-bilidade dos meios aos fins aristotélica. Éaquela razão ou proporção imanente à pró-pria idéia de direito, seja no momento daelaboração, seja no momento de aplicaçãodas leis e princípios. É o que o jurista vaiencontrar como a ratio suprema do fenôme-no jurídico.

Nessa perspectiva, temos valiosa contri-buição de Recacens Siches, para quem o pro-blema da eqüidade não é o de corrigir a lei,ao aplicá-la a determinados casos particu-lares: “no se trata de ‘corregir la ley’. Se tra-ta de otra cosa: se trata de ‘interpretarla ra-zonablemente’” [grifo nosso] (1975, p. 654).

Do exposto, podemos deduzir que, ao in-terpretar-se uma lei para aferir se seu con-teúdo está ou não em consonância com oprincípio supremo da razoabilidade (ouproporcionalidade) contido na expressãosubstantiva do due process of law, está-se, in-discutivelmente, submetendo essa lei ao ri-goroso “controle” do justo razoável expres-so na idéia de eqüidade.

8. Tripla conclusão: sistêmica,técnica e ontológica

Da tentativa de apreensão do verdadei-ro significado do princípio da proporciona-lidade e do devido processo legal, concluí-mos que, enquanto matéria de natureza cons-titucional, as garantias processuais, sejamexpressas numa fórmula como “o devidoprocesso legal”, sejam expressamente decla-radas na Constituição, são garantias típi-cas dos Estados Democráticos de Direito,que asseguram garantias processuais emnível e sob a forma de direitos fundamen-

tais, moderna conquista positivante dosimemoriais direitos naturais.

A fórmula due process of law padece deimprecisão técnica, pois que o conceito deprocesso não engloba, na sua essência, di-reitos de natureza tão substanciais comodireito à vida, à liberdade, à integridade fí-sica e moral etc; de índole substantiva oumaterial. Há uma imprecisão técnica na ex-pressão “devido processo legal substanti-vo”. No entanto, se foi essa fórmula que des-pertou a comunidade jurídica americanapara a necessidade de se resguardarem di-reitos fundamentais num Estado considera-do de Direito, o discurso (ou a intenção) é vá-lido, apesar da falta de rigor terminológico.

O princípio da proporcionalidade comocritério de compatibilização de direitos fun-damentais e controle dos atos do poder pú-blico é expressão suprema da grande evolu-ção por que tem passado o Estado de Direi-to, que caminha hoje para sua efetivaçãocomo verdadeiro Estado Social de Direito.Pouca relevância tem a discussão sobre asua expressão no devido processo ou suaautonomia principiológica, como “princípionão-escrito próprio do Estado de Direito”. Naverdade, cada sistema conseguiu, dentro doseu momento histórico-cultural, dentro dassuas possibilidades jurídico-conceptuais,compreendê-lo e torná-lo um ditame moder-no da justiça, ou da “liberdade objetivada naordem jurídica”, o que os antigos chamavamsimplesmente de epiékeia ou equitas.

Notas1 “O Estado social é o que declara, como sua

finalidade central, a realização da justiça social e,por isso, dos direitos sociais”, assinalando “a con-vergência das dimensões do poder e da liberdadeno processo civilizatório do Ocidente” (SALGA-DO, 1996, p. 40 e 1997a, p. 4-5).

2 Anunciamos, desde já, que a expressão des-ses direitos apontados pelo Professor Baracho naConstituição Brasileira vigente é o inciso LIV doart. 5º , que positivou expressamente o chamado“devido processo legal”, o que desenvolveremosem momento oportuno.

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3 Tema atualíssimo é a questão da aplicaçãodos direitos fundamentais hoje pela ComunidadeEuropéia, sobre o qual José Alfredo Baracho susci-ta questão: “Surge uma multiplicidade de ques-tões em relação a uma satisfatória interpretação doespírito e da letra do tratado institutivo da Comu-nidade, colocando-se em relevo a questão da esta-bilidade do ordenamento comunitário, para prote-ção adequada dos direitos fundamentais do cida-dão, reconhecidos pelo Direito constitucional dosEstados. Prevendo o amplo exercício do poder, porparte dos órgãos normativos comunitários, o trata-do institutivo da Comunidade Européia não con-tém uma declaração ou catálogo dos direitos fun-damentais, que devessem ser respeitados pelo exer-cício desse poder. A Corte de Justiça da Comuni-dade Européia elaborou construção em nível dedireitos humanos, de conformidade com a inter-pretação do direito escrito comunitário... Todaviauma satisfatória interpretação do direito comuni-tário escrito encontra lacunas em questões de direi-to fundamental, pelo que só reconhece de maneiralimitada aos intentos de garantir o respeito dos di-reitos fundamentais. A Corte de Justiça forneceuuma relevante contribuição para o desenvolvimen-to do ordenamento comunitário mediante amplorecurso e elaboração do ‘princípio geral do direi-to’..., princípio deduzido do direito interno do Es-tado-membro, de conformidade com uma certaconvergência do sistema jurídico nacional” (BA-RACHO, 1998b, p. 5). O autor acrescenta que adiscussão sobre um “catálogo” europeu de direi-tos fundamentais, bem como a tutela dos mesmospela Corte de justiça da Comunidade européia, temsuscitado relevantes questões no que concerne aocontrole de constitucionalidade em matéria de di-reitos fundamentais. “A tradição constitucional,como instrumento internacional, relativo à tutelados direitos do homem, dos Estados membros quecooperam e aderiram, tem relevância” (BARACHO,1998a, p. 4).

4Acrescentamos aqui a distinção feita pela dou-trina em geral entre “direitos” e “garantias”: os di-reitos são bens e vantagens conferidos por normasjurídicas; garantias são meios destinados a fazervaler esses direitos, são instrumentos pelos quaisse asseguram o exercício e gozo daqueles bens evantagens (SILVA, 1998, p. 413).

5 Acrescentamos que o autor não usa o termoideologia “no sentido reducionista de interesses declasse, mas de um conjunto de idéias que dá uni-dade à cultura de um povo, embora possa ser usa-da no interesse de uma classe ou facção, às vezesde modo deformado... Um partido político, porexemplo, tem na sua ideologia um projeto paratoda a sociedade e não apenas para o grupo” (SAL -GADO, 1998).

6 Luís Roberto Barroso esclarece que os alemãespreferem o uso do termo “proporcionalidade”, maisutilizado como razoabilidade entre os americanos.Todavia pode um termo ser tomado pelo outro(1998, p. 204).

7 Pronunciamento do Tribunal ConstitucionalAlemão, citado por Luís Roberto BARROSO (1998,p. 208).

8 São características do valor a sua transcendên-cia , a sua dialética (valor e contravalor convivemnecessariamente) e a sua hierarquização (pois quevalores não são iguais, senão, não seriam valores,havendo a necessidade de hierarquizá-los em faceda sua heterogeneidade) (VAZ, 1997).

9 Nesse sentido, ver a obra supracitada de LuísRoberto BARROSO (1998, p. 213-216), e as severascríticas de Suzana de Toledo Barros a voto proferi-do pelo Ministro Francisco Rezek no Supremo Tri-bunal Federal (1996, p. 173-176).

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Jair José Perin

1. Introdução

A responsabilidade civil do Estado, nodecorrer da evolução do direito, passou pordiversas fases, começando por aquela emque o Estado não podia ser responsabiliza-do por qualquer lesão ao direito de alguém,já que, na concepção absolutista, o Estadonão estava na mesma relação que as pesso-as físicas e jurídicas. Passou, posteriormen-te, para a fase da responsabilidade civilista,surgida na França, quando da discussãosobre a conceituação de atos de império e degestão, onde começou a ser firmada a res-ponsabilidade da administração públicapor danos provenientes de atos de gestão,no caso de culpa ou dolo do agente público.Como evolução da teoria da responsabili-dade civilista, passa-se para a fase da pu-blicização da culpa administrativa, criaçãodo Conselho de Estado francês. Essa teoriainova profundamente, pois passa-se para aresponsabilidade do Estado independente-mente da falta do agente público, quandooriginária da Administração, pelo mau fun-

A responsabilidade civil do Estado e odano moral

Jair José Perin é Advogado da União, PRU4ª Região.

Sumário

1. Introdução. 2. Fundamento atual da res-ponsabilidade objetiva do Estado. 3. A desne-cessidade da denunciação da lide e a ação re-gressiva. 4. O amparo para o dano moral e arelatividade do direito. 5. A incompatibilida-de da teoria da responsabilidade objetiva anteo dano moral (teoria subjetiva). 6. Conclusão.

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cionamento do serviço público ou pela suainexistência, cuja decorrência deve ser con-cretamente avaliada e analisada. Essa fasemarca a transição para a atual fase da res-ponsabilidade objetiva do Estado. O fato quematerializou essa nova concepção foi o jul-gamento do caso Blanco em 1873, na Fran-ça, quando somente as regras de direito pú-blico foram aceitas para a solução do caso,porquanto o Estado aparecia como causa-dor de dano a administrado. Nesse tipo deresponsabilidade, segundo a doutrinadoraMaria Sylvia Zanella Di Pietro, a idéia culpaé substituída pela de nexo de causalidade, entreo funcionamento do serviço público e o prejuízosofrido pelo administrado. É indiferente que oserviço público tenha funcionado bem ou mal, deforma regular ou irregular.

Nesse tipo de responsabilidade, não hánecessidade de apreciação do dolo ou culpa. É achamada teoria do risco, porquanto tem comopressuposto que a atuação do poder públicoenvolve um risco de dano, que lhe é ínsito.

Nas palavras de Heleno Taveira Tôrres,pela teoria do risco objetivo figura o enten-dimento de que ao lesado não interessa co-nhecer o responsável pelo dano, ele almejao ressarcimento, desde que estabelecido onexo causal entre ele e o Estado.

O doutrinador Hely Lopes Meirelles ob-serva que a teoria do risco envolve duasmodalidades: a do risco administrativo, ca-racterizada essa por admitir as causas ex-cludentes da responsabilidade do Estado:culpa da vítima, culpa de terceiros, caso for-tuito ou força maior; e a do risco integral, aqual não admite as excludentes aceitas pelateoria do risco administrativo.

2. Fundamento atual daresponsabilidade objetiva do

Estado

A Constituição atual da República Fe-derativa do Brasil adotou a teoria da res-ponsabilidade objetiva, na modalidade dorisco administrativo. O art. 37, § 6º, dispõe:“As pessoas jurídicas de direito público e

as de direito privado prestadoras de serviçospúblicos responderão pelos danos que seusagentes, nessa qualidade, causarem a tercei-ros, assegurado o direito de regresso contra oresponsável nos casos de dolo ou culpa”.

Por essa redação, existe a possibilidadede o Estado, caso condenado a indenizar oadministrado, ingressar com ação regressi-va, de rito ordinário, nos termos do Códigode Processo Civil, contra o agente público,caso este tenha sido o responsável, por doloou culpa, pela condenação do Ente Público.Para ajuizar essa ação, portanto, há a ne-cessidade de prévia condenação da pessoaestatal à indenização de terceiros por atolesivo do agente, e anterior constatação, emprocesso regular, em que sejam respeitadostodos os princípios do devido processo le-gal, do comportamento doloso ou culposodo agente.

A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de1990, que dispõe sobre o Regime Jurídicodos Servidores Públicos, confirma o expos-to quando expressa:

“Art. 122. A responsabilidade civil de-corre de ato omissivo ou comissivo, dolosoou culposo, que resulte em prejuízo ao erá-rio ou a terceiro.

(....)§ 2º Tratando-se de dano causado a ter-

ceiros, responderá o servidor perante a Fa-zenda Pública, em ação regressiva”.

3. A desnecessidade da denunciaçãoda lide e a ação regressiva

Em consonância com a posição majori-tária da doutrina e da jurisprudência, nãomais é obrigatória, e nem aceitável, a denun-ciação da lide nos termos do art. 70, III, doCPC, na própria ação indenizatória, parafuncionar como o direito de regresso. A ra-zão para a sustentação desse entendimentoreside no fato de que na ação indenizatóriabaseada na responsabilidade objetiva doEstado, segundo a teoria do risco adminis-trativo, somente é afastada a responsabili-dade do Ente Estatal caso este prove a culpa

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exclusiva da vítima, de terceiros, caso for-tuito ou força maior. Não existe, por exten-são, espaço nessa relação processual paradiscutir a culpa ou o dolo do agente públicoque porventura tenha sido o causador dodano. A respeito, veja-se as seguintes juris-prudências:

“1) CONSTITUCIONAL. Respon-sabilidade Civil do Estado. Seus pres-supostos. 2) Processual Civil. A açãode indenização, fundada na respon-sabilidade objetiva do Estado, por atode funcionário (Constituição, Art. 107e parágrafo único), não comporta obri-gatoriamente denunciação a este, naforma do art. 70, III, do Código deprocesso Civil, para apuração deculpa, desnecessária a satisfação doprejudicado” (Supremo Tribunal Fe-deral, RE - 93880/RJ, Segunda Tur-ma, Relator Ministro Décio Miranda,DJ 05.02.82, pág. 10443).

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVODE INSTRUMENTO. ART. 70, III, DOCPC. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO.RESPONSABILIDADE OBJETIVA DOESTADO. DENUNCIAÇÃO À LIDEDO AGENTE PÚBLICO PRETENSA-MENTE CAUSADOR DO DANO. DES-NECESSIDADE. TEORIA OBJETIVAABARCADA PELA CONSTITUIÇÃOFEDERAL.

Tendo a Constituição Federal abar-cado a teoria objetiva da responsabi-lidade, todo dano ocasionado ao par-ticular, por servidor público, há de serressarcido, independentemente daexistência de dolo ou culpa deste. As-sim, pela via oblíqua, forçoso é de seconcluir que a denunciação à lide, incasu, embora recomendável, é desne-cessária à satisfação do direito do pre-judicado, e não afasta a possibilidadede o denunciante requerer o direitoalegado, posteriormente, na via pró-pria, haja vista não ter o art. 70, inc.III, do Estatuto Processual Civil, nor-ma do direito instrumental, o poder

de aniquilar o próprio direito material.Precedentes. Agravo regimental im-provido” (Superior Tribunal de Jus-tiça, Segunda Turma, Decisão de 20/11/2001, Agravo Regimental no Agra-vo de Instrumento – 396230, Processonº 2001.00.82346-0/BA).

“ADMINISTRATIVO. PROCESSOCIVIL. AGRAVO RETIDO. DENUN-CIAÇÃO À LIDE. ACIDENTE DEAUTOMÓVEL. RESPONSABILIDA-DE OBJETIVA DO ESTADO. INDENI-ZAÇÃO. LUCROS CESSANTES.

1. Em ação de responsabilidadecivil por ato omissivo ou comissivo doservidor da pessoa jurídica de direitopúblico, a denunciação da lide podeser indeferida pelo juiz. Nessa ação,incumbe ao autor provar a ocorrênciado fato lesivo e o dano daí decorrente.A culpa do servidor não é discutida.A Constituição Federal assegurou àpessoa de direito público a ação deregresso, independente de denunciara lide.

2. Abalroando o motorista do car-ro oficial, por não atentar para as con-dições de tráfego, no momento, o veí-culo (táxi), que trafegava pela faixa quelhe era própria, em situação regular,responde o Estado pela indenização.

3. Tendo o automóvel, táxi, perma-necido parado, na oficina, para con-serto, impossibilitando o seu proprie-tário de auferir renda com a sua utili-zação, obrigado está o Estado a pagaros lucros cessantes.

4. Agravo retido e apelação impro-vidos” (Tribunal Regional Federal da1ª Região, Terceira Turma, Relator JuizTourinho Neto, Apelação Cível noProcesso nº 1989.01.09213-1/DF, pu-blicado no DJ 04/06/1990, pág.11755).

“DIREITO ADMINISTRATIVO.REPARAÇÃO DE DANOS DECOR-RENTES DE COLISÃO DE MOTOCI-CLETA COM VIATURA DO EXÉRCI-

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TO BRASILEIRO. RESPONSABILIDA-DE OBJETIVA DA UNIÃO. DENUN-CIAÇÃO DA LIDE DOS MILITARESRESPONSÁVEIS. INVIABILIDADE.

A denunciação à lide dos milita-res envolvidos no acidente implicariaem evidente prejuízo ao apelado, poisprocrastinaria o reconhecimento deum legítimo direito da vítima, em ra-zão da responsabilidade objetiva doEstado, fazendo com que dependade solução de um outro conflito in-tersubjetivo de interesses, entre oEstado e os militares” (Tribunal Re-gional Federal da 4ª Região, Tercei-ra Turma, Relatora Juíza Luíza DiasCassales, Apelação Cível no Proces-so nº 94.04.39728-8/RS, publicadono DJ DE 14/10/1998, pág. 580).

De acordo com o doutrinador HumbertoTheodoro Júnior, pela sistemática do Códi-go de Processo Civil, a denunciação da lideé medida obrigatória, que leva a uma sen-tença sobre a responsabilidade de terceiroem face do denunciante, de par com a solu-ção normal do litígio de início deduzido emjuízo, entre autor e réu. Consiste em chamaro terceiro (denunciado), que mantém um vín-culo de direito com a parte (denunciante),para vir responder pela garantia do negó-cio jurídico, caso o denunciante saia venci-do no processo.

Como se vê, existe substancial diferençaentre a denunciação da lide prevista na LeiProcessual brasileira e a ação regressivaconstante no art. 37, § 6º , da Carta da Repú-blica Federativa do Brasil, haja vista quenesta, primeiro o Poder Público respondeobjetivamente à luz da teoria do risco admi-nistrativo e, caso condenado, em provandoa culpa ou dolo do agente público, ingressacom uma ação contra este.

4. O amparo para o dano morale a relatividade do direito

Feitas essas considerações, cabe enfren-tar a problemática da indenização por dano

moral ante a atual sistemática de processa-mento dos pedidos de indenização por da-nos decorrentes da responsabilidade objeti-va agasalhada pelo texto constitucional.

A Constituição Federal de 1988, refletin-do a evolução do direito nacional e interna-cional em relação ao ser humano como in-divíduo em si, ou considerado coletivamen-te, garantiu a inviolabilidade de direitos queo Poder Constituinte Originário reconheceucomo essenciais, os quais, na sua grandemaioria, encontram-se arrolados no art. 5º.Esses direitos fundamentais fazem partedaquele núcleo constitucional imodificávele inatingível pelo Poder Derivado, seja porintermédio de emenda constitucional, sejaou outro modo de reforma da Carta Magna,porquanto constituem cláusulas pétreas nostermos do § 4º do art. 60. Somente por meiode outro poder constituinte originário issoserá possível, o que não deverá ocorrer, comcerteza, haja vista constituirem direitos con-quistados pela própria evolução da huma-nidade e dos estados politicamente organi-zados, mais principalmente os democráti-cos de direito.

Como forma de garantir e dar efetivida-de à inviolabilidade dos direitos fundamen-tais consagrados constitucionalmente, aCarta Fundamental prevê, além de outros, apossibilidade de ser pleiteada a indeniza-ção não só do dano patrimonial, mas tam-bém do dano moral. Os incisos V e X do art.5º da Carta Fundamental dispõem respecti-vamente:

“é assegurado o direito de resposta,proporcional ao agravo, além de in-denização por dano material, moralou à imagem;”“são invioláveis a intimidade, a vidaprivada, a honra e a imagem das pes-soas, assegurado o direito a indeni-zação pelo dano material ou moraldecorrente de sua violação.”

Por estarem previstos no art. 5º da Cons-tituição da República Federativa do Brasil,são considerados direitos fundamentais,aos quais deve ser dado o máximo de con-

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cretização material, já que desfrutam de apli-cabilidade imediata, de acordo com o expres-so no parágrafo primeiro desse artigo. Cabeaqui trazer as considerações do doutrina-dor José Afonso da Silva, a respeito da apli-cabilidade e eficácia das normas que con-têm os direitos fundamentais. Assim lecio-na o mestre constitucionalista:

“A eficácia e aplicabilidade dasnormas que contêm os direitos funda-mentais dependem muito de seuenunciado, pois se trata de assuntoque está em função do Direito positi-vo. A Constituição é expressa sobre oassunto, quando estatui que as nor-mas definidoras dos direitos e garan-tias fundamentais têm aplicação ime-diata. Mas certo é que isso não resolvetodas as questões, porque a Constitui-ção mesma faz depender de legisla-ção ulterior a aplicabilidade de algu-mas normas definidoras de direitossociais, enquadrados dentre os fun-damentais. Por regra, as normas queconsubstanciam os direitos funda-mentais democráticos e individuaissão de eficácia contida e aplicabilida-de imediata, enquanto as que definemos direitos econômicos e sociais ten-dem a sê-lo também na Constituiçãovigente, mas algumas, especialmenteas que mencionam uma lei integrado-ra, são de eficácia limitada, de princí-pios programáticos e de aplicabilida-de indireta, mas são tão jurídicas comoas outras e exercem relevante função,porque, quanto mais se aperfeiçoam eadquirem eficácia mais ampla, maisse tornam garantias de democracia edo efetivo exercício dos demais direi-tos fundamentais.”

Esses direitos fundamentais consagra-dos na Carta Fundamental exigem do Esta-do, por vezes, uma atuação negativa, no sen-tido de não agredir e/ou desrespeitar a es-fera individual da pessoa ou da coletivida-de considerada, e, em outras situações, umaatitude positiva para dar concretude às ex-

pectativas das pessoas e da sociedade.Essas previsões constitucionais coloca-

ram por terra todas vacilações que havia nadoutrina e jurisprudência a respeito do ca-bimento ou não de indenização por danomoral. Na feliz constatação do doutrinadorCelso Ribeiro de Bastos: “Isso não quer di-zer que já não houvesse uma longa teoriza-ção, antes de 1988, em torno da figura dodano moral. Já estava nas mentes dos auto-res que o dano não é apenas aquela agres-são física, responsável por prejuízos mate-riais que deveriam ser indenizados. Haviaum outro tipo de dano mais sutil, mas nempor isso menos agressivo e maligno, que éaquele fruto de ataques à honra, à dignida-de, à reputação e mesmo aos sentimentoshumanos”.

Porém, essa previsão constitucional dapossibilidade de ser pleiteada a indeniza-ção por dano moral, quando houver viola-ção à intimidade, à vida privada, à honra eà imagem das pessoas, não pode ser enca-rada de forma simplista, devendo ser leva-dos em consideração diversos fatores, valo-res em conflito e circunstâncias envolven-tes, a fim de ser um instrumento de aceita-ção e de resignação por toda a sociedade.

Há que se ter presente que a Carta Mag-na impõe ao Estado e à Sociedade o deverde garantir não somente os direitos de pri-meira geração (a vida, a liberdade, a associa-ção, etc.), mas também os de segunda (o di-reito ao trabalho, à saúde, à educação, etc.),e de terceira (direito ao desenvolvimento, àpaz, ao meio ambiente, etc.); ou seja, houveum abandono da idéia individualista, pas-sando a existir uma inquietude social maisabrangente. Isso demanda, efetivamente,para o Estado, uma preocupação global, afim de não ocorrer maior valorização de de-terminados direitos em prejuízo de outros.Logicamente que a viabilização dos direi-tos de segunda, terceira e até de quarta gera-ção, estes reconhecidos por apenas algunsdoutrinadores, reflete diretamente sobre osde primeira geração, como estes, também,repercutem em relação às demais gerações

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de direitos. Na verdade, percebe-se que existeuma verdadeira interação e interdependên-cia nessas gerações de direitos.

O doutrinador Alexandre de Moraes nostraz as seguintes lições:

“Os direitos e garantias funda-mentais consagrados pela Constitui-ção Federal, portanto, não são ilimita-dos, uma vez que encontram seus li-mites nos demais direitos igualmenteconsagrados pela Carta Magna (Prin-cípio da relatividade ou convivênciadas liberdades públicas).

Desta forma, quando houver con-flito entre dois ou mais direitos ougarantias fundamentais, o intérpretedeve utilizar-se do princípio da con-cordância prática ou da harmoniza-ção de forma a coordenar e combinaros bens jurídicos em conflito, evitan-do o sacrifício total de uns em relaçãoaos outros, realizando uma reduçãoproporcional do âmbito de alcance decada qual (contradição dos princípios),sempre em busca do verdadeiro sig-nificado da norma e da harmoniado texto constitucional com sua fina-lidade precípua.”

Apontando a relatividade dos direitosfundamentais, Quiroga Lavie afirma que es-ses nascem para reduzir a ação do Estadoaos limites impostos pela Constituição, semcontudo desconhecerem a subordinação doindivíduo ao Estado, como garantia de queeles operem dentro dos limites impostos pelodireito.

A própria Declaração dos Direitos Hu-manos das Nações Unidas, expressamente,em seu art. 29, afirma que:

“toda a pessoa tem deveres com a co-munidade, posto que somente nelapode desenvolver livre e plenamentesua personalidade. No exercício deseus direitos e no desfrute de suas li-berdades todas as pessoas estarãosujeitas às limitações estabelecidaspela lei com a única finalidade de as-segurar o respeito dos direitos e liber-

dades dos demais, e de satisfazer asjustas exigências da moral, da ordempública e do bem-estar de uma socie-dade democrática. Estes direitos e li-berdades não podem, em nenhumcaso, ser exercidos em oposição comos propósitos e princípios das NaçõesUnidas. Nada na presente Declaraçãopoderá ser interpretado no sentido deconferir direito algum ao Estado, a umgrupo ou uma pessoa, para empreen-der e desenvolver atividades ou reali-zar atos tendentes a supressão dequalquer dos direitos e liberdadesproclamados nessa Declaração.”

O advogado Mário Lúcio Quintão Soa-res nos reporta:

“A Constituição brasileira, procu-rando ser um instrumento de mudan-ça social, preconiza, expressamente,princípios basilares de direitos huma-nos, como: soberania, cidadania, dig-nidade humana e valores sociais dotrabalho; a construção de uma socie-dade justa, livre e solidária; a erradi-cação da pobreza e da marginaliza-ção social; a prevalência dos direitoshumanos nas relações internacionais.

A Carta Magna evoluiu ideologi-camente em relação às Constituiçõesanteriores, mesmo a liberal de 1946,ampliando as garantias constitucio-nais aos direitos individuais e coleti-vos contemplados, estabelecendo umcapítulo específico e moderno para osdireitos sociais e introduzindo os di-reitos fundamentais de terceira gera-ção, dispondo inclusive, no artigo 225,sobre o ‘direito ao meio ambiente eco-logicamente equilibrado’.

Ocorreu incontestável avanço naabordagem dos direitos fundamen-tais, que devem integrar-se em umajustaposição harmônica, evitando adeformação individualista, paraabranger o rol de todos os direitos quedevem ser reconhecidos ao cidadão eao homem.”

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Portanto, referente à ação de indeniza-ção por dano moral quando o Estado agrideos direitos fundamentais, a honra, a ima-gem, a vida privada e a intimidade, deveocorrer o máximo de cuidado na apuraçãodo dano efetivo, à sua extensão, às suas cir-cunstâncias, e outros aspectos relevantes, afim de não haver um atropelo à necessáriaharmonia com os demais direitos e princí-pios que precisam ser assegurados pelo Po-der Público. Cabe trazer a seguinte jurispru-dência a respeito:

“DANO MORAL. Necessariamen-te ele não existe pela simples razão dehaver um dissabor. A prevalecer essatese, qualquer fissura de contrato da-ria ensejo ao dano moral conjugadocom o material. O direito veio para via-bilizar a vida e não para truncá-la,gerando-se um clima de suspense ede demandas. Ausência de dano mo-ral, no caso concreto. Recurso despro-vido” (AC nº 596185181-RS, 6ª Câma-ra Cível, Rel. Desembargador DécioAntônio Erpen, julgamento 05.11.96).

Segundo Carlos Alberto Bittar, “danosmorais são lesões sofridas pelas pessoas,físicas ou jurídicas, em certos aspectos desua personalidade, em razão de investidasinjustas de outrem. São aqueles que atin-gem a moralidade e a afetividade da pes-soa, causando-lhe constrangimentos, ve-xames, dores, enfim, sentimentos e sensa-ções negativas”.

Para Wilson Mello da Silva, “dano moralé aquele que diz respeito às lesões sofridaspelo sujeito físico ou pessoa natural (não jurí-dica) em seu patrimônio de valores exclusi-vamente ideais, vale dizer, não econômicos”.

Maria Helena Diniz observa que o “danomoral, ensina-nos Zannoni, não é a dor, aangústia, o desgosto, a aflição espiritual, ahumilhação, o complexo que sofre a vítimado evento danoso, pois estes estados de es-pírito constituem conteúdo, ou melhor, aconseqüência do dano (...). O direito não re-para qualquer padecimento, dor ou aflição,mas aqueles que forem decorrentes da priva-

ção de um bem jurídico sobre o qual a vítimateria interesse reconhecido juridicamente”.

Em artigo publicado no Jornal Zero Hora(10 out. 1998), o Desembargador Décio Antô-nio Erpen, do Tribunal de Justiça do Estadodo Rio Grande do Sul, assim expressa:

“(...) De outro lado, a seara jurídicafomenta, hoje, um instituto que, igual-mente, instabiliza o próprio direito.Refiro-me à indústria do dano moral.

Sem uma definição científica doque seja, realmente, o dano moral, semuma norma estabelecendo as áreas deabrangência e sem parâmetros legaispara a sua quantificação, permite-seo perigoso e imprevisível subjetivis-mo do pleito, colocando o juiz numaposição de desconforto. Ele, que deveser o executivo da norma, passou apersonalizá-la.

A prevalecer o instituto sem crité-rios legais definidos, os profissionais,em especial os prestadores de serviço,exercerão seu mister com sobressalto;os produtores não resistirão às inde-nizações de valores imprevisíveis. Se-quer as seguradoras assumirão a co-bertura ante a ausência de um refe-rencial para a elaboração dos cálcu-los. Enfim, toda a sociedade estarásubmetida ao subjetivismo, o queconspira contra um valor supremo dodireito, a segurança jurídica.

A corrente belicosa, se vitoriosa,gerará uma sociedade intolerante, naqual se promoverá o ódio, a rivalida-de, a busca de vantagens sobre outremou até a exaltação ao narcisismo. Apromissora indústria do dano levaráa esse triste quadro.(...)”

5. A incompatibilidade da teoria daresponsabilidade objetiva ante o dano

moral (teoria subjetiva)

Percebe-se, sob a ótica supracitada, que aresponsabilidade do Poder Público quanto aodano moral necessita passar por uma avalia-

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ção subjetiva, a fim de levantar com detalheso grau de culpa ou de dolo do agente públicocausador do dano, bem como da vítima.

Quando envolver um agente públicocomo vítima de dano causado por outroagente do Estado, o cuidado na avaliaçãodo dano moral necessita aumentar aindamais, devendo chegar, na maioria dos ca-sos, a não existir, porquanto, na grande somados casos, o agente é vítima de outro agenteque está envolvido diretamente nas circuns-tâncias em que o fato ocorreu. Para exempli-ficar, tomemos a atividade policial e militar,na qual esses agentes assumem, ao toma-rem posse nos cargos e funções, riscos ine-rentes à sua profissão, tais como, periculo-sidade, insalubridade e penosidade, muitoacentuados, em que o limite entre a culpaou dolo do Poder Público, por intermédiode seus outros agentes, e o próprio risco daatividade em si é muito tênue, exigindo doPoder Judiciário, quando da prestação ju-risdicional, muita parcimônia e sopesamen-to de todos esses fatos envolvidos. Geral-mente, nesses casos, ocorre, também, umacompensação dos próprios bens protegidosconstitucionalmente. Suponhamos que umagente policial, numa perseguição a bandi-dos, venha a ser alvejado por outro agentepolicial envolvido na operação, resultandono seu passamento. A sua família poderáingressar com uma ação por dano moral,alegando a violação a algum bem protegidoconstitucionalmente. Ocorre que, simul-taneamente, outros bens imateriais (p. ex.a honra e a imagem), certamente, estarãoem jogo, os quais, no final da equação, fi-carão numa posição de realce a dignifi-car essa vítima e sua família.

Pode-se dizer que existe uma incompati-bilidade evidente entre a forma de apura-ção da responsabilidade objetiva patrimo-nial com aquela que deve nortear a investi-gação em relação ao dano moral, em quenesta os aspectos subjetivos devem ser mui-to bem provados e sopesados, enquantonaquela o Poder Público somente se eximede responsabilidade da indenização caso

consiga provar a culpa exclusiva da vítima,de terceiro, força maior ou caso fortuito.

A prova da culpa ou do dolo do agentepúblico em relação ao dano moral causadoà vítima pelo Estado é imprescindível, comotambém a existência da própria violação dosbens imateriais protegidos constitucional-mente (honra, vida privada, intimidade eimagem).

O direito à indenização por dano moraldeve fundar-se no art. 159 do Código Civil,pelo qual o autor precisará provar o ato cul-poso do agente, o nexo causal entre o ato e oresultado, bem como o prejuízo decorrente.Significa dizer que, em princípio, para oautor conseguir êxito na causa indenizató-ria tem o ônus e incumbência de provar aocorrência dos três requisitos retrocitados,tudo de acordo com o art. 333, inciso I, doCódigo de Processo Civil brasileiro.

Não existe lugar na ação de indeniza-ção pela responsabilidade objetiva para dis-cutir aspectos subjetivos, com ampla instru-ção processual, provas, contraditório e de-fesa, que envolvem a responsabilidade pordano moral.

Além do mais, se o agente público su-postamente causador do dano moral nãoparticipa da relação processual, haja vistaque não existe previsão constitucional e le-gal de denunciação da lide ao mesmo, e opróprio Poder Público está coartado a so-mente discutir aspectos restritos, como aculpa exclusiva da vítima, força maior e casofortuito, não pode haver espaço para o plei-to de reparação de dano moral na ação porresponsabilidade objetiva, o que deve ser bus-cado, por conseguinte, em outra ação comfundamento na responsabilidade subjetiva.

Para corroborar com o acima exposto,veja-se a posição jurisprudencial do STJ:

“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.DANO MORAL. AGRESSÕES PORSEGURANÇAS DE SHOPPING CEN-TER. INDENIZAÇÃO. QUANTUM .HONORÁRIOS. CONDENAÇÃO.OBSERVÂNCIA AO ART. 21, CPC.RECURSO DESACOLHIDO.

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I – A indenização deve ser fixadaem termos razoáveis, não se justifican-do que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, commanifestos abusos e exageros, deven-do o arbitramento operar com mode-ração, proporcionalmente ao grau de cul-pa e ao porte econômico das partes,orientando-se o juiz pelos critériossugeridos pela doutrina e pela juris-prudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso,atento à realidade da vida e às peculia-ridades de cada caso. Ademais, deve elacontribuir para desestimular o ofen-sor a repetir o ato, inibindo sua con-duta antijurídica.

II – Diante dos fatos da causa, ra-zoável a indenização arbitrada peloTribunal de origem, levando-se emconsideração não só a desproporcio-nalidade das agressões pelos segu-ranças como também a circunstân-cias relevante de que os shopping cen-ters são locais freqüentados diaria-mente por milhares de pessoas e fa-mílias.

III – Em face dos manifestos e freqüen-tes abusos na fixação do quantum inde-nizatório, no campo da responsabilida-de civil, com maior ênfase em se tratan-do de danos morais, lícito é ao SuperiorTribunal de Justiça exercer o respectivocontrole.

IV – Calculados os honorários sobre acondenação, a redução devida pela sucum-bência parcial nela foi considerada” [gri-famos]

(Resp nº 215.607 – RJ, Relator Mi-nistro Salvio de Figueiredo Teixeira, jul-gado ocorrido em 17/08/1999, publicadono DJ 13/09/1999).

Ante os termos expressos na ementa doacórdão referenciado, a qual muito bem sin-tetizou a fundamentação constante do votovencedor, percebe-se que, efetivamente, aforma de apuração da responsabilidadeobjetiva é totalmente inadequada para a

averiguação e fixação da indenização pordano moral, porquanto a análise dos aspec-tos subjetivos, que nesse caso exige, como ograu de culpa, as peculiaridades do caso,as circunstâncias em que ocorreu o dano, eoutros detalhes, refogem por demais à alça-da do rito restrito da apuração objetiva. Opróprio ônus da prova do fato constitutivodo direito do autor da ação de indenizaçãopor dano moral tem uma diferença substan-cial em relação à ação de indenização patri-monial pela teoria do risco administrativoadotada pela responsabilidade objetiva.

6. Conclusão

Com o exposto acima, espera-se ter con-tribuído, de alguma forma, para aumentar,ainda mais, a inquietude em relação ao tãopolêmico assunto, que é a indenização pordano moral, principalmente quando a açãoé ajuizada contra o Poder Público, seja porpessoa que não faça parte da Administra-ção Pública, seja por agente público.

Ao que parece, a ação indenizatória pordano moral não pode aproveitar-se do ritoprocessual que segue a ação de reparaçãopor dano patrimonial à luz da responsabi-lidade objetiva, pela teoria do risco admi-nistrativo, porquanto nesta o Estado somen-te pode discutir aspectos restritos para exi-mir-se da obrigação de indenizar, que é aculpa exclusiva ou concorrente da vítima,de terceiros, caso fortuito e força maior.

Por envolver dano moral, em que diver-sos aspectos devem ser levados em conside-ração, inclusive para a fixação do quantumdebeatur, a ação deve ser ajuizada com baseno art. 159 do Código Civil, ou seja, com basena responsabilidade subjetiva, pela qual oautor terá o ônus de provar o fato constituti-vo de seu direito nos termos do art. 333, in-ciso I, do Código de Processo Civil. Caso sejaimputada a responsabilidade a algum agen-te público, esse deverá participar da relaçãoprocessual, na condição de litisdenunciado.

Quanto ao cabimento em si da indeniza-ção por dano moral, essa somente deverá

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ocorrer quando o Estado, por meio de seusagentes, de fato, agredir os direitos funda-mentais (a honra, a intimidade, a imagem ea vida privada) de forma evidente, antijurí-dica, a fim de não se transformar em um ins-trumento de enriquecimento sem uma justacausa. E quando essa indenização ocorrer,precisará levar em conta todos os requisitosfirmados pelo Superior Tribunal de Justiçano acórdão acima mencionado.

O pedido de indenização por dano mo-ral envolvendo como vítima agente públicodeve merecer mais atenção do Poder Juris-dicional, haja vista que, na grande maioriados casos, o suposto dano ocorreu pelas cir-cunstâncias inerentes à sua própria ativi-dade pública.

Além do mais, o agente público, ao to-mar posse em cargo ou função pública, as-sume os riscos imanentes à sua atividade,não podendo, por isso, ser desconsideradosquando da apreciação de pleito indenizató-rio por dano moral.

Outro relevante aspecto a considerar,quando existir agente público ou sua famí-lia como vítima, refere-se a que, na grandequantidade dos casos, os valores imateriaisreverenciados e destacados pelo Poder Pú-blico e a própria sociedade, quando ocorrerum dano a esse agente, suplantam, em mui-to, algum outro suposto direito protegidoconstitucionalmente pela ação de indeniza-ção por dano moral, alegadamente violado.

Por fim, na seara do pleito de dano mo-ral contra o Estado, deve ocorrer um cuida-do todo especial, a fim de não haver umasupervalorização desses direitos funda-mentais de primeira geração, prejudicando,com isso, políticas públicas voltadas a en-

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Emerson Garcia

I. Proêmio

Qualquer que seja a ideologia seguida, étarefa assaz difícil combater a idéia de que oelemento moral é um componente indisso-ciável da coexistência humana. Identificarseu alcance e sua esfera de interpenetraçãocom o direito é tarefa extremamente delica-da e envolta em atmosfera de grande risco.A justificativa, por sua vez, é tão simplesquanto a conclusão: a noção de moral vei-cula conceito dotado de grande fluidez eimprecisão, exigindo a convergência demúltiplos fatores exógenos para a suadensificação. Dificuldade à parte, a iden-tificação do real alcance da regra moralnos permitirá uma contínua valoração eadequação dos valores subjacentes a de-terminado grupamento, contribuindo

A moralidade administrativa e suadensificação

Emerson Garcia é Promotor de Justiça noRio de Janeiro

Sumário I. Proêmio. II. Introdução. 1. Princípios.

Aspectos gerais. 2. O caráter normativo dosprincípios. 3. princípio da juridicidade. III. Amoralidade administrativa e sua densificação.4. Princípio da moralidade administrativa. In-tróito. 5. A moral no direito privado. 6. A mo-ral no Direito Administrativo e seu alicercedogmático. 6.1. Delimitação da moralidade ad-ministrativa. 6.2. Essência da moralidade ad-ministrativa. 6.3. Previsão normativa. 6.4. Amoralidade e os elementos do ato administra-tivo. 6.5. A moralidade administrativa na ju-risprudência pátria. 7. Códigos de ética. IV. Sín-tese conclusiva.

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para a preservação da harmonia nas re-lações intersubjetivas.

O presente escrito, que percorre cami-nhos já trilhados por penas ilustres e indu-vidosamente mais talentosas, busca explo-rar a grande potencialidade do princípio damoralidade para a efetivação do ideal de-mocrático, o que se dará a partir da demons-tração de que a densificação de seu conteú-do nada mais é do que o resultado da extra-ção do sumo de toda a normatização regen-te da atividade estatal. Com isso, confere-se-lhe uma expressão multifacetária quemelhor se adequará aos constantes influxossociais, permitindo uma contínua aferiçãoda legitimidade dos atos daqueles que ad-ministram o patrimônio alheio, pois nãocabe ao administrador público outra postu-ra senão satisfazer os interesses do verda-deiro detentor do poder: o povo.

Exposto o objetivo, resta-nos indicar osmeios que serão utilizados para a sua con-secução.

Situando-se a perspectiva de estudo sobuma ótica principiológica, é imperativo quesejam tecidas breves considerações sobre ométodo a ser utilizado para a individuali-zação dos princípios, prosseguindo-secom a demonstração de seu caráter nor-mativo, o que é reflexo do aperfeiçoamen-to do positivismo de outrora, época em quenorma e regra eram designativos de obje-tos idênticos e que preenchiam todo o es-paço deixado para a atividade de criaçãodo direito. Hodiernamente, a norma éidentificada como o gênero do qual defluemduas espécies: a regra e o princípio – am-bos dotados de conteúdo axiológico simi-lar e que diferem a partir de seus graus deabstração e generalidade.

Concebido o princípio como norma, tor-na-se cogente que o administrador públicoa ele renda obediência. Estabelecida essapremissa, buscamos densificar o conteúdodo princípio da moralidade administrativa,o qual é um standard de conduta informadopelos valores retirados das demais normasregentes da atividade estatal.

II. Introdução

1. Princípios. Aspectos Gerais

Tradicionalmente, os princípios vêmsendo estudados pela Teoria Geral do Di-reito, seara em que assumem grande impor-tância na atividade de aplicação da norma,atuando como verdadeiros mecanismos deinterpretação e integração desta. Em suaacepção clássica, de alicerce jusnaturalista,os princípios seriam proposições supremas,de natureza universal e necessária, própriosda razão humana e cuja observância inde-pende do poder de coerção próprio da cria-ção legislativa. Para o direito natural, osprincípios são extraídos da natureza huma-na, sendo informados por elementos racio-nais, de consciência e pela interação do ho-mem com o ambiente.

Para os positivistas, que encontram naTeoria Pura do Direito de Hans KELSEN(1998) a sua pedra fundamental, os princí-pios, em essência, são proposições básicas,verdadeiros alicerces do sistema jurídico,sendo utilizados para limitar e direcionarsua aplicação. Podem ser explícitos ou im-plícitos, conforme estejam expressamenteprevistos no direito positivo ou dele sejamextraídos com a utilização de um processohermenêutico, o que permitirá que sejamaclarados e declarados pelo intérprete. Aidentificação dos princípios não prescindeda norma, antes se apresentam como o ali-cerce fundamental que a sustenta e que de-flui de sua estrutura. É nesse sentido que sefala em princípios gerais de Direito1, ou,como preferem os italianos2, em princípiosgerais do ordenamento jurídico, nomencla-tura essa que torna mais clara sua origem,associando-os aos princípios implícitos.

O instrumento utilizado para a identifi-cação dos princípios que integram o alicer-ce de um sistema jurídico é o processo lógi-co-indutivo, o qual possibilita que o estudode preceptivos específicos conduza à den-sificação dos princípios gerais que os infor-mam. Assim, parte-se do particular para o

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geral, com a conseqüente formação de cír-culos concêntricos – em nítida progressãodos graus de generalidade e abstração – queconduzirão à identificação da esfera princi-piológica em que se encontram inseridos osinstitutos e, no grau máximo de generalida-de, o próprio sistema jurídico. A própriacompreensão das regras específicas encon-tra-se condicionada à identificação e análi-se dos princípios extraídos do sistema emque estão inseridas, o que garantirá a har-monia entre este e as partes que o integram 3.A partir desse método de generalização cres-cente, o operador do direito será conduzidoà identificação dos princípios específicosnorteadores de determinado instituto, bemcomo aos princípios que informam certoramo da ciência jurídica e, ulteriormente,àqueles que alicerçam o sistema jurídico emsua integridade. Como se vê, esse prisma deanálise se distingue daquele que é encam-pado pelos léxicos, em que o princípio é con-cebido como uma “proposição que se põeno início de uma dedução e que não é de-duzida de nenhuma outra dentro do sistemaconsiderado, sendo admitida, provisoriamen-te, como inquestionável” (HOLANDA, 1986).Aqui, o princípio é o elemento deflagradorde todo o sistema, enquanto lá o princípio éextraído do sistema.

À luz do exposto, vê-se que os princípiospodem ter sua origem no ordenamento jurí-dico, sendo explícitos ou implícitos, confor-me encontrem previsão expressa no direitopositivo ou, apesar de não terem sido ex-pressamente previstos, defluam do sistema– neste último caso, há os denominadosprincípios gerais de direito.

Extra-sistêmicos, por sua vez, são os prin-cípios associados à concepção de direito jus-to, própria do jusnaturalismo, não possuin-do grande aceitação ante a sua extrema vo-latilidade. Apesar disso, deve-se frisar queessa assertiva não deve ser confundida comuma plena aceitação da concepção positivis-ta, que veda ao intérprete qualquer conside-ração de ordem axiológica e limita sua ati-vidade a uma operação de subsunção do

fato à norma. A própria incompletude doordenamento jurídico, de tendência crescen-te ante a impossibilidade de imediata ade-quação da norma aos influxos sociais, tor-na inevitável que o operador do direito ve-nha a sopesar os valores comuns a determi-nado grupamento com o fim de integrar aslacunas normativas, o que maximiza o pa-pel dos princípios.

2. O caráter normativo dos princípios

Em sua gênese, conforme a doutrina tra-dicional, as normas se confundiam com asregras de conduta que veiculavam, sendoos princípios utilizados, primordialmente,como instrumentos de interpretação e inte-gração daquelas. Hodiernamente, tem-seum período pós-positivista, em que os prin-cípios deixaram de ser meros complemen-tos das regras, passando a ser vistos comoformas de expressão da própria norma, aqual é subdividida em regras e princípios.Na lição de Jorge MIRANDA (1990, p. 198),“os princípios não se colocam, pois, alémou acima do Direito (ou do próprio Direitopositivo); também eles – numa visão ampla,superadora de concepções positivistas, lite-ralistas e absolutizantes das fontes legais –fazem parte do complexo ordenamental.Não se contrapõem às normas, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normas ju-rídicas é que se dividem em normas – prin-cípios e normas – disposições”.

Aqueles que se opõem ao caráter norma-tivo dos princípios normalmente acenamcom sua maior abstração e com a ausênciade indicação dos pressupostos fáticos quedelimitarão a sua aplicação, o que denotauma diferença substancial em relação às nor-mas, as quais veiculam prescrições dotadasde maior determinabilidade, permitindo aimediata identificação das situações, fáticasou jurídicas, por elas reguladas (BELADIEZROJO, 1994, p. 75 et seq.). Em nosso entender,tais elementos não são aptos a estabelecer umadistinção profunda o suficiente para dissol-ver a relação de continência existente entrenormas e princípios, figurando estes como

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espécies daquelas. Inicialmente, deve-se di-zer que o maior ou o menor grau de genera-lidade existente em duas normas, a exem-plo do maior ou do menor campo de aplica-ção, é parâmetro incapaz de estabelecer di-ferenças de ordem ontológica entre as mes-mas. Os princípios, a exemplo das regras,carregam consigo acentuado grau de impe-ratividade, exigindo a necessária conforma-ção de qualquer conduta aos seus ditames,o que denota o seu caráter normativo. Sen-do cogente a observância dos princípios,qualquer ato que deles destoe será inválido,conseqüência essa que representa a sançãopara a inobservância de um padrão norma-tivo cuja observância é obrigatória. Em ra-zão de seu maior grau de generalidade, osprincípios veiculam diretivas comportamen-tais que devem ser aplicadas em conjuntocom as regras sempre que for identificadauma hipótese que o exija, o que, a um sótempo, acarreta um dever positivo para oagente – o qual deve ter seu atuar direciona-do à consecução dos valores que integram oprincípio – e um dever negativo, consisten-te na interdição da prática de qualquer atoque se afaste de tais valores.

Discorrendo sobre o tema, Norberto BOB-BIO (1989, p. 158-159) afirma que

“os princípios são apenas, a meu ver,normas fundamentais ou generalíssi-mas do sistema, as normas mais ge-rais. A palavra princípios leva a en-gano, tanto que é velha a questão en-tre os juristas se os princípios geraissão normas. Para mim, não há dúvi-da: os princípios gerais são normascomo todas as outras. E esta é tambéma tese sustentada por Crisafulli. Parasustentar que os princípios gerais sãonormas, os argumentos são dois, eambos válidos: antes de mais nada,se são normas aquelas das quais osprincípios são extraídos, através deum procedimento de generalizaçãosucessiva, não se vê por que não de-vam ser normas também eles: se abs-traio da espécie animal obtenho sem-

pre animais, e não flores ou estrelas.Em segundo lugar, a função para qualsão extraídos e empregados é a mes-ma cumprida por todas as normas, istoé, a função de regular um caso. E comque finalidade são extraídos em casode lacuna? Para regular um compor-tamento não-regulamentado: mas en-tão servem ao mesmo escopo a queservem as normas expressas. E porque não deveriam ser normas?”.

De forma correlata à evolução dogmáti-ca que terminou por delinear a relação de con-tinência existente entre as normas e os princí-pios, resta identificar os elementos que os dis-tinguem das regras. Trata-se de conseqüên-cia lógica dos argumentos expostos no itemprecedente, pois, fossem regras e princípiosdesignativos de objetos idênticos, certamentedispensável seria uma classificação dicotô-mica, bastando falar em normas jurídicas.

Não obstante a evolução, ainda não sechegou a um consenso quanto à identifica-ção da linha limítrofe que separa as regrasdos princípios, vale dizer, quando determi-nada disposição consubstanciará uma re-gra ou quando deve ser concebida como umprincípio.

As concepções doutrinárias podem sersubdivididas, basicamente, em duas posi-ções: de acordo com a primeira, denomina-da concepção débil dos princípios, a distinçãopara com as regras é quantitativa, ou de grau;enquanto a segunda, intitulada de concep-ção forte dos princípios, sustenta que a dife-rença é qualitativa.

A concepção débil de princípios está vincu-lada a uma visão positivista do Direito, nãovisualizando uma distinção substancial emrelação às regras, mas, unicamente, umamaior generalidade e abstração, o que con-duz os princípios à condição de normas fun-damentais do sistema4 e lhes confere umgrande valor hermenêutico, sem aptidão,contudo, para fornecer uma unidade de so-lução no caso concreto.

A concepção forte de princípios identificadistinções sob os aspectos lógico e qualita-

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tivo, o que individualiza os princípios comonormas jurídicas que se diferenciam das re-gras em razão de sua composição estrutu-ral. A imperatividade da ordem jurídica nãose esgotaria na previsão explícita das regrasjurídicas, estendendo-se aos valores con-substanciados nos princípios5. Ante o pres-tígio auferido por essa concepção, para aqual converge a grande maioria dos estu-dos contemporâneos, teceremos breves con-siderações a respeito de dois de seus maio-res expoentes.

Para DWORKIN (1980, p. 24), um dosmaiores cultores da metodologia jurídicacontemporânea, os princípios se distanciamdas regras na medida em que permitem umamaior aproximação entre o direito e os valo-res sociais, não expressando conseqüênciasjurídicas que se implementam automatica-mente com a simples ocorrência de determi-nadas condições, o que impede que sejamprevistas, a priori, todas as suas formas deaplicação. A efetividade dos princípios nãoé resultado de uma operação meramente for-mal e alheia a considerações de ordem mo-ral. Os princípios terminam por indicar de-terminada direção, mas não impõem umasolução em particular.

A distinção lógica entre regras e princí-pios é evidenciada por Dworkin ao dizerque

“ambos estabelecem standards queapontam para decisões particularessobre obrigações jurídicas em circuns-tâncias determinadas, mas distin-guem-se quanto ao caráter de direçãoque estabelecem. Regras são aplicáveisà maneira do tudo ou nada. Se ocorremos fatos estipulados pela regra, entãoou a regra é válida, caso em que a re-posta que fornece deve ser aceita, ounão é, caso em que em nada contribuipara a decisão”.

Dessa distinção deflui que os princípiospossuem uma dimensão de peso, o que in-fluirá na solução dos conflitos, permitindoa identificação daquele que irá preponde-rar. Quanto às regras, por não apresenta-

rem uma dimensão de peso, a colisão entreelas será resolvida pelo prisma da valida-de, operação que será direcionada pelos cri-térios fornecidos pelo próprio ordenamentojurídico – critério hierárquico (lex superiorderogat inferiori), critério cronológico (lex pos-terior derogat priori) e critério da especialida-de (lex specialis derogat generali).

Segundo Robert ALEXY (1993, p. 86, etseq.), enquanto as regras impõem determi-nado padrão de conduta, os princípios sãonormas jurídicas impositivas de uma otimi-zação, ordenando que algo seja realizado namelhor medida possível, podendo ser cum-pridos em diferentes graus6, sendo que amedida de seu cumprimento dependerá tan-to das possibilidades reais como tambémdas jurídicas. O âmbito das possibilidadesjurídicas é determinado pelos princípios eregras opostos. Além de encerrarem coman-dos de otimização que variarão consoante ascircunstâncias fáticas e jurídicas presentespor ocasião de sua aplicação, os princípiosapresentam peculiaridades em relação àsregras.

Para o jurista alemão, os princípios con-vivem harmonicamente, o que permite a suacoexistência e que, em caso de conflito, umdeles seja preponderantemente aplicado aocaso concreto, a partir da identificação deseu peso e da ponderação de outros princí-pios, conforme as circunstâncias em queesteja envolto7. O conflito entre regras, porsua vez, será solucionado com a introduçãode critérios de especialidade entre elas oucom o reconhecimento da invalidade deuma ou de algumas das regras confronta-das, permitindo que seja identificada aque-la que regulará a situação concreta. Aqui,diferentemente do que ocorre com os princí-pios, não se tem um exercício de pondera-ção, mas uma forma de exclusão, sendo co-gente a aplicação da regra ao caso. Enquantoos conflitos entre regras são dirimidos na dimen-são da validade, os conflitos entre princípios osão na dimensão do peso (ALEXY, 1993, p. 89).Portanto, as regras contêm determinaçõesno âmbito do fático e juridicamente possí-

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vel, o que significa que a diferença entre re-gras e princípios, espécies do gênero normajurídica, é qualitativa e não de grau.

Após essa sintética abordagem das dou-trinas de Dworkin e de Alexy, constata-seque a distinção existente entre regras e prin-cípios é melhor identificada a partir da vi-sualização da espécie de solução exigidapara os casos de colisão, o que nos leva aencampar a concepção forte dos princípios.

É de se notar, ainda, que a regra é umtipo de norma que, presentes os pressupos-tos autorizadores de sua aplicação, regerádeterminada situação fática ou jurídica, deforma incontestável e definitiva. Princípio,por sua vez, é um tipo de norma cujos pres-supostos autorizadores de sua aplicaçãonão assumem contornos precisos, o que lheconfere maior imprecisão e menor determi-nabilidade, fazendo com que atue como meiode otimização de certo comportamento, im-pregnando-o com os valores extraídos daspossibilidades fáticas e jurídicas do caso.

Na dogmática contemporânea, os prin-cípios podem assumir diversas funções. Noque diz respeito ao objetivo específico desteescrito, podem assumir uma função expli-cativa, permitindo a identificação da menslegis e sua contínua adequação aos valoressócio-culturais existentes por ocasião de suaaplicação, ou uma função normativa, tornan-do cogente que os fatos, simultaneamente,sejam valorados em conformidade com as re-gras e os princípios que lhes são subjacentes.

A adoção dos princípios tornará a nor-ma mais fluida e indeterminada, pois reves-tem-se de um grau de abstração e generali-dade mais acentuado do que as regras; poroutro lado, a menor determinabilidade docampo de aplicação da norma será compen-sada com uma adequação mais célere aosvalores que disciplina, o que também exigemaior responsabilidade do operador do di-reito ao sopesar sua axiologia e densificarseu conteúdo. De forma sintética, pode-sedizer que a aplicação das regras se esgotaem uma operação de subsunção, enquantoos princípios possibilitam um exercício de

ponderação, permitindo que sejam sopesa-dos os valores que informam determinadasituação fática, culminando com a identifi-cação da solução justa para o caso concreto.

Os princípios incidirão diretamente so-bre a esfera de determinado bem jurídico,permitindo a integração da regra, aclaran-do o seu significado lingüístico e delimitan-do o seu objeto. É nesse sentido que avulta aimportância dos princípios para o desen-volvimento deste estudo, pois, como serávisto, o Poder Público deve sempre atuar emconformidade com a norma, e esta é integra-da por regras e princípios, o que permitedizer que a imperatividade desses elemen-tos, cada qual com seu grau de determinabi-lidade, haverá de ser observada pelo agen-te. Além dessa função normativa, a concre-ção da regra, delineada e limitada pelosprincípios, terminará por indicar a otimiza-ção, e conseqüente correção, do comporta-mento do agente público. Em uma palavra,sua probidade.

Segundo CANOTILHO (1999, p. 1086),que sintetiza as teorias existentes, váriossão os critérios sugeridos para a distin-ção entre regras e princípios, destacan-do-se os seguintes:

“Grau de abstracção: os princípios sãonormas com um grau de abstracçãorelativamente elevado; de modo diver-so, as regras possuem uma abstraçãorelativamente reduzida.

Grau de determinabilidade na apli-cação do caso concreto: os princípios,por serem vagos e indeterminados,carecem de mediações concretizado-ras (do legislador? Do juiz?), enquan-to as regras são susceptíveis de apli-cação directa.

Carácter de fundamentalidade nosistema das fontes de direito: os prin-cípios são normas de natureza ou comum papel fundamental no ordena-mento jurídico devido à sua posiçãohierárquica no sistema das fontes (ex.:princípios constitucionais) ou à suaimportância estruturante dentro do

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sistema jurídico (ex.: princípio do Es-tado de Direito).

Proximidade da idéia de direito: osprincípios são ‘standards’ juridicamen-te vinculantes radicados nas exigên-cias de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘idéiade direito’ (Larenz); as regras podemser normas vinculativas com um con-teúdo meramente funcional.

Natureza normogenética: os princípiossão fundamento de regras, isto é, sãonormas que estão na base ou consti-tuem a ratio de regras jurídicas, desem-penhando, por isso, uma função nor-mogenética fundamentante.”

3. Princípio da juridicidade

Pouco a pouco, os princípios regentes daatividade estatal foram erguidos aos esta-mentos mais elevados do ordenamento jurí-dico, sempre buscando manter o Estadoadstrito às suas finalidades institucionais egarantir a estrita observância das liberda-des públicas, com o conseqüente aumentoda segurança dos administrados.

Ao atingirem o ápice da pirâmide nor-mativa, foi inevitável a constatação de que oprincípio da legalidade deixou de ser o úni-co elemento de legitimação e limitação daatividade estatal, isso porque dele não maisdefluíam a totalidade das regras e princípiosque a norteavam; pelo contrário, passarama coexistir lado a lado. Com a constitucio-nalização dos princípios, a concepção delegalidade cedeu lugar à noção de juridici-dade8, segundo a qual a atuação do Estadodeve estar em harmonia com o Direito, afas-tando a noção de legalidade estrita – comcontornos superpostos à regra – passandoa compreender regras e princípios.

Essa evolução dogmática está estrita-mente vinculada à própria concepção deEstado de Direito, o qual, segundo CANO-TILHO (1998, p. 239), “visa conformar asestruturas do poder político e a organiza-ção da sociedade segundo a medida do direi-to”, acrescendo que “o direito compreende-se como um meio de ordenação racional e vin-

culativa de uma comunidade organizada e,para cumprir esta função ordenadora, o di-reito estabelece regras e medidas, prescreveformas e procedimentos e cria instituições”. Oprincípio da legalidade passou a ser vistocomo integrante de um princípio maior: oprincípio da juridicidade. Com isso, consa-gra-se a inevitável tendência de substitui-ção do princípio da legalidade pelo princí-pio da constitucionalidade, do “direito porregras” pelo “direito por princípios”.

Como observou Germana de OliveiraMORAES (1999, p. 24), “a noção de legali-dade reduz-se ao seu sentido estrito de con-formidade dos atos com as leis, ou seja, comas regras – normas em sentido estrito. A no-ção de juridicidade, além de abranger a con-formidade dos atos com as regras jurídicas,exige que sua produção (a desses atos) ob-serve – não contrarie – os princípios geraisde Direito previstos explícita ou implicita-mente na Constituição”. Como exemplo des-sa tendência, pode ser citada a declaraçãoconstitucional da Lei Fundamental de Bonn,cujo art. 20 estatui que tanto o Poder Execu-tivo como os Tribunais estão vinculados anGesetz und Recht (à Lei e ao Direito). Em quepese o fato de o princípio da moralidade serum dos vetores básicos da probidade admi-nistrativa, afigura-se evidente que tal prin-cípio está abrangido por uma epígrafe maisampla, sob a qual se encontram aglutina-dos todos os princípios regentes da ativida-de estatal, papel que é desempenhado peloprincípio da juridicidade.

No caso específico do Direito Adminis-trativo, objeto principal deste escrito, aforaos princípios que defluem do sistema (im-plícitos), preocupou-se o Constituinte emestatuir, de forma expressa, aqueles que de-veriam ser necessariamente observados pe-los agentes públicos. Nessa linha, dispõe oart. 37, caput, da Constituição da República:“A administração pública direta e indiretade qualquer dos Poderes da União, dos Es-tados, do Distrito Federal e dos Municípiosobedecerá aos princípios de legalidade, im-pessoalidade, moralidade, publicidade, efi-

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ciência e, também, ao seguinte:...”. Como seconstata pela leitura do texto constitucio-nal, os princípios enumerados no art. 37devem ser observados pelos agentes de to-dos os Poderes, não estando sua aplicaçãoadstrita ao Poder Executivo, o qual desem-penha funções de natureza eminentementeadministrativa.

Não obstante o extenso rol de princípios,expressos ou implícitos, que norteiam a ati-vidade do agente público, entendemos quemerece maior realce o princípio da morali-dade, o qual aglutina as características dobom administrador, do agente probo, cujaatividade se encontra sempre direcionada àconsecução do interesse público.

III. A moralidade administrativa esua densificação

4. Princípio da moralidade administrativa.Intróito

Moral, como se sabe, é algo mais fácil deser sentido do que propriamente definido.Trata-se de conceito eminentemente variá-vel, sofrendo acréscimos, ajustes e supres-sões em conformidade com os critérios deordem sociológica vigentes no meio em quese desenvolverá a sua análise; critérios es-ses que variarão em conformidade com oscostumes e os padrões de conduta delimita-dores do alicerce ético do grupamento. Mo-ral, por conseguinte, é noção de naturezauniversal, apresentando conteúdo compa-tível com o tempo, o local e os mentores desua concepção.

Com o evolver das relações sociais e apaulatina harmonização dos interesses dogrupamento, foi inevitável a formulação deconceitos abstratos, os quais condensam, deforma sintética, a experiência auferida coma convivência social, terminando por esta-belecer concepções dotadas de certa estabi-lidade e com ampla aceitação entre todos, oque contribui para a manutenção do bem-estar geral. A moral representa o elementoaglutinador de tais concepções, podendo ser

concebida como o conjunto de valores co-muns entre os membros da coletividade emdeterminada época, ou, sob uma ótica res-tritiva, o manancial de valores que informamo atuar do indivíduo, estabelecendo os seusdeveres para consigo e sua própria consciên-cia sobre o bem e o mal. No primeiro caso,conforme a distinção realizada pelo filóso-fo Bergson, tem-se o que se convencionouchamar de moral fechada, e, no segundo, amoral aberta.

As relações do Direito com a moral sãotão antigas quanto polêmicas. Diogo Figuei-redo MOREIRA NETO (1992) noticia que,

“no estudo dessas relações, desde logoencontramos o magno problema dadistinção entre os dois campos, daMoral e do Direito, e, destacadamen-te, duas geniais formulações: primeiro,no início do século XVIII, de CristianThommasius, e, depois, já no fim des-se mesmo século, de Immanuel Kant.Thommasius delimitou as três disci-plinas da conduta humana: a Moral(caracterizada pela idéia do honestum),a Política (caracterizada pela idéia dodecorum) e o Direito (caracterizadopela idéia do iustum), para demons-trar que os deveres morais são do ‘forointerno’ e insujeitáveis, portanto, à coer-ção, enquanto os deveres jurídicos sãoexternos e, por isso, coercíveis. Imma-nuel Kant, sem, de todo, abandonaressa linha, ao dividir a metafísica doscostumes em dois campos, distinguiuo da teoria do direito e o da teoria da virtu-de (Moral); as regras morais visam agarantir a liberdade interna dos indiví-duos, ao passo que as regras jurídicasasseguram-lhes a liberdade externa naconvivência social”.

A partir dos sentimentos auferidos nocampo moral, é possível delinear e nortear aregra de direito. Com a moral, tornou-se pos-sível identificar e proteger os que estão deboa-fé e, na outra vertente, castigar os queagem com malícia e perseguem a fraude.Apesar disso, observa-se que nem sempre a

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moral se exterioriza como mero elemento“propedêutico” da ciência jurídica. Não ra-ras vezes, a regra moral penetra no mundojurídico e, com o auxílio do poder de coer-ção estatal, torna-se uma regra obrigatóriade conduta. Nas percucientes palavras deGeorges RIPERT (2000, p. 24), “o dever denão fazer mal injustamente aos outros é ofundamento do princípio da responsabili-dade civil; o dever de se não enriquecer àcusta dos outros, a fonte da ação do enri-quecimento sem causa; o dever de prestarassistência ao próximo poderá chegar àconsagração legal?” Por certo, uma respostapositiva a esse questionamento, pouco a pou-co, vai-se delineando. À guisa de ilustração,pode ser mencionado o preceito constitucio-nal que impõe à sociedade o dever de assegu-rar à criança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, à ali-mentação, à educação etc9. Não seria este umcaminho adequado a uma larga interpene-tração da moral na regra de direito e, conse-qüentemente, uma forma de construção de“uma sociedade livre, justa e solidária”?10.

A presença da moral sempre se fará sen-tir na regra de direito, quer seja quando tomaa própria forma desta, ou mesmo quandoforneça o colorido da realidade social quehaverá de ser regida pela norma de condu-ta, permitindo a sua integração e a consecu-ção do tão sonhado ideal de justiça. Em quepese inexistir uma superposição total entrea regra de direito e a regra moral, em essên-cia, não há uma diferença de domínio, denatureza e de fim entre elas; nem pode exis-tir, porque o direito deve realizar a justiça, ea idéia de justo é uma idéia moral11.

Identificada a existência de um regra-mento moral e outro jurídico, a observânciadeste será tanto mais forte quanto for suasuperfície de coincidência com os padrõesde moralidade do grupamento que haveráde ser por ele regido. Correspondendo aoideal moral, a norma será respeitada de for-ma voluntária, tendo-se um reduzido nú-mero de irresignações. Colidindo com ospadrões de moralidade, haverá grande re-

sistência na sua observância12, o que com-prometerá os próprios fins almejados com asua edição, culminando com uma instabili-dade social – situação que persistirá até quea norma consiga subjugar os ideais preexis-tentes, vindo a criar outros à sua imagem esemelhança.

5. A moral no Direito Privado

Foi no âmbito do Direito Civil que a re-gra moral primeiramente se fez sentir, rom-pendo com os dogmas da onipotência doprincípio da legalidade. Paulo já dissera quenem todo ato que respeita a lei está em har-monia com a moral: “non omne quod licet ho-nestum est”.

A maior maleabilidade da regra moralpermite um acompanhamento mais céleredos influxos sociais, tornando-se indispen-sável à efetivação do ideal de justiça, o qual,em determinados casos, não é passível deser alcançado pelo engessamento normati-vo. Tal pode ser percebido com a contínuaremissão legislativa à idéia de bons costumes,expressão que carrega consigo induvidosacarga moral.

Inicialmente com a teoria do exercícioabusivo dos direitos e posteriormente comas doutrinas que impunham vedações ao en-riquecimento ilícito e legitimavam a obriga-ção natural, sempre se buscou envolver a re-gra jurídica em uma atmosfera axiológica pró-pria das regras de coexistência humana13.

O impacto inicial dessa nova variante, queorientaria e condicionaria a aplicação da re-gra jurídica, foi pouco a pouco diluído, resul-tando em uma ampla compreensão de suaimportância, o que terminou por fazer que aregra moral migrasse para outros ramos doDireito, em especial para o Direito Público.

6. A moral no Direito Administrativo e seualicerce dogmático

Deve-se a Maurice Hauriou o pioneiris-mo na idealização e no estudo da moralida-de administrativa, iniciativa esta que cresceem relevância quando se constata que o seu

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desenvolvimento se deu no ápice do positi-vismo jurídico, o que representava impor-tante óbice aos mecanismos de contençãoda atividade estatal que não se reduzissema um mero preceito normativo.

Em seu Précis de Droit Administratif et deDroit Public, HAURIOU (1914) sustenta que“o recurso por excesso de poder é uma viade nulidade que outorga ao Conselho de Es-tado o poder de anular uma decisão execu-tória, se ela contém um excesso de poder for-mal da autoridade que tomou a decisão (in-competência, violação das formas, des-vio de poder, violação da lei), e que, por elemesmo, tende a impedir o procedimento exe-cutório de ação direta”, esclarecendo poste-riormente que a irresignação por violaçãoda lei somente tem sido anexada ao recursopor excesso de poder de uma forma artificial,pois, enquanto os limites deste devem serfruto de uma disciplina interna, resultandodo próprio equilíbrio interior do órgão, emmatéria de legalidade se tem um limite exte-rior ao poder administrativo, imposto peloLegislador (p. 455).

Esse tipo de recurso criou a possibilida-de de se penetrar em regiões novas, à medi-da que o próprio Conselho de Estado dese-jasse expandi-las, sendo talvez esse um dosargumentos utilizados para se impor maiorresistência a essa doutrina.

Hauriou captara e desenvolvera a idéiade que o Estado não é um fim em si mesmo,mas, sim, um instrumento utilizado em proldo interesse público, o que exigia a constru-ção de mecanismos que o mantivessem ads-trito a esse fim, tendo concluído, a partir dasdecisões do Conselho de Estado, “que ospoderes da administração têm um certo ob-jetivo ou que os atos da Administração têmuma certa causa final que é o interesse pú-blico ou a boa administração, e que se o ad-ministrador, no lugar de agir dentro do in-teresse geral, tomou sua decisão, seja sobinfluência de um interesse particular a sa-tisfazer, seja mesmo sob a influência de uminteresse fiscal, há um desvio de poder e oato deve ser anulado”.

Em seguida, distingue os recursos pordétournement de pouvoir e por violation de laloi, esclarecendo que eles “visam a confor-midade da ação administrativa, seja com oobjetivo da boa administração (desvio depoder), seja com as prescrições da legalida-de (violação da lei)”. Buscando estabelecerparâmetros adequados para a individuali-zação do desvio de poder, conclui que este“não se reduz à legalidade, como se tem dito,pois o objetivo da função administrativa édeterminado muito menos pela lei que pelamoralidade administrativa (p. 439)”.

Não obstante a semeadura do princípio,somente na 10ª edição de seu Précis, conformenoticia Antônio José BRANDÃO ([ 19 - -?],p. 457), Hauriou indicou o que entendia pormoralidade administrativa, tendo cunhadoo conceito hoje plenamente difundido entreos juristas pátrios, em que sobreleva a dis-tinção com a moral comum, tratando-sede uma moral jurídica que é caracteriza-da como “o conjunto de regras de condu-ta tiradas da disciplina interior da Ad-minis tração”.

Não é suficiente que o agente permane-ça adstrito ao princípio da legalidade, sen-do necessário que obedeça à ética adminis-trativa, estabelecendo uma relação de ade-quação entre seu obrar e a consecução dointeresse público. A norma, instituída peloórgão que detenha tal prerrogativa, delimi-ta as atribuições dos agentes públicos e es-tatui os meios a serem por eles utilizadospara o alcance de determinados fins, deno-tando seu caráter funcional, como idéia deobra a realizar.

A moral administrativa, por sua vez, éextraída do próprio ambiente institucional,condicionando a utilização dos meios (rec-tius: poderes jurídicos) previstos em lei parao cumprimento da função própria do PoderPúblico, a criação do bem comum, o que de-nota um tipo específico de moral fechada,sendo fruto dos valores de um círculo restri-to ocupado pelos agentes públicos. Enquan-to a moral comum direciona o homem emsua conduta externa, permitindo-lhe distin-

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guir o bem do mal, a moral administrativa ofaz em sua conduta interna, a partir dasidéias de boa administração e de função ad-ministrativa, conforme os princípios que re-gem a atividade administrativa.

Marcel WALINE (1963, p. 489) critica aposição de Hauriou, concluindo que a vio-lação à moralidade administrativa permi-te sancionar as violações ao espírito dalei que respeitem a letra desta; mas, em ver-dade, a violação ao espírito da lei ainda éuma violação à lei; logo, o desvio de poderadvindo de um ato imoral também é umaforma de ilegalidade. Em verdade, a imorali-dade conduziria à ilegalidade, sendo absor-vida por esta.

Para Georges VEDEL (1973, p. 610), aexatidão da doutrina de Hauriou não é ab-soluta, pois o desvio de poder deve ser ana-lisado como uma variação da ilegalidade,situando-se na violação da lei que imponhaao agente a obrigação de perseguir um obje-tivo determinado com a exclusão de todosos outros. Ressalta, no entanto, que a idéiade Hauriou não deve ser completamente re-jeitada, já que o juiz (administrativo), sob oamparo “do espírito” da lei ou sob o ampa-ro dos princípios gerais de direito, pode in-tegrar as diretivas da moralidade à legali-dade. Ao final, conclui que, do ponto de vis-ta do direito feito (droit fait), o desvio de po-der nada mais é que uma variação da ilega-lidade, enquanto, do ponto de vista do di-reito que se faz (droit qui si fait), o desvio depoder incorpora à legalidade certos princí-pios de moralidade aos quais o juiz confereo respeito necessário.

6.1. Delimitação da moralidadeadministrativa

Expostas, em síntese, as concepções deHauriou, Waline e Vedel, cumpre estabele-cer nosso entendimento a respeito do prin-cípio da moralidade.

Em um primeiro plano, não vislumbra-mos uma dicotomia absoluta entre a moraljurídica e a moral comum, sendo plenamen-te factível a presença de áreas de tangencia-

mento entre elas, o que não raro possibilita-rá a simultânea violação de ambas.

Sob outra perspectiva, constata-se que osatos dissonantes do princípio da legalida-de sempre importarão em violação à mora-lidade administrativa, concebida como oregramento extraído da disciplina internada administração; a recíproca, no entanto,não é verdadeira. Justifica-se, já que um atopoderá encontrar-se intrinsecamente emconformidade com a lei, mas apresentar-seinformado por caracteres externos em dis-sonância da moralidade administrativa,vale dizer, dos ditames de justiça, dignida-de, honestidade, lealdade e boa-fé que de-vem reger a atividade estatal.

Convém ressaltar, ainda, que, apesar denão guardar sinonímia com o princípio dalegalidade, a moralidade administrativaapresenta uma relação de continência como princípio da juridicidade, o qual abrangetodas as regras e princípios norteadores daatividade estatal. Violado o princípio damoralidade administrativa, maculado esta-rá o princípio da juridicidade, o que reforçaa utilização deste como parâmetro para aidentificação dos atos de improbidade.

Assim, somente seria possível negar au-tonomia ao princípio da moralidade se àlegalidade for dispensado um conceito am-plo, abrangendo todos os valores jurisdici-zados veiculados pelas regras e pelos prin-cípios, usurpando o próprio conteúdo doprincípio da juridicidade, o que importariana adoção de sistemática de estudo distintadaquela encampada neste ensaio.

A valoração dos elementos delineadoresda moralidade administrativa não pode serdirecionada por critérios de ordem ideoló-gica ou de estrita subjetividade. Ao inter-pretar e aplicar a norma, deve o agente con-siderar os valores norteadores do sistemajurídico, ainda que se apresentem dissonan-tes de sua visão pessoal. Assumindo espon-taneamente o ônus de gestor da coisa públi-ca, tem o agente o dever de agir em harmo-nia com as finalidades institucionais pró-prias do órgão que ocupa, o que demonstra

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que o conceito de moralidade administrati-va tem índole eminentemente teleológica.

Ainda que o alicerce da moralidade sesitue na própria norma, compreendendo asregras e os princípios, a influência de fato-res externos em sua conformação – entendi-dos como tais as circunstâncias que envol-vem a ação, verdadeiros elementos de den-sificação dos valores que compõem a mora-lidade – impede que sua delimitação e seualcance sejam superpostos aos da lei, o quefaz que cada situação concreta assuma pe-culiaridades que não são identificadas apartir do maior grau de concretude que ema-na da lei. Ademais, no direito positivo pá-trio, legalidade e moralidade coexistem ladoa lado por força de expressa disposição cons-titucional.

6.2. Essência da moralidade administrativa

De forma correlata à moral comum, oprincípio da moralidade administrativatambém exige que o administrador observedeterminados valores, os quais assumemcerta especificidade em razão da próprianatureza de sua atividade.

Enquanto a moral comum consubstan-cia o conjunto de valores ordinários entreos membros de determinada coletividade,possuindo maior generalidade e abstração, amoral administrativa toma como parâmetroos valores subjacentes à atividade estatal.

Como foi visto, no Estado de Direito osatos dos agentes públicos auferem seu fun-damento de validade na norma. O fim des-ses atos, em razão da própria natureza doEstado, haverá de ser sempre a consecuçãodo bem comum. Em razão disso, é possíveldizer que legalidade e moralidade se inte-gram e se complementam, sendo cogente suaobservância pelos agentes públicos.

O princípio da legalidade exige a ade-quação do ato à lei, enquanto o da morali-dade torna obrigatório que o móvel do agentee o objetivo pretendido estejam em harmo-nia com o dever de bem administrar. Aindaque os contornos do ato estejam superpos-

tos à lei, será ele inválido se resultar de ca-prichos pessoais do administrador, afastan-do-se do dever de bem administrar e da con-secução do bem comum.

A moralidade limita e direciona a ativi-dade administrativa, tornando imperativoque os atos dos agentes públicos não subju-guem os valores que defluam dos direitosfundamentais dos administrados, o que per-mitirá a valorização e o respeito à dignida-de da pessoa humana. Além de restringir oarbítrio, preservando a manutenção dosvalores essenciais a uma sociedade justa esolidária, a moralidade confere aos admi-nistrados o direito subjetivo de exigir doEstado uma eficiência máxima dos atos ad-ministrativos, fazendo que a atividade esta-tal seja impreterivelmente direcionada aobem comum, buscando sempre a melhorsolução para o caso.

A correção dessas conclusões, no entan-to, pressupõe que um caminho mais árduoe tortuoso seja percorrido: a necessária cons-cientização de todos os setores da socieda-de de que devem zelar pela observância doprincípio da moralidade. O controle sobreos atos dos agentes públicos deve ser rígidoe intenso, o que permitirá um paulatino aper-feiçoamento da atividade estatal e, o que émais importante, a necessária adequaçãodos agentes públicos aos valores própriosde um Estado Democrático de Direito, noqual o bem comum representa o pilar fun-damental.

Aqui, busca-se transmudar para o ad-ministrador público o ideal de que deve agircomo um “bom pai de família”, o que per-mite dizer que o sentido jurídico da normarestará prejudicado sempre que estiver au-sente o componente moral que caracteriza o“bom administrador”.

Dizer que o princípio da moralidade temcomo alicerce os valores próprios da ativi-dade estatal é conferir ares de banalidade auma operação extremamente complexa edelicada, qual seja, extrair a essência des-ses valores e compatibilizá-la com a reali-dade fenomênica sem impregná-la do inten-

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so subjetivismo que, certamente, se des-prenderá do agente responsável por essaoperação.

Diversamente do que ocorre com o prin-cípio da legalidade, que é resultado diretoda produção normativa estatal, o princípioda moralidade tem maior generalidade eabstração, o que exige uma atividade res-ponsável e coerente para a correta identifi-cação dos padrões de conduta que indivi-dualizam o bom administrador, vinculan-do-o à finalidade pública que é peculiar àatividade estatal, sempre com a necessáriaimpessoalidade que deve estar presente ematos dessa natureza.

De acordo com Antônio José BRANDÃO([19- -?], p. 45), para que se possa falar emboa administração, é preciso que esteja pre-sente “o exercício do senso moral com quecada homem é provido, a fim de usar reta-mente – para o bem, entenda-se, – nas situa-ções concretas trazidas pelo quotidiano, ospoderes jurídicos e os meios técnicos; e, poroutro lado, exige ainda que o referido bomuso seja feito em condições de não violar aprópria ordem institucional, dentro da qualeles terão de atuar, o que implica, sem dúvi-da, uma sã noção do que a Administração ea função administrativa são”.

Partindo-se da premissa de que o alicer-ce ético do bom administrador é extraído dopróprio ordenamento jurídico, é possíveldizer que o princípio da moralidade admi-nistrativa atua como um verdadeiro meca-nismo aglutinador, extraindo o sumo de to-dos os princípios regentes da atividade es-tatal e condensando-os em standards quepodem ser mais facilmente percebidos doque definidos.

Talvez seja por esse motivo que a juris-prudência pátria, ao fundamentar suas de-cisões com base no princípio da moralida-de administrativa, normalmente o faz emconjunto com outro princípio dotado demaior especificidade para o caso concreto(v.g.: moralidade e impessoalidade, morali-dade e publicidade etc.). Tal, longe de arra-nhar a autonomia do princípio da morali-

dade, demonstra apenas que os valores ex-traídos do outro princípio utilizado concor-reram de maneira mais incisiva na confor-mação do standard adotado como padrão debom administrador naquela situação14.

Quando dizemos que referido standardrepresenta o padrão de bom administradorà luz de determinada situação – fática oujurídica –, queremos dizer que tal parâme-tro não subsiste por si só, sendo imprescin-dível associá-lo à finalidade própria do atoa ser praticado. O dever de bem administrarsomente será atingido quando for identifi-cada e perseguida a mens legis criadora daregra de competência, pois o administradorde interesses alheios se encontra sempre vin-culado à consecução da finalidade que me-lhor aprouver ao verdadeiro titular do di-reito, in casu, o interesse público.

Progressivamente, tem-se a identificaçãoda situação que ensejou a prática do ato, afinalidade a ser atingida com ele, os princí-pios administrativos que possuem maiorespecificidade para o caso e, derradeiramen-te, a operação de aglutinação dos valoresque consubstanciam a moralidade adminis-trativa, com a conseqüente densificação dostandard do bom administrador, o que have-rá de ser feito tomando-se como referencialas três primeiras etapas anteriormente refe-ridas.

6.3. Previsão normativa

O princípio da moralidade administra-tiva, em que pese não ter tido previsão ex-pressa na Carta de 1967, há muito encon-tra-se arraigado no ordenamento jurídicopátrio, sendo considerado princípio implí-cito regente da atuação administrativa15.

Hodiernamente, o princípio está expres-samente previsto no art. 37, caput, da Cons-tituição da República, o qual dispõe que “aadministração pública direta e indireta dequalquer dos Poderes da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípiosobedecerá aos princípios de legalidade, im-pessoalidade, moralidade, publicidade eeficiência...”; acrescendo-se, ainda, que o

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âmbito de abrangência da ação popular, ateor do art. 5º, LXXIII, da Constituição daRepública, foi ampliado para alcançar apossibilidade de anulação dos atos lesivosà moralidade administrativa.

São igualmente formas de expressão doprincípio da moralidade os preceitos cons-titucionais que prevêem como objetivo fun-damental da República Federativa do Bra-sil a construção de uma sociedade livre, jus-ta e solidária16 e que resguardam o decoroparlamentar17 e o dever de probidade doPresidente da República18.

Como se vê, os princípios da legalidade eda moralidade mantêm uma relação harmô-nica, ocupando o mesmo grau hierárquico naestrutura principiológica que rege os atos es-tatais, o que afasta qualquer concepção queconsidere o princípio da moralidade elemen-to secundário ou meramente complementar.

Tal qual o princípio da legalidade, é re-quisito de legitimidade da atuação do agen-te e de validade do ato administrativo; logo,sua inobservância pode acarretar a anula-ção do ato por meio de ação popular ou deação civil pública19.

6.4. A moralidade e os elementos doato administrativo.

Afigura-se induvidoso que os atos ad-ministrativos devem apresentar plena ade-quação ao sistema normativo que os disci-plina e ter sua finalidade sempre voltadaà consecução do interesse público. A par-tir da presença de determinada situaçãofática, deve o agente público, nos limitesde sua competência, praticar o ato admi-nistrativo que se ajuste à hipótese. Esseajustamento, por sua vez, deve ser por eledemonstrado com a exteriorização dos mo-tivos que o levaram a praticar o ato, o qualdeve necessariamente visar a uma finalida-de pública.

Não obstante presentes os elementos doato (competência, finalidade, forma, motivoe objeto) e a plena compatibilidade entre elese a lei, em muitos casos será vislumbrada ainadequação dos motivos declinados e da

finalidade almejada com a realidade fáticae o verdadeiro elemento volitivo do agente.

Para que o ato praticado em consonânciacom a lei esteja em conformidade com a mora-lidade administrativa, é imprescindível quehaja uma relação harmônica entre a situaçãofática, a intenção do agente e o ato praticado,sendo analisadas no contexto deste a moti-vação declinada e a finalidade almejada.

A intenção do agente deve surgir estrita-mente vinculada ao propósito de atingir obem comum, escolhendo um fim que se har-monize com a previsão abstrata da norma epermitindo que o ato, em sua gênese, se apre-sente, a um só tempo, em conformidade coma lei e a moralidade administrativa.

A conduta do agente deve ser juridica-mente possível e estar em harmonia com osefeitos jurídicos previstos na norma, o que,aliado à real intenção de atingi-los, conferi-rá licitude ao ato. No entanto, ainda que hajacompleta adequação da conduta à norma eesta possa produzir determinados efeitos, oato será ilícito se for viciada a intenção doagente em relação aos reais efeitos que pre-tende alcançar, pois somente na aparênciahaverá adequação à lei.

Para que seja identificada a real inten-ção do agente, a qual poderá revelar a ver-dadeira motivação do ato e o objetivo coli-mado com a sua prática, afigura-se impossí-vel a penetração no psiquismo do mesmo, oque conduzirá à análise de tal elemento voli-tivo a partir da situação fática embasadorado ato e dos caracteres externos – ainda quenão declinados – que venham a influir na suaprática. A intenção, assim, é indício aferidorda moralidade do ato, sendo também verifi-cada a partir da compatibilidade entre a com-petência prevista na norma e a finalidadepretendida com a prática do ato20.

O ato formalmente adequado à lei, masque vise, em essência, a prejudicar ou bene-ficiar outrem, será moralmente ilegítimo 21,isso em virtude da dissonância existenteentre a intenção do agente, a regra de com-petência e a finalidade que deveria ser legi-timamente alcançada com esta.

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Como desdobramento do que já foi dito,constata-se que, para a identificação damoralidade do ato, será sempre necessárioanalisar o motivo e o objeto em cotejo com ointeresse público consubstanciado na fina-lidade, o que permitirá a identificação depossíveis vícios dos atos discricionários oumesmo a presença de abuso de poder.

Estará ausente a moralidade administra-tiva quando o agente praticar o ato fundan-do-se em motivo inexistente (ausência dasituação de fato ou de direito que determineou autorize a prática de um ato), insuficien-te (o valor dos motivos não denota a neces-sidade do ato), inadequado (falta de cor-respondência entre o que deveria motivar oato – causa – e a natureza categorial de seuobjeto – efeito), incompatível (ausência deadequação com o objeto do ato) e despro-porcional (valoração irrazoável dos moti-vos, levando a um resultado incompatívelcom o interesse público específico a que de-veria visar o ato); identificando-se igual ví-cio quando o objeto for impossível (o resul-tado jurídico almejado não se compatibili-za com o ordenamento jurídico ou com arealidade física), desconforme (incompati-bilidade lógica entre a escolha e o interessepúblico contido na regra da finalidade) ouineficiente (grave comprometimento do in-teresse público pela desproporcionalidadeentre custos e benefícios) (MOREIRA NETO,1992, p. 11-13).

6.5. A moralidade administrativa najurisprudência pátria

Em inúmeras oportunidades, os tribu-nais têm sido instados a analisar a compa-tibilidade dos atos do Poder Público com oprincípio da moralidade administrativa. Àluz da jurisprudência pátria, infringem talprincípio:

a) realização de gastos excessivos, a pre-texto de outorga de títulos e honrarias, combebidas, comestíveis, peças de vestuário etc.22;

b) alienação de lotes de terrenos perten-centes à municipalidade, contíguos a outrosde propriedade do Prefeito, e posteriormen-

te por ele adquiridos pelo valor da avalia-ção, acarretando a valorização da área con-tínua quando agregada à primitiva23;

c) concessão de aposentadoria especiala vereadores, após o curto lapso de 8 (oito)anos de contribuição, com desvio de verbapública para cobrir déficit técnico24;

d) resolução de Câmara de Vereadores quefixou os subsídios destes, em época de conge-lamento de preços e salários instituído no pla-no federal, em quantia exorbitante25;

e) o custeio, pela municipalidade, dasdespesas de viagem ao exterior da esposado Prefeito, em companhia dele, o que nãorepresenta nenhum benefício para o Municí-pio, ainda que ela dirigisse algum órgão pú-blico; sendo idêntica a conclusão em relaçãoàs despesas com viagens do Prefeito não au-torizadas pela Câmara Municipal26;

f) ato de Câmara Municipal que, sob oargumento de “oferecer exemplo à coletivi-dade”, reduz a remuneração dos edis paraa legislatura seguinte, após a realização daeleição em que a grande maioria não foi ree-leita27;

g) omissão deliberada da AdministraçãoPública, sob a alegação de discricionarie-dade, deixando de convocar o estágio pro-batório que consubstancia condição indis-pensável ao acesso dos terceiros sargentos doquadro complementar da Aeronáutica aoquadro regular, tendo feito com que exerces-sem tarefas próprias dos postos mais eleva-dos sem a contrapartida salarial devida28;

h) a participação de Juiz integrante deTribunal Regional do Trabalho em eleiçãodestinada a compor lista tríplice para pre-enchimento de vaga de juiz togado quandoum dos candidatos é filho do mesmo29;

i) fixação da remuneração do Prefeito,Vice-Prefeito e dos Vereadores para viger naprópria legislatura em que fora estabeleci-da, o que também importa em violação aoart. 29, VI, da Constituição da República30;

j) abertura de conta-corrente em nome departicular para movimentar recursos públi-cos, independentemente da demonstraçãode prejuízo material aos cofres públicos31.

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7. Códigos de ética

A atividade administrativa, de formacorrelata à observância das prescrições le-gais, deve render obediência aos valores quedefluem do sistema, os quais são normal-mente condensados sob a epígrafe do princí-pio da moralidade. A densificação desse prin-cípio, cujo conteúdo deflui de preceitos explí-citos e implícitos no sistema, representa, comojá fora visto, tarefa extremamente delicada ecomplexa, o que é conseqüência inevitável deseu alto teor de abstração. Por tal motivo, sãoextremamente relevantes as iniciativas quebuscam elaborar diretrizes básicas que devemnortear a atuação dos agentes públicos.

Com isso, são densificados os valoresafeitos à moralidade administrativa e, con-seqüentemente, tem-se um aumento de efe-tividade do princípio, pois seu alto grau deabstração passa a coexistir com comandosespecíficos que delineiam as vedações e osdeveres a serem cumpridos pelo agente edisciplinam a forma de exercício de seusdireitos. Para alcançar tais objetivos, sãoeditados os denominados “Códigos de Éti-ca” ou “Códigos de Conduta”, os quais,como deflui da própria etimologia da expres-são, estatuem os padrões éticos a serem ob-servados por seus destinatários.

Tais “Códigos” são extremamente difun-didos entre diversas categorias profissionais(Códigos de Ética dos advogados, dos mé-dicos etc.) e coexistem, em diversas unida-des da Federação, com o regime jurídico dosservidores públicos.

Estatuída a deontologia a ser seguidapelos agentes públicos e sendo certo que amesma aufere seu fundamento de validadenos princípios regentes da atividade esta-tal, conferindo-lhes maior determinabilida-de com a previsão de condutas específicas aserem seguidas, torna-se possível dizer quea violação dos deveres éticos normatizadospelo Poder Público consubstanciará relevan-te indício da inabilitação moral do agentepara o exercício da função pública, já queviolado o princípio da moralidade.

Além das sanções de ordem disciplinara que estará sujeito o agente, também incidi-rá a tipologia específica dos atos de impro-bidade constante da Lei nº 8.429/92 (Lei deImprobidade), que assumem uma feição ni-tidamente repressiva. Ocorre que, como an-tecedente lógico desta, os “Códigos de Éti-ca” desempenham um papel eminentemen-te preventivo, pois individualizam, de for-ma explícita ou implícita, os preceitos proi-bitivos que consubstanciam a improbidadeadministrativa, o que certamente contribuirápara que os agentes adquiram consciência dosvalores de ordem ética que devem seguir, di-recionando, pari passo, sua atuação e evitan-do a prática dos atos de improbidade.

IV. Síntese conclusiva

I – Os princípios são proposições bási-cas, verdadeiros alicerces do sistema jurídi-co, sendo utilizados para limitar e direcio-nar sua aplicação.

II – Os princípios são estruturados a par-tir de um processo indutivo, o qual, por meiode um método de generalização crescente,permitirá que a análise de preceptivos espe-cíficos conduza à densificação dos princí-pios gerais que os informam.

III – Os princípios não são meros comple-mentos das regras, devendo ser vistos comoformas de expressão da própria norma, a qualé subdividida em regras e princípios.

IV – Em razão de seu caráter normativo,a exemplo das regras, é imperativa a obser-vância dos princípios.

V – De acordo com o princípio da juridi-cidade, a atuação do Estado deve estar emharmonia com o Direito, afastando a noçãode legalidade estrita – com contornos su-perpostos à regra –, passando a compreen-der regras e princípios.

VI – O princípio da moralidade é um ele-mento primordial do princípio da juridici-dade.

VII – Moral é noção de natureza univer-sal, variando em conformidade com o tem-

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po, o local e os mentores de sua concepção,terminando por condensar os valores sub-jacentes a determinado grupamento.

VIII – A moral comum se distingue damoralidade administrativa na medida emque esta é retirada dos valores subjacentes àAdministração Pública.

IX – A moralidade administrativa coe-xiste com a legalidade, não sendo meroapêndice desta.

X – O princípio da moralidade adminis-trativa atua como um mecanismo aglutina-dor, extraindo o sumo de todos os princípiosregentes da atividade estatal e condensan-do-os em standards.

XI – Os atos administrativos, além de es-tarem em consonância com a lei, devem apre-sentar conformidade com a moralidade ad-ministrativa, sendo necessária a existênciade uma relação harmônica entre a situaçãofática, a intenção do agente e o ato pratica-do, analisando-se no contexto deste a moti-vação declinada e a finalidade almejada.

Notas

1 Na lição de GARCÍA DE ENTERRÍA e FER-NÁNDEZ (1986, p. 63) «la expresión ‘principiosgenerales del Derecho’, empleada un tanto intuiti-vamente por el artículo 6 CC en su primeira redac-ción (hoy artículo 1º - 4), y más tarde generalizadaen casi todos los países, es muy certera para indicarsu verdadero contenido. Al decir que se trata de‘principios’ se está precisando su caráter básico, ensentido ontológico, no sólo lógico, como soportesprimarios estructurales del sistema entero del or-denamiento, al que por ello prestan todo su senti-do. Son ‘generales’ por lo mismo, porque trascien-den de un precepto concreto y organizam y dansentido a muchos, y a la vez, porque no deben con-fundirse con apreciaciones singulares y particula-res que pudieran expresar la exigencia de uma su-puesta ‘justicia del caso concreto’ y mucho menoscon opiniones subjetivas del intérprete; lo general,lo comunitario, es lo propio del mundo jurídico,aunque por supuesto, el primero de los valores co-munitarios, más aún, el fin propio de todos ellos,sea justamente la libertad humana. Pero son, final-mente, principios ‘del Derecho’, esto es, como vahemos notado, fórmulas técnicas del mundo jurí-

dico y no simples criterios morales, o menos aún,las famosas buenas intenciones o vagas o impreci-sas directivas”.

2 O art. 12 das disposições preliminares do Có-digo Civil italiano assim dispõe: «se uma contro-vérsia não pode ser decidida com uma disposiçãoprecisa, devem-se levar em conta disposições queregulem casos semelhantes ou matérias análogas;se o caso permanece ainda duvidoso, deve ser deci-dido segundo os princípios gerais do ordenamento ju-rídico do Estado [grifo nosso].

3 DEL VECCHIO, G. apud Recueil d’etudes surles sources du droit em l’honneur de Francoise Geny.Paris: Sirey, [19--?]. p. 69. v. 2.

4 Nesse sent ido: Norber to BOBBIO (1 9 8 9 ,p. 158-159).

5 Nesse sentido: Ronald DWORKIN (1993).6 A afirmação de que os princípios podem ser

cumpridos em diferentes graus resulta do fato denão veicularem mandados definitivos. Assim, ocomando que deles inicialmente deflui pode ser afas-tado por razões opostas, sendo que a solução des-se conflito não é identificada a priori, variando gra-dativamente conforme os valores em jogo no casoconcreto.

7 Nas palavras de ALEXY (1999, p. 75), “princí-pios e ponderações são dois lados do mesmo obje-to. Um é do tipo téorico-normativo, o outro, meto-dológico. Quem efetua ponderações no direito pres-supõe que as normas, entre as quais é ponderado,têm a estrutura de princípios e quem classifica nor-mas como princípios deve chegar a ponderações. Adiscussão sobre a teoria dos princípios é, com isso,essencialmente, uma discussão sobre ponderação”.

8 A cunhagem do termo deve-se a Merkl, o qualincluía sob o signo do princípio da juridicidade todoo ordenamento jurídico, abrangendo os regulamen-tos, os princípios gerais, os costumes etc; tendoreservado a nomenclatura de princípio da legalida-de unicamente à lei em sentido formal (cf. GARCÍADE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1978, p. 251).

9 Art. 227, caput , da CR/88.10 Art. 3º, I, da CR/88.11 Cf. RIPERT, op. cit., p. 27. Citando a lição de

Gény, aponta o jurista uma diferença de caráterentre a regra moral e a regra jurídica: “a regra moraltorna-se regra jurídica ‘graças a uma injunção maisenergética e a uma sanção exterior necessária parao fim a atingir’”.

12 Nas palavras do filósofo André COMTE-SPONVILLE (1999, p. 73-74), “quando a lei é in-justa, é justo combatê-la – e pode ser justo às vezesviolá-la”...”Sócrates, condenado injustamente, re-cusou a salvação que lhe propunham pela fuga,preferindo morrer respeitando as leis, dizia ele, aviver transgredindo-as. Era levar longe demais oamor à justiça, parece-me, ou antes, confundi-laerroneamente com a legalidade”....”Lei é lei dizia

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eu, seja justa ou não; nenhuma democracia, nenhu-ma república seria possível se apenas obedecêsse-mos às leis que aprovamos. Sim. Mas nenhumaseria aceitável se fosse necessário, por obediência,renunciar à justiça ou tolerar o intolerável. Questãode grau, que não se pode resolver de uma vez portodas. É o domínio da casuística, exatamente nobom sentido do termo. Às vezes, é necessário entrarna luta clandestina; às vezes, obedecer ou desobe-decer tranqüilamente... O desejável é, evidentemen-te, que leis e justiça caminhem no mesmo sentido, enisso que cada um, enquanto cidadão, tem a obri-gação moral de se empenhar”.

13 RIPERT (2000, p. 74), a partir da análise dajurisprudência francesa do início do século XX, elen-ca os seguintes mandamentos de preservação damoral: “não disporás da vida, do corpo e da liber-dade do teu próximo para fins inúteis; tu própriorespeitarás a tua vida e o teu corpo; não procurarástirar proveito do teu deboche ou de outrem; nãoenriquecerás injustamente pelo jogo ou pelo azar,por astúcia ou pela força ou por embuste, mesmoquando este não seja punível; não farás por interes-se o que deves fazer por dever; não estipularás re-muneração por atos que não devam ser pagos; nãoobterás por dinheiro uma impunidade culpável”.

14 No mesmo sentido: Marcelo FIGUEIREDO,(1999, p. 138).

15 Vide STF, RE nº 160.381-SP, rel. Min. MarcoAurélio, RTJ nº 153/1030.

16 Art. 3º, I, da CR/88.17 Art. 55, II e § 1º, da CR/88.18 Art. 85, V, da CR/88.19 Arts. 129, III, da CR/ 88 e 25, III, “b”, da Lei

nº 8.625/93.20 Na lição de Manoel de Oliveira FRANCO

SOBRINHO (1993, p. 20), “a qualidade moral deum ato não deixa de ser para o hermeneuta de fácilconstatação. A leitura da norma em face do ato, aeficácia do ato conforme o fato, levam ao conheci-mento das situações criadas e das relações estabe-lecidas. As distorções ficam evidentes. A intençãofica ou não fica clara. O ato afronta ou não à ordemjurídica”. Quanto à situação fática, esclarece que“o fato imaginado, fantasioso, inventado, pos-sivelmente criado, irrelevante para a sociedade,que não exterioriza acontecimento concreto, degênese e f ins pol í t icos, estranho às formasaconselhadas pelo direito, tal fato só pode germinarreflexos não morais na ordem jurídica” (p. 56-57).

21 O administrador público deve “servir à Ad-ministração com honestidade, procedendo no exercí-cio de suas funções sem aproveitar os poderes oufacilidades delas decorrentes em proveito pessoalou de outrem a quem queira favorecer” (CAETA-NO, 1970, p. 684).

22 TJSP, 4ª CC., Ap nº 186.613-1/0, rel. Des.Alves Braga, j. em 24.06.93, RT nº 702/71.

23 TJSP, 7ª CC, Ap nº 145.916-1/2, rel. Des.Campos Mello, j. em 26.06.91, RT nº 673/61.

24 TJSP, 6ª CC, Ap nº 193.482-1/7, rel. Des.Leite Cintra, j. em 09.12.93, RT nº 706/63.

25 TJMG, 4ª CC, Ap. nº 1.039/7, rel. Des. Alvesde Mello, j. em 29.12.92, RT nº 699/140.

26 STJ, 1ª., REsp. nº 37.275-5, rel. Min. GarciaVieira, j. em 15.09.93, RSTJ nº 53/322.

27 STJ, 1ª T., REsp. nº 21.156-0, rel. Min. MíltonPereira, j. em 19.09.94, RSTJ nº 73/192.

28 STJ, 6ª T., REsp. nº 79.961, rel. Min. AnselmoSantiago, j. em 29.04.97, RSTJ nº 97/405.

29 STF, Pleno, MS nº 1748-1, rel. Min. Néri daSilveira, j. em 14.04.94, DJ de 10.06.94.

30 STF, 2ª T, RE nº 206.889-6, rel. Min. CarlosVelloso, j em 25.03.97, DJ de 13.06.97.

31 STF, 1ª T., RE nº 170.768-2, rel. Min. IlmarGalvão, j. em 26.03.99, DJ de 13.08.99.

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Sílvio Nazareno Costa

§ 1º Materialmente, a Constituição não évista apenas como o conjunto de suas pres-crições expressas. O ponto de vista materialbusca a essência, o conteúdo, a vontade danorma constitucional, sua filosofia ou espí-rito conformador.

“Nas Constituições há regras deforma, principalmente relativas à fei-tura das leis, e regras de fundo. Demodo que uma lei ou um ato do PoderExecutivo ou do Poder Judiciário podeser contrário à Constituição, quer emrazão de não ter sido regular o pro-cesso da feitura, quer porque infrinja,por seu conteúdo, preceitos insertosna Constituição. São os dois casos deinconstitucionalidade das leis e dosatos dos poderes públicos em geral: ainconstitucionalidade formal e a in-constitucionalidade material. Toda-via, como a Constituição teve por fitodevolver competências e, edictando aregra de direito material, deixou con-sigo a competência, é possível expli-car-se a inconstitucionalidade mate-rial como caso particular da inconsti-tucionalidade formal, pois que, violan-do-se o texto constitucional material,também se violou a regra implícita, for-mal, da competência da Constituiçãomesma”(MIRANDA, 1947, p. 169-170).

Pode-se dizer que, se o exame formal preo-cupa-se com o “corpo”1, o estudo materialvolta-se para a “alma” da Constituição.

A inconstitucionalidade material dasúmula vinculante

Sílvio Nazareno Costa é Professor de Di-reito Constitucional e Introdução ao Direito;Mestre em Direito Público (Constitucional)pela UFRGS.

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“La expresión ‘Constitución ensentido formal’ alude a la Constituci-ón escrita, a textos que se diferenciande las restantes leyes por su nombrey, en su caso, porque su aprobación yreforma están sujetos a especiales re-quisitos. La expresión ‘Constituciónen sentido material’ alude, en cambio,al conjunto de las normas cuyo objetoes la organización del Estado, los po-deres de sus órganos, las relacionesde éstos entre sí y sus relaciones conlos ciudadanos; en pocas palavras: lasnormas que regulan la creación de nor-mas por los órganos superiores del Es-tado, no en el sentido indicado antes,sino en el de que la tienen por objeto”

explica Otto: (OTTO, 1987, p. 17).“Chama-se Constituição em senti-

do formal” — ensina Jorge MIRANDA—, “porque se insiste no nome, impri-me-se-lhe carácter, o nome arrastauma ideologia e as normas materiali-zam-se num documento solene. Cha-ma-se Constituição em sentido formalainda, porque é o texto jurídico queencerra intencionalmente os elemen-tos do ordenamento político, da ordemconstitucional. (...) Não se quer deixarem branco, ao arbítrio dos governan-tes ou à lei ordinária, qualquer aspec-to que pareça mais delicado na regu-lamentação do poder político. Ao con-ceito de Constituição em sentido for-mal corresponde, assim, uma ideia ma-terial. Não se aclama apenas uma for-ma; a Constituição formal também nãoé neutra. Este conceito e esta ideia inci-dem de tal modo no acto constituinteque um conceito material de Constitui-ção só o erguem os autores num mo-mento posterior e tardio” (1996, p. 17) 2.

Por seu turno, assim se manifesta CA-NOTILHO: “Ao falar-se do valor normativoda constituição aludiu-se à constituiçãocomo lex superior, quer porque ela é fonteda produção normativa (norma normatum)quer porque lhe é reconhecido um valor nor-

mativo hierarquicamente superior (superle-galidade material) que faz dela um parâme-tro obrigatório de todos os actos estadu-ais”(1998, p. 784).

Um pouco diferente é o entendimento deLuiz Flávio GOMES, como se depreende daseguinte passagem, extraída do ponto emque examina as duas modalidades do con-trole judicial de constitucionalidade: “Ocontrole de constitucionalidade das leis,dentro do atual Estado Constitucional eDemocrático de Direito, possui dupla fun-damentação: uma formal e outra substanci-al. Do ponto de vista formal, justifica-se talcontrole para que fique assegurada a supre-macia da Constituição”, isto é, todas as de-mais normas jurídicas devem adequar-se aela. “No que diz respeito ao aspecto substan-cial, o controle de constitucionalidade dasleis destina-se a assentar a prevalência dosdireitos e garantias fundamentais das pes-soas”(1997, p. 70).

Um enfoque material mostra-se aindamais indispensável com relação às Consti-tuições sucintas, como a norte-americana.Com apenas sete artigos e vinte e cinco emen-das ou aditamentos (de 1787 até 1967), a Car-ta dos Estados Unidos3, uma das mais sucin-tas do mundo, aponta grandes princípios ouparadigmas, obrigando a que o exame deconstitucionalidade busque mais a substân-cia do que a forma do texto referencial.

α) Não se conclua, porém, que o examematerial seja dispensado nas constituiçõesnormativas, que contêm grande especifici-dade em suas prescrições. Formalmente, essetipo constitucional muito se assemelha à leiem geral, na medida em que, ao lado de lar-gas ordenações programáticas, incorporadiversas normas de direitos individuais.Contudo, ainda que específicas, as normassempre representarão uma filosofia, concre-tizarão um princípio ou indicarão uma von-tade. Terão, pois, um alcance maior do queo logrado pela mera expressão formal desuas palavras.

Ademais, segundo uma visão material,pode-se dizer que determinada norma da

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Constituição tenha natureza constitucionale que outra não o tenha. Tal classificaçãoparte do pressuposto de que existe umamatéria peculiar à Constituição e que, por-tanto, será considerada constitucional, in-dependentemente de sua situação topológi-ca — estar ou não contida na Carta Políti-ca4, ou de sua condição formal — ser escritaou não.

Nesse sentido o ensinamento de BA-CHOF:

“Também pode haver direito cons-titucional material fora do documen-to constitucional; inversamente, nemtodas as normas constitucionais for-mais são direito constitucional mate-rial com função integradora: antesnumerosas normas constitucionaisformais devem a sua recepção na‘Constituição’ a simples considera-ções tácticas, nomeadamente à inten-ção dos grupos políticos que foram de-terminantes do documento constitu-cional de subtraírem essas normas àpossibilidade de alteração por uma fu-tura maioria parlamentar”(1994, p. 40).

Não diverge o Mestre Pontes de MIRAN-DA: “É preciso ter-se sempre em vista que aregra não-escrita de direito constitucionalcorta a legislação ordinária que dela discre-pe, como a cortaria a regra escrita de direitoconstitucional. O direito constitucional éunidade; e o fato de nêle haver normas es-critas e normas não-escritas não lhe quebraa homogeneidade” (1947, p. 173).

Por outro lado, há matérias de naturezainfraconstitucional, que, todavia, poderãoser formalmente constitucionalizadas, casoincorporadas ao texto fundamental.

β) Todo controle jurisdicional de consti-tucionalidade tem um conteúdo político5, con-quanto represente, sempre, a interação en-tre órgãos de poderes estatais diversos.

FREUD sustenta que“existe una esencia de lo político. Hayque entender con esto que, en cualqui-er colectividad política, sea cual sea ysin ninguna excepción, se pueden

encontrar constantes y realidades in-mutables que forman parte de su pro-pia naturaleza y hacen que ésta seapolítica.” (p. IX) “La sociedad es unhecho natural. No se trata de hacerlanacer o de construirla, sino de organi-zarla. (...) Está en la naturaleza delhombre vivir en sociedad y organizar-la políticamente. Importa, pues, darpleno significado a la frase de Aristó-teles: ‘El hombre es un ser político,naturalmente hecho para vivir en so-ciedad’. Esto quiere decir: 1) que elhombre es un ser político por natura-leza (ϕνσεν); por consiguiente, lo polí-tico es esencia y no convención; 2) queun ser sin ciudad (δϕπολιζ ) no es unhombre, sino, o bien un ser inferior,un animal, o bien un ser superior, undios; y 3) que el estado político es es-pecífico, originario, que no provienede un estado anterior, pues Aristóte-les insiste sobre el hecho de que entre lafunción de rey o de magistrado y la depadre de familia o de maestro de escla-vos, la diferencia no es de más o de me-nos, sino específica”(1968, p. IX, 23).

No presente estudo, o termo “política”será tomado como significando aquelas re-lações que — não necessariamente regradaspor normas jurídicas, mas podendo sê-lo —se referem diretamente ao Estado ou a seusinteresses. Parte-se do pressuposto de queas relações jurídicas, quando vistas dentrodo grande contexto estatal, não são originá-rias, mas derivadas, decorrendo das rela-ções políticas e sendo por elas formatadas.Estas últimas, por sua vez, decorrem dasrelações econômicas e delas recebem forma-tação. Assim, a seqüência pressuposta paraas relações sociais dentro do Estado é a se-guinte: econômicas—políticas—jurídicas.Se é derivada das relações políticas, nelas aordem jurídica encontra parâmetros e limi-tes. Decorre daí seu caráter predominante-mente conservador. Mutatis mutandis, o mes-mo vale para a relação entre as ordens polí-tica e econômica. Não se ignoram, porém,

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as mútuas influências e a retroalimentaçãoentre essas três esferas da infraestrutura es-tatal. Assim, se é verdade que o sistema po-lítico engendra o sistema jurídico, tambémnão é menos verdadeiro que, em muitos as-pectos, a ordem jurídica influencia e para-metriza a política, determinando-a secun-dariamente. Como se vê, conforme essa con-cepção, o ato jurisdicional tem também na-tureza política, já que é do maior interessedo Estado dar solução às lides nascidas nasociedade. Se o Estado veda a autotutela e aautocomposição (e o faz, como se sabe, compoucas exceções), assume a obrigação dedirimir ele mesmo os problemas cuja solu-ção afasta da esfera de iniciativa privadadas partes interessadas. É, pois, ato políticoa aplicação estatal da ordem jurídica. Essaconclusão caracteriza a natureza tambémpolítica do Judiciário — natureza essa mui-tas vezes refutada por alguns integrantesdesse Poder, que, com isso, assumem umaposição subalterna e meramente acessóriano cenário estatal. Quando declara a incon-gruência de um ato normativo qualquer pe-rante a Constituição (=inconstitucionalida-de), o Judiciário está velando pela prevalên-cia da vontade política do constituinte. Doponto de vista formal, trata-se de aplicar avontade expressa, a regra de forma ou decompetência. Sob o aspecto material, destafeita, o caso é fazer valer o conteúdo, a von-tade política última que o Judiciário supõeser a do Legislador. Em nenhuma dessashipóteses trata-se, por conseguinte, da pre-valência de uma “vontade jurídica”, ou davontade autônoma do Judiciário. Por isso,não se há de falar em “governo dos Juízes”,referindo-se à possibilidade do controle deconstitucionalidade.

Jurídica é apenas a forma solene da von-tade política. Vê-se, portanto, que o Judiciá-rio funciona mais (embora não somente)como mecanismo retransmissor de uma von-tade política originária do que como um ór-gão diretor. Não obstante, a força e a auto-nomia políticas do Judiciário crescem nosEstados constitucionais democráticos de

Direito (o Juiz como “law-making”). Daí fa-lar-se que o Legislativo e o Executivo exer-cem uma competência condutora da socie-dade, enquanto as atribuições do Judiciáriodesenvolvem-se predominantemente comogarantidoras de direitos reconhecidos pelaordem política propriamente dita. A preten-dida tecnicidade (=neutralidade) do Judici-ário não passa de uma opção política cons-cientemente adotada. Na verdade, a tecnici-dade judiciária não pode fazer concluir-sepela neutralidade desse Poder, pois até mes-mo a aplicação mecânica de uma regra im-plica uma opção política: a opção pelo não-questionamento do conteúdo material des-sa regra, pela adoção irrestrita de seus ter-mos e pela conseqüente subserviência a seuformulador. Nesse sentido, afasta-se, pois,a neutralidade do Judiciário. Jurídicas sãoas formas normativas, políticos seus con-teúdos, sua aplicação e seus aplicadores.

Ainda quando realizado com efeitos ape-nas processuais, o controle de constitucio-nalidade não perde sua natureza política6.Também ao realizar a fiscalização balizadaapenas por parâmetros formais, o Judiciá-rio está interferindo sobre a função do Le-gislativo e, por conseguinte, atuando politi-camente. Mesmo o fato de estar expressa-mente autorizado a tanto não desqualifica-rá a natureza dessa atuação, pois tal natu-reza não decorre de sua eventual contrarie-dade ou aceitação.

O controle material de constitucionali-dade normativa, porém, mostra-se mais de-licado, devido a seu alto grau de politiza-ção (BONAVIDES, 1999, p. 269-270), valedizer devido ao grande interesse estatal im-plicado e ao intenso contato que proporcio-na entre o Judiciário e o Poder do qual ema-nou a norma fiscalizada. A normatizaçãoinfraconstitucional deve obediência nãoapenas aos preceitos constitucionais expres-sos, mas também a seus preceitos implíci-tos, sob pena de invalidade (MIRANDA,1947, p. 170). E não somente a normas cons-titucionais, senão que também a postuladosfundamentais de natureza suprapositiva.

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“A ordem constitucional global se-ria mais vasta do que a constituiçãoescrita, pois abrangeria não apenas osprincípios jurídicos fundamentais in-formadores de qualquer Estado de di-reito, mas também os princípios im-plícitos nas leis constitucionais escri-tas. Não estando aqui em causa o pro-blema da validade material da ordemjurídica (=legitimidade material), masapenas o de saber quais as normas eprincípios a que os órgãos de contro-lo podem apelar para aquilatar daconstitucionalidade ou inconstituci-onalidade dos actos normativos, a res-posta, em tese geral, é dada pela pró-pria Constituição: só são inconstitu-cionais as normas que infrinjam asNORMAS E PRINCÍPIOS CONSIGNA-DOS NA CONSTITUIÇÃO (cfr. arts.3º/3 e 277º/1). Mas o que deve enten-der-se por PRINCÍPIOS CONSIGNA-DOS na constituição? Apenas os prin-cípios constitucionais escritos ou tam-bém os princípios constitucionais nãoescritos? A resposta mais aceitável,dentro da perspectiva principialistasubjacente ao presente curso, é a deque a consideração de princípios cons-titucionais não escritos como elemen-tos integrantes do bloco da constituciona-lidade só merece aplauso relativamentea princípios reconduzíveis a uma DEN-SIFICAÇÃO OU REVELAÇÃO ESPE-CÍFICA de princípios constitucionaispositivamente plasmados” [itálico nos-so] (CANOTILHO, 1998, p. 812)7.

Acrescenta CARRION:“Geralmente, quando falamos em

controle da constitucionalidade, re-portamo-nos aos preceitos da Consti-tuição, o parâmetro para o controle daconstitucionalidade sendo as normasincorporadas no texto constitucional.A noção de bloco de constitucionalidadeprocura ir mais além do texto consti-tucional. Fariam parte do bloco deconstitucionalidade, além do texto

constitucional e suas respectivasemendas, inúmeros outros preceitosjurídicos. Então, o controle de legali-dade constitucional não teria comoparâmetro único simplesmente o tex-to constitucional. Entretanto, essa afir-mação tornar-se-ia temerária se elanão tivesse substrato no próprio textoconstitucional. (...) A noção de bloco deconstitucionalidade tem de encontrarrespaldo na própria Constituição e se-guramente existe a perspectiva do blo-co de constitucionalidade na Consti-tuição de 1988. (...) Exatamente, o ra-ciocínio referente à noção de bloco deconstitucionalidade articula o § 2º doart. 5º da Constituição com o inc. IVdo § 4º do seu art. 60, inexistente nasConstituições anteriores. (...) O § 1º doart. 102 da Constituição subsidia aexegese do § 2º de seu art. 5º”[grifonosso] (2000, p. 24-25).

Compreende-se no bloco de constitucio-nalidade a idéia de Justiça, à qual mesmo olegislador constituinte deve sentir-se vincu-lado.

“O Tribunal Constitucional Fede-ral, do mesmo modo que outros tribu-nais alemães, reconheceu em váriasdecisões a existência de direito ‘supra-positivo’, obrigando também o legis-lador constituinte (...) Também umanorma constitucional pode ser nula,se desrespeitar em medida insuportá-vel os postulados fundamentais dajustiça”. (...) “A incorporação de direitosupralegal na Constituição tem apenas— doutro modo já esse direito não se-ria supralegal — significado declara-tório e não constitutivo”(BACHOFF,1994, p. 3, 45).

§ 2º - Materialmente, a proposta de criaçãode súmulas com efeito vinculante, como apresen-tada, mostra-se inconstitucional, contrariandoo sistema político engendrado pelo EstadoConstitucional de Direito.

O comentário de Castanheira NEVESacerca dos Assentos no Direito português é

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em tudo pertinente e aplicável ao tema aquiabordado:

“Ao ser chamada a função juris-dicional, através dos assentos, ao exer-cício da função legislativa, é dessemodo aquela função investida numestatuto que está em contradição como sentido (intencional e funcional) quelhe deverá corresponder no sistemapolítico do Estado-de-Direito socialdos nossos dias — o sistema políticoque a Constituição materialmentepressupõe e assimila enquanto afir-ma o nosso Estado como um ‘Estadode Direito Democrático’, pois este Es-tado por aquele sistema em último ter-mo se determina. E por isso os assen-tos são, nessa mesma medida, materi-almente inconstitucionais” [grifo nosso](1983, p. 618-619).

Como os assentos (Ver COSTA, 2002, p.181), no Direito Português, equivalem a umametamorfose jurídica, que transforma emlegislativo o ato jurisdicional praticado porautoridades sem competência legiferante.

Com base no sistema lusitano, CANO-TILHO explicita o princípio básico sobre aprodução jurídica: nenhuma fonte pode cri-ar outras fontes com eficácia igual ou supe-rior à dela própria. E estabelece seus corolá-rios: 1) nenhuma fonte pode atribuir a outraum valor de que ela própria não dispõe; 2)nenhuma fonte pode atribuir a outra umvalor idêntico ao seu; 3) nenhuma fonte podemajorar ou minorar o seu próprio valor jurí-dico. “Em termos práticos, este princípiojustificou a inconstitucionalidade dos assen-tos, que outra coisa não eram senão a trans-mutação autorizada por lei de um acto dejurisdição em acto de legislação praticadopor autoridades sem competência legislati-va” (1998, p. 613). O fato de os assentos lu-sitanos terem sido criados por lei, enquantoas súmulas vinculantes brasileiras estãosendo propostas via emenda constitucional,não invalida a similitude. Em ambos os ca-sos ocorre inconstitucionalidade material,por incompatibilidade com a substância de

dispositivos ou princípios constitucionais,não importando o meio jurídico adotado.

α) Em sua essência, o poder vinculante con-fere às súmulas efeitos gerais próprios de lei.Ademais, restringe a independência jurisdicio-nal das instâncias inferiores, manietando odesenvolvimento da jurisprudência e esti-mulando o seguidismo judiciário. Trata-se,pois, de um mecanismo que, simultanea-mente, funciona como compartilhamento8

da função legislativa pelo órgão judiciário ecomo constrangedor jurisprudencial (cf. COS-TA, 2002, p. 119-121). Por conseguinte, fereos princípios da separação das funções do Esta-do e da independência judicial.

β) Princípio da separação das funções

Como já se dissemos noutra oportuni-dade, o princípio que estabelece a separa-ção funcional do poder do Estado não é ab-soluto (cf. COSTA, 2002, p. 274-280). Casta-nheira Neves lembra lição de outro mestreportuguês, Antunes Varela, segundo o qualo excepcional exercício da função legislati-va pelo Judiciário não fere o princípio daseparação dos poderes, uma vez que “nãoexiste uma divisão rígida entre as atribuiçõesreais dos diversos órgãos de soberania, cor-respondente aos termos ideais, teóricos, daclássica divisão dos poderes, tal como o fa-moso livro de Montesquieu a concebeu”(apud NEVES, 1994, p. 116). Resguarda-se,porém, necessariamente a separação numsentido nuclear, reconhecendo a existênciade esferas incompartilháveis de funções. Sãoas funções próprias de cada poder estatal.Castanheira NEVES explica que o princí-pio da separação absoluta, como uma dasdimensões estruturantes do Estado de Di-reito, evoluiu para o reconhecimento de umacoordenação e repartição complementar defunções. “Nem por isso deveremos deixarde reconhecer um núcleo não superado doprincípio justamente na distinção, ou na nãoconfusão, entre os poderes políticos stricto sen-su (nos quais se inclui decerto o poder legis-lativo) e o poder judicial definido essencial-mente pela função jurisdicional”(1994, p.

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118)9. Esse ponto de vista pressupõe o reco-nhecimento de duas áreas do Poder estatal,que não se confundem: uma política e outrajudicial (cf. COSTA, 2002, p. 281, et seq.).Pressupõe também que as funções legislati-va e executiva são propriamente políticas, eque a função judiciária não compartilhaessa natureza política, realizando-se nocampo predominantemente técnico-judici-al. “No tocante ao posicionamento do Judi-ciário como poder político do Estado, o quese espera, no Brasil, é a manutenção dasmesmas regras e princípios hoje existentes,que igualam ou até mesmo superam em con-quistas as já obtidas por outros importantesEstados democráticos de direito”(RIBEIRO,2000, p. 15).

Conquanto concorde-se com a essênciadessa teoria, deve-se ressaltar a necessida-de de uma maior precisão para o significa-do da palavra “política”. Como já obser-vado em nota ao § 1º, β, supra, trata-se deexpressão que pode adquirir sentidos di-versos.

β1) Ontologicamente, o Poder do Estadotem natureza política. Por conseguinte, todae qualquer divisão estrutural-funcional des-se Poder terá também essa mesma natureza,já que a parte assemelha-se ao todo. Con-clui-se daí que, enquanto manifestações doPoder (político) do Estado, as funções legis-lativa, executiva e judiciária são funçõestambém políticas. Ocorre que a organizaçãoestrutural do Estado conferiu às duas pri-meiras uma carga bem maior de politizaçãodo que a reconhecida à última. A esta atri-buiu um caráter acentuadamente técnico(derivado, não-autônomo), enquanto naque-las fez prevalecer um caráter político (origi-nário, autônomo). “A jurisprudência move-se dentro de quadros estabelecidos para oDireito pelo legislador, enquanto, por seuturno, a atividade do legislador visa, preci-sa e especialmente, estabelecer tais quadros.Daí que o alcance do Direito jurisprudenci-al é limitado (...)” (STRECK, 1995, p. 253).

Suponhamos um sistema de vasos co-municantes, preenchidos por matérias líqui-

das em duas camadas imiscíveis (como oexemplificado abaixo).

Uma das camadas representa a maté-ria técnica (MT), outra, a matéria política(MP). O sistema é composto de dois vasoscom mesmas dimensões, um representandoo campo propriamente político do Estado,composto pelas duas funções assim classi-ficadas: a legislativa e a executiva. No outrovaso, a função judicial. Sobre um plano ho-rizontal, as superfícies e os volumes dos lí-quidos se equivalem (princípio da isonomia;as alturas A e B se igualam). Trata-se de umasituação ideal ou teórica. Na prática dosEstados, a realidade impõe um desequilí-brio na distribuição da matéria política, cor-respondendo a uma maior ou menor incli-nação do plano de apoio dos vasos comuni-cantes, e, conseqüentemente, a um desloca-mento do líquido de um vaso para outro.Com isso, aumenta a concentração líquidanum vaso, na proporção em que ela dimi-nui no outro. Compartilhando uma mesmaessência ontológica (a matéria líquida denatureza pública), contêm-na em dosagensdiversas, porém. De um lado (nas funçõeslegislativa e executiva), concentra-se maissubstância política; de outro (na função ju-diciária), menos. Trata-se, pois, de um pro-blema de volume ou densidade política, enão propriamente de existência ou inexis-tência dessa substância. O volume total de

JUDICIÁRIO PODERES POLÍTICOS

MT

MP

MT: material técnica.MP: material política.

A

B

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funções de um Poder é heterogêneo, impli-cando o somatório dos volumes de ativida-des técnicas e de atividades políticas. As-sim, nenhum poder é apenas técnico, nemapenas político. Por sua natureza predomi-nante (=maior densidade), dizem-se propri-amente políticas (ou políticas stricto sensu)as funções legislativa e executiva. Em con-trapartida, o aspecto técnico dessas funçõesé menos relevante, embora exista. À funçãojudiciária, por outro lado, denomina-se téc-nica ou judicial, por apresentar característi-cas políticas sublimadas (=menor densida-de). Sobreleva-se, contudo, seu aspecto téc-nico. Todas são, entretanto, funções políti-cas lato sensu, já que funções estatais.

β2) A súmula com força vinculante é lei ma-terial (COSTA, 2002, p. 116). Tem efeitos ergaomnes, conquanto não decorra do processolegislativo constitucional. Sob certos aspec-tos, tem mesmo mais força que lei. Basta ob-servar que, segundo jurisprudência até ago-ra vencedora no STF10, não estão as súmulassubmetidas ao controle de constitucionalidade11.Embora o tema seja controverso também naCorte Suprema, a maioria daquele tribunalentende que seus enunciados não podemser declarados inconstitucionais, mesmoque o sejam. Ressalte-se a oposição do Min.Marco Aurélio, que admite a possibilidadejurídica desse controle. Assim, se supuser-mos uma súmula infringente ao texto cons-titucional — estabelecendo uma determina-da vantagem funcional em decorrência deparentesco, por exemplo, e ferindo, assim, oprincípio da igualdade —, esta permanece-rá surtindo efeitos enquanto o tribunal pro-lator desejar, como se para esse órgão a Cons-tituição não tivesse qualquer eficácia. En-quanto tratar-se apenas de súmula sem for-ça vinculativa, o problema será menor. Se-gundo o modelo jurídico hoje em vigor, assúmulas não teriam força vinculativa. Naverdade, porém, já existem pelo menos trêssituações positivadas em nosso Direito nasquais exercem força vinculante: 1ª) Os arts.22, § 1º, e 56, par. único, do RISTF autori-zam o Ministro Relator a arquivar ou negar

seguimento a recurso que contrarie súmula;2ª) Previsão de igual conteúdo encontra-sena LOMAN, art. 90, §2 º, que prevê que oRelator mandará arquivar ou negará provi-mento a recurso que contrarie súmula do STF;3ª ) Também não caberão embargos de recur-so que, embora contrarie súmula, tenha sidoadmitido (RISTF, art. 309, § 3º) (PINTO, 1985,p. 226). Considerada sua não-vinculativida-de, tem-se que os efeitos do enunciado incons-titucional se restringem apenas aos limitesda autoridade moral do tribunal em questão,ou, por outra, limitam-se ao terreno de sub-missão espontânea dos Juízos inferiores.

A respeito, assim se expressa STRECK(1995): “Na prática, porém, as Súmulas pas-saram a ter valor superior às próprias leis(...) (p. 251). Claro que a autoridade dos jul-gados de instâncias superiores sempre exer-ceram e exercem influência nos julgamen-tos das instâncias inferiores (p. 252). (...)Toda edição de Súmula corresponde à for-mação de um arbitrário juridicamente pre-valente (p. 261).” As súmulas, explica ain-da o mesmo autor, possuem um poder decontrolabilidade difusa do discurso juris-prudencial, sendo “típicas manifestações dediscursos monológicos (p. 267)”.

Sobre o tema, também se manifestou oMin. Sepúlveda Pertence, enquanto Presi-dente do STF:

“Um dos argumentos que ouçocontra a súmula vinculante, repetidopelo representante da OAB, na últimareunião, é quanto à suposta ineficá-cia da súmula vinculante. Eles alegamque já existe um stare decisis fático hoje,uma vez que a grande maioria dos ju-ízes de primeira instância segue as sú-mulas do Supremo, até por uma ques-tão de comodismo. Diz ele que os juí-zes que dissentem das súmulas sãopoucos, alguns até por vaidade, paramostrar erudição. (...) A maioria dosjuízes observa a súmula, ou mesmo ajurisprudência notória do SupremoTribunal. É verdade.”

E, defendendo a formalização do efeito vin-

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culante, completa: “Mas é preciso confiarque, uma vez que haja uma norma constitu-cional dando esse efeito, a observância, coe-ficiente de observância da jurisprudênciacrescerá”12. Ou, ainda, às hipóteses de “aco-lhimento racional”, freqüentemente adota-do em razão da certeza de reforma ulteriorda sentença em sede recursal13.

“Formalmente, as Súmulas não vinculam, se-não o STF e TFR” [e demais órgãos prolatores,acrescente-se]. (...) Seus efeitos, contudo,

“exercem influência direta no conteú-do das decisões; de fato, a influênciada Súmula vai dos Tribunais locaisaté à atitude dos advogados, procura-dores, promotores, etc. ... Apesar dis-so, muitos autores, sem fazer essa dis-tinção que nos parece básica, insistemem travar polêmicas sobre a obrigato-riedade, ou não, da Súmula, sem pre-cisar de que ponto de vista estão foca-lizando a questão e a que tipo de obri-gatoriedade estão aludindo” (PINTO,1985, p. 227)14.

Devemos lembrar que “é grande o prestí-gio das decisões dos tribunais, que costumam seracompanhadas pelas instâncias inferiores, sejapela sua natural autoridade — sobretudo quan-do reiteradas —, seja porque todas as decisões dasinstâncias inferiores são reformáveis, medianterecurso, pelas superiores” (CUNHA, 1996, p. 6).

Jorge MIRANDA também reconhece avinculação oficiosa dos assentos, equivalen-te português da súmula brasileira: “Em qual-quer país, as decisões do Supremo Tribunalatingem uma muito maior receptividade queas dos outros tribunais e mesmo num país,como o nosso, em que não criam preceden-tes e os tribunais não estão vinculados es-tritamente a perfilhá-las, elas são, de facto,invocadas e respeitadas”(1996, p. 203) 15.

Tratando-se, contudo, de súmula vincu-lante, a inconstitucionalidade terá seus efei-tos grandemente ampliados, como se lei fos-se. Proteger-se esse ato da fiscalização cons-titucional seria conferir-lhe hierarquia (ouprivilégio) superior ao gozado até mesmopelo ato legislativo próprio.

β3) A propósito, convém lembrar que,segundo classificação sugerida por doutri-na atual16, as súmulas são enquadradas emquatro tipos: 1) súmulas tautológicas — quedizem exatamente o que diz a lei ou apre-sentam afirmação óbvia17; 2) súmulas intralegem — que firmam uma interpretação com-patível com o texto legal18; 3) súmulas extralegem — que têm por escopo restringir aspossibilidades recursais19; e 4) súmulas in-constitucionais ou contra legem — que firmaminterpretação flagrantemente incompatívelcom a Constituição ou com o texto legal20.

Destarte, a atribuição de função legisla-tiva (política) ao Judiciário (poder técnico-judicial) implica inconstitucionalidade por in-fração ao núcleo remanescente do princípio daseparação dos Poderes do Estado.

χ) Princípio da independência judicial

Desde logo, convém frisarem-se algumasdiferenças conceituais necessárias a umaadequada abordagem desse tema.

Não é raro encontrarem-se, na doutrinae na jurisprudência, os termos “independên-cia”, “autonomia”, “autogoverno”, “impar-cialidade” e “neutralidade” com pouca di-ferenciação ou mesmo como sinônimos. Asinonímia, porém, não ocorre, e o uso indi-ferenciado desses vocábulos pode dificul-tar o desenvolvimento e a compreensão dasanálises acerca desses princípios.

Em comum, apresentam a natureza jurí-dica: são princípios e, por conseguinte, têmaplicação graduada e não absoluta.

Esclareça-se, desde logo, que princípiose regras são espécies do gênero “normas”.Talvez a principal peculiaridade diferenci-adora entre os princípios e as regras seja ofato de os princípios — como idéias diretri-zes ou pensamentos jurídicos generalizados— serem normas jurídicas de aplicação gra-dual, admitindo realizações dosadas, aopasso que as regras — formulações jurídi-cas específicas — caracterizam-se por seremde aplicação absoluta (“tudo ou nada”,como diz Dworkin). Assim, o princípio daindependência judicial pode realizar-se em

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várias normas e diversos graus. Modos e in-tensidades diferentes de realização do prin-cípio são possíveis — e mesmo necessários.As possíveis graduações da aplicação deum princípio não se excluem umas às ou-tras. Ao contrário: convivem em plena com-patibilidade. Já uma regra — como a quedetermina a incidência de uma determina-da alíquota de imposto — não é graduada.Trata-se de um pensamento jurídico especí-fico e determinado. A regra fiscal acima re-ferida tem duas posições jurídicas apenas:ativa e inativa. Não há meios termos. Poressa razão, a regra incidirá totalmente, ounão incidirá, não se admitindo incidênciascom intensidade intermediária. É tudo ounada. Aplicando-se a regra, têm-se dois re-sultados absolutos e mutuamente excluden-tes: incidência ou não-incidência. Didáticoestudo acerca dessa matéria é feito por Ge-naro Carrió, em seu pequeno livro “Princi-pios jurídicos y positivismo jurídico” (1970).

Frise-se, por fim: as regras (sua formula-ção e sua interpretação) subordinam-se aosprincípios, pois são destes concretizaçõespossíveis. A esse respeito, assim ensina Es-ser (1961), referindo-se à atividade judicial:

“¿Han sido realmente necesariaslas conmociones de la última guerra yposguerra, para que la jurispruden-cia se diera cuenta de que los ‘merosconceptos jurídicos’ y el ‘sistema’ po-sitivo no están en situación de sumi-nistrar ningún criterio de valor apli-cable a tareas no conocidas, o no reco-nocidas hasta ahora? Ningún juris-consulto experimentado ha dejado dever nunca que la ‘armadura lógica dela ley sólo conduce hasta el punto ...en que surgen las cuestiones de valordecisivas’, para las cuales ‘la ponde-ración de los intereses no es ningunavarilla mágica’, si faltan los principi-os a que esta ponderación debe subor-dinarse”.

Alexy, por seu turno, define os princípioscomo “mandamentos de otimização”. Paraele,

“los principios ordenan que algo debeser realizado en la mayor medida po-sible, teniendo en cuenta las posibili-dades jurídicas y fácticas. Por lo tan-to, no contienen mandatos definitivossino sólo prima facie. (...) Los principi-os representan razones que puedenser desplazadas por otras razonesopuestas. (...) Totalmente distinto esel caso de las reglas. Como las reglasexigen que se haga exactamente lo queen ellas se ordena, contienen una de-terminación en el ámbito de las posi-bilidades jurídicas y fácticas. (...) Porello, podría pensarse que todos losprincipios tienen un mismo carácterprima facie y todas las reglas lo mismocarácter definitivo. Un modelo tal sepercibe en Dworkin cuando dice quelas reglas, cuando valen, son aplica-bles de una manera del todo-o-nada,mientras que los principios sólo con-tienen una razón que indica una di-rección pero que no tiene como conse-cuencia necesariamente una determi-nada decisión”(1997, p. 99).

χ1) Autonomia e autogoverno são concei-tos que se interpenetram. Autonomia é acapacidade de se autogovernar. Autogover-no, pois, é o exercício da autonomia. Diz-seque o Judiciário é autônomo21 e que, portan-to, se governa, não que um determinado Juizo é. Trata-se de conceitos institucionais oucorporativos, e não pessoais. ZAFFARONIclassifica a “independência judicial” comogênero, do qual são espécies a “independên-cia da magistratura” (aqui denominada“autonomia”) e “independência do Juiz”(mesma denominação aqui utilizada) (1995,p. 87). Trata-se de diferenciação meramenteretórica, mas será mantida neste trabalho adenominação “autonomia” para acentuara diferença entre o princípio aplicável à ins-tituição como um corpo (manifestação pre-dominantemente administrativa) e o prin-cípio referente a cada um de seus integran-tes individualmente (manifestação predo-minantemente político-jurídica) 22.

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χ2) Imparcialidade e neutralidade, por ou-tro lado, são conceitos de natureza pessoale institucional, podendo referir-se ao Juizou à instituição do Judiciário.

Imparcialidade é a qualidade decorrentedo fato de seu sujeito não participar de umadeterminada relação. Diz-se que o Juiz —como também o Judiciário — deve ser im-parcial, significando isso que o Magistrado— ou a instituição — não pode comparti-lhar, direta ou indiretamente, os interessesenvolvidos na lide que lhe está sendo sub-metida a julgamento23. Deve ocupar a posi-ção de um estranho ao caso, postando-se,assim, fora dele e equidistante das partesenvolvidas24. Se algum interesse pessoal ti-vesse na questão sub judice, sua decisão po-deria dar-se em causa própria e comprome-ter a Justiça concreta.

“A concepção da administraçãoda justiça como uma instância políti-ca foi inicialmente propugnada peloscientistas políticos que viram nos tri-bunais um subsistema do sistema po-lítico global, partilhando com este acaracterística de processarem umasérie de inputs externos constituídospor estímulos, pressões, exigênciassociais e políticas e de, através de me-canismos de conversão, produziremoutputs (as decisões) portadoras elaspróprias de um impacto social e polí-tico nos restantes subsistemas. Umatal concepção dos tribunais teve duasconseqüências muito importantes. Porum lado, colocou os juízes no centrodo campo analítico. (...) A segundaconseqüência consistiu em desmentirpor completo a ideia convencional daadministração da justiça como umafunção neutra protagonizada porum juiz apostado apenas em fazerjustiça acima e equidistante dos in-teresses das partes”(SANTOS, 1999,p. 172-173).

Por seu turno, neutralidade é a qualidadedaquele Juiz que não toma partido, seja emnome de interesses pessoais ou de terceiros,

e que julga apenas segundo as normas obje-tivas do Direito positivado.

“O ‘juiz eunuco político’ de Griffithé realmente uma ficção absurda, umaimagem inconcebível, uma impossibi-lidade antropológica. (...) O juiz nãopode ser alguém ‘neutro’, porque nãoexiste a neutralidade ideológica, salvona forma de apatia, irracionalismo oudecadência do pensamento, que nãosão virtudes dignas de ninguém e me-nos ainda de um juiz. Como bem se temassinalado, ‘nem a imparcialidade nema independência pressupõem necessa-riamente a neutralidade. Os juízes sãoparte do sistema de autoridade dentrodo Estado e como tais não podem evi-tar de serem parte do processo de deci-são política. O que importa é saber so-bre quê bases são tomadas essas deci-sões (p. 92) (...) Pode-se dizer não serpossível ‘politizar’ um exercício de po-der público que é essencialmente polí-tico, mas, sim, será possível ‘partidali-zá-lo’ ou, o que dá no mesmo, ‘parci-alizá-lo, com o que se lhe subtrai a ju-risdição, porque se lhe priva do pres-suposto da imparcialidade” (p. 95)25.

Em virtude de meramente aplicar direitoobjetivo supostamente neutro, o Juiz seriatambém neutro. Sobre as pretendidas neu-tralidades do Direito e do Juiz, contudo, veja-se o lúcido trabalho do Professor Rui POR-TANOVA: “Motivações Ideológicas da Sen-tença”. Em especial, parece oportuno trans-creverem-se as seguintes passagens:

“Também na idéia de justiça nãohá neutralidade. Já Trasímaco susten-tava que o ‘justo outra coisa não é se-não o interesse do mais forte’. Logo, aidéia de justiça é ideológica, pois tra-duz os interesses dos grupos detento-res do poder e é utilizada para manu-tenção dessa relação de poder. (...) ODireito não é neutro. Como diz Luiz Fer-nando Coelho, nem Kelsen foi neutro.Pelo contrário, sua Teoria Pura é omais seguro indicador de uma ideo-

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logia. Tal ideologia no aspecto exter-no atende ao interesse de justificar oafastamento dos juristas da problemá-tica social. Assim serviu aos donos dopoder: quanto menos se questionasseo aspecto ético do exercício do poder,melhor. (...) Michel Villey, citado porPlauto Faraco de Azevedo, chama aatenção para a circunstância preocu-pante de que a poucos juristas impor-ta saber a quem servem, limitando-sea obedecer. (...) Por isso, o Direito éparcial, pois traduz vontade políticae encerra determinada dimensão va-lorativa” [grifo nosso] (PORTANO-VA, 1997, p. 64-65).

Colocado na relação processual, não a per-turbaria com sua presença, não a alteraria,embora a intermediando26. A ocorrência deinteresses fere a neutralidade. Nesse passo, sen-do o Juiz órgão integrante do Estado e, porisso, com ele comprometido, pode-se deleesperar neutralidade ou imparcialidadequando lhe é submetida ação versando in-teresse estatal, principalmente se lembrar-mos que aplicará norma jurídica criada pelopróprio Estado? Pondere-se a seguinte ma-nifestação de Eros GRAU (1996, p. 106): “Aneutralidade política do intérprete só existenos livros, nos discursos jurídicos. (...) Todasas decisões jurídicas, porque jurídicas, sãopolíticas”[grifo nosso]. Também OLIVEIRA:

“(...) durante séculos o direito priva-do foi o único direito do continenteeuropeu. As jurisdições instituídas oureconhecidas pelo Estado só podiamdesempenhar suas funções na esferado direito privado. Se a Administra-ção figurasse como parte do litígio,todo o sistema ver-se-ia falseado, tan-to no plano da teoria quanto da práti-ca. Na teoria, porque interesse públi-co e interesse particular encontravam-se em planos distintos, não podendoser medidos com o mesmo padrão; naprática, em virtude de constituir sérioproblema a possibilidade de os juízes pro-ferirem suas decisões de modo imparcial e

independente num litígio em que conten-dam Estado e particular” (1997, p. 90).

Se o interesse resumir-se à relação pro-cessual em questão, trata-se de parcialida-de. Se for mais amplo do que as relaçõesimediatamente envolvidas no processo (decunho ideológico), o conceito envolvido seráo da neutralidade.

A respeito do tema, veja-se pertinente alição da doutrina estadunidense:

“A distinção entre ‘estrutura po-lítica’ e ‘administração’ é apenas re-lativa. Não podemos supor que umservidor público — um juiz, um gene-ral ou um policial — seja inteiramen-te ‘neutro’ nos seus interesses e objeti-vos. Ele terá mais de um ponto de vis-ta sobre o que é bom para a sociedade,além dos usuais motivos como ambi-ção e interesses próprios. O modocomo ele usa seu poder para concreti-zar as políticas do seu governo, seuspropósitos — amplos ou restritos, or-todoxos ou heréticos —, influenciarásuas ações. Poder e interesse expres-sam-se em todos os estágios do pro-cesso de decisão” 27.

Mesmo uma parte interessada, porém,poderia manter-se propositalmente neutraou imparcial em relação a um determinadocaso (neutralidade induzida), pois a condiçãode partícipe não é suficiente para fazer-seconcluir pela efetiva tomada de posição. Aneutralidade, portanto, é versão mais ampla daimparcialidade. Ou, o que é o mesmo, a impar-cialidade é caso particular de neutralidade. Tra-ta-se de conceitos correlatos, mas que apre-sentam sutis peculiaridades ontológicas ediferentes amplitudes de efeitos.

O conceito é igualmente aplicável à ins-tituição, já que também o Judiciário é titularde interesses objetivos — relações de poder— que podem esgotar-se no resultado de umprocesso determinado (o estabelecimento deum patamar de vencimentos para a Magis-tratura, por exemplo) ou referir-se a relaçõesque vão além das fronteiras processuaisimediatas (a corroboração de uma política

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ou de uma postura ideológica de governo,p. ex.). Por hipótese, suponha-se que o Judi-ciário — através de um Juiz ou de um cole-giado — agilize ou retarde o processamentode uma determinada causa, ou que funda-mente sua decisão no fato de que, de outraforma, restaria inviabilizada a governabili-dade, prejudicado determinado projeto degoverno, orientação política ou comprome-tida a segurança nacional.

No que se refere à governabilidade, porexemplo, são conhecidas situações em queo Judiciário, agindo em nome do interessepúblico, confere atenção procedimental di-ferenciada a determinadas causas (créditosfiscais vultosos, julgamentos de grande re-percussão junto à opinião pública, etc.). Ojulgamento do recurso extraordinário emação versando a correção monetária de sal-dos das contas do FGTS, referente a índiceslegalmente expurgados desse cálculo pelosplanos econômicos conhecidos como “Ve-rão”, “Bresser”, “Collor”, “Collor I” e “CollorII”, pode representar uma situação dessaespécie. Em todo o país, estima-se em cercade 120 milhões o número dessas contas eem 600 mil o de ações individuais a respeitodo tema em trâmite na Justiça. Caso fossedeferido in totum o recurso, a repercussãojurisprudencial poderia levar a condena-ções em torno de R$ 60 bilhões, refletindo-se profundamente na estabilidade financei-ra do país. Após pedido de vista, em mea-dos de agosto, o julgamento prosseguiu em31/8/2000, resultando em deferimento par-cial. Com efeitos apenas sobre os processosindividuais sub judice, o Supremo reconhe-ceu o direito às correções relativas aos Pla-nos “Verão” (39,17%) e “Collor I” (44,80%).A repercussão potencial estimada para essadecisão é de R$ 38,86 bilhões. Não foramacolhidos os pedidos de correções devidasaos Planos “Bresser”, “Collor” e “Collor II”(total de 23,08%). O Executivo parece ter fi-cado satisfeito, ao menos em parte, com essadecisão, talvez em virtude de ter-se tratadode deferimento apenas parcial dos pedidos.Imediatamente após a deliberação do Supre-

mo, o então Advogado-Geral da União, hojeMinistro do STF, Gilmar Mendes, anunciouna imprensa, sem dar detalhes, que entrariacom ação no STF para conferir efeito vincu-lante ao acórdão.

Em novembro/2000, a imprensa nacio-nal divulgou notícia comentando a reper-cussão que poderia ter eventual decisão doSTF que declarasse a inconstitucionalidadeda MPro 2.207-43, que reduziu de 12% para6% os juros compensatórios e limitou emR$150 mil o valor dos honorários advocatí-cios em desapropriações de terras, notada-mente para fins de reforma agrária. O entãoMinistro do Desenvolvimento Agrário ob-servou que, se tal ocorresse, restaria seria-mente comprometido o plano federal de re-forma agrária, acarretando um “prejuízo”para o Governo da ordem de R$ 1,2 bilhão,com pagamentos de precatórios, inclusivecom efeito retroativo. Dentro do contextoaqui comentado, não parecerá decerto sur-preendente que, no dia 25.10.2000, referidoMinistro tenha-se reunido com o Presidentedo STF, Min. Carlos Velloso, antes da deci-são do Tribunal, para discutir os efeitos daADIn sobre os planos de Governo (informa-ção divulgada pelo Jornal O Estado de SãoPaulo, 26.10.00). Não se quer, aqui, cogitarde uma inidônea manipulação da decisãodo Supremo. Trata-se, isso sim, de registrara manifestação de uma co-preocupação doJudiciário com os interesses do Estado e, emespecial, com os reflexos de suas decisõessobre as ações de Governo. A ausência des-sa preocupação seria certamente criticávele desestabilizadora.

Outra situação envolvendo procedimen-tos diferenciados é vivida rotineiramente emtodas as Varas Federais especializadas emexecuções fiscais em que haja um grandenúmero de processos em tramitação. EmPorto Alegre, por exemplo, há presentemen-te três varas com essa especialização. Emcada uma tramitam cerca de 25 mil proces-sos versando créditos da União ou de suasautarquias. São, pois, aproximadamente 75mil execuções fiscais tramitando. Nem a es-

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trutura judiciária federal, nem a jurídica daUnião estão preparadas para tal demanda.O resultado dessa defasagem é a lentidãono ajuizamento e também processamentodesses feitos.

O CPC estabelece que a inércia demasia-da da parte interessada implica a extinçãodo feito, sem julgamento de seu mérito (CPC,art. 267, III). Em princípio, essa norma obje-tiva dirige-se ao processo de conhecimento,mas é aplicada analogicamente no Executi-vo. Nela, fica estabelecido que, se o autorabandonar a causa por mais de 30 dias, sempromover sua movimentação, o Juiz decla-rará extinto o processo. O fundamento on-tológico da extinção é o desinteresse, evi-denciado pela inércia. Deve-se registrar que,na prática, essa norma não encontra abso-luta e homogênea aplicação em nenhumainstância ou foro judicial, dados os profun-dos problemas enfrentados pela própria es-trutura do Judiciário para realizar um regu-lar acompanhamento processual. Ademais,o princípio da razoabilidade tem sempre in-formado as decisões judiciais nesses casos.

Ocorre que, nas execuções fiscais, a situ-ação é particularmente preocupante. A es-trutura jurídica montada pela União parapromover tais feitos é débil. Nas referidasVaras de Porto Alegre, por exemplo, há ape-nas dois procuradores de uma autarquiafederal para acompanhar cerca de 10 milprocessos de seu interesse. Em virtude dis-so, os autos já chegaram a aguardar por oitomeses em secretaria para se realizarem as in-timações pessoais. Hoje, contudo, essa demo-ra já pôde ser reduzida para algo em torno dequatro a seis meses, o que, de qualquer sorte,ainda é um prazo excessivamente dilatado.Por outro lado, quando em carga, muitas ve-zes os autos só são devolvidos depois de vá-rios meses, considerando-se o invencível acú-mulo de trabalho que representam.

Para justificar um atraso muito superiorao objetivamente permitido pela regras deprocesso, os procuradores dessa autarquiajá se valeram, com sucesso, da sua própriafalta de estrutura. “O exeqüente dispõe de

dois procuradores, dois advogados contra-tados e dois estagiários para atender a, apro-ximadamente, dez mil processos que trami-tam nessa Vara”, disse a autarquia numapetição em que requeria reabertura de pra-zos de vista, largamente desatendidos. Ten-do sido intimada a devolvê-los, justificou ademora, esclarecendo que seus procurado-res tinham também outras incumbências, decunho administrativo. “Assim, face à exces-siva carga de trabalho, é humanamente im-possível atenderem de forma célere todos osfeitos que tramitam nesse Juízo. Diante doexposto, em atenção à determinação judici-al, estamos devolvendo os autos, requeren-do seja concedida nova carga dos mesmos.”

Quando o Juiz acolhe tais explicações— e sempre que o faz aplica o princípio darazoabilidade e age em função dos relevan-tes interesses públicos envolvidos —, reabrin-do prazos perdidos e deixando de aplicar aregra extintiva, parece prestar uma certa soli-dariedade ao Estado, cuja estrutura — defa-sada — integra. A bem da verdade, porém, énecessário observar que não se tem notícia,mesmo em relação a entidades estatais, dareabertura ou dilação de prazos peremptóri-os com base nesse tipo de fundamentação.

Refira-se, por fim, recente decisão doSTF (17.04.01) cassando liminar, concedidapela Justiça Federal de Santa Catarina, de-terminando a imediata atualização da tabe-la progressiva do imposto de renda na fontepelos mesmos índices de dedução previstosna legislação pertinente. Em seu despacho,o Min. Carlos Velloso, Relator, acolheu osargumentos da AGU, enfatizando a possi-bilidade de “grave dano à economia públi-ca”. O Relator ponderou, ainda, que levouem conta o possível efeito multiplicador dadecisão cassada, visto que “centenas de ou-tras liminares poderão ser concedidas, o quepode agravar a possibilidade do grave danoà economia pública” 28, prejudicado determi-nado projeto de governo, orientação política29

ou comprometida a segurança nacional.Quanto a esta última, a história registra

uma longa prática de manipulação por par-

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te de vários governos brasileiros. Lastrea-dos na chamada Lei de Segurança Nacio-nal — LSN (Lei nº 7.170/83), alargou-seesse conceito de modo a justificar juridica-mente a imposição de duras perseguições aopositores políticos por fatos nem semprerelevantes. A aplicação dessa lei, não raro,feria princípios constitucionais como o daproporcionalidade e da liberdade de expres-são e pensamento. O mesmo se poderia di-zer a respeito do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/68, do qual resultou a cassa-ção dos direitos políticos de inúmeros cida-dãos brasileiros, inclusive do atual Presi-dente da República, Fernando HenriqueCardoso. Ao silenciar ou positivamente va-lidar a aplicação desses atos normativos, oJuiz (em particular) ou o Judiciário (numavisão geral), em nome da neutralidade, fize-ram de fato uma declaração de solidarieda-de ideológica. Ademais, se compreendermosque a Constituição é o instrumento políticojuridicizado de manifestação da ideologiapredominante num Estado e admitirmosque o Supremo Tribunal Federal é o guar-dião da Carta Constitucional (CF, art. 102),parece inafastável a conclusão de que o Tri-bunal não é neutro a esse respeito, cabendo-lhe tomar a defesa das posições ideológicasconstitucionalizadas. “Não há dúvida que,de um lado impõe-se a preservação dos direi-tos dos indivíduos componentes no núcleoestatal. Mas, de outro lado, é indispensável agarantia das instituições nascidas. Em suma:protege-se o indivíduo contra o Estado maseste demanda instrumentos de proteção con-tra os indivíduos que podem, com sua con-duta, alcançar a derruição das instituiçõescriadas ”, diz Temer. E complementa:

“Impõe-se, porém, perguntar: quala lei que queremos para garantir asinstituições? Não é a reavaliação daLSN. Esta, editada ainda na VelhaRepública,contém defeitos e víciosgraves, incompatíveis com os direitosfundamentais, de cuja defesa não po-demos descurar.” (...) “Proteger o Es-tado não significa desmerecer os mais

comezinhos direitos individuais.Muito menos de forma tão agressiva eautoritária, que deixa tudo a passospróximos da tortura e de outras for-mas de interrogatório medievais jápraticadas no Brasil.” (...) “Por issotudo, a antiga Lei de Segurança naci-onal sucumbiu à Carta de 88. Sua re-vogação é imperativo da consciênciapolítica nacional.”

Diante dessa afirmação, impõe-se, con-tudo, o seguinte questionamento: se a LSNsucumbiu diante do novo ordenamento ju-rídico (vale dizer: não foi por ele recepcio-nada), por que seria necessário ainda umato formal revocatório? Mais correto pareceser concluir-se por sua revogação tácita,ante a constatação da incompatibilidadecom a nova ordem jurídica nacional inau-gurada em 1988. Essa, aliás, a conclusão dopróprio TEMER (1999, p. 38) em outra obra:

“Se houver normas incompatíveiscom a nova ordem constitucional,manifesta-se o fenômeno da perda deeficácia. A este respeito, cristalina é alição extraída do julgamento da AçãoDireta de Inconstitucionalidade 36-5,publicado na RT 675/244: ‘Não cabeação direta de inconstitucionalidadepara questionar lei promulgada na vi-gência do regime constitucional pre-térito. Com efeito, leis anteriores àConstituição não podem ser inconsti-tucionais em relação a ela, que só maistarde veio a ter existência. Se entreambas houver inconciliabilidade,ocorrerá revogação segundo as normasde Direito Intertemporal onde a leiposterior revoga a anterior no que comela for incompatível’” [grifo nosso].

Criticando as reformas impostas ao tex-to contitucional de 1988, que o deformaramsubstancialmente, assim se posiciona FábioCOMPARATO, em excelente artigo:

“A pá de cal na indispensável in-dependência do Supremo TribunalFederal para custodiar a inviolabili-dade da Constituição foi lançada com

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a Emenda Constitucional nº 3, de1993, instituindo a ‘ação declaratóriade constitucionalidade’ (art. 102 — I,a). (...) Por força desse vicioso meca-nismo, a nossa Corte Suprema deixade ser um tribunal, para se tornar umórgão oficial de consulta. Troca a po-sição de guarda da Constituição pelade associado do governo.”

E, numa crítica ainda mais acerba, comentaa então pretendida emenda que viria a pos-sibilitar a reeleição do Presidente da Repú-blica: “E não tenhamos dúvida de que, se sedecidir suprimir do texto do art. 14, § 5º, aexpressão final — ‘para um único períodosubseqüente, o Supremo Tribunal convali-dará a desfaçatez, assinando o atestado deóbito da Constituição”(1998, p. 10).

Moreira Alves, todavia, tem opinião di-versa:

“(...) é também inteiramente improce-dente a alegação de que essa ação con-verteria o Poder Judiciário em legisla-dor, tornando-o como que órgão con-sultivo dos Poderes Executivo e Legis-lativo. Essa alegação não atenta paraa circunstância de que, visando a açãodeclaratória de constitucionalidade àpreservação da presunção de consti-tucionalidade do ato normativo, é ín-sito a essa ação, para caracterizar-seo interesse objetivo de agir por partedos legitimados para propô-la, quepreexista controvérsia que ponha emrisco essa presunção, e, portanto, con-trovérsia judicial no exercício do con-trole difuso de constitucionalidade, porser esta que caracteriza inequivocamen-te esse risco. (...) Portanto, por meio des-sa ação, o Supremo Tribunal Federaluniformizará o entendimento judicialsobre a constitucionalidade, ou não, deum ato normativo federal em face daCarta Magna, sem qualquer caráter,pois, de órgão consultivo de outro Po-der, e sem que, portanto, atue, de qual-quer modo, como órgão de certa formaparticipante do processo legislativo.

Não há, assim, evidentemente, qual-quer violação ao princípio da separa-ção de Poderes” (2000, p. 139).

Nas hipóteses aqui examinadas, o Judi-ciário estará declarando uma solidariedadeideológica30, um interesse metaprocessual aser protegido, que, por sua importância, ser-viria de baliza orientadora da interpretaçãoe aplicação da norma objetiva. Pontes deMIRANDA cita as seguintes palavras doJuiz Hough, dos EUA, censurando a apreci-ação das leis pelas Cortes daquele país:

“os julgamentos ‘são ditados ou do-minados por atitudes mentais ou pre-dileções fundadas na hereditarieda-de, na ambiência e na educação, comosão os vereditos de todos os júris’. Daía necessidade, que tem tido o Senadonorte-americano, de influir nas nome-ações dos membros da Côrte Supre-ma, evitando a resistência opinativados juízes à legislação nova. No Bra-sil, tal reacionarismo foi assaz maisgrave, porque não se dirigiu contra asleis sociais em nome de Constituiçãoabstinente, omissa, quase ôca, porémcontra a Constituição mesma, amea-çada de falir, dizíamos nós em 1935, epor mim falida, por culpa do propósi-to judiciário e administrativo de nãona aplicar”(1963, p. 208).

Expressando assim sua ponderação sobreaspectos metaprocessuais, também exporáposição consentânea com tais parâmetros.Trata-se de decisões que, a par de sua tecni-cidade, contêm grande densidade política.A hipótese é também aventada por Carrion,Sarlet e Antunes, examinando a excessivadiscricionariedade atribuída pelas Leis9.868 e 9.882 ao STF quanto à determinaçãoda eficácia temporal da declaração de incons-titucionalidade em ação direta:

“Assim, apenas em tese, poderia oSTF declarar a inconstitucionalidadede certo tributo, decidindo, contudo,que os efeitos da declaração (especi-almente a nulidade) — objetivandopreservar os cofres públicos — passasse a

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vigorar apenas quando resolvidos osproblemas de caixa do poder públicoou quando o legislador viesse a corri-gir tal situação, sem que lhe seja fixadoqualquer prazo razoável para tanto.Pior do que isto, seria imaginar que olegítimo interesse social poderia facil-mente ser deslocado por razões arbitrá-rias de Estado e toda sorte de pressões,tudo com o objetivo de alcançar porcaminhos de legitimidade duvidosa ob-jetivos manifestamente ilegítimos”31.

Para que tais decisões possam existir oualcançar a garantia de permanência válida,a última palavra na ordem judiciária inter-na brasileira é dada por um tribunal que,por isso mesmo, classifica-se como político:o STF. Já na primeira Constituição republi-cana, o entendimento era esse. Examinan-do os anais daquela constituinte, Agenor deROURE comentou a proposta de GonçalvesChaves, propugnando pela nomeação dosMinistros do STF pelo Presidente da Repú-blica, com o veto do Senado “como correcti-vo aos abusos possíveis do Governo”, masapenas sobre um terço dos Juízes do Supre-mo. Os outros dois terços seriam providos porconcurso entre os magistrados mais antigos.

“Parecia ao representante minei-ro” — disse Roure — “que deste modose conciliariam todas as conveniênci-as de ordem pública: tribunal político— o grande pilar da Constituição —destinado a manter o equilíbrio de to-dos poderes, teria membros nomeadospelo Presidente e acceitos pelo Sena-do, mas seria dada satisfação á neces-sidade de chamar á magistratura fe-deral os talentos e as vocações decidi-das da magistratura estadual.”

A proposta não foi vencedora (1918, p. 36).O acesso ao Supremo nunca se deu por

carreira, caracterizando-se sua composiçãopela predominância de critérios políticos(=ideológicos) sobre os técnicos (=jurídicos).Houve tempo, inclusive, em que o conheci-mento técnico jurídico não era sequer requi-sito para a escolha de seu integrante, sendo

conhecidos casos de políticos leigos quecompuseram o quadro daquela Casa. Bas-tava então “notável saber” geral. Hoje, to-davia, o “notável saber jurídico” 32 (entendi-do, sem exceção na melhor doutrina, comodiploma reconhecido e válido de bacharelem Direito33) é requisito essencial para a es-colha do Ministro do STF e dos demais tri-bunais superiores.

Assim, vê-se que a imparcialidade é umcaso particular da neutralidade e não um sinôni-mo desta. Enquanto a imparcialidade decor-re da inexistência de interesses envolvendoespecificamente a questão sub judice, a neu-tralidade refere-se a interesses mais amplos,que vão além da lide, embora abarcando-a.Em suma: se a imparcialidade é processuale jurídica, a neutralidade é metaprocessuale política.

χ3) Estabelecido o terreno terminológicocom a fixação dos conceitos acima, cumpreagora avançar-se no aspecto material doprincípio da independência judiciária ante aproposta de súmulas com força vinculante.

Para Zaffaroni, a independência do Juiz épressuposto indispensável da sua imparci-alidade (1995, p. 91).

Independência é a garantia constitucionalde que o Magistrado não sofrerá ingerênci-as, de qualquer origem e natureza, sobre suaatividade judicante. Vale dizer: é a garantiade que decidirá sozinho e unicamente con-forme sua própria convicção jurídica base-ada no Direito. Essa imunidade não se refe-re apenas a interferências externas ao Judi-ciário, mas também tem efeitos interna corpo-ris, não se admitindo que a decisão de umJuiz (qualquer que seja ele) venha a ser limi-tada ou balizada por outro Juiz (qualquerque seja ele).

É para o resguardo da independência doJuiz que a CF lhe garante a irredutibilidadede vencimentos, a inamovibilidade e a vita-liciedade34. São garantias institucionais,uma vez que destinadas a toda a Magistra-tura. Além delas, a Constituição estabelecetambém vedações com mesmo objetivo. AoJuiz é vedado o recebimento de participa-

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ções pecuniárias referentes aos processos35,bem como a dedicação à atividade político-partidária. Trata-se de vedação polêmica,cujo objetivo declarado é evitar a “politiza-ção” do Judiciário, como se este, como Po-der do Estado que é, já não tivesse naturezapolítica. É interessante observar que essavedação não está presente em todas as Cons-tituições importantes. Além da brasileira, aConstituição espanhola (art. 127, inciso 1º)também veda a vinculação partidária doJuiz. As Cartas alemã e italiana, porém, nãoo fazem. “Existe um amplo debate a respei-to disso na Europa e, de fato, eminentes po-líticos, que por sua vez são juristas e cate-dráticos, são usualmente promovidos, pelomenos, aos tribunais constitucionais. Poroutra parte, nos tribunais ordinários, é bemconhecida a filiação partidária de seusmembros, embora não tenham participaçãodireta em partidos políticos” (ZAFFARONI,1995, p. 97) 36.

Parece ser necessária uma diferenciaçãoconceitual entre “partidarização ativa” e“partidarização passiva”. Por “partidariza-ção ativa” deve-se entender a efetiva partici-pação na atividade partidária (militância),que denota grande comprometimento ideo-lógico e prático. A “partidarização passiva”,porém, consiste na mera opção formal pelafiliação, importando apenas uma declara-ção exterior de simpatia partidária. Implicaum grau bem menor de comprometimento eé a realidade da ampla maioria dos filiadosa partidos políticos, não apenas no Brasil.As campanhas de filiação partidária, em quese angariam na sociedade declarações desimpatia, têm, na verdade, o efeito formal depreencher um requisito para a atividade dopartido político e representam um termôme-tro relativamente confiável do grau de in-serção social do partido. A meu sentir, amera filiação partidária não pode implicara presunção absoluta de um comprometi-mento ideológico suficiente a invalidar aatividade jurisdicional. Ademais, é eviden-te que a mera desfiliação formal de qualquerpessoa — inclusive do Juiz — não autoriza

concluir-se por seu efetivo descomprometi-mento ideológico em relação ao partido aque até então era filiado. O vínculo políticomaterial sobrevive ao rompimento formal.“A partidarização dos judiciários, como vi-mos, pode ocorrer sem que os juízes tenhammilitância política, de modo que o fenôme-no em si é independente dessa circunstân-cia. (...) A patidarização de um judiciário éobtida, fundamentalmente, pela pressão queos partidos ou frações possam fazer no sen-tido da designação e destituição dos juízes”(ZAFFARONI, 1995, p. 97). A vedação cons-titucional brasileira seria adequadamenteinterpretada se entendida no sentido da par-tidarização ativa, permitindo-se ao Juiz,porém, a mera declaração formal de simpa-tia partidária. Nesse caso, todavia, a sus-peição sempre poderia vir a ser argüida(CPC, art. 135, V ou par. único).

Pela pertinência e idoneidade da liçãoque encerram, reproduzem-se aqui, nova-mente, as palavras de um dos mais respei-tados juristas da atualidade:

“Um juiz independente, ou me-lhor, um juiz, simplesmente, não podeser concebido em uma democraciamoderna como um empregado do exe-cutivo ou do legislativo, mas nempode ser um empregado da corte oudo supremo tribunal. Um poder judi-ciário não é hoje concebível como maisum ramo da administração e, portan-to, não se pode conceber sua estrutu-ra na forma hierarquizada de um exér-cito. Um judiciário verticalmente mi-litarizado é tão aberrante e perigosoquanto um exército horizontalizado”(ZAFFARONI, 1995, p. 88).

χ3.1) A independência do Juiz pode ter,pois, duas manifestações: interna, relativa-mente aos demais integrantes do próprioJudiciário, e externa, referente a todas as de-mais pessoas.

Por sua própria natureza e forma demanifestação, a independência interna tal-vez seja a mais delicada. Enquanto as inge-rências externas podem ser, quando não

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neutralizadas, ao menos minimizadas pelaação da sociedade, da imprensa e das pró-prias partes processuais, as pressões even-tualmente provindas do seio da corporaçãoapresentam mais difícil controlabilidade,uma vez que podem manifestar-se — e é dese esperar que assim aconteça — de formasmais sutis e indetectáveis.

Num Judiciário hierarquizado, ao modobrasileiro, em que o Juiz é praticamente umfuncionário de carreira — sujeito a promo-ções, remoções, aumentos (ou privações)salariais, controle de produtividade, tíquetespara alimentação, etc. —, as pressões corpo-rativas podem encontrar inúmeros caminhosnão-oficiais de possível manifestação.

Ademais, observe-se que, ainda no casobrasileiro, as interferências externas podempretender realizar-se por duas vias. Direta-mente, mediante constrangimentos exercidospelo próprio agente beneficiário — atravésde cortes orçamentários, ameaças de mu-danças normativas desfavoráveis ou enfra-quecedoras, campanhas públicas de detra-ção, etc. Em fins de maio/2000, por exem-plo, o STF proveu pedidos liminares a al-guns investigados por Comissão Parlamen-tar de Inquérito (CPI), com isso impedindo aquebra de seus sigilos bancário e fiscal, quehavia sido determinada por essa mesmaComissão. Naquela oportunidade, o Supre-mo declarou que os limites constitucionaispara a ação das CPIs não abarcavam todosos poderes jurisdicionais e que a quebra dossigilos fiscal e bancário, por serem direitosde natureza constitucional, não se encon-trava no rol de capacidades dessas Comis-sões. Pela mesma época, concedeu habeascorpus a um ex-Presidente do Banco Centraldo Brasil, cuja prisão em flagrante havia sidorealizada pela mesma CPI, em público e comtransmissão ao vivo, por televisão, para todoo país. Tais eventos geraram profunda in-dignação no então Presidente do Senado edo Congresso, que, mesmo em viagem a Lis-boa, concedeu naquela cidade entrevistasrecheadas de indignação. Assim agindo —dizia o Senador — o STF estava a trabalhar

contra os interesses maiores da nação. Emnome desses interesses maiores, pois, “pro-metia” (=ameaçava com) profundas mudan-ças constitucionais, via emendas, tão-logoretornasse ao Brasil, mudanças essas quereduziriam e modificariam substancialmen-te a competência de alguns tribunais, em es-pecial a do Supremo.

A todos causou espécie a reação daque-le Senador, que seguidamente utilizava osverbos na primeira pessoa do singular, numcomportamento que parecia extinto e que é,no mínimo, incompatível com o Estado De-mocrático Constitucional de Direito.

Lembre-se também a verdadeira “cam-panha detratória” que, generalizadamente,se tem engendrado contra o Judiciário, jádesde 1999. Seu clímax parece ter-se verifi-cado em agosto/2000, com os escândalosde desvio de verbas da obra de construçãodo TRT de São Paulo e a caça ao principalenvolvido, o ex-Magistrado Nicolau dosSantos Neto, codinominado (apropriada-mente, diga-se de passagem) de “Juiz-La-drão” e jocosamente apelidado de “Lalau”,por ter desviado, em proveito próprio e decomparsas governamentais de primeiro es-calão, US$169 milhões daquela obra públi-ca. A “campanha” tenta generalizar casosisolados, na evidente tentativa de desmora-lizar toda a corporação judiciária que, con-quanto detentora de evidentes falhas, nãomerece a pecha irrestrita que se lhe atribui.Utilizando-se de táticas de constrangimen-to pessoal e corporativo, que visam ao en-fraquecimento institucional do Judiciário,intenta criar condições políticas para a apro-vação de medidas como o controle externo ea súmula vinculante, tudo abarcado numgrande projeto denominado “Reforma doJudiciário”.

Mas as pressões externas podem-se ma-nifestar também de modo indireto, como, porexemplo, através das nomeações de magis-trados por integrantes de outro Poder, talqual acontece com os tribunais superiores37.Nessas nomeações, é forçoso reconhecer queo afastamento da influência de interesses

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externos não está de todo garantido pelosmodus operandi estabelecido na Constituição.

χ3.2) A proposta de atribuir força vincu-lante à jurisprudência dos tribunais superi-ores, ou apenas às do STF, não é nova38. Oanteprojeto de reforma da Lei de Introdução aoCódigo Civil (denominada “Lei de Aplica-ção das Normas Jurídicas”), de autoria doProf. Haroldo Valladão (D.O. de 15.5.64,Suplemento nº 92), já previu, no seu art. 7º,a Resolução Uniformizadora do Supremo Tri-bunal Federal, nos seguintes termos:

“Art. 7º—O Supremo Tribunal Fe-deral, no exercício das atribuições quelhe confere o art. 101, III, d, da Consti-tuição Federal, uma vez fixada a in-terpretação da lei federal pelo Tribu-nal Pleno, em três acórdãos, por mai-oria absoluta (Constituição Federal,art. 200), torná-la-á pública, na formae nos termos determinados no Regi-mento, em Resolução que os tribunaise os juízes deverão observar enquan-to não modificada segundo o mesmoprocesso, ou por disposição constitu-cional ou legal superveniente. Parágra-fo único — A modificação pelo Supre-mo Tribunal Federal se fará, havendorazões substanciais, mediante pro-posta de qualquer Ministro, por inici-ativa própria ou sugestão constantenos autos”(1974, p. 190-191).

A atribuição de força vinculante a deci-sões dos Tribunais Superiores implica a ins-titucionalização da ingerência hierárquica39 so-bre a interpretação judicial e, portanto, acarretao cerceamento da independência do Juiz inferior.Leva à padronização da jurisprudência, mo-delando o Direito em standards preestabeleci-dos por um grupo de juristas notáveis. Co-mentando sobre a função dos mecanismosde uniformização da jurisprudência, assimse manifestou Barbosa MOREIRA: “Não setrata, nem seria concebível que se tratasse, deimpor aos órgãos judicantes uma camisa-de-força, que lhes tolhesse o movimento em dire-ção a novas maneiras de entender as regrasjurídicas, sempre que a anteriormente adota-

da já não corresponda às necessidades cam-biantes do convívio social”(1974, p. 12).

Antes da CF/88, a ação avocatória40 cons-tituía outro mecanismo de realização dessecerceamento institucionalizado, que, feliz-mente, não se manteve na Carta atual. Apropósito, observe-se que o Direito norte-americano prevê esse instituto, como nosinforma Maria do Carmo REIS: “A SupremaCorte pode avocar processos, de ofício ou apedido das partes, considerando a impor-tância do caso, oriundos da Corte de Apela-ção; mas só pode avocar diretamente do pri-meiro grau de jurisdição quando se tratarde processo penal com condenação à penade morte, para suspender sua execu-ção”(1996, p. 237-241). Na prática brasilei-ra, significava o cancelamento do duplo graude jurisdição, nos casos que previa, e confe-ria ao STF o superpoder jurídico de centrali-zar, em detrimento de qualquer outro Juízo,as decisões que julgasse relevantes.

(a)- O ato de decidir é a essência da atividadejurisdicional. A cada caso que lhe é submeti-do, o Juiz decide quem está protegido pelaordem jurídica. Não fossem as peculiarida-des dos casos concretos, seria muito maiscômodo e racional estabelecerem-se fórmu-las de solução, algoritmos jurídicos que re-solveriam todo um conjunto de problemasiguais. Esse, porém, é o terreno da Matemá-tica, não do Direito. Na verdade, os casosnão se repetem de maneira absoluta, embo-ra possam apresentar semelhanças substan-ciais. As múltiplas facetas de cada realida-de pessoal e de cada situação relacionalimpedem padronizações definitivas. Embo-ra as fórmulas legais sejam modelos simpli-ficados das realidades juridicizadas41, nãose pode pretender que tais paradigmas nor-mativos sejam mais do que estruturas42 dedecisão. A estrutura serve de sustentaçãopara a obra jurídica, mas ela própria não é aobra toda. Como um escultor, o operador doDireito deve modelar sua obra individualsobre a estrutura que lhe é fornecida pelosistema. A partir da estrutura normativa eprincipiológica disponível, o Juiz modelará

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na sentença a solução para o caso individu-al, que, por isso mesmo, só servirá para aque-le caso. Modelar previamente uma soluçãojurídica geral equivaleria a confeccionar lu-vas a partir de um único molde, pretenden-do que servissem para todos os tamanhos eformatos de mãos. Juiz só poderá fazer Jus-tiça quando sua sentença servir para o casoconcreto como uma luva adequadamenteconfeccionada, sem folgas ou apertos.

No sistema atual, as súmulas deveriamservir apenas como modelos recomendados43,não obstante tenham de fato alcançado sta-tus bem superior44. Em princípio, o Juiz estálivre para utilizar o modelo ou não. Se con-siderá-lo adequado ao caso sub judice, pode-rá valer-se do standard apresentado comomecanismo racionalizador. Se, contudo,encontrar nele qualquer inadequação, estáautorizado a afastá-lo, devendo, então, mo-delar de per si outra solução individual.

Na hipótese de estar vinculado ao para-digma decisório idealizado pela propostade súmulas que aqui se discute, não pode-rá, porém, elaborar a solução individual.Nesse caso, restará ao Juiz apenas a funçãoretransmissora, meramente técnica, de apli-cador ou porta-voz da solução alheia, emi-tida por quem não conhecia — e nem pode-ria conhecer — as peculiaridades do caso.

(b)- Para CANOTILHO (1998, p. 942-955),o poder constituinte derivado encontra vá-rios limites para seu exercício45.

Como limites inferiores, define o Profes-sor coimbrão aquelas matérias que não po-dem ser incluídas no texto constitucionalpelo poder revisor. Como limites superiores,aquelas que, integrantes do corpus constitu-cional, dele não podem ser retiradas oumodificadas por esse mesmo poder. Salien-ta, porém, a inexistência a priori de uma re-serva de matéria constitucional, que obrigato-riamente deva ser plasmada sob a formaconstitucional.

Observe-se, a propósito, que o ilustre Pro-fessor lusitano parece, aqui, discrepar doentendimento clássico de Lassalle (1998),que identifica duas espécies de matéria: uma

constitucional, outra legislativa. “Qual adiferença entre uma Constituição e umalei?” (...) — pergunta Lassale. “Ambas, a leie a Constituição,” — explica — “têm, evi-dentemente, uma essência genérica co-mum.” (...)“Entre os dois conceitos não exis-tem somente afinidades; há também desse-melhanças.” (p. 23). Embora sem enunciá-lo objetivamente, sustenta que a matériaconstitucional própria diferencia-se por nãoser de Direito (jurídica), mas sim matériarelativa ao poder (p. 53), sendo, portanto,imediatamente política.

Vai no mesmo sentido a lição de Hesse(1991): “Questões constitucionais não são,originariamente, questões jurídicas, massim questões políticas.” (p. 9). Ensina aindao Professor alemão que a Constituição trans-forma-se em força ativa se existir, na consci-ência geral, a disposição de orientar a pró-pria conduta segundo a ordem nela estabe-lecida. Porém, “a norma constitucional nãotem existência autônoma em face da reali-dade.” (p. 14). A Constituição, acrescenta,“deve limitar-se, se possível, ao estabeleci-mento de alguns poucos princípios funda-mentais”, cujo conteúdo possa ser desen-volvido pela legislação infraconstitucional(p. 21). E acrescenta (p. 22): “Cada reformaconstitucional expressa a idéia de que, efe-tiva ou aparentemente, atribui-se maior va-lor às exigências de índole fática do que àordem normativa vigente”.

Alguns limites podem ser expressos —quando articulados no próprio texto —, ou-tros implícitos — quando dedutíveis do tex-to constitucional; outros há, por fim, “ima-nentes numa ordem de valores pré-positi-va, vinculativa da ordem constitucionalconcreta”(CANOTILHO, 1998, p. 943) 46.Estes últimos são os limites tácitos.

No § 4º do art. 60, a CF estipula expres-samente alguns limites ao poder constitu-inte derivado, consagrando as chamadas“cláusulas pétreas”. Nenhuma emenda po-derá remover ou modificar (limite superiorexpresso) ou ainda incluir (limite inferiorexpresso) qualquer dispositivo que, mesmo

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remotamente, tenda a abolir qualquer dosquatro limites ali declarados.

A independência judicial é um princípioconstitucional implícito. Em sua concepçãoexterna, decorre do princípio da separaçãodas funções do Estado, concretizado no art.2º da Carta, já que é evidentemente incom-patível com esse princípio a ação prejudici-al entre os Poderes. É igualmente dedutíveldas garantias previstas no art. 95, uma vezque todas, em última análise, são formas desua concretização.

Por outro lado, numa concepção interna, aindependência do Juiz constitui princípioconstitucional tácito. Dispensando expres-são formal, vincula o legislador constituin-te e configura, assim, parâmetro supraposi-tivo inafastável. No Direito brasileiro, sobre-paira a toda legislação infraconstitucional,em especial às normas processuais, que sem-pre se referem individualmente ao Juiz e, emnenhum momento, admitem mecanismosque possibilitem a interferência interna so-bre a atividade judicial. O Direito objetivoinquina mesmo de nulidade a sentença quefor dada com infringência desse princípio,e, em certas hipóteses (prevaricação, concus-são ou corrupção do Juiz), o fato poderá con-figurar crime47.

A prevaricação é crime que consiste emação denunciadora de infração ao princí-pio da imparcialidade judicial (cfr. CP, art.319). A concussão e a corrupção, todavia,consistem em atos contrários ao princípioda independência.

A concussão é aqui concebida como ato deJuiz sem jurisdição sobre a causa decidenda,que, valendo-se de sua condição funcional,busca influenciar indevidamente a decisãodo Juiz da lide (CP, art. 316 - “Exigir, para siou para outrem, direta ou indiretamente, ain-da que fora da função ou antes de assumi-la,mas em razão dela, vantagem indevida”).

Quanto à corrupção, pode manifestar-seem duas modalidades: ativa ou passiva. Se oJuiz da lide se corrompe (solicita ou recebevantagem indevida), compromete volunta-riamente sua independência, assumindo,

desde então, a condição de interessado (em-bora por motivo ilícito) na decisão. O crimede corrupção passiva, portanto, comprome-te sucessivamente os princípios da indepen-dência e da imparcialidade judiciais (cfr. CP,art. 317). Todavia, na hipótese de a vanta-gem indevida ser oferecida ou prometidapor outro Juiz ao Juiz da lide — ou mesmopor qualquer outra pessoa —, a ação estarásubsumida no tipo penal de corrupção ati-va (cfr. CP, art. 333). Nesse caso, o princípioda independência judicial será seu objetojurídico específico (numa abordagem maisampla do tema, Celso Delmanto, em seuCódigo penal comentado, explica que o objetojurídico do crime de corrupção passiva é aAdministração pública, especialmente a suamoralidade). A propósito, convém observarque, embora reconhecendo a existência deduas correntes doutrinárias — uma restrin-gindo o conceito de “vantagem indevida”apenas àquela de natureza propriamentepatrimonial, outra admitindo-a sob qual-quer forma de benefício ou satisfação dedesejo —, filia-se este trabalho ao segundoentendimento, também sustentado, entreoutros, por Heleno Fragoso e MagalhãesNoronha. Para melhor entendimento, consi-dere-se a seguinte hipótese, meramente teóri-ca: se um Juiz promete vantagem funcionalde qualquer natureza para que o Juiz dacausa a decida numa determinada forma,estará configurada a corrupção ativa inter-na corporis. Se a vantagem for disponibiliza-da por outra pessoa qualquer, a hipóteseserá de corrupção ativa extra corporis. Emambas as situações, porém, o objeto jurídicolesado será o mesmo: a independência judi-cial. A abordagem criminal poderá abran-ger ainda a subsunção ao tipo da “coaçãoirresistível” (CP, art. 22). Se, para direcionarsua decisão, for exercida enérgica coaçãofísica ou moral sobre o Juiz da lide, tambémrestará atingido o princípio da independên-cia judicial e realizado o tipo penal em co-mento48.

A respeito do tema, assim se expressaPontes de MIRANDA:

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“Há prevaricação, concussão ecorrupção. Prevaricação designa inú-meras fraudes em que pode incorrer ojulgador. Não se devem definir a prio-ri. Entre elas (...) o temor de perder ocargo, sob a espada de Dâmocles dos‘poderosos’, a que se referiam as Or-denações [Filipinas], de todos os que,nos momentos de crise moral, alvoro-çam os tribunais sob as medievais co-erções das aposentadorias e das de-missões. (...) Tais sentenças são res-cindíveis; foram frutos do medo, quepode ir à fraude”(1976, p. 219).

Por sua pertinência e lição, reproduzem-se, ainda, as seguintes palavras do insupe-rado Jurista:

“Na Idade Média muito se confun-diram a concussão e a corrupção. Ora,quem abusa da sua qualidade e da suafunção, para haver proveitos ou pro-messa de proveitos, ou por tê-los ha-vido, comete a concussão, não impor-ta de quem venham os proveitos, umavez que há a ligação ao ato de concus-são. O que se exige, na corrupção, é opactum sceleris, seja explícito, seja im-plícito, seja expresso, seja tácito, comose o juiz deu a sentença a favor de Aporque o irmão de A, ou o pai ou osogro de A, tinha de assinar ato depromoção com a escolha, dentre no-mes um dos quais é o do juiz, ou se a Aou a algum parente ou íntimo amigocabia nomear para algum posto o filhodo juiz, ou algum parente”(p. 223-224).

A única via lícita de interferência sobreo processo ou sobre a decisão do Juiz é arecursal, mas essa só se abrirá após o exer-cício da independência do juízo a quo, já quea decisão de primeiro grau é pressupostodo recurso. Trata-se, assim, de função indi-vidual, mesmo quando exercida em orga-nismos coletivos, como os grupos, turmasou câmaras dos tribunais. Ainda nesses or-ganismos, não se admite a interferênciamútua entre os Juízes, devendo a lide serdecidida pelo entendimento individual

majoritário de seus integrantes. A indepen-dência individual, nesses casos, restará pre-servada pela admissão do voto vencido, in-clusive com declaração de seus termos.

Ainda segundo a já mencionada classi-ficação de Canotilho, deve-se entender oprincípio da independência judicial comolimite absoluto49 para a revisão constitucio-nal. Não pode ser superado pelo exercíciodo poder constituinte derivado. Em outraspalavras: o princípio da independência nãopode sofrer relativizações nem agravos viaemendas revisionais. Qualquer emenda quereduza, condicione ou de qualquer formarelativize a realização desse princípio será,portanto, eivada de nulidade ab ovo.

Assim, por restringir, ainda que apenasem determinados casos, a independência deque deve desfrutar o Juiz para o exercício daatividade jurisdicional, é materialmente in-constitucional a proposta de emenda queatribui força vinculante a súmulas jurispru-denciais.

Notas1 Competência, forma, requisitos e procedimen-

tos relativos ao ato normativo (quórum, maiorias,prazos, número de votações, etc.).

2 Ainda: “As leis e as demais regras jurídicas preci-sam ser permitidas pela Constituição. Se o não forem,dir-se-ão contrárias à Constituição, ou por sua feitura, oupor seu conteúdo” (MIRANDA, 1947, p. 172).

3 “Enganar-se-ia, porém, quem julgasse que aConstituição norte-americana está toda contida notexto de 1787 e nos seus 25 aditamentos” (CAE-TANO, 1995, p. 67) – para uma análise mais acu-rada da Carta Política estadunidense, cf. p. 66-91.

4 Para um exame da inconstitucionalidade denormas decorrentes do poder constituinte derivado(emendas), em especial no que se refere às limita-ções ao poder de tributar, cf. Flávio Bauer, NOVELLI(1995, p. 21-57).

5 Nas palavras de Carl Schmitt, política refere-seà esfera de relações amigo-inimigo, de apoio e oposi-ção. A palavra “política” é termo amplo e polissê-mico. Veja-se Sílvio Nazareno COSTA (2002, p. 281-284). Para uma análise mais profunda dessa polis-semia, confira-se ainda Norberto BOBBIO (1997, p.954, 959). Sobre esse tema, mas com enfoque umpouco diverso, veja-se Luiz Flávio GOMES (1997, p.64-66 e 69-79).

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6 Bonavides sustenta que o controle concreto (di-fuso) tem natureza jurídica, já que não retira do sis-tema a lei viciada, e que o controle abstrato (concen-trado) tem natureza política, removendo da ordemnormativa a lei inconstitucional e, portanto, agindocom prejuízo da vontade política do Legislativo(1999, p. 272-280).

7 Ainda: “(...) si examinamos a fondo nuestrospropios principios constructivos dogmáticos, comopor ejemplo los conceptos de ‘derecho’, ‘antijuridi-cidad’, ‘bien jurídico’, etc., nos damos cuenta deque también ellos contienen juicios de valor extrapo-sitivos, que encarnan la ‘relación de inexactitud’ éti-ca en el mismo grado que la explicación a base de lareason.” [grifo nosso] (ESSER, 1961, p. 287).

8 Sobre os mecanismos de compartilhamento ede mútuo controle, veja-se Sílvio Nazareno Costa(2002, p. 278).

9 Esse entendimento está conforme ao de CAM-PILONGO: competências condutoras (=poderes polí-ticos stricto sensu) e competências garantidoras (=po-der judicial) (Cfr. COSTA, 2002, p. 281 e ainda ametáfora das “bolas de bilhar”, de Luhmann).

10 Adin 594-4/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, j.19.02.92: “Por maioria de votos, o Tribunal nãoconheceu da ação direta de inconstitucionalidadepor impugnar súmula jurisprudencial (impossibili-dade jurídica do pedido) e, em conseqüência, julgouprejudicado o requerimento de medida cautelar,vencido o Min. Marco Aurélio, que dela conhecia.Votou o Presidente. Não votou o Min. Célio Borja,por não se achar suficientemente esclarecido, emrazão de estar ausente, ocasionalmente, quando doinício do julgamento”; também ADinAgRMC 899-4/DF, j. 12.7.93. Cfr., ainda, item II, 3. 3, § 16, α,deste trabalho.

11 A respeito, assim se manifestou o Juiz presi-dente da 34ª VT de Belo Horizonte: “No seu con-junto, existem as que não cristalizam a melhor ju-risprudência, destoam de princípios jurídicos atri-tam-se umas com as outras num mesmo repertóriode enunciados, eventualmente confrontam a lei eaté a Constituição e, não obstante, não se invali-dam, nem se sujeitam a controle de legalidade ouconstitucionalidade” (FERREIRA, 1995).

12 Min. Sepúveda Pertence, debate promovidopela CCJ do Senado em 2.4.97; notas taquigráficasgentilmente cedidas pelo Min. Gilmar Mendes.

13 “A súmula não tem força obrigatória; toda-via, se não for observada por Juízes e tribunais, asentença que a contrariou é reformável.” (BUZAID,1985, p. 214).

14 No mesmo sentido, Marcus FERREIRA: “Ocerto é que nestes e noutros anacronismos incorremtambém o direito legislado e as próprias súmulasdos tribunais no sistema atual em que elas, emboranão tenham força impositiva, ainda assim exercemdecisiva influência nos julgamentos das instâncias

inferiores” (1995).15 Sobre os assentos portugueses, cfr. Sílvio

Nazareno Costa. (2002, p. 23-36). Min. SepúlvedaPertence, debate promovido pela CCJ do Senadoem 02.4.97 (notas taquigráficas gentilmente cedi-das pelo Min. Gilmar Mendes).

16 A classificação a seguir é sugerida por LenioStreck, expressamente inspirada em doutrina deTeresa Arruda Alvim (STRECK, 1995, p. 185-237)

17 Ex.: súmula 266/STF: “Não cabe mandadode segurança contra lei em tese”, que tem o mesmoconteúdo do art. 1º da Lei 1.533/51.

18 Ex.: súmula 343/STF: “Não cabe ação resci-sória por ofensa a literal disposição de lei, quandoa decisão rescindenda se tiver baseado em textolegal de interpretação controvertida nos tribunais”,que interpreta o inciso V do art. 485 do CPC.

19 Ex.: súmula 400/STF: “Decisão que deu ra-zoável interpretação à lei, ainda que não seja amelhor, não autoriza recurso extraordinário pelaletra a do art. 101, III, da Constituição Federal”,que teve por objetivo refrear a utilização do recursoextraordinário.

20 Ex.: súmula 554/STF: “O pagamento de che-que emitido sem provisão de fundos, após o recebi-mento da denúncia, não obsta ao prosseguimentoda ação penal”, cuja interpretação a contrario sensu(muito aceita pela doutrina e pela jurisprudência)leva à conclusão de que “se o pagamento do che-que for efetuado antes do oferecimento da denún-cia, será causa extintiva da punibilidade”. Essecorolário da súmula não encontra supedâneo noCódigo Penal, que não confere ao ressarcimento doprejuízo à vítima o efeito de extinguir a punibilida-de do agente. Pode-se opor a essa afirmação, con-tudo, o fato de a possível ilegalidade referir-se àinterpretação da súmula, e não a seu texto in verbis.

Outro exemplo: súmula 228/STF: “Não é pro-visória a execução na pendência de recurso extraor-dinário, ou de agravo destinado a fazê-lo admitir.”Para Teresa Arruda Alvim, essa súmula contraria-va frontalmente os arts. 882, II, e 808, § 1º, ambosdo CPC/1939, “e a doutrina sustentava, majoritaria-mente, tratar-se de ilegalidade, com exceção de Pontes deMiranda (em seus Comentários) e José Frederico Marques(em Instituições).” (PINTO, 1985, p. 225).

Outro exemplo: súmula 521/STF: “O forocompetente para o processo e julgamento dos cri-mes de estelionato, sob a modalidade da emissãodolosa de cheque sem provisão de fundos, é o dolocal onde se deu a recusa do pagamento pelo sa-cado”, que confronta o texto do art. 70 do CPP, emque é estabelecido como competente o foro do lu-gar em que se consumar a infração. O confronto sónão ocorrerá se se entender que o crime em questãoconsuma-se apenas no ato da recusa de pagamen-to pelo banco sacado (vejam-se outras considera-ções em STRECK, 1995, p. 226-229).

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21 A autonomia do Judiciário é princípio consti-tucional previsto no artigo 99: “Ao Poder Judiciá-rio é assegurada autonomia administrativa e fi-nanceira.” Trata-se de uma garantia institucional.

22 Sobre a independência do Juiz, cfr. o item χ3,adiante.

23 Também a instituição do Judiciário pode terinteresses objetivos a proteger. Daí a reserva de com-petência contida no art. 102, I, n , da CF.

24“Aquele que não se situa como terceiro ‘su-pra’ ou ‘inter’ partes, não é juiz” (ZAFFARONI,1995, p. 91).

25 Eugenio Raúl Zaffaroni (1995, páginas men-cionadas no texto) corroborando palavras de J. A.G. Griffith in “Giudici e politica in Inghilterra”, Mila-no, 1980).

26 A Física nos dá um parâmetro interessante,embora um tanto inusitado, para o entendimentodesse conceito. Elemento neutro é aquele que, ele-tricamente equilibrado, não tem carga sobrante —positiva ou negativa. É elemento descarregado, que,por conseguinte, não atrai nem repele os elementospositivos ou negativos. Eletricamente, sua presen-ça física não interfere sobre os demais. Caso fossepositivado, repeliria os de mesma carga e atrairiaos negativos. Mutatis mutandis, o mesmo acontece-ria se fosse carregado negativamente. Se figurásse-mos a relação jurídica como uma relação elétrica,as partes seriam elementos eletricamente carrega-dos (uma seria o positivo, outra o negativo), en-quanto o Juiz seria o elemento que, por não tercarga elétrica (neutralidade), poderia permanecerentre os dois sem modificar, com sua presença, arelação que entre aqueles se mantivesse.

27 Tradução livre do seguinte texto: “The dis-tinction between ‘policy-making’ and ‘administra-tion’ is only relative. Nor can we assume that thecivil servant — or judge, general or policeman — isentirely ‘neutral’ in his interests and goals. He willhave views of what is good for society, not to men-tion the usual motives of ambition and self-inte-rest. As he uses his power to give concrete form tothe policies of his government, his purposes — bro-ad or narrow, orthodox or heretical — will influencehis action. The patterns of power and interest areaspects of the decision process at all stages.” (BEER;ULAM; WAHL, 1964, p. 60).

28 Cfr. outras considerações em Sílvio NazarenoCosta (2002, p. 56 et seq.).

29 A Justiça alemã tem recrudecido as puniçõesa grupos neonazistas, que se encontram em francocrescimento naquele país. O endurecimento estataljá havia sido anunciado pelo Executivo germânico.Em fins de agosto/2000, um jovem alemão foicondenado à prisão perpétua, acusado de ter ma-tado por espancamento um moçambicano no dia11/6/2000. Comentando a condenação, o Chance-ler alemão, Gerhard Schroeder, disse que o castigo

“deixa claro para a opinião pública a forma comopretendemos enfrentar este problema.”. O Juiz quepronunciou a sentença pediu que o fenômeno doracismo na Alemanha não fosse subestimado e sa-lientou que, de 1999 para cá, já ocorreram 28 víti-mas fatais por esse tipo de violência e pelos gruposneonazistas naquele país (Correio do Povo, Porto Ale-gre, p. 10, 31 ago. 2000).

30 “As investigações realizadas sob a direcçãode Renato Treves [na Itália] obrigam a uma revisãoradical do mito do apoliticismo da função judiciale revelam haver grandes tendências ideológicas nosolo da magistratura italiana. (...) Todos esses es-tudos têm vindo a chamar a atenção para um pon-to tradicionalmente neglicenciado: a importânciacrucial dos sistemas de formação e de recrutamentodos magistrados e a necessidade urgente de os dotarde conhecimentos culturais, sociológicos e económi-cos que os esclareçam sobre as suas próprias opçõespessoais e sobre o significado político do corpo pro-fissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitudede prudente vigilância pessoal no exercício das suasfunções numa sociedade cada vez mais complexa edinâmica” (SANTOS, 1999, p. 173 - 174).

31 [grifo nosso] CARRION, Eduardo KroeffMachado; SARLET, Ingo Wolfgang & ANTUNES,Marcus Vinícius Martins. Comissão ad hoc nomea-da pelo IARGS. Parecer Sobre a Constitucionalida-de da Lei 9.868/99, 18.5.2000, item 3.2.

32 CF, art. 101; art. 104, par. único; art. 111, § 1º(aqui, o requisito é implícito); art. 119, II; art. 123,I. A Constituição do Império, de 1824, estipulava queo Supremo Tribunal de Justiça seria composto dequinze “Juizes letrados, tirados das Relações porsuas antiguidades” (art. 163). A primeira Carta re-publicana, de 1891, foi também a primeira a utilizara denominação Supremo Tribunal Federal, e previaque os — ainda quinze — Ministros do STF seriamnomeados dentre “cidadãos de notavel saber e re-putação, elegíveis para o Senado” (art. 56). Com aCarta de 1934 , o Supremo passou a denominar-seCorte Suprema, reduzindo-se para onze o númerode Ministros (permitido aumento até dezesseis,mediante lei). Passou a estabelecer-se o requisitode “notavel saber juridico e reputação ilibada”,agregando-se ainda como condição para as nome-ações a aprovação prévia do Senado (art. 74). AConstituição getuliana, de 1937, retomou a denomi-nação de 1891 (STF), mas conservou o número deMinistros e os requisitos estabelecidos na Carta de1934 (art. 98). Assim também a “Constituição De-mocrática”, de 1946 (art. 99), a militar de 1967 (art.113, § 1º), a também militar de 1969 (art. 113, § 1º)e a “Constituição Cidadã”, de 1988 (art. 101, caput).Vê-se, pois, que o saber técnico (jurídico) é requisi-to essencial para a nomeação de Ministros do STFdesde 1934. Até então, a exigência era genérica, de

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saber notável, abrangendo, a fortiori , qualquer áreae todas as áreas do conhecimento humano.

33 “(...) esse notável saber jurídico deverá ficarcomprovado objetivamente e, para tanto, faz-se ne-cessário, em geral, certo tempo para que esse saberfique demonstrado. Resultará da publicação deponderável obra jurídica, do exercício da funçãojudicante em outros tribunais, da função docente,de trabalhos jurídicos na área das consultorias oudo Ministério Público, ou quiçá, na advocacia.”(SOUZA, 1998, p. 149).

34 CF/88, art. 95, I, II e III.35 CF/88, art. 95, par. único, II. Embora o texto

não o diga – e mesmo devido a essa omissão –, deve-se interpretar que a vedação se estende a quaisquerprocessos, não apenas aos que lhe são submetidos.

36 A vedação constitucional brasileira seria ade-quadamente interpretada se entendida no sentidoda partidarização ativa, permitindo-se ao Juiz, po-rém, a mera declaração formal de simpatia partidá-ria. Nesse caso, todavia, a suspeição sempre pode-ria vir a ser argüida (CPC, art. 135, V ou par. único).

37 CF, art. 84, XIV, XVI.38 Vejam-se, por exemplo, os assentos, adotados

no Brasil em 1875 (cf. COSTA, 2002, p. 23-36 e181-190). Em comentários à proposta, Paulo Me-dina assim se manifesta: “Anos atrás, quando oproblema da dispersão da jurisprudência ainda nãose acentuara, o Prof. Haroldo Valladão, ao elaboraro projeto de Lei Geral de Aplicação das NormasJurídicas, procurou atribuir eficácia cogente às de-cisões do Supremo Tribunal Federal sempre quereiteradas em três acórdãos, por maioria absoluta,de forma que os tribunais e juízes passassem aobservar a decisão assim estabelecida ‘enquantonão modificada segundo o mesmo processo, oupor disposição constitucional ou legal superveni-ente’” (MEDINA, 1996, p. 585).

39 “O magistrado não tem superiores, dos quaispossa receber ordens e instruções para o julgamen-to das causas que lhe estão sujeitas.” (GARCIA,1996, p. 40-47). No índice por assuntos, cfr. aindao verbete “Hierarquia Judiciária”.

40 CF/69, art. 119, I, o, com a redação dada pelaEC 7/77: “Compete ao Supremo Tribunal Federal:I) Processar e julgar originariamente: o) as causasprocessadas perante quaisquer juízos ou tribunais,cuja avocação deferir, a pedido do Procurador-Geralda República, quando decorrer imediato perigo degrave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou àsfinanças públicas, para que se suspendam os efei-tos de decisão proferida e para que o conhecimentointegral da lide lhe seja devolvido.”

41 “O tipo constituído é uma simplificação doconcreto”, explica REALE JÚNIOR, valendo-se depalavras de Mackinney (2000, p. 37)

42 Estrutura consiste em um “sistema integra-do, de modo que a mudança produzida em um

elemento provoca uma mudança nos outros ele-mentos” (BASTIDE, apud REALE JÚNIOR, 2000,p. 37). “A estrutura normativa não brota de elucu-bração do legislador, mas nasce de uma tensão pró-pria da tarefa de, a partir do real, do concreto, for-mular um paradigma, um modelo de ações previ-síveis” (REALE JÚNIOR, 2000, p. 37).

43 “Contrariedade a súmula do STF não é fun-damento para a propositura de ação rescisória combase no inc. V do art. 485 do CPC.” (AR nº 1.049-3/GO, rel. Min. Moreira Alves, j. 09.02.83, DJ de27.5.83, p. 7532, cit. por PAULA, Alexandre de.CPC Anotado, p. 1640, v. II).

44 Cfr. notas aos subitens β2 e β3, supra.45 São arroladas as seguintes modalidades de

limites materais ao poder revisional: limites superi-ores, inferiores, expressos, tácitos, absolutos e rela-tivos. A idéia de Canotilho poderia ser representa-da por uma metáfora: a reforma de uma casa (aCF), na qual há duas portas: uma de entrada, umade saída. Nessa metáfora, limites inferiores são aporta de entrada, que regula o ingresso de matérias.Limites superiores são a porta de saída, que regula aexclusão de matérias.

46 Também reconhecendo uma suprapositivi-dade vinculativa do legislador constituinte, cfr.BACHOF: “Há princípios constitucionais tão ele-mentares, e expressão tão evidente de um direitoanterior mesmo à Constituição, que obrigam o pró-prio legislador constitucional e que, por infracçãodeles, outras disposições da Constituição sem amesma dignidade podem ser nulas...” (1994, p. 23).

47 CPC, art. 485 - “A sentença de mérito transi-tada em julgado, pode ser rescindida quando: I) severificar que foi dada por prevaricação, concussãoou corrupção do juiz; (...)” (Cfr., ainda, CC, art.145, V). Trata-se, aqui, do princípio da indepen-dência em suas duas concepções, interna e externa.

48 Exemplo: ameaçar com a demissão de pes-soa das relações íntimas do Juiz do processo, pes-soa essa que ocupa cargo público em comissão,caso a sentença não seja dada em favor dos interes-ses do agente coator. Outro exemplo: Um Juiz, ten-do sob sua jurisdição processo envolvendo vultosarepercussão econômica ou moral contra pessoa dasíntimas relações de outro Juiz, ameaça este últimocom a condenação exacerbada daquela terceira pes-soa, caso um outro processo, que se encontra sob ojulgamento do magistrado coagido, não seja deci-dido segundo os interesses do coator.

49 Limites absolutos, explica o Professor de Co-imbra, são “todos os limites da constituição que nãopodem ser superados pelo exercício de um poder de revi-são”. De outro lado, consideram-se relativos “aqueleslimites que se destinam a condicionar o exercício do poderde revisão, mas não a impedir a modificabilidade dasnormas constitucionais, desde que cumpridas as condi-ções agravadas estabelecidas por esses limites” (CANO-

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1. Introdução

Em sentido mais abrangente, queremosconsiderar, com o título acima, o verdadeirocontinente Eurasiano (parte na Europa eparte na Ásia), que constituiu o antigo Im-pério Russo e depois a União Soviética, atra-vessando no momento um período de de-mocratização1, ainda com certas indefini-ções, naturais de uma grande mudança po-lítica. Também estamos incluindo nas con-siderações as Repúblicas que se tornaramindependentes com a dissolução da UniãoSoviética e passaram a constituir a CEI (Co-munidade dos Estados Independentes), comexceção, naturalmente, dos Países Bálticos(Lituânia, Letônia e Estônia).

Os povos que habitam esse imenso terri-tório constituem mais de 170 subgrupos ét-nicos (dos quais conseguimos localizar maisde uma centena) e têm vivido uma odisséiade migrações, invasões, massacres, servi-dão, conquistas, sofrimentos, revoluções eguerras. Embora Tolstoi tenha expressadoem Guerra e paz2 que “descrever exatamentea vida, não somente da humanidade, masde um simples povo, parece impossível”,vamos tentar dar uma impressão geral des-se colosso territorial e dos povos que mais

Rússia - 1ª parteOrigem e formação de um império

Hugo Hortêncio de Aguiar

Hugo Hortêncio de Aguiar é militar refor-mado e professor de línguas e culturas do Orien-te Médio e das ex-Repúblicas Soviéticas.

Sumário1. Introdução. 2. Cenário. 3. Resumo histó-

rico. 4. Os personagens. 5. Comentários con-clusivos sobre os períodos.

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diretamente participaram e continuam aparticipar do drama medonho e apaixona-do que tem sido a história da Rússia.

Por ser a matéria vasta, não podendo sercontida num só artigo, dividimos o tema emtrês partes, sendo este artigo a primeira, comas indicações humanas, geográficas e his-tóricas respectivamente necessárias para aidentificação dos atores, cenários e fatoscompatíveis com esse drama.

Como os leitores já perceberam pelo arti-go anterior, ”Israel – Estado e religião”(RILn. 153), procuramos sempre evitar disserta-ções monótonas, facilmente encontradas empublicações sobre o assunto. Tentamos fo-calizar aspectos especiais e, mesmo, curio-sos, que somente o domínio do idioma e oconhecimento pessoal da área podem cap-tar. Também procuramos, sempre que háespaço, fazer uma correlação entre os pode-res formadores da estrutura de uma naçãoestudada, evitando, como norma, avaliaçõespessoais, projetando somente os enfoques his-tóricos tradicionalmente aceitos como com-provados.

Assim, no final desta primeira parte, fa-zemos um superficial comentário sobre a le-gislação na Rússia tsarista, mas com exem-plos curiosos sobre a aplicação e a obser-vância dessa legislação. Na segunda parte,“A Revolução Comunista e os seus Líderes”,os próprios leitores tirarão as conclusõesquanto à incoerência na aplicação das leis eà falta de tradição de um órgão legislativo.Na terceira parte, “Estrutura Político-Admi-nistrativa-Conclusão”, então será apresen-tado o quadro geral do Sistema de Governoda Ex-URSS, a correlação de poderes e as di-ficuldades imensas que a democratização daRússia vai enfrentar por muitos anos ainda.

2. Cenário

Nas considerações seguintes, estamos le-vando em conta os territórios acrescidos coma formação da Ex-URSS (União das Repú-blicas Socialistas Soviéticas) ou desmembra-dos com a sua dissolução em 1991, pois es-

tamos seguindo o conceito expresso na In-trodução. Em qualquer das alternativas, aRússia é o país mais extenso do globo. Com-preende 11 fusos horários, desde o Estreitode Bering, a Leste, até o limite com a Estô-nia, a Oeste, isto é, quase metade dos 24 fu-sos horários do globo terrestre.

Quanto à latitude, estende-se desde o pa-ralelo 45° Norte até o Oceano Glacial Árti-co, o que vai trazer muitas implicações cli-máticas. Só estamos apresentando dadosque se traduzam em conseqüências práti-cas significativas.

Assim, já podemos focalizar um quadrocurioso: se embarcarmos num avião de gran-de porte, em Petropavlovsk (um grande ae-roporto na Península Kamtchaka, no Marde Bering), às 7 horas da manhã e viajarmospara Moscou, diretamente ou com uma es-cala no máximo, chegaremos à Capital maisou menos às 6 horas da manhã, quer dizer,uma hora antes da partida, depois de uma via-gem de oito horas de duração e de mais de6.000 Km de distância. Vamos tomar café denovo em Moscou, mas só o cafezinho, pois jános serviram o desjejum e o almoço a bordodo avião. Entre as duas cidades, há umadiferença de nove fusos horários ou novehoras. Sobre enormes distâncias e áreas nãofalaremos mais no momento. Com a idéiade dar uma certa ordenação no trabalho e,principalmente, para não esquecermos por-menores imprescindíveis na apreciação docenário, vamos seguir a ordem tradicionalno estudo dos fatores fisiográficos, mas como cuidado de abordar só os pontos interes-santes.

Em face de sua imensa área, que chegoua ser aproximadamente três vezes a do Bra-sil, quando União Soviética, a Rússia é umpaís de altitudes modestas. As montanhasestão situadas ao Sul, a maioria nos territó-rios das Repúblicas da Ásia Central e nosMontes Altai, onde as altitudes chegam aultrapassar 4.000 m. Fora isso, somente al-guns picos no Cáucasso, nos Cárpatos e naSibéria Oriental atingem altitudes médias.Em contrapartida, o restante do território é

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planície ou “plateau”, recebendo sem ne-nhum anteparo a influência de todos os fa-tores que favorecem o frio, provenientes doGlacial Ártico e, mesmo, do Pólo Norte, taiscomo ventos, reflexos das correntes maríti-mas, pressões atmosféricas, etc. As únicaselevações que poderiam barrar esses fatoresseriam os Montes Urais, pela sua forma decadeia de montanhas. Eles dividem geogra-ficamente a Rússia Européia da Sibéria, masnão são muito altos e, principalmente, estãodispostos no sentido Sul-Norte, perpendi-cularmente à direção predominante dos ven-tos do Norte.

Desse modo, podemos dizer que a Rús-sia é uma imensa planície fria, e agora jácompreendemos por que lugares em latitu-des não muito polares são muito frios. A lati-tude é o fator mais importante na avaliaçãoda temperatura do ar, mas não é o único.

Uma área tão vasta teria de ser cortadapor caudalosos rios e apresentar uma den-sa rede fluvial. E isso é verdade: aproxima-damente 400.000 Km. Os rios possuem umaapreciável capacidade de geração de ener-gia hidrelétrica. Apresentam, contudo, duasdeficiências sensíveis: a primeira é gelaremdurante três ou quatro meses no inverno; asegunda é a poluição. Com exceção do Vol-ga, que desemboca no Mar Cáspio, os ou-tros três maiores rios, o Obi, o Ienissei e oLena, na parte asiática, cujas águas desá-guam no Glacial Ártico, freqüentementeapresentam em seus estuários níveis de po-luição elevadíssimos, e o que é pior, sem re-versibilidade em curto prazo. Quando issoacontece, tudo fica parado, e os efeitos ne-gativos são severos no clima e na vegetação.Essa navegabilidade restrita a certos perío-dos do ano e a disposição transversal dosgrandes cursos d’água não favoreceram aconquista da Sibéria. A construção da ferro-via Transiberiana, assimilando a região deVladivostok, foi uma necessidade para so-lução de vários fatores. Quanto a lagos, aRússia é privilegiada. Possui muitos comoo Ládoga, o Ônega, o Balcash e o Baical, sen-do este último considerado uma das mara-

vilhas do mundo. Até o Mar Cáspio, porsuas características, é considerado o lagode maior superfície do globo.

Com relação a oceanos e mares, a ima-gem é outra. As considerações que vamosfazer seriam mais apreciadas no período da“guerra fria”, não temos dúvida. Porém,como a cultura não tem idade nem oportu-nidade, é sempre bom sabermos as razõesque motivaram atitudes passadas na histó-ria das nações. Além disso, este estudo fa-vorece a memorização porque está motivadoe, o que é melhor, traz mais uma dose de “knowhow” na análise de outros cenários estratégi-cos, alertando para que nem todos os elemen-tos da política internacional são publicadosna imprensa comum e que o julgamento deuma situação aparente pode ser errôneo.

Realmente, os “mares quentes”3 que aRússia possui são todos “confinados”, comexceção do Mar de Okhotsk, entre a Ilha deSacalina e a Península de Kamtchaka. Mes-mo assim, a saída é pelas Ilhas Kurilas, ou-trora pertencentes ao Japão e quase todas ocu-padas pela União Soviética após a 2ª GuerraMundial. Quanto aos outros mares, vejamos:

A Esquadra Russa em Vladivostok, gran-de base naval no Oriente, não poderia sairpelo Sul e pelo Nordeste, porque teria queatravessar o estreito da Coréia, entre a Co-réia do Sul e o Japão, e os estreitos de Tsuga-ru e de la Perouse, controlados pelo Japão.O único caminho marítimo para os “maresquentes” do Oceano Pacífico é pelo Mar doJapão, o estreito dos Tártaros (entre a ilhaSacalina e o continente asiático), o Mar deOkhotsk e as passagens das Ilhas Kurilas.Essa volta enorme para o Pacífico resultanum acréscimo de mais de 2.000 Km, e daí aimportância das Ilhas Kurilas para a Rús-sia. Há outras razões para a disputa, mas aprincipal é a apontada acima.

A Esquadra do Mar Negro também esta-ria confinada pelos estreitos de Bósforo eDardanelos, controlados pela Turquia, queestá numa posição geográfica privilegiada,de alto valor estratégico, entre os Balcãs, aRússia e o Oriente Médio, explicando isso

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muitas guerras passadas e o “peso” de seusrepresentantes na mesa de negociação in-ternacional.

No Mar Báltico, a Esquadra Russa de SãoPetersburgo (na época da hipótese: Lenin-grado) também não poderia sair, pois teriaque enfrentar os estreitos de Kattegat, entrea Dinamarca e a Suécia, e o estreito de Sca-gerrak, entre a Dinamarca e a Noruega.

Então, só restaria o Oceano Glacial Árti-co, com sua saída pelo Mar de Barents, como porto de Murmansk aberto à navegação oano inteiro. Essa condição de degelo é devi-da à corrente do Golfo do México, que, so-mada às correntes quentes do AtlânticoNorte, mantém o Mar de Barents quase sem-pre em condições de navegabilidade4.

Isso joga com o conhecimento já existen-te sobre um corredor submarino por aque-les mares, não sendo o acidente noticiadocom o submarino nuclear russo o único ocor-rido. Há um outro caminho para os “maresquentes”. É percorrido abaixo da superfíciedo Oceano Glacial Ártico, cruzando o PóloNorte até atingir o estreito de Bering, pas-sando ao Pacífico. Esse percurso correspon-de a mais ou menos 9.000 Km se utilizada arota marítima já balizada. Com tempo bom,uma Força-Tarefa naval5 levaria no mínimouma semana para atingir aquele Oceano,partindo das proximidades de Murmansk.Para a navegação de cabotagem, de peque-nos barcos, margeando o litoral, o percursoé de mais de 30.000 Km, tal o número debaías e enseadas. Por conseguinte, a traves-sia do Glacial Ártico sempre foi um proble-ma e, com relação a “mares quentes”, asituação da Rússia não é nada invejável.

O clima sempre foi o maior inimigo dosexércitos que invadiram a Rússia. Napoleãoe Hitler que o digam. Quando abordamos aorografia, ressaltamos as causas de tão bai-xas temperaturas, particularmente na Sibé-ria. Porém há regiões do país onde o clima ésubtropical e há, mesmo, áreas de clima tór-rido. Tomemos um exemplo para cada ex-tremo: Na Sibéria, há uma república autô-noma chamada de Iakútia, cuja temperatu-

ra atinge níveis mais baixos que no PóloNorte. No inverno, o termômetro chega amarcar 70° abaixo de zero. O ar da respira-ção humana, quando expelido, transforma-se imediatamente em vapor de gelo. Por ou-tro lado, na Turcomênia, agora uma repú-blica independente, no deserto de Karakum6,já foi registrada a temperatura de 51° à som-bra, porque ao sol os termômetros não fun-cionam normalmente, tal o calor.

Todavia, de um modo geral, a Rússia émuito fria e o efeito é grande sobre as vesti-mentas. Na parte asiática, na Sibéria, no in-verno, não adianta querermos enfrentar anatureza com casacos de lã “adquiridos emFoz do Iguaçu”. Eles têm que ser de peles deanimais. A argumentação é simples: se nãousarmos, morreremos de frio. Os ambienta-listas, porém, podem ficar descansados. Oproblema sempre foi tratado, na Rússia, emqualquer sistema de governo, com muita se-riedade.

Com relação à exploração da vegetaçãodo território, e diferentemente das estepesdo Oeste, extremamente férteis e viáveis eco-nomicamente, há, no lado asiático, duas di-ficuldades importantes a considerar. Primei-ro, a dificuldade de recuperação das árvo-res adultas, na floresta Norte-Siberiana, co-nhecida como “Taigá”, por causa do frio edas condições poluentes. Certas espécies,quando cortadas próximas ao solo, levamum século para a recuperação do porte an-terior. Segundo, um monitoramento da ri-queza da fauna, na região mais para o Sul eo Leste, esta de vegetação menos densa, per-meável, tendendo para a savana e a estepe,onde proliferam animais como o tigre deAmur – o maior felino da terra, maior doque o leão – e o urso pardo. Maior riquezaainda vê-se nas margens do lago Baical,onde a vegetação ciliar abriga martas zibe-linas, lontras, raposas azuis, todos essesanimais de pele raríssima. Todas essas es-pécies são criadas em cativeiro para repro-dução e comércio, e a sua caça é controla-díssima. Não há espécies em extinção, a nãoser o tigre por motivo de desmatamento7.

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Embora a floresta do Norte da Rússia, doMar Báltico até o estreito de Bering, seja amaior do globo, não é tão densa e rica deoxigênio como a Amazônia ou a Mata Atlân-tica brasileiras, e o crescimento anual demadeira na Sibéria é muito mais lento quenos países tropicais. A vegetação, na Sibé-ria, não somente a floresta mas também atundra, que é rasteira, é muito vulnerável.

3. Resumo histórico

Os primeiros habitantes da Rússia nãosão muito antigos. Não estamos nos referin-do ao hipotético tronco comum Indo-Euro-peu, desdobrado em dois ramos étnicos: odo Leste, o Indo-Ariano, e outro do Oeste,que abrigava o nosso conhecido grupo Lati-no. Falamos dos Eslavos, ponta dos Aria-nos, que já habitavam há vários séculos asregiões próximas do Mar Negro e só maistarde se dispersaram pelos Cárpatos; paraOeste, formando, no futuro, as nações Tche-co-Eslováquia e Polônia; para o Sul, deramorigem a Sérvios, Croatas, Macedônios,Montenegrinos e Búlgaros. Entretanto, paraLeste, a fixação dos russos só se realizou lápelos 400-500 AD, pelas margens do Dnie-per e foram grupados em três blocos distin-tos: “Ucranianos”, “Belorrussos” e “Rus-sos” propriamente ditos.

A área invadida teve como centro umacidade que tomou o nome de Kiev, e o terri-tório ao redor foi chamado Rus, origem de umEstado a que se chamou Rússia Kieviana.

A situação geográfica do território, entreo Ocidente, o Oriente e o Império Bizantinoao Sul, como entreposto comercial entre ume outro lado do mundo, favoreceu o cresci-mento de Kiev com tal intensidade que pres-sionou a expansão de contingentes huma-nos para o Noroeste e o Norte, com centrospopulacionais surgindo para a formaçãodas futuras Ucrânia e Bielo-Rússia8, estaúltima mais próxima do Mar Báltico, migra-ção essa acelerada com a invasão mongol.

O esplendor Kieviano desmoronou-sepor várias razões: 1 – destruição do Império

Bizantino pelos Cruzados (1204 AD); 2 – sur-gimento de uma nova rota comercial porVeneza; 3 – invasão tártara lá pelos 1218-1219 AD, decisiva para a decadência daRússia Kieviana.

Os Russos do subgrupo mais de Leste,que depois se deram o título de “grandesRussos”, fugiram dos mongóis para as ca-beceiras do Volga, terras férteis, onde foi fun-dada a cidade de Moscou ainda no séculoXII, centro da Rússia Moscovita ou Moscó-via Russi, a princípio entidade étnica, anosdepois também política. Sob o poder de IvanIV, o Terrível, iniciador do tsarismo em 1547,a Rússia passou, como Estado, a se comuni-car com a Europa. Esse monarca, conhecidopor sua crueldade, foi favorecido pela di-nastia dos Príncipes com o nome de Ivan I,II, III, que preparou caminho para o absolu-tismo, repeliu os tártaros e, ao mesmo tem-po, diminuiu o poder da Igreja (Igreja Orto-doxa Russa) e foi minando a influência dosnobres. Foi por essa época que se iniciou aexpansão pela Sibéria. Depois de Ivan IV, oTerrível, a dinastia ainda continuou, até queo país passou por um fase de decadência,ocasião em que atingiu a plenitude o abso-lutismo do então Tsar9, que impunha umaescravidão selvagem.

O domínio mongol já havia terminadoentão, mas alguns traços culturais dessepovo ficaram como modelo, enquanto a Eu-ropa já se preparava para os primeiros ar-rancos do liberalismo.

A Rússia prolongava a Idade Média alémde seu período cronológico e esse estado decoisas só mudou um pouco com a ascensãoao poder de Pedro, o Grande, que foi ummonarca excepcional para o tempo em queviveu e reinou. Ele foi um reformador, con-tudo inspirado pelo lado prussiano do im-perialismo europeu. Dominado pela idéiade ocidentalização, transferiu a capital deMoscou para São Petersburgo (Cidade deSão Pedro) em 1721 AD. O que tornou Pe-dro, o Grande, um exemplo para os gover-nantes russos – dizem que até para Stalin –,foi a organização do Exército Imperial, em

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moldes inéditos até então. Os critérios ado-tados foram: 1 – obrigatoriedade do serviçomilitar para todas as classes; 2 – disciplinaadequadamente conduzida; 3 – o civismo eo patriotismo como motivações principais;4 – promoções justas e sem privilégio denascimento; 5 – Escolas de Formação deQuadros (oficiais e sargentos) bastante evo-luídas nos métodos de ensino; e 6 – Cursode estado Maior de fazer inveja a muitos si-milares de países europeus.

Com a fundação de São Petersburgo noinício do século XVIII e sua transformaçãoem capital em 1721, caracterizou-se a faseda Rússia Petersburguense, até a Revoluçãode outubro de 1917.

Esse período foi marcado pela “ociden-talização” da Rússia de Pedro, o Grande,uma verdadeira obsessão para aquele tsar.

Com a transferência de Moscou para SãoPetersburgo, parecia que as coisas iriam to-mar um rumo certo ou organizado. Com amorte de Pedro, o Grande, porém, e a ascen-são ao poder de Paulo I, dos Alexandres I, IIe III, e dos Nicolaus I e II (a sucessão é nou-tra ordem), toda a organização anterior de-sabou. Houve certos episódios que poderiamdar valor bem positivo ao período, quaissejam: 1 – a abolição da servidão com Ale-xandre II; 2 – a retirada de Napoleão Bona-parte, em conseqüência do aliado climático,mas também auxiliado, em não menor esca-la, pelo patriotismo do soldado russo; 3 – aafirmação da Rússia como “potência” eu-ropéia, conceito que foi desfeito pouco tem-po depois, verificada a fragilidade dessanação como um todo.

Mesmo com algumas realizações práti-cas, nada evitou a decadência no século XIX.Poderíamos citar, como exceção, a FerroviaTransiberiana, uma obra de fôlego, realiza-da com as facilidades de material de cons-trução e mão-de-obra barata, porém inicia-da “sob inspiração” do governo alemão.

Quanto às inúmeras desvantagens datransferência da capital para o litoral, va-mos citar as principais: 1 – Tendo adotadoa “filiação” européia, a Rússia Petersbur-

guense passou a assimilar a cultura ociden-tal européia, como as intrigas palacianas,os acordos militares e suas conseqüênciasbélicas10 e, ainda, desajustes com os círcu-los religiosos11; 2 – O tsarismo mais se dis-tanciou do camponês, que foi o eterno pro-blema dos absolutistas. Mesmo com a aboli-ção do trabalho servil em 1861, foi instala-do o regime de “mir”12, que nada mais erado que o embrião do trabalho agrário comu-nitário, muito depois aproveitado por Israelcom sucesso.

Foi pior a “emenda do que o soneto”. Ocamponês, antes miserável e inculto, pas-sou a ser ainda mais explorado pelos repre-sentantes do poder, que, fraudulentamente,dirigiam as cooperativas. Passou, ele, agora“corporativizado” e descontente, a clamarpelos movimentos grevistas, mais de qui-nhentos depois da abolição, tornando-sepresa fácil dos revolucionários, algumasdécadas depois.

Assim, o século XX vai encontrar a Rús-sia numa situação caótica, com o exércitodesintegrado, a população descontente emiserável.

Quanto à organização político-admi-nistrativa, podemos dizer que, apesar dasidéias liberalizantes já em curso no Oesteeuropeu, a Rússia já apresentava “profor-ma” a tradicional contextura dos Poderes einstituições tradicionais, mas para uso ex-terno, quase que um modelo melhorado doperíodo moscovita. Resumindo, essa apa-rente estruturação de tipo liberal não podiater muita consistência política e logo em bre-ve a nação apresentaria a sua fragilidadecomo um todo. A quantidade e a diversifi-cação de órgãos dos Poderes não têm valia,se em detrimento da independência e a qua-lidade de seus representantes.

Por exemplo, a DUMA13 já havia existi-do desde o tempo dos “boiardos”14, mas oprocesso de escolha dos seus representan-tes era autocrático, e as leis dela decorrenteseram destinadas ao benefício dos proprie-tários de terra. A DUMA de Kerenski, a quar-ta instituída por Nicolau II, e que abrigava

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diversas tendências, também não tinha qua-lidade, pois não sabia o que queria, e tam-bém foi dissolvida, dessa vez pelos revolu-cionários de 1917.

4. Os personagens

Estamos considerando como “persona-gens” os inúmeros subgrupos étnicos quehabitavam e ainda habitam o imenso palcomultinacional formado pelo Império Russoe Soviético, mas ressaltaremos apenas osparticipantes mais diretos dos principaisepisódios. Seria impossível fazer referênciaa tantas nacionalidades, mesmo porque, namaioria, são povos de línguas difíceis, comnomes consonantais complicados para lei-tores de línguas latinas, e até povos cujatransliteração mais aproximada tem quatroconsoantes e apenas uma vogal, como osubgrupo Nivkh.

Os russos

Assim sendo, vamos começar natural-mente pelos russos, cujo subgrupo se divi-diu em “ucranianos”, ou “pequenos russos”,os “Belorrussos” ou “russos brancos” e os“Russos de Moscou”, ou “grandes russos”15.

Os Ucranianos habitam a Ucrânia, o paísmais populoso depois da Federação Russa,e seu traço cultural predominante é o nacio-nalismo, que tem acarretado ao país muitosaborrecimentos para com essa Federação. Alíngua falada, o ucraniano, do ramo eslavô-nico, teve o seu alfabeto, cirílico tal qual orusso, modificado do russo padrão desde1200 AD. Essa língua possui uma literaturamuito lendária e pontilhada de heróis. AUcrânia suportou o maior impacto da do-minação mongólica, entretanto Kiev, sua ca-pital, permanece até hoje como um grandecentro cultural e industrial.

Os Russos brancos ou Belorrussos nãotiveram um papel destacado na formaçãodo Estado russo, mas, tratando-se de umsubgrupo, é interessante sabermos que di-reção tomaram. Na fuga ao domínio mongol,preferiram a direção Noroeste e as regiões

próximas do Mar Báltico, onde fundarammuitos centros populacionais e sempre es-tiveram em contato com os poloneses e osbálticos. Ao contrário dos ucranianos, sem-pre foram também tradicionalmente ligadosa Moscou. Sua posição geográfica forçou aparticipação da futura Bielo-Rússia nos in-teresses moscovitas, o que os fez sofrer dire-tamente os efeitos das invasões recíprocasentre Leste e Oeste.

Os Russos de Moscou ou “grandes rus-sos” formaram a atual Rússia e falar deles éimprescindível porque foram os persona-gens presentes em todos os episódios, des-de a sua instalação em Kiev, passando porMoscou, São Petersburgo e, novamente,Moscou. Até agora, em todos os períodos dahistória, o povo russo foi vítima da opres-são. Seu sofrimento já é uma tradição histó-rica. Na Rússia Kieviana, sofreu, desde oinício da instalação, que coincidiu com oinício da Idade Média, uma opressão dosprincipados do Rus, com centro em Kiev,num regime de servidão mais atrasado queo da Europa feudal. Essa situação foi umpouco arrefecida com a chegada dos primei-ros missionários cristãos da Igreja Ortodo-xa, lá pelos anos 800 AD.

Com os russos já em expansão, a inva-são tártara em princípios do século XIIIapressou a fuga para as cabeceiras do Vol-ga, terras férteis, mais distantes do Leste eque ofereciam condições mais adequadaspara uma futura defesa mais efetiva no casode aprofundamento da invasão tártara.

De fato, a previsão fora realizada. Na ba-talha de Kulíkovo, ao Sul de Moscou, o GrãoPríncipe de Moscou, Dmitri Donskói, derro-tou os tártaros e conseguiu uma vitória tãoretumbante que definiu o início da resistên-cia russa à pretensão dos invasores de in-vestir para o Norte.

Todavia, por outro lado, o regime feudalcontinuou em toda a sua plenitude, só per-dendo sua prepotência para o absolutismomonárquico.

O Russo de Moscou, ou “grande” russo,nessa época, já podia ser caracterizado por

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um perfil psicossocial assim definido: 1 – sub-misso, mecanicamente disciplinado por umpoder central cada vez mais absolutista;2 – místico, em função das enormes áreas, danatureza pujante com todos os seus aspec-tos fisiográficos, tais como neve, rios, mon-tanhas, lagos, florestas, climas extremados,proporcionando ambiente favorável para acriação de fantasias, lendas 16, entidadessobrenaturais, isso tudo atuando fortemen-te sobre os traços culturais. Outro fator in-fluente foi a herança mística dos antepassa-dos, tendo como elo a chancela religiosa deIgreja Ortodoxa Russa; 3 – sentimental, devi-do, talvez, ao sofrimento interminável expe-rimentado. Esse sentimentalismo, observa-do em toda a cultura eslava, é facilmentedetectável na composição de músicas po-pulares, algumas tornadas mundialmentesemiclássicos como “Olhos Negros”, “DuasGuitarras”, “Noites de Moscou”, editadasmuito mais tarde de sua concepção, e mui-tas outras similares, todas em tonalidadesmenores, o que é um indicativo de melanco-lia, dolência e sentimentalismo.

Queremos encerrar dizendo que os rus-sos, como gênio militar (líderes como Napo-leão, Montgomery, etc.), têm uma históriamuito modesta, tendo em seu acervo ape-nas vitórias isoladas. Em compensação, asheróicas resistências de Leningrado, Stalin-grado, para a defesa do solo pátrio, caracte-rizam o máximo de resistência ao sofrimen-to, o espírito de sacrifício e o patriotismo.

Os chuvash

Esse povo constitui um subgrupo étnicomuito pouco numeroso, e os autores russosem geral não lhe dão muita projeção. Falamuma língua ligada ao grupo Fino-Úgrico,que muitos estudiosos querem relacionar como grande tronco Altaico, via grupo Urálico.

Realmente, numa pesquisa mais apro-fundada, vamos encontrar pontos de conta-to com o Altaico. Seu perfil racial, sem dúvi-da alguma, é mongólico. Não sabemos mui-to de suas origens, e seu papel na odisséiarussa foi mais de vítima, tanto dos tártaros

quanto dos russos escravagistas. Sua inclu-são como povo-personagem ativo deve-sesimplesmente ao fato de o pai de Lenin, Iliá,dele descender – a mãe, Maria Blank, tinhadupla ascendência européia, alemã e sue-ca. Por serem as famílias russas estrutural-mente patriarcais, Lenin levava o patroní-mico – o sobrenome – e o nome de família dopai. Isso lhe trouxe certos constrangimen-tos futuros, cujos pormenores comentare-mos no segundo artigo “A Revolução Co-munista e os Seus Líderes”.

Os tártaros

Outro subgrupo de atuação relevante é o“tártaro”, também chamado “tátaro”. É umpovo originário de tribos semibárbaras daprovíncia de Tian-Shan, do Noroeste daChina, do Turquestão, e mesmo de algumasregiões da Ásia Central e do Kazaquistão.Essas tribos eram chefiadas por um Khan(chefe guerreiro), quase todos semi-analfa-betos. Viviam da caça e das pilhagens. Dospovos não eslavos, é o segundo mais nume-roso do ramo lingüístico Altaico, falandouma linguagem túrquica, isto é, tendo o idio-ma turco como base, mas com diferençasregionais sensíveis. Seminômades, estavampermanentemente em guerra. Cavaleiros ex-celentes e arqueiros habilidosos, praticavaminvasões de terra (sem uma liderança organi-zada, razão por que, quando irrompiam emalguma localidade, com matanças, pilhagense saques desordenados, infundiam o terror).

Os “tártaros” dispersaram-se por gran-de parte da Sibéria e parte da Rússia Euro-péia, a princípio por nomadismo, porém,depois do século XX, porque foram força-dos a isso. Não eram, no século XX, bemvistos por Stalin, que deportou alguns delesda Criméia17 para o Oriente. Outra parte fi-cou “confinada” na República Autônomada Tatária. Com a morte de Stalin, foram ino-centados do pretenso crime de terem coope-rado com os nazistas.

Há uma certa confusão na interpretaçãodos termos “tártaros” e “mongóis”. Os doispertencem ao grande grupo étnico-lingüís-

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tico Altaico, que compreende os subgruposMongol, Mandchu-Tungu e Túrquico. Sãoda raça mongolóide, cuja característica so-mática mais notória é uma prega ou dobrana pele, sobre os olhos, fazendo-os aparen-tar obliqüidade. Ambos têm relativamente omesmo grau de cultura prática. São bonscavaleiros e arqueiros e grandes guerreiros.

As diferenças são as seguintes: 1– os doissubgrupos falam idiomas distintos; os mon-góis falam, naturalmente, o mongol18, e ostártaros falam uma linguagem túrquica; 2 –os mongóis são provenientes da Mongólia,enquanto os tártaros têm origem em váriasregiões asiáticas; 3 – os mongóis tinham umaliderança expressiva e organizada, o quedeu à nação mongólica personalidade polí-tica em suas lutas, inclusive contra grandesdinastias como as da China, além de ter pro-jetado ao mundo Genghis-Khan (Chefe Uni-versal), que uniu todas as tribos da Mongó-lia e organizou um verdadeiro e invencívelExército.

Genghis-Khan, ou Temuchin de nasci-mento, reuniu sob a bandeira dos mongóistodas as tribos tártaras da Sibéria, do Kaza-quistão ao Mar Negro, e se aventurou até oLeste europeu, fundando o Império Mongol,se não o mais extenso em área, o de maiorcomprimento, pois ia de Pequim até Buda-peste, na Hungria, atingindo cerca de 10.000Km. Atualmente, a opinião geral é de queele não era somente um grande guerreiro,mas um extraordinário chefe político e ad-ministrador.

Vamos citar dois exemplos: como guer-reiro, utilizou, com sucesso, a comunicaçãopor mensageiros montados que, a toda ve-locidade do cavalo, se revezavam nos pos-tos de muda, antes balizados. Os própriosmensageiros já puxavam cavalos de muda,para qualquer imprevisto. Assim, quandooutros grupos armados levavam até um mêspara transmitir uma mensagem, o chefemongol levava uma semana.

Como político e administrador, Genghis-Khan agia da seguinte maneira: após o mas-sacre inicial, marca da época, organizava

as pilhagens para suprimento futuro de suatropa, reunia os anciãos da cidade, entrega-va-lhes a administração, contanto que pa-gassem os tributos e o apoiassem nas futu-ras passagens pelo lugar. Conseguia, dessemodo, o apoio e a simpatia dos nativos e, oque é de muita importância, não desfalcavaas fileiras combatentes, desviando guerrei-ros para funções administrativas.

Finalmente, queremos ressaltar o perso-nagem mais curioso: os cossacos.

Os cossacos

Eles não eram propriamente um subgru-po étnico. De origem eslavônica, constituíam-se um ajuntamento sócio-econômico de pe-quenos camponeses, estabelecidos particu-larmente nas estepes ucranianas e tornadoscombatentes por necessidade. Modestos pro-prietários de terra, organizaram-se em co-munidades para a defesa comum e chega-ram a formar um exército particular, maistarde profissionalizado e que prestou servi-ços ao tsarismo na conquista da Sibéria econtra os bolcheviques19.

Excelentes cavaleiros, eram conhecidospela independência, refutando qualquerautoridade central. Havia uma hierarquiaprópria, com ótimo relacionamento entre oslíderes e a tropa.

Apesar de apresentarem certa similari-dade com os beduínos, os nômades do de-serto, viviam, porém, em um ambiente natu-ral muito mais aprazível, eram proprietários,embora pequenos, e tinham uma verdadei-ra paixão pela terra natal, enquanto aque-les praticavam o nomadisno por necessida-de, em função da pobreza e aridez do solo.Poderíamos dizer, sem grande erro, que o cos-saco era o beduíno abastado das estepes.

O cinema e a literatura o têm caracteri-zado como um tipo aventureiro, romântico,apreciador da vodca e de guitarras. É possí-vel que em certas ocasiões assim o fosse, paracontrabalançar a vida ativa levada na lidabraçal com a terra, o que lhe dava um tem-peramento rude, irreverente e sem refina-mento cultural. Mas eram valentes e leais.

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Para ilustrar melhor a imagem, nadamais oportuno que um fato, pois contra fa-tos não há argumentos. É um episódio curio-síssimo relatado a nós por um ucranianoautêntico, de quem recebemos uma cópia domanuscrito em língua ucraniana. Fizemosa tradução conjuntamente para o português.Temos a impressão de que esse episódio,com alto grau de probabilidade de ser real,pode ter sido alterado em algum pormenorno seu relato, pois data de muito tempo atrás,todavia define bem o espírito cossaco:

Em 1680, O Império Otomano Turco es-tava em decadência e vivia em constante lutacontra a Rússia, sendo um dos pontos deatrito a região fronteiriça da Podólia. Haviacontenda por uma certa elevação da Região.Os cossacos eram liderados por um guerrei-ro chamado Ivan.

Os turcos enviaram aos cossacos a se-guinte mensagem (em ucraniano). “Eu, Sul-tão Turco, filho de Maomé, irmão do Sol eda Lua, neto e descendente de Deus, Senhordos Reinos da Babilônia, de Jerusalém20, doGrande e do Pequeno Egito, Rei dos Reis,Senhor dos Senhores, cavaleiro excepcionalque ninguém venceu, guarda perpétuo docaixão de Jesus Cristo, curador do próprioDeus, esperança e consolação dos muçul-manos, assistente e grande defensor dos cris-tãos, ordeno-vos, Cossacos Zaparójisquie21,que vos rendais a mim voluntariamente esem qualquer resistência, e não me façaisperder a calma com vossos ataques.” Sul-tão Turco Mohamed IV.

Resposta dos Cossacos. “Tu, Diabo Tur-co, do demônio maldito irmão e camarada,e secretário do próprio Lúcifer. Quem és tu,guerreiro do Cão? O Diabo vai expulsar equeimar a tua tropa. Não terás condiçõesde dominar os filhos cristãos. Tua tropa nãotememos. Combateremos contra ti na terra ena água. És cozinheiro da Babilônia, esfola-dor de cabras de Alexandria, pastor de por-cos do Grande e do Pequeno Egito, suíno daArmênia, cartucheira tártara, carrasco depedra, filho de ladrão da Podólia, neto daprópria serpente, palhaço do mundo intei-

ro e das profundezas, bobo de nosso Deus,... (impublicável) de égua, cachorro vira-lata,besta pagã, que o Diabo te carregue! Assimos cossacos cuspindo te respondem, rene-gado da mãe dos verdadeiros cristãos! Nãosabemos de data, pois não temos calendário,o mês (a Lua) está no céu e o ano no Livro! E odia é o mesmo para nós e para vós. Beije ...(impublicável), que nós temos.” Chefe Ivan,líder de todos os chefes “zaparójisquie”.

5. Comentários conclusivos sobreos períodos

Feito esse resumo de uma área continen-tal tão vasta e de uma paisagem humanatão marcante, podemos imaginar que tipode estrutura político-administrativa pode-ria atender tanta imensidão geográfica e tan-tas nacionalidades diversas. Melhor dizen-do, talvez concluiríamos que nenhuma or-ganização estatal suportaria um encargo detais dimensões. Não nos esqueçamos que fo-ram ressaltadas apenas algumas nacionali-dades de mais de uma centena que existem.

O período kieviano

No período da Rússia Kieviana, que cor-respondeu ao da Idade Média, o modelo ad-ministrativo era mais atrasado que o nas-cente feudalismo a se instalar na EuropaOcidental e vinha mesclado com ingredien-tes ainda mais odiosos: a herança dos siste-mas despóticos orientais trazidos pelos es-lavos e o fatalismo religioso a que não es-caparam os missionários cristãos da IgrejaOrtodoxa Russa, já nos anos 800-900 AD, emque a salvaguarda da vida futura justificavaqualquer sofrimento terreno. Contudo, é justoreconhecermos a influência da Igreja Russana moderação da consuetudinária legislaçãodo trabalho, de caráter puramente utilitário,comercial e do tipo contrato-pessoal.

Em que pesem os aspectos nefastos, a si-tuação de Kiev era privilegiada, constituin-do-se em uma região progressista até a in-vasão mongol22 dos princípios do século XIII.Essa invasão impôs traços culturais negati-

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vos e positivos que impregnaram a mentedos governantes russos. Lembremo-nosque, a essa altura dos fatos, os russos nãotinham adquirido ainda nem identidade na-cional23 quanto mais personalidade política.Sendo assim, aquela invasão, responsávelpela fuga definitiva para as cabeceiras doVolga, foi a mola mestra da formação do futu-ro Império Russo (esse, um dado positivo).

O período moscovita (século XIII ao XVIII)

Com a expansão para as cabeceiras doVolga, a fundação de Moscou e após algu-mas vitórias locais como as do Rio Nevá e ado Lago Peipus24, projetaram-se os primei-ros heróis russos, assim como ficou bemdefinida a entidade étnica dos “grandes rus-sos” ou dos “Russos de Moscovia”, apesarda mesclagem com elementos finlandeses,o que deu mais “arianismo” ao tom da pele.A entidade política engatinhou com Ivan III,que preparou o caminho para a assunçãode Ivan IV, o Terrível, este, de fato, o primei-ro tsar russo.

Ivan, o Terrível, acabou com o poder dosnobres, “boiardos”, prosseguiu a expansãopela Sibéria e estabeleceu o centralismo dopoder.

Depois desse período, a Rússia passou poruma fase de desagregação, com Ivan V, até aascensão de Pedro, o Grande, em 1696. ComPedro, o Grande, vieram as reformas, a políti-ca exterior, o estabelecimento de uma legisla-ção rigorosa, o aprimoramento das ForçasArmadas e muitas medidas administrativasnecessárias para a consolidação do poder.

O absolutismo cresceu, agora inspiradopor uma ocidentalização obssessiva, quelevou o Tsar a transferir a Capital para SãoPetersburgo. Por outro lado, o regime de es-cravidão dos contingentes agrários perma-necia no mesmo nível.

O período petersburguense

Com a transferência para São Petersbur-go, teve início a Rússia Petersburguense, operíodo mais curto da formação do ImpérioRusso.

Falando francamente, a Rússia levoupara o litoral, com a sua nova capital, todosos defeitos já adquiridos no “Período Mos-covita”, quando realmente se concretizaraa sua identidade étnica e nacional, e ondese tornara entidade política.

A despeito da aproximação da Corte àvelha Europa, de onde se extraíram algunssucessos na área da tecnologia industrial,prevaleceram os erros importados dos siste-mas de governo anteriores, agora em luta maisdireta com as idéias liberalizantes. Dessesembates, aproveitaram-se posteriormente oslíderes revolucionários do século XX.

De modo que, qualquer que fosse o perfilideológico de uma revolução alteradora doquadro social, ela teria enorme possibilida-de de êxito, mais pela fraqueza do poderconstituído do que pelos méritos dos revo-lucionários.

É o que vamos observar na segunda par-te parte do nosso artigo: “A Revolução Co-munista e Seus Líderes”, em breve ediçãoda Revista de Informação Legislativa.

Notas1 Entendido, no presente trabalho, esse termo

conforme a visão ocidental.2 The concord desk encyclopedia. v. 3. p. 1225.3 Águas que permitem operações em condições

normais ou movimentos comerciais marítimos re-gulares.

4 Quando estávamos realizando uma pesquisasobre o naufrágio do Titanic, achamos muito inte-ressante uma reportagem da revista Veja, de 1986,página 74, que chamava a atenção para o apoiodecisivo que a Marinha dos EE UU tinha dado aomergulhador e cientista Robert Ballard na buscadaquele grande navio afundado. Segundo a repor-tagem, alguns cientistas americanos sugeriram queo objetivo da Marinha americana não seria apenasrealizar testes de equipamento de mergulho, mastambém de resistência de material do navio a gran-des profundidades, e apresentar os dados para finsmilitares.

5 Força-Tarefa naval é um grupo de navios deguerra, devidamente organizado para cumprir umamissão específica.

6 Em língua turca: “areia negra”.

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7 A área de vegetação preferível para o tigre é asavana, por ser rala e transitável. Todavia esse ani-mal também é muito encontrado em florestas coní-feras. Para cada um deles, é necessária uma áreaequivalente a uma “Asa do Plano Piloto”, em Bra-sília.

8 “Belo-Rússia”, diga-se “Bielo-Rússia”, signi-fica “Rússia Branca” e Ucrânia vem da combina-ção “U Kraiá”, que significa junto à fronteira. AUcrânia também foi chamada, durante muito tem-po, “Malorróssia” (Pequena Rússia), indicando umcerto ressentimento tradicional entre os ultra-nacio-nalistas ucranianos e os russos atuais.

9 “tsar” é mais correto do que “czar” ou “csar”.A letra inicial é “ts” em russo. Porém as duas for-mas são aceitas. A palavra “czar” ou “csar” temorigem na tradução eslavônica “késsar”, da pala-vra “tsézar”, como eram chamados os imperado-res romanos, “Cézar” em grande parte da Europa.Como estamos falando de Rússia, vamos dizer“tsar”, embora esse título só tenha sido empregadopelos russos quase 2.000 anos depois da fundaçãode Roma.

10 Pedro, o Grande, já naquela época, guerreoucom a Turquia pelo acesso ao Mar Mediterrâneo ecom a Suécia pelo domínio do Mar Báltico. As bus-cas por “mares quentes” são bem antigas.

11 Talvez a única coisa que não copiou à Europaforam as manifestações públicas do absolutismoreal, que os tsares tinham de sobra. Se Luís XIV, reida França, precisava dizer “L’Ètat c’est moi” (Eusou o Estado), os tsares não necessitavam dessapropaganda. Todo mundo já sabia disso.

12 “Mir” tem dois significados em língua russa.O primeiro é “paz”; o segundo é “mundo”, “uni-verso”, “conjunto”, “comunidade”. É no segundosentido que deve ser entendido aqui.

13 DUMA, em russo, quer dizer “inteligência”,“pensamento”, “idéia”. Um esboço de Parlamen-to, monitorado pelos proprietários de terra.

14 “Boiardos” parece ter origem na palavra ho-landesa “Böers”, que os russos traduzem por “Boi-are”. Significa “fazendeiros”. Os “Boiardos” repre-sentavam a nobreza de então, constituída pelossenhores das terras, dos feudos.

15 Essa palavra em língua russa pronuncia-se“velíki” e significa “grandioso”, não propriamente“grande”.

16 Em todos os países onde a natureza é exube-rante acontecem esses fenômenos. No Lago Baical,próximo à cidade de Irkutsk, na Sibéria, um verda-deiro mar de água doce, o número de lendas é sig-nificativo, à semelhança das lendas amazônicas emnosso país.

17 Região Sul da Rússia que limita com o MarNegro e a Bulgária.

18 Não confundir com o idioma chinês, que éideogramático, do grupo lingüístico sino-tibetano.

19 Bolcheviques: membros do Partido bolche-vista. Sobre eles falaremos na segunda parte destetrabalho.

20 Jerusalém já esteve sob o domínio do ImpérioOtomano.

21 “zaparójisquie” é um adjetivo plural em rus-so que significa “além das cachoeiras”. Eram oscossacos que moravam nas margens do Rio Dnie-per, do Rio Don, etc., mas abaixo das quedas d’água,ou seja, mais ao Sul.

22 Depois da explicação dada anteriormente,estamos utilizando os termos “mongol” e “tárta-ro” indiscriminadamente.

23 Não havia ainda a divisão “grandes russos”ou “pequenos russos”.

24 Principalmente, aqui, a batalha de Kulíkovo.

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1. Introdução

O presente estudo girou em torno da te-mática da concentração empresarial e seucontrole, com enfoque à forma como é colo-cado em prática, no ordenamento jurídicobrasileiro, o controle dos atos concentracio-nistas e das práticas mercantis em geral.Como forma de exemplificar a efetivaçãodesse controle, foi escolhido o fenômeno docartel, que, embora não seja uma forma de

As autoras são bacharéis em Direito pelaUniversidade Federal de Viçosa.

1. Introdução. 2. Breves comentários acercada teoria geral dos contratos. 2.1. Contratosinternacionais do comércio. 3. Da concentra-ção empresarial. 4. Do controle e dos órgãospor ele responsáveis. 4.1. O surgimento daLei 8.884/94 (Lei Antitruste) e seus princípiosnorteadores. 4.2. A Secretaria de Direito Eco-nômico e suas funções. 4.3. Conselho Adminis-trativo de Defesa Econômica (CADE): estrutu-ra, funções, modos de atuação e otimização deresultados. 4.4. Principais infrações à ordemeconômica, sua apuração e as conseqüências desua prática. 4.5. Controle e cartel. 5. Da prote-ção do consumidor como efeito da política dedefesa da concorrência. 5.1. Generalidades. 5.2.Da defesa da concorrência e do consumidor.6. Cartel: conceito, critérios para sua verifica-ção, implicações para o mercado, competênciado CADE. 7. Análise da ação civil pública rela-tiva à cartelização dos postos de combustíveisde Salvador-BA. 8. Conclusão.

Sumário

O cartel na legislação antitruste, sua relaçãocom o fenômeno concentracionista (meio ouconseqüência?) e seus reflexos prejudiciaisaos direitos do consumidor

Maria Cecília Mendes Borges, RenataFerreira da Rocha, Ingrid Rodrigues deAtaíde, Cláudia Salgado Gomes eAndrezza Márcia Medeiros Silva

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concentração empresarial propriamentedita, pode advir desta (sendo conseqüência)ou até mesmo possibilitá-la (e nesse casoseria meio).

Foram feitas breves considerações sobrea teoria geral dos contratos, os contratossocietários e os contratos internacionais docomércio, tendo em vista que os mesmos sãoformas de corporificação dos instrumentosde concentração empresarial.

Também foram abordados os fenômenosda globalização, mundialização e interna-cionalização. Sabe-se que, nos dias de hoje,não apenas a palavra globalização se tornoulugar-comum, como também esse tema tri-vializou-se nos meios acadêmicos e na mí-dia. Isso, entretanto, não dispensa uma rá-pida abordagem do assunto, tendo em vista opresente estudo, em um contexto do processode concentração empresarial e seu controle.

O desenvolvimento econômico, a pujan-ça do crescimento empresarial e a expansãodas relações comerciais constituem metas aserem atingidas por quase todos os gover-nos. Mas, quando esses fatos de naturezapredominantemente econômica beneficiamapenas alguns poucos, causando a devas-tação e a expulsão da maioria dos agenteseconômicos do mercado, o Direito é chama-do a restabelecer o equilíbrio. Assim comonovas formas empresariais gigantescas fo-ram surgindo, em decorrência do progressocientífico e tecnológico e da concentraçãocapitalista, o Direito viu-se também obriga-do a engendrar novos institutos, cujas re-gras fossem capazes de assegurar a harmo-nia das relações empresariais. No ordena-mento brasileiro, o mais eficaz instrumentojurídico de proteção à livre concorrência é aLei Antitruste (Lei 8884/94), cujo principalobjetivo é a manutenção do equilíbrio dosentes no mercado. A lei prescreve medidastanto de caráter preventivo quanto repressivo.

Na seqüência, será abordada a defesa doconsumidor, tendo em vista que esse é umdos maiores prejudicados pela ocorrênciade práticas anticoncorrenciais, incluindo-se entre essas a formação de cartéis, além de

casos de concentração empresarial que le-vam à dominação do mercado, ferindo, por-tanto, o princípio da livre concorrência eatingindo assim o direito à escolha, assegu-rado pelo Código de Defesa do Consumidor– Lei 8.078/90.

Cabe ter presente, ainda, que as mudan-ças na forma de conceber e formular o saberjurídico afetarão diretamente o direito do con-sumidor, um dos pólos mais dinâmicos dacrise experimentada pelo direito moderno.

O Direito considera que a concorrência éum bem que estimula os agentes econômi-cos, mas costuma supor que os comporta-mentos que reprime têm efeitos econômicossensíveis. Um dos objetivos do presente édemonstrar que o Direito da Concorrênciatem como uma de suas finalidades a defesados interesses e da qualidade de vida dosconsumidores.

2. Breves comentários acerca dateoria geral dos contratos

Segundo PEREIRA (1997, p. 2), contratoseria “o acordo de vontades, na conformi-dade da lei, e com a finalidade de adquirir,resguardar, transferir, conservar, modificarou extinguir direitos”.

Quanto aos efeitos do contrato, podemser unilaterais, criando obrigações para ape-nas uma das partes, bilaterais, gerando obri-gações e direitos recíprocos e interdependen-tes para as partes, ou plurilaterais, que sãoaqueles em que existem várias partes, comoé o caso da sociedade (quando da sua cons-tituição, necessita-se que haja convergênciade interesses, que no caso são os sócios –ressalte-se que podem existir interesses an-tagônicos depois de formada a sociedade).

Quanto ao contrato societário, geralmen-te, para sua formação, convergem os requi-sitos de pluralidade de sócios, constituiçãodo capital social e affectio societatis.

2.1. Contratos internacionais do comércio

A conceituação do que sejam contratoscomerciais internacionais não é tarefa fácil.

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Por muito tempo, acreditou-se que a presen-ça de um elemento internacional na relaçãojá configuraria o contrato como internacio-nal. Posteriormente, constatou-se que é pre-ciso que se verifique se esse ente tem condi-ções de internacionalizar tal contrato. Paraisso, é necessário que esse elemento assumarelevância tal, capaz de ligá-lo de forma efe-tiva ou potencial a dois ou mais sistemasjurídicos.

Importante assinalar que os contratosinternacionais do comércio apresentam-sede diversas formas, como contrato de com-pra e venda, de franquia (franchising), deknow-how, de prestação de serviços, joint ven-ture, leasing, entre outros.

No momento atual dos contratos comer-ciais internacionais, é dada muita impor-tância à fase de negociações; em caso de rup-tura por uma das partes, a outra tem direitoa perceber indenização.

Importante anotar a crescente dinamici-dade do comércio internacional, fazendocom que novas figuras contratuais surjam,representando novos modelos jurídicos.Entre eles, pode-se citar os abaixo relacio-nados.

Cartas de intenção: utilizadas em contra-tos que, para se formarem, necessitam ultra-passar vários obstáculos. São “contratos denegociação, documentos preparatórios aocontrato definitivo, nos quais as partes pro-curam, por exemplo, fixar os pontos já acor-dados, consagrar acordos sobre os elemen-tos essenciais do futuro contrato, fixar o pra-zo dentro do qual as negociações devem-serealizar” (BASSO, 1998, p. 186).

Essas cartas podem assumir diversasfunções. Uma delas seria exprimir que aspartes ainda não estão decididas para as-sumir nenhum compromisso e que não ha-verá nenhuma responsabilidade ao romperas tratativas. Outra seria a de estabelecer osinteresses das partes em dar prosseguimen-to à negociação, mas também com o direitode concluir ou não o contrato definitivo.Também podem dividir as despesas no casode não conclusão do contrato. Ainda, por

meio delas, podem ambas as partes ou ape-nas uma delas assumir o compromisso denão negociar com terceiros interessados nomesmo objeto (pacto de exclusividade), o queexprime os deveres de informar, de boa-fé ede minimizar os prejuízos.

Outra função das cartas de intenção se-ria a de fixar o tempo dentro do qual devesurgir a negociação. Podem fixar tambémum acordo de segredos ou de estabeleceruma prestação que poderá ser subdivididaem partes (manifesta a intenção de posterior-mente adquirir outro lote do produto).

Existe também a carta de intenção quevisa iniciar a execução do contrato antes dese encerrarem as tratativas, sendo comumem tratativas de construção de instalaçãoindustrial. Há, ainda, as cartas que condicio-nam a eficácia do negócio jurídico a umacondição suspensiva. Por fim, existem ascartas que determinam a responsabilidadedas partes quanto às despesas conexas coma negociação.

Lettres de patronage ou comfort letters: “Sãogeralmente firmadas por uma sociedade (...)chamada, na prática, de ‘sociedade contro-ladora’, em favor de um banco, ou outroagente financeiro com a finalidade de queeste último conceda um mútuo, ou financia-mento a uma ‘sociedade controlada’ pelaprimeira (firmatária)” (BASSO, 1998, p. 209).Nelas, não existe um conteúdo-tipo; esse énegociado quando de sua celebração, pas-sando a ter eficácia quando da sua execução.

Acordos de segredo: Os efeitos são os mes-mos daqueles objeto das cartas de intenção.“O acordo de segredo representa uma obri-gação de não divulgar certas informações econhecimentos confidenciais e representa,na realidade, um contrato autônomo” (BAS-SO, 1998, p. 233). São contratos temporáriose são freqüentes em tratativas de contratosde comunicação de conhecimento tecnoló-gico. Os efeitos podem-se prolongar por umdeterminado período após a extinção docontrato, dependendo de acordo entre aspartes. Vigora o dever de lealdade, aindaque implicitamente. Assim, no caso de vio-

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lação, o credor poder-se-á ressarcir dos da-nos sofridos.

‘Bid bonds’ ou garantias: Surgiram no co-mércio internacional devido às desconfian-ças existentes entre os contratantes, origina-das pela distância, pela diversidade das lín-guas, dos hábitos e costumes de cada país.

As garantias bancárias têm funcionadocomo elementos incentivadores para os paí-ses em desenvolvimento negociarem nomercado mundial, permitindo a expansãodo comércio internacional. Assim, travam-se negócios com parceiros sem tradição nomercado mundial por existirem tais garan-tias. Essas garantias surgem quando o de-vedor da prestação teme que o contratantenão cumpra suas obrigações. Assim, parafirmar o negócio, exige uma garantia.

Cláusulas Standards ou Condições Gerais doContrato: Não importa sua forma de apre-sentação, nem quem as tenha redigido ousua extensão. “O que conta (...) é a predispo-sição para o uso generalizado e repetidopela parte, e a dispensa de negociação paracom o co-contratante, o qual a aceita inteirae desde logo” (BASSO, 1998, p. 259). Essascláusulas obrigam as partes a partir da as-sinatura (aceitação).

Necessário se faz o controle e o limitedessas cláusulas, para evitar que se incorraem erro e que haja vantagem injusta. Devem-se evitar, portanto, cláusulas não usuais nocontrato internacional e aquelas obscuras,redigidas em língua estrangeira, geradorasde confusão, letras muito pequenas, entreoutras.

Entre uma cláusula standard e outra não-standard, prevalecerá esta última, uma vezque se presume que represente mais a von-tade das partes.

No caso de conflito entre o direito inter-no e as cláusulas standards, não se encontradisposição clara a respeito, mas o que se tementendido é que as disposições do direitointerno prevalecem.

Contratos preliminares ou pré-contratos: Aspartes ou uma delas se comprometem a con-tratar futuramente. Surgem quando as par-

tes têm interesse em manter o negócio, masnão possuem meios para concluí-lo desdelogo. Se uma das partes não cumprir o con-trato, a outra pode recorrer à arbitragem ouao juiz nacional, conforme o disposto no pré-contrato.

Por fim, deve-se ressaltar que, no âmbitodo comércio internacional, existem barrei-ras que acabam por prejudicar a economiamundial. A fim de evitar tal entrave, surgemforças positivas como tratados e acordoscomerciais, definindo pagamento e respon-sabilidades.

Como exemplo de tratado, tem-se a Con-venção Internacional de Genebra, firmadaem 1931, a fim de adotar uma lei uniformepara cheques e títulos cambiários. “A fina-lidade dessa convenção era dirimir os con-flitos, decorrentes das inúmeras leis de cadapaís, que dificultavam o comércio interna-cional” (MAIA, 1995, p. 81). Também há asregras uniformes editadas pela Câmara deComércio Internacional, sobre cobrança decartas de crédito, com o fim de solucionarconflitos de costumes e leis dos países atuan-tes no comércio internacional. Esses doisacordos internacionais foram citados ape-nas a título ilustrativo, e não como méritopor sua importância maior em relação a inú-meros outros existentes.

Com o objetivo de solucionar também osconflitos surgidos no âmbito do comérciointernacional, foram criadas cláusulas paradefinir os direitos e obrigações das partesna compra e venda de mercadorias. Há acláusula FOB (Free On Bord – Livre a Bordo),em que cabe ao vendedor expedir a merca-doria, providenciando os transportes e se-guros internos (até o ponto de venda dentrodo navio), arcando também com as despe-sas portuárias. O comprador, por sua vez,deverá pagar o frete e o seguro devidos doporto de embarque até o destino e tambémas despesas portuárias relativas ao porto dedestino.

Outra cláusula é a CIF (Cost, Insuranceand Freight – Custo, Seguro e Frete). Nesta,cabe ao vendedor expedir a mercadoria,

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pagar os fretes e seguros internos, providen-ciar os documentos de embarque, arcar comtodos os ônus no porto de embarque e pagarfrete e seguro até o porto de destino, caben-do ao comprador receber a mercadoria noporto de destino e pagar as despesas ocorri-das nesse porto.

3. Da concentração empresarial

Com o advento da Revolução Industrial,acompanhada de transformações tanto natecnologia agrícola quanto na comercial, osempreendimentos internacionais aumenta-ram. Ampliaram-se a rede bancária, o co-mércio, as indústrias. Países mais desenvol-vidos lutavam para conseguir matérias-pri-mas agropecuárias, cujos produtores mui-tas vezes encontravam-se em países menosdesenvolvidos. Todavia, como bem expla-nam VIEIRA e CAMARGO (1976, p. 2),

“Esta independência, porém, foiantes política do que econômica, nãopossuindo os novos países experiên-cia suficiente e capitais disponíveis(...) que lhes permitissem tirar partidoda profunda transformação tecnoló-gica pela qual os países desenvolvi-dos estavam passando. Daí a necessi-dade de as firmas industriais instala-rem, junto aos países fornecedores dematérias-primas (...), casas comis-sárias, cuja função era estabelecer ascondições dos negócios”.

E, à medida que os países menos desenvol-vidos foram criando elite dotada de maiorpoder de compra, tornou-se interessanteconquistar essa nova clientela.

Quanto aos processos de integração re-gional, novos aspectos surgiram, tais comoa complementaridade na produção, redu-ção dos graus de liberdade nas políticasnacionais por causa de compromissos co-muns, busca de reforços para a competitivi-dade internacional dessas economias. Es-ses são os desafios da regionalização.

A base de partida para a globalização1 temsua origem nas condições favoráveis ao cres-

cimento do comércio internacional após aSegunda Grande Guerra. Pela primeira vez,surge a noção de uma economia mundialem sentido estrito, com superação das bar-reiras sob influência econômica. Desde 1945,o papel das empresas transnacionais naeconomia nacional não parou de crescer 2.

Não há um consenso entre os autoressobre as definições de globalização,mundialização e internacionalização.Contudo, há um entendimento que englo-ba e delineia bem cada fenômeno, e é oque se passa a expor.

O fenômeno da mundialização é o refle-xo da internacionalização pública e da in-ternacionalização privada. A internaciona-lização pública seria o movimento dos Es-tados no âmbito mundial. A internacionali-zação privada, por sua vez, significaria aatuação dos entes produtivos buscandonovos mercados, possuindo esses entes doiscaminhos, a internacionalização multido-méstica e a globalização.

Como conceitos econômicos, em linhasgerais, pode-se identificar a internacionali-zação multidoméstica como estratégia ado-tada por empresas que, mesmo contandocom esferas produtivas em vários países,adotam estratégias de marketing e concor-rências independentes. Não há estratégiacomum de satisfação do mercado no âmbitoglobal, visto que cada unidade produtivaestá adstrita às necessidades locais de cadapaís. O desenvolvimento de todo o processoprodutivo se dá em cada país de forma indi-vidual; dessa forma, pode-se falar em inter-dependência das esferas produtivas, masnão em complementaridade das mesmas.

No caso da globalização, sua estratégiaé mais complexa. Em linhas gerais, umaempresa que opere em nível global teria suaposição competitiva, num determinado país,influenciada (e influenciaria) pelo posicio-namento mercadológico de outra do grupo,em outro país. Há aqui, ao contrário da in-ternacionalização multidoméstica, forte in-terdependência das esferas produtivas, sen-tida na criação de economias de escala, na

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utilização de marca global, na possibilida-de de satisfação de clientela de diversospaíses, política comum de preço, concorrên-cia, marketing, entre outros. Existe comple-mentaridade das esferas produtivas, quaseque como uma regra geral – cada esfera pro-dutiva em um país especializar-se-á na exe-cução de uma fase do processo, complemen-tado por outras empresas do grupo. Há oestabelecimento de uma “política comum”(cf. FERRAZ, 1995, p. 181 et seq.).

Dessa forma, muitas vezes quando se usao termo ‘globalização’, o que se quer desig-nar na verdade é o fenômeno da mundiali-zação. Assim, fala-se em mundialização dosgostos, mundialização da economia, comoefeitos de todo o processo.

Segundo LERDA (1996, p. 239-263), “ofenômeno da globalização (entenda-se‘mundialização’, conforme conceito deli-neado acima) da economia mundial senutre das tendências registradas em pelomenos três de seus fatores determinantes:tecnologia, organização corporativa e polí-ticas públicas”.

E como poderão as empresas acompa-nhar uma evolução tão dinâmica nos âmbi-tos tecnológico e mercadológico mundial?Por meio das estratégias de internacionali-zação multidoméstica ou de globalizaçãodas empresas.

A competitividade na fronteira tecnoló-gica implica custos mais elevados na pes-quisa e desenvolvimento e assistência téc-nica, passando a ocorrer competição em es-cala mundial, com empresas reestruturan-do sua atividade e sendo beneficiadas pelopróprio nível de competitividade de cadaempresa. Ao mesmo tempo, argumenta-seque todo esse fenômeno pode estimular aconsolidação de oligopólios em nível mun-dial e essa tendência à concentração porempresa. Em todo esse contexto, as empre-sas transnacionais são as que possuem me-lhores condições para apropriar-se das van-tagens dessas cadeias de valor adicionado.

E, como diz BRANDT (1977, p. 170), “aorigem da empresa terá pequeno significa-

do no futuro. Mais importantes serão a es-trutura e o sistema usados para operaçõesem escala global”. Fala-se em uma “lógicatransnacional”.

Em um contexto globalizado, as empre-sas têm que atuar em segmentos cada vezmais específicos de mercado, dependentesdo controle estrito sobre a qualidade e daflexibilidade no atendimento às variaçõesda demanda. Isso requer um número maiorde vínculos com outras empresas. As gran-des empresas transnacionais são os agen-tes-chave do processo de internacionaliza-ção, sendo, igualmente, líderes dos proces-sos de formação de blocos comerciais.

Os vínculos entre empresas em econo-mias distintas têm aumentado em ritmo ace-lerado, e os tipos de formas de associaçãoentre empresas são cada vez mais variados.“(...) Passou a ser racional a busca de par-ceiros para compartilhar os gastos e riscostecnológicos, comerciais e financeiros, atra-vés de novas formas de investimento” (BAU-MANN, 1996, p. 45).

Entre os efeitos da internacionalizaçãoprivada, pode-se dizer que as estratégiasempresariais são cada vez mais definidassegundo a orientação das demandas dosconsumidores, a competição baseia-se emvantagens competitivas construídas e oscustos do processo produtivo/cadeia dedistribuição passam a ter papel mais deter-minante das estratégias empresariais doque os custos de fatores (desenvolvimentode processos de mediação, sua extensão anovas zonas, sua interconexão cada vezmais ramificada e sua constituição em sis-temas cada vez mais coerentes). Entretanto,as metas de participação em mercados ex-ternos não devem constituir critérios abso-lutos, mas instrumentos na busca da satis-fação das necessidades da população.

As negociações continuam a ter lugarformalmente entre os Estados-nação, con-comitantemente ao aumento gradual e ex-pressivo da importância das empresastransnacionais como novos agentes deter-minantes do cenário internacional.

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Ainda quanto à importância da grandeempresa no cenário internacional, EdithPenrose (cf. SANVICENTE, 1975, p. 13) afir-ma que, “por causa da grande empresa in-ternacional, o fluxo internacional de comér-cio e investimento, a estrutura internacio-nal de preços e a distribuição internacionalde renda estão sujeitos a forças que algu-mas vezes são muito diferentes das implíci-tas na teoria econômica tradicional”.

E Yair Aharoni (cf. SANVICENTE, 1975,p. 2) esclarece: “Em síntese, empresa multi-nacional significa coisas diferentes parapessoas diferentes, e fenômenos diversos sãotratados com nomes idênticos. Parece-nosessencial que os interessados nas operaçõesinternacionais no campo econômico escla-reçam o significado dos seus termos ao dis-cutirem a empresa multinacional”.

As multinacionais norte-americanas, nodizer de DREIFUSS (1997, p. 135), dinami-zaram três grandes processos de transfor-mação transnacionalizante: de mundializaçãode estilos, usos e costumes; de globalizaçãotecnológica, produtiva e comercial; e de pla-netarização da gestão. “Três processos essen-cialmente diferentes da histórica internacio-nalização e multinacionalização, embora os ter-mos sejam muitas vezes usados indistinta-mente”.

As alianças são concretizadas das maisvariadas formas, sendo que a maioria reali-za-se para a projeção global.

Podem ser extremamente diversifica-das, com algumas corporações chegandoa formar, nas palavras de DREIFUSS(1997, p. 121, 133), verdadeiras redes tecnoe-conômicas. E concluindo,

“Vivemos, neste final de milênio,as perplexidades de três processosestonteantes. Por um lado, a globaliza-ção financeira e de modos de produzir(...) Geminado a este processo econô-mico, a mundialização social e de mo-dos de viver, escorada na paraferná-lia e na prática dos sistemas de telein-focomunicação, produzindo umamalha de relações que dizem respeito

ao comportamento ‘transnacionaliza-do’ em torno de novos produtos e ser-viços oferecidos nos macromercadose sociedades transfronteiriças. E, porfim, a planetarização política e institu-cional das estruturas de poder (...)Concomitantes, (...) vivemos as suascontraposições, antinomias (...) Vive-mos uma variedade de ‘modernida-des’ e ‘pós-modernidades’ (...), rasgan-do horizontes inimagináveis (...) e,assim mesmo, convivendo com afome, a doença e a miséria, tão ampla-mente espalhadas”.

O processo de concentração empresarial,que adquiriu feições peculiares a partir daRevolução Industrial e então foi-se amplian-do, na verdade teria existido nas socieda-des mais remotas, coincidindo com o adven-to da economia de trocas. Uma visão maisrestrita, contudo, não as reconhece com amesma natureza da moderna concentraçãoempresarial.

O movimento concentracionista iniciou-se para evitar os males da livre concorrên-cia de um lado e, de outro, propiciar o au-mento da produtividade, racionalizando aprodução. Atualmente, o objetivo de tal mo-vimento é reorganizar a empresa, além depropiciar o crescimento da eficiência dasempresas coligadas por meio da “reformadas estruturas industriais e, assim, bus-car a dimensão ótima” (BULGARELLI,1997, p. 23).

Há muitas dificuldades para a classifi-cação do fenômeno concentracionista e, en-tre elas, a diferença entre a noção econômi-ca e a jurídica. Sob o ângulo econômico, en-tende-se que, para que a concentração efeti-ve-se, basta que haja o aumento da dimen-são da empresa aliado à diminuição de seunúmero, tanto horizontalmente, entre empre-sas no mesmo nível de produção, quantoverticalmente, entre empresas de atividadescomplementares. Sob o ângulo jurídico, háque se atentar para duas fases no processoconcentracionista: na primeira, as empresascrescem com a absorção ou de outras opera-

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ções nesse sentido, como a fusão e a com-pra de ativos; na segunda, ao atingiremuma determinada dimensão e poder, ado-tam novas técnicas para prosperar, comoa coligação, ou desconcentram-se, ou fun-dam filiais, ou adquirem o controle dasoutras, variando, nessa fase, o uso das téc-nicas jurídicas.

Vários foram os caminhos pelos quaisas empresas aumentaram suas dimensões,como o da absorção das menores e mais fra-cas, ou a integração com outras do mesmoporte e poder, pela fusão. A absorção que sedeu pela compra pura e simples do ativo deoutras ou dos seus estabelecimentos efeti-vou-se, também, pela incorporação. Masnem sempre esses processos revelaram-seos melhores, passando as empresas, então,a associarem-se com outras do mesmo ní-vel, na defesa contra o aumento de preçosem momentos de crise, ou para se subtraí-rem à concorrência danosa. Criou-se, assim,o cartel, que depois passou a ter um caráterpejorativo, a significar o acordo entre em-presas para disciplinar a concorrência.

Outros tipos de associação desenvolve-ram-se, caracterizando-se inicialmente umaintegração vertical, reunindo empresas devários níveis de produção, desde a matéria-prima até mesmo à entrega ao consumidorfinal, o que recebeu o nome, na Alemanha,de konzern, tendo sido traduzido, na Itália ena França, por grupo, tendo por objeto a ra-cionalização da produção, a redução doscustos e o aumento da produtividade. Seumodelo era associativo, mantendo váriasempresas autônomas sob direção única, quese chamou cappogruppo na Itália, levandoao problema das sociedades coligadas por meiode inúmeras formas. “Hoje, tomaram umacerta uniformização em torno, em geral, deuma holding , sem atividade econômica es-pecífica, a não ser a do próprio controle”(BULGARELLI, 1997, p. 53).

Integrando também a história da evolu-ção do fenômeno concentracionista, encon-tra-se o trust, típico instituto do common law,consistindo na entrega de um bem pelo ces-

tui que trust ao trustee para conservá-lo e geri-lo, sem proveito, a não ser uma comissão.Em relação à concentração, sua significa-ção atual é a de um conjunto de sociedadessubmetidas a uma direção única.

Vêm-se verificando novas formas de acor-dos de empresas, além dos consórcios italia-nos (destinados a disciplinar os preços econdições de venda ao contingente da pro-dução e à distribuição de zonas territoriais),como os chamados GIE – Groupementsd’interés economiques, na França, destinadosà fusão dos serviços de venda, evitando des-pesas, baixando o preço da produção ou devenda (COMPARATO, 1995, p. 148). Assi-nalou-se, também, no Brasil, a existência doconsórcio ou agrupamento de empresas,fugindo às formas clássicas de concentra-ção empresarial, mas desde que não aten-tassem contra a livre concorrência.

Todas essas fórmulas, que existiram al-ternadamente ou mesmo coexistindo váriostipos nos diversos países, foram aos poucoscircunscrevendo-se a determinados tiposbastante expressivos e que, embora aindabastante variados, podem ser identificados.Assim, apresentam-se hoje em formas con-sideradas radicais, como a fusão, a incor-poração e a venda pura e simples de ativo, enas mais flexíveis, como o grupo, a divisãototal ou parcial de sociedades, as uniõespara fins de pesquisa, entre outros.

O desenvolvimento da economia brasi-leira, nos últimos anos, fez com que o fenô-meno concentracionista tomasse vulto acen-tuado no Brasil, pois passou a exigir fórmu-las e mecanismos técnico-econômico-finan-ceiros para o aumento da produtividade. OI Plano Nacional de Desenvolvimento, apro-vado em 1971, refletiu o apoio estatal, emrelação, principalmente, às fusões e incor-porações de empresa, a fim de modernizar efortalecer a empresa privada nacional. E, porseu turno, o Estado passou a atuar na eco-nomia, por intermédio de suas própriasempresas, sobretudo no setor de serviçospúblicos e alguns setores econômicos vitais,como o petrolífero, bancário, as telecomuni-

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cações e a energia elétrica, nos quais des-pontam grandes empresas de porte interna-cional.

Os setores nos quais o fenômeno concen-tracionista incidiu com maior intensidadeforam, principalmente, o industrial, o ban-cário, o de seguros e serviços, notadamentepor força dos incentivos fiscais concedidos.No Brasil, portanto, com a existência dasgrandes empresas e a instauração do con-centrate, observou-se, assim como nos paí-ses desenvolvidos, a existência da concor-rência imperfeita, o que exigiu a interven-ção do Estado, mas sem perder de vista anecessidade de se planejar ou dar seguimen-to aos planos de política econômica. Nessesentido, várias leis foram promulgadas parareprimir quer os crimes contra a economiapopular, quer o abuso do poder econômico.

4. Do controle e dos órgãospor ele responsáveis

4.1. O surgimento da Lei 8.884/94 (LeiAntitruste) e seus princípios norteadores

Semelhante à maioria dos fenômenos queproduzem reflexos no âmbito sócio-econô-mico, a concentração empresarial e as práti-cas comerciais em geral também possuemaspectos negativos, razão pela qual foi ne-cessária a criação de uma forma de contro-le, consubstanciada, no ordenamento jurí-dico brasileiro, na chamada Lei Antitruste.

Data da Constituição Federal de 1946 apreocupação com as práticas comerciais, oque se depreende da leitura de seu art. 148,in verbis: “A lei reprimirá toda e qualquerforma de abuso de poder econômico, inclu-sive as uniões ou agrupamentos de empre-sas individuais ou sociais, seja qual for asua natureza, que tenham por fim domi-nar os mercados nacionais, eliminar aconcorrência e aumentar arbitrariamenteos lucros”.

Em atenção a esse preceito constitucional,em 10/09/62 foi promulgada a Lei n. 4.137,que institui o CADE – Conselho Adminis-

trativo de Defesa Econômica, além de elen-car quais atitudes constituíam ameaça à or-dem econômica. Em 11/06/94, a Lei n. 8.884regulamentou o art. 173, § 4º, da Constitui-ção Federal de 1988 (CF/88), transformou oCADE em autarquia federal, dispondo tam-bém sobre prevenção e repressão às infra-ções contra a ordem econômica. É esta a LeiAntitruste, até hoje em vigor, tendo sofridoalgumas alterações em virtude de medidaprovisória.

Tem a lei o intuito de prevenir e reprimirqualquer forma de abuso, razão pela qualdurante o procedimento administrativo po-derão ser tomadas medidas preventivas,bastando para tanto que haja indício ou fun-dado receio de que a situação em questãopossa causar ao mercado lesão irreparávelou de difícil reparação; caso o delito já te-nha sido consumado, a lei comina as devi-das penalidades.

A ordem econômica no Brasil é regidapelos princípios da livre concorrência, dafunção social da propriedade, da defesa doconsumidor (art. 170 da CF/88), da livreiniciativa e da repressão ao abuso do podereconômico (esses dois acrescentados ao sis-tema econômico pela Lei Antitruste).

Segundo CRETELLA JÚNIOR (1996, p. 5),livre iniciativa “é a possibilidade de agir, nes-te ou naquele sentido, sem influência exter-na”. Nesse aspecto, configurar-se-ia o Esta-do mínimo, intervindo nos casos de deficiên-cia da iniciativa privada, ou em caso de con-flitos. Teria ainda o Estado a obrigação decriar mecanismos que incentivassem a im-plantação do regime da livre iniciativa.

O regime da livre concorrência ou livrecompetição caracteriza-se por um grandenúmero de entes atuando no mercado, comelevado número de ofertas, o que produzi-ria a diminuição dos preços ao consumidor.Por isso é que devem ser penalmente repri-midas manobras tendentes a eliminar a con-corrência, pois a eliminação da concorrên-cia culminaria com a dominação dos mer-cados, concentrados em uma ou algumassociedades.

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O princípio da função social da proprie-dade significa que esta perdeu seu cunhounicamente individual de atender apenasaos interesses de seu titular. Segundo esseprincípio, a propriedade deve atender uminteresse muito maior, qual seja, o interessepúblico, haja vista a sua repercussão no pró-prio mercado.

O princípio da defesa do consumidorbusca estabelecer um equilíbrio nas relaçõesde consumo, equilíbrio esse naturalmenteinexistente, uma vez que o consumidor é aparte mais frágil da relação. Por isso a cria-ção da Lei 8.078/90, o Código de Defesa doConsumidor, que repreende qualquer formade abuso, garantindo a reparação dos da-nos materiais e morais sofridos pelo consu-midor.

CRETELLA JÚNIOR (1996, p. 13) forne-ce ainda o conceito de abuso de poder eco-nômico que, segundo o mesmo, “é toda açãoou manobra do empresário ou de seu repre-sentante legal que, dominando o mercado ea concorrência, tenha por objetivo a obten-ção de lucros excessivos, causando danos aoutras pessoas, físicas ou jurídicas, e ao Es-tado”.

Entre todos os princípios acima elenca-dos, o que merece maior destaque é a prote-ção à livre concorrência. Por isso, seguem al-guns comentários específicos desse tema.Logo, em princípio, deve-se destacar que otermo livre não designa concorrência livrede condicionamentos jurídicos; significa,sim, que o legislador pretendeu livrar a con-corrência de práticas abusivas.

Por isso é que se pode dizer que é precisoanalisar criticamente o regime da concor-rência no Brasil. Isso porque a concorrência“não é um valor-fim, mas um valor-meio”classificada como instituto jurídico filiadoàs normas do Direito Econômico. Assim sen-do, torna-se instrumento de realização deuma política econômica, cujo escopo prin-cipal não é simplesmente reprimir práticaseconômicas abusivas, e sim estimular todosos agentes econômicos a participarem doesforço de desenvolvimento.

Nesse contexto, para que se caracterizea concorrência, na opinião de Ferreira deSouza (cf. VAZ, 1993, p. 24), é preciso quecoexistam três identidades: de tempo (deve tra-tar-se da mesma época, pois não se opõemeconomicamente produtores, comerciantesou industriais de fases distantes entre si), deobjeto (abrange os de espécie idêntica e osafins, que os substituem, embora não intei-ramente iguais, nem dotados do mesmo graude utilidade – concorrência indireta) e demercado (o notável progresso e o aperfeiçoa-mento dos meios de transportes e de comu-nicações relativizaram as distâncias. Assim,os concorrentes precisam atuar no mesmomercado, independentemente do espaçogeográfico).

Além dessas, para existir concorrênciaentre duas empresas (no sentido de ativida-de), elas não podem encontrar-se em umarelação de complementaridade ou de ins-trumentalidade.

Raymond Barre (cf. VAZ, 1993, p. 28)estabelece algumas condições que devem serobservadas para que a concorrência seja ditaperfeita. Entre essas, a principal é a “livreentrada na indústria”, que significa a pos-sibilidade de qualquer ente ingressar nomercado em estudo, sem que encontre óbi-ces criados pelos demais concorrentes.

Caso não se verifique a perfeita concor-rência, é possível e bem provável a forma-ção dos monopólios e/ou oligopólios, comos quais então uma ou algumas sociedadespassam a ter o domínio do mercado, sejaquanto à produção, seja quanto à venda,mas sempre estando em condições de alte-rar os preços e demais fatores que envolvemos mecanismos de mercado, deixando emdificuldades os possíveis aspirantes a con-correntes.

Em determinados momentos e locais, al-gumas práticas em tese prejudiciais à livreconcorrência são permitidas com vistas, porexemplo, a obter economia de escala, o for-talecimento do país ou seu progresso técni-co, desde que não prejudiquem o consumi-dor. Porém, em alguns lugares, como foi na

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cidade de Gdansk (Polônia), ocorreu dese-quilíbrio entre o investimento e o consumo,havendo redução do poder aquisitivo dapopulação. Pressionado, o Estado voltou àadministração econômica centralizada, aca-bando com os tipos de mecanismos de mer-cado que vinham sendo implantados. Aautora lembra que o Brasil é o país que temuma das mais cruéis concentrações de rendado mundo, e justifica da seguinte maneira:

“a desigual distribuição ocorre, entreoutras razões, por fenômenos concen-tracionistas que acabam eliminandoos aspectos positivos da concorrênciae os monopólios se traduzem em pos-sibilidades de açambarcamento debens, de acesso a posições de domí-nio nos planos econômico, militar, tec-nológico e, conseqüentemente, de eli-minação de outros partícipes no mer-cado”.

E assim conclui:“(...) um país onde Estado e empresaainda não conseguiram entender-se.O resultado desse desajuste é repre-sentado por uma das mais perversasconcentrações de renda do mundo,conseqüência, sem dúvida, do desres-peito aos princípios constitucionaisinformadores do instituto da concor-rência” (VAZ, 1993, p. 26, 51).

Gustavo Franco (VAZ, 1993, p. 224) en-sina que: “há os que argumentam que asempresas precisam ser grandes e protegi-das para auferirem lucros extraordináriosque são necessários para financiar esforçostecnológicos, mas o ponto de vista opostosustenta que a ausência de competição e oexcesso de regulação não incentivam essesesforços. Assim, há os que defendem a des-regulação e há opositores ferrenhos”.

“A repressão ao abuso do poder eco-nômico, que figurava como princípioda ordem econômica e social na Cons-tituição revogada (art. 160, inciso V),foi deslocada, na Carta vigente, paraa condição de 4o parágrafo do art. 173.Isto significa que a preservação da li-

vre concorrência é mais importante nahierarquia constitucional vigente doque a repressão aos abusos do podereconômico. Trata-se, ao que tudo in-dica, de uma mudança qualitativa denatureza política, segundo a qual ovalor jurídico representado pela livreconcorrência se sobrepõe às normas derepressão ao abuso do poder econômico .Estas adquirem o sentido de instru-mentos jurídicos de defesa do princí-pio constitucional que, na estruturada Lei Fundamental, apresenta-se hie-rarquicamente mais valioso. No con-texto da ordem econômica, a livre con-corrência se posiciona, em compara-ção com o parágrafo 4o do art. 173,como em uma relação entre ‘meios’ e‘fim’, embora este fim se localize ladoa lado com os demais princípios doart. 170 e constitua também um ‘insti-tuto jurídico’ autônomo, pela comple-xidade de normas que engloba”(VAZ, 1993, p. 101).

Assim, de acordo com a legislação vigente,existe o princípio (livre concorrência) e anorma (repressão ao abuso do poder econô-mico), sendo aquele prevalente sobre esta.Concluindo, “a livre concorrência é um prin-cípio informador da atividade econômica,enquanto a repressão ao abuso do podereconômico configura um dos instrumentos desua proteção” (VAZ, 1993, p. 287).

Para realizar esse controle das ativida-des, foram designados alguns órgãos, sen-do os principais o Conselho Administrati-vo de Defesa Econômica (CADE), a Secreta-ria de Direito Econômico (SDE), a Secretariade Acompanhamento Econômico (SEAE),além dos órgãos componentes do sistemade defesa do consumidor. Entre esses, des-tacam-se o CADE e a SDE, cujas estruturas eatribuições serão agora analisadas.

4.2. A Secretaria de DireitoEconômico e suas funções

A Secretaria de Direito Econômico (SDE)é um órgão vinculado ao Ministério da Jus-

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tiça, dirigida por um Secretário. Desempe-nha importante papel no controle das ativi-dades comerciais, estando suas atribuiçõeselencadas no art. 14 da Lei Antitruste. Pode-se destacar, entre as competências da SDE,promover investigações prévias à instaura-ção de processo administrativo por infra-ção à ordem econômica e instaurar proces-sos relativos a essas, assim como recorrerde ofício ao CADE quando considerar queas averiguações preliminares ou o processoadministrativo devem ser arquivados. Eminstaurando processo, cabe-lhe remetê-lo aoCADE, para a devida deliberação, e tambémcelebrar compromisso de cessação, subor-dinando-o à averiguação do CADE, e, seprocedente, acompanhar seu cumprimento.Compete-lhe também sugerir os termos docompromisso de desempenho e fiscalizarsua colocação em prática, adotar medidaspreventivas para cessação de infração à or-dem econômica, podendo estabelecer valorde multa diária pelo descumprimento, alémdo prazo que deve perdurar a medida. Deve,enfim, monitorar o mercado, razão pela qualpode solicitar documentos e prestação deesclarecimentos (em sigilo, se for o caso),sempre que necessários à constatação dosindícios existentes, lembrando que, confor-me o caso concreto, a Secretaria poderá de-terminar medidas preventivas, que levem àcessação da prática ofensiva à ordem eco-nômica.

Merecem destaque as averiguações pre-liminares, que constituem procedimentosumário, de caráter inquisitório, não com-portando, portanto, análise de questões dealta indagação nem amplas consideraçõesatinentes ao mérito. Em um só caso serãodispensáveis: quando houver representaçãode Comissão do Congresso Nacional ou dequalquer de suas Casas.

4.3. Conselho Administrativo de DefesaEconômica (CADE): estrutura, funções,

modos de atuação e otimização de resultados

Como já referido, foi criado em 1962 etransformado em autarquia federal (enten-

dida como entidade autônoma, auxiliar edescentralizada da administração pública,sujeita à fiscalização e tutela do Estado, compatrimônio constituído de recursos própriose cujo fim é executar serviços de caráter es-tatal ou interessantes à coletividade, como,entre outros, caixas econômicas e institutosde previdência) pela Lei Antitruste. É com-posto por seis conselheiros e um Presiden-te, que exercem mandato, sendo nomeadospelo Presidente da República, após aprova-ção do Senado Federal.

São competências do CADE as atribui-ções administrativas que a referida lei lheoutorga, além das outras que podem serdepreendidas por análise sistemática. Po-rém, nem sempre foi assim. Sob a égide doDec. 99244/90, o CADE teve suas compe-tências reduzidas, passando a ser órgão in-termediário da então existente SecretariaNacional de Desenvolvimento Econômico.Atualmente, essencialmente, tem o dever dezelo pela referida lei e seus dispositivos, ra-zão pela qual seus membros devem traba-lhar com a máxima celeridade e seriedade,sob pena de responsabilidade.

Nesse contexto, o art. 7o é o dispositivomais importante, uma vez que estabeleceatribuições do Plenário do CADE, entre asquais considerou-se merecer destaque: ave-riguar a existência de infração à ordem eco-nômica e, em caso positivo, aplicar as devi-das penas, podendo também determinarmedidas para cessação de prática ofensiva;julgar os processos instaurados pela SDE edecidir os recursos de ofício de seu Secretá-rio; firmar os termos do compromisso dedesempenho e de cessação de prática noci-va, determinando que a SDE acompanhe ocumprimento de ambos; comunicar aos in-teressados todas as suas decisões, de modoa possibilitar o contraditório; fazer o pedi-do de informações, em sigilo, se for o caso, edeterminar diligências no sentido de bemdesempenhar suas funções; contratar a rea-lização de vistorias por profissionais, sen-do que o pagamento das despesas deve fi-car a cargo da sociedade que vier a ser puni-

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da no processo; analisar atos ou condutas aele submetidos nos termos do art. 54, fixan-do, se for o caso, compromisso de desempe-nho; fazer valer suas decisões, requerendoao Poder Judiciário que sejam executadas.

Para tanto, funciona junto ao CADE umaProcuradoria, cujas principais atribuições,segundo o art. 10, são executar judicialmen-te as decisões do CADE; requerer, medianteautorização do Plenário do CADE, medidasque visem a eliminar infrações à ordem eco-nômica; propor acordos judiciais, com au-torização do Plenário e manifestação doMinistério Público, nos processos relativosàs infrações contra a ordem econômica.

Para otimizar os resultados de sua ativi-dade, o CADE a desempenha, desde 1996,norteado por uma estratégia que privilegiaa decisão em tempo econômico; a difusão da cul-tura da concorrência; a globalização da defesada concorrência; articulação de suas atividadescom as políticas públicas; a capacitação do pró-prio CADE e do Sistema Brasileiro de Defesa daConcorrência (SBDC).

Não se questiona que é imprescindível aceleridade na defesa da concorrência, ain-da mais tendo em vista a dinamicidade dasrelações comerciais, razão pela qual umapendência judicial ou administrativa podecausar grandes prejuízos. Porém, não é fá-cil haver agilidade quando há mais de umórgão responsável por determinado proce-dimento.

Assim, para que fosse possível alcançartal resultado, algumas modificações foramintroduzidas nos julgamentos. Dessa forma,casos mais simples requerem menor buro-cracia, além do que a audiência inicial dequalquer processo tem representantes doCADE, da SDE e da SEAE. Outra providên-cia foi a priorização seletiva, segundo a qualdevem ser julgados os atos apresentadosantes da sua realização, de modo a estimu-lar essa prática pelos entes atuantes. Por fim,sempre que possível é realizada a distribui-ção dos processos pela conexão temática,além da realização de mutirões para deci-dir vários processos de uma só vez. Além

dessas medidas, existe a pretensão, aindanão implementada, de que haja unificaçãode todos os órgãos que tenham por objeto,mediato ou imediato, a defesa da livre con-corrência e, conseqüentemente, defesa dosdireitos do consumidor.

Para possibilitar o conhecimento dessaspolíticas de defesa da concorrência, o CADEvem exercendo, antes de seu papel repres-sor, o educativo e o preventivo, por meio,por exemplo, da criação de Fórum Perma-nente de Políticas da Concorrência, da rea-lização de intercâmbios, além da página nainternet, hoje talvez o meio mais eficiente decomunicação do mundo.

Tendo em vista o avanço das relaçõesinternacionais, de forma globalizada, rele-vante também a atuação do CADE no senti-do de cooperação entre países para a defesada concorrência. Em virtude dessa preocu-pação, já foram firmados Acordos de Coo-peração com outros países; todavia, em vir-tude de vários fatores, nem todos foram exe-cutados.

Embora se viva na atualidade a teoriado Estado mínimo, que deve intervir somen-te quando estritamente necessário, de extre-ma importância é também a atuação doCADE, assessorada pelas políticas públicas,com a colaboração dos órgãos de política decompetitividade, de comércio exterior, dedefesa comercial, entre outros.

Por fim, para que seja possível atuar comceleridade e eficiência, é preciso capacitar oelemento humano, com a celebração de con-vênios e oferecimento de cursos de defesada concorrência, de modo a que os conse-lheiros, bem como todos os membros da Pro-curadoria e da Assessoria permanente doCADE, sejam suficientemente capacitadospara desenvolver suas atividades.

4.4. Principais infrações à ordem econômica,sua apuração e as conseqüências de sua prática

Constam da Lei n. 8884/94 o elenco dasinfrações à ordem econômica, a forma comoas mesmas devem ser apuradas e tambémas conseqüências de sua prática.

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Legislação antitruste pode ser entendi-da como “o conjunto de regras e institui-ções destinadas a apurar e a reprimir as di-ferentes formas de abuso do poder econô-mico e a promover a defesa da livre concor-rência” (VAZ, 1993, p. 243). Essas modali-dades abusivas de uso do poder econômicopodem consistir em monopólios, oligo-pólios, cartéis, algumas práticas concentra-cionistas, ainda que temporárias e mera-mente contratuais, desde que suscetíveis decontrariar o interesse público, de prejudicaro consumidor ou de atentar contra osprincípios consagrados na Constituiçãopara reger a conduta dos diferentes agen-tes econômicos.

Na Constituição de 1934, a legislaçãoantitruste tinha um sentido teleológico, jáque, conforme o art. 117, lei ordinária deve-ria fomentar a economia popular que, de modoindireto, é até hoje o bem tutelado, vez quese protege a concorrência para garantir bompreço, permitir desenvolvimento tecnológi-co e assegurar o abastecimento às pessoas.

Já na Constituição de 1937, legislaçãoantitruste tinha um sentido imperativo-ne-gativo, tendo sido instituídas penas para osdelitos tipificados como crimes contra a eco-nomia popular. Nesse sentido, o art. 141 foiregulamentado pelo Dec. 869, de 18/11/38,considerado por Benjamin Shieber (cf. VAZ,1993, p. 245) como a primeira lei antitrustebrasileira.

O próximo passo nessa evolução foi aCarta de 1946, em seu art. 148. Antes de serpromulgada a Lei n. 4.137/62, que regula-mentou esse dispositivo, ocorreu a promul-gação das Leis 1.521/51 e 1.522/51, estaúltima permitindo a intervenção do gover-no federal para assegurar a distribuição deprodutos necessários ao consumo, e aquelacontendo formas de julgamento e puniçãopara crimes e contravenções contra a eco-nomia popular. O ápice da evolução legis-lativa foi a promulgação da lei antitrusteatual, objeto do presente estudo.

Além de serem diferentes as leis antitrustedos países do Primeiro Mundo e as dos ou-

tros países, são diferentes também as hipó-teses em que elas são efetivamente aplica-das. Em alguns países, como Japão e Ale-manha, foram até mesmo constituídas es-truturas semelhantes ao que, no Brasil, sechama cartel, sob a denominação, respecti-vamente, de zaibatsu e konzerne, tendo sidoos mesmos responsáveis pelo desenvolvi-mento industrial atingido por esses países.Ademais, esses países também praticaramprotecionismo econômico e subsídios. So-mente após conquistado certo desenvolvi-mento, de modo a possibilitar que esses paí-ses concorressem com os demais, é que foiaplicada internamente a legislação antitrus-te. A estrutura brasileira, porém, é comple-tamente diferente, sendo que o Estado sem-pre interveio, seja no atinente às matérias-pri-mas, seja no aproveitamento das mesmas.Assim, o Estado exerceu, desde cedo, regu-lamentação, controle e vigilância, ainda quenão se tivesse atingido desenvolvimentoeconômico e industrial necessários.

Muitas são as práticas que trazem prejuí-zo ao mercado de um modo geral, cons-tituindo infrações à ordem econômica. Po-dem ser praticadas por pessoas físicas oujurídicas, de direito público ou privado, as-sociações ou entidades de pessoas, consti-tuídas de fato ou de direito, com ou sem per-sonalidade jurídica. Em caso de responsa-bilidade, esta poderá recair sobre a socieda-de e seus dirigentes/administradores soli-dariamente, ressaltando que, havendo gru-po econômico, de fato ou de direito, as so-ciedades ou entidades serão solidariamen-te responsáveis.

Em se combinando os arts. 20 e 54 daLei 8.884, pode-se elencar quatro hipótesesde infrações à ordem econômica: (a) atos quepossam limitar a concorrência; (b) atos que,de qualquer forma, possam prejudicar a li-vre concorrência; (c) atos que possam resul-tar na dominação de mercados relevantesde bens; (d) atos que possam resultar nadominação de mercados relevantes de ser-viços. Esses são os atos submetidos ao con-trole do CADE.

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Deve-se, já aqui, ressaltar que, na apura-ção das infrações contra a ordem econômi-ca, não se perquire de culpa, além do que asmesmas configuram também um delito for-mal que pode ser definido como “ato sobqualquer forma manifestado, que tenha porobjeto ou possa produzir danos à ordemeconômica, mesmo que o efeito não seja al-cançado e independentemente de culpa”(CRETELLA JÚNIOR, 1996, p. 113). Aqui,atos devem ser entendidos como qualquerforma de concentração econômica, sendoesta pela forma de fusão, incorporação, gru-po de sociedades ou qualquer outro instru-mento concentracionista.

Tais atos devem ser submetidos ao con-trole a priori, mediante remessa anterior àsua realização, ou a posteriori, no prazo de15 dias após a sua concretização. Em casode desrespeito a esses prazos, o CADE po-derá impor multa e instaurar processo ad-ministrativo. Nesta hipótese, a SEAE emiti-rá parecer técnico e a SDE também se mani-festará, enviando o processo ao plenário doCADE para deliberação no prazo de 30 dias.Esse prazo pode ser suspenso se o CADE, aSDE ou a SEAE solicitarem esclarecimentose documentos.

Para configuração da infração, é neces-sário que a conduta produza, ou possaproduzir, de acordo com o citado art. 20,prejuízo à livre concorrência e/ou à livre ini-ciativa, limitando-as ou falseando-as, sobqualquer forma; dominação de mercado re-levante de bens e/ou serviços (quando, po-rém, a conquista se dá em virtude de maioreficiência do agente em relação aos concor-rentes, não se caracteriza o ilícito); aumentoarbitrário de lucros; abuso do exercício deposição dominante (esta se configura quan-do uma sociedade ou um grupo delas domi-na parcela substancial do mercado – 20% – ,estando na posição de fornecedor, interme-diário, adquirente ou financiador de produ-to, serviço ou tecnologia a ele relativa).

O art. 54, porém, legitima alguns atos que,a priori, seriam infracionais, desde que pre-sentes requisitos como aumento da produ-

tividade e eliminação da concorrência deforma não substancial. Por isso se diz que,na prática, no ordenamento jurídico brasi-leiro, não se adotou um posicionamento:condena-se ou não as infrações à livre con-corrência? Afinal, muitas práticas não sãoreprimidas ou punidas, tendo-se em vistatodas as atenuantes desse dispositivo. Issose justifica pelo fato de que não há, ainda,conceito sólido do que é prejudicial ou nãoà livre concorrência.

Conceito de difícil formulação é mercadorelevante. Segundo Del Chiaro (cf. CARVA-LHO, 1994, p. 12), “a qualificação em umcaso concreto, de um dado mercado comorelevante, constitui tarefa que precede logi-camente qualquer análise de poder econô-mico, uma vez que toda concentração de umfenômeno de poder econômico se dá noâmbito de um mercado de bens ou serviçosjuridicamente individualizado”.

Shieber (cf. CARVALHO, 1994, p. 13) trazà baila jurisprudência norte-americana nosentido de que “o mercado relevante é com-posto de produtos que razoavelmente po-dem ser substituídos um pelo outro quandoempregados nos fins para os quais são pro-duzidos, levando em consideração o preço,a finalidade e a qualidade deles”.

Segundo Isabel Vaz, sob a égide da Lei4.137/62, mercado relevante deveria ser en-tendido como “mercados nacionais”. Po-rém, evoluindo o pensamento, conclui queo mercado relevante, ainda em termos geo-gráficos, pode ser menor que o mercado na-cional, o que não exclui a possibilidade decoincidência entre ambos. Porém, para apu-ração das práticas anticoncorrenciais, o cri-tério geográfico não é suficiente, vez que nãopodem ser excluídos os mercados locais.Assim, por mais difícil que seja a tarefa, deveser identificado o mercado relevante de acor-do com o bem ou serviço em questão, o quedepende muito das atividades de que so-brevive determinada região.

O que se pode concluir nesse estudo éque o mercado relevante será definido, no casoconcreto, mediante a situação em análise.

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Neste ponto, deve-se destacar a opinião deum presidente do CADE, João Grandino, deque há um caráter decisório nos julgamen-tos do Plenário, principalmente em se tra-tando de conceitos fluidos como esse.

Como já referido, o Plenário do CADEtem competência para decidir sobre a ocor-rência ou não de infração, aplicar a penaequivalente, além de apontar a providênciaque deve ser tomada para que o ato cesse esejam eliminados os efeitos nocivos.

Os atos, porém, poderão ter continuida-de, sob condição suspensiva, isto é, nas hi-póteses permissivas do art. 54, poderão con-tinuar a produzir efeitos, conforme os limi-tes legais. Desrespeitados esses limites, o atopoderá ser desconstituído pelo Plenário doCADE, devendo ser reparados os eventuaisprejuízos causados a terceiros.

Essas condições têm seu cumprimentoassegurado, em tese, pelo chamado compro-misso de desempenho, previsto pelo art. 58. Eleé fixado tendo em vista a competitividadedo setor em questão frente ao sistema interna-cional, as alterações do nível de emprego, en-tre outros. As metas qualitativas e/ou quan-titativas deverão ter prazos preestabelecidos,devendo esses ter seu cumprimento verifica-do pela SDE. O descumprimento do compro-misso de desempenho gera a revogação daaprovação, de ofício ou por provocação daSDE, e o início de processo administrativo.

Por outro lado, poderá haver celebraçãode compromisso de cessação de prática sob in-vestigação, o que não implica confissãoquanto à matéria de fato nem reconhecimen-to de ilicitude da conduta praticada.

Em caso de aprovação dos atos submeti-dos a julgamento, deverá haver revisão, deofício ou por provocação da SDE, em trêshipóteses, a saber: quando não atingidos osbenefícios/objetivos visados; em caso dedescumprimento das condições; quando adecisão tiver seu fundamento em informa-ções falsas ou enganosas prestadas pelointeressado.

Muitas são as condutas infracionais(art. 21), merecendo destaque: fixar ou pra-

ticar, em acordo com concorrente, sob qual-quer forma, preços e condições de venda debens ou prestação de serviços; obter ou in-fluenciar a adoção de conduta comercialuniforme ou concertada entre os concorren-tes; criar dificuldades à constituição, ao fun-cionamento ou ao desenvolvimento de em-presa concorrente ou de fornecedor, adqui-rente ou financiador de bens ou serviços;impedir o acesso de concorrentes às fontesde insumos, matérias-primas, equipamen-tos de tecnologia, bem como aos canais dedistribuição; impor, no comércio de bens ouserviços, a distribuidores, varejistas e repre-sentantes, preços de revenda, descontos,condições de pagamento, quantidades mí-nimas ou máximas, margem de lucro ouquaisquer outras condições de comerciali-zação relativos a negócios destes com ter-ceiros; impor preços excessivos ou aumen-tar sem justa causa o preço de bem ou servi-ço (para análise dessa hipótese, devem-selevar em consideração a situação econômi-ca e mercadológica do momento, o custo dosinsumos, a ocorrência ou não de melhoriasqualitativas no produto ou serviço, o preçoanteriormente praticado – desde que não ti-verem ocorrido mudanças substanciais noproduto – , o preço de produtos e serviçossimilares, ou sua evolução, em mercadoscompetitivos comparáveis, a existência dereajuste ou acordo, sob qualquer forma, queresulte em majoração do preço do bem ouserviço ou dos respectivos custos).

Caracterizada a infração, e mediantedevido processo legal, com direito ao contra-ditório e à ampla defesa, compete ao Plenáriodo CADE determinar quais as penalidades aserem impostas à sociedade em questão.

Entre as penalidades, as mais usuaissão a multa (os valores arrecadados re-vertem em proveito do fundo prescrito noart. 13 da Lei 7.347/85, destinando-se àreconstrução dos bens lesados, conformeo art. 84 da Lei 8.884/94), para a sociedadeou para o administrador, direta ou indire-tamente responsável; a inscrição do infratorno Cadastro Nacional de Defesa do Consu-

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midor; a cisão de sociedade, transferência decontrole societário, venda de ativos, cessaçãoparcial de atividade ou qualquer outro ato ouprovidência necessários para a eliminaçãodos efeitos nocivos à ordem econômica.

Deve ficar claro que o contraditório nãose estabelece entre representante e represen-tado, mas sim entre o Poder Público, na defe-sa dos direitos da coletividade, e o represen-tado, ou seja, o agente econômico cuja even-tual prática abusiva é objeto de apuração.

Para conferir efetividade às decisões doPlenário do CADE, a Lei Antitruste disci-plina sua execução judicial. Deve-se ressal-tar que a decisão que comine multa ou im-ponha obrigação de fazer ou não fazer cons-titui título executivo extrajudicial, passível,na maioria dos casos, de tutela específica;não sendo possível, haverá conversão emperdas e danos, sem prejuízo das multas.Outra medida mais drástica, porém permi-tida pela lei, é a intervenção na sociedade,sempre que tal se fizer necessário para cum-primento de execução específica.

O procedimento administrativo deveráobedecer a todos os princípios a que se sub-mete a Administração Pública, que consti-tuem garantia do cidadão e, portanto, sãoinafastáveis. São esses princípios todos osconstantes do art. 37, caput, da CF/88, alémdos decorrentes do sistema constitucional,e os que regem o Estado de Direito, desta-cando-se os princípios da motivação dasdecisões, da finalidade, da razoabilidade,da proporcionalidade, da boa-fé, da oficia-lidade (o impulsionamento do processo cabeà Administração) e da verdade material.

Qualquer que seja a penalidade a serimposta, deverão ser levados em considera-ção fatores como a gravidade da infração, aintenção do infrator, a vantagem auferidaou pretendida por este, a consumação ounão da infração, a reincidência.

Sempre que houver a continuidade deatos ou situações que configurem infraçãoda ordem econômica, ainda que posterior-mente à decisão condenatória do CADE,pode haver a imposição de sanções. Geral-

mente, nesses casos a sanção é a pena demulta para cada dia de descumprimento dasdecisões do CADE, seja ela o compromissode desempenho, o de cessação, a aplicaçãode medida preventiva ou a decisão em últi-ma instância. Deve-se ressaltar que o valordessa multa pode ser aumentado em virtu-de da situação econômica do infrator e dagravidade da infração.

A prescrição, para esse tipo de infração,ocorre em cinco anos, contados da práticado ilícito ou do dia da cessação (em caso deinfração permanente ou continuada). Inter-rompe-se por qualquer ato administrativoou judicial com objetivo de apurar a infra-ção; suspende-se durante o compromisso dedesempenho ou de cessação.

Como tentativa de assegurar o direito dosprejudicados pelas práticas reprováveis, aLei Antitruste, em seu art. 29, prevê a possi-bilidade de os prejudicados, por si ou peloslegitimados no art. 82 do Código de Defesado Consumidor, ingressarem em juízo, in-dependentemente de processo administra-tivo (que não será suspenso pelo ajuizamen-to da ação), para pleitear a cessação de prá-ticas que constituam infração da ordem eco-nômica, além de requerer a satisfação deeventuais prejuízos já sofridos (perdas edanos).

Segue uma síntese do caminho a ser per-corrido até chegar à fase de condenação doinfrator:

a) A SDE promoverá averiguações preli-minares, de ofício ou mediante provocação(desde que fundamentada) de qualquer in-teressado. Essas averiguações constituempedidos de informações e esclarecimentos,não devendo ser divulgadas, uma vez queainda não houve instauração de processoadministrativo que, esse sim, é público. Esseprimeiro ato deverá ser concluído em 60 diase, conforme seu resultado, o Secretário daSDE determinará instauração do processoadministrativo ou seu arquivamento, recor-rendo, neste último caso, de ofício ao CADE.Esse prazo deve ser cumprido sempre quepossível, uma vez que o ordenamento pri-

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ma pela celeridade, sob pena de responsa-bilidade do Secretário da SDE.

b) Nos casos de parecer da SDE favorá-vel à instauração, de conhecimento do fatoou de representação, o processo terá seu iní-cio em prazo não superior a 8 dias. Comogarantia do exercício do direito de defesa, orepresentado será comunicado da instau-ração do processo, para apresentar defesano prazo de 15 dias. Não o fazendo, seráconsiderado revel, o que implica confissãoquanto à matéria de fato, correndo os de-mais prazos independentemente de intima-ção. Porém, a qualquer momento, poder-se-á manifestar, proibindo-se somente a repe-tição de atos já praticados sem a interven-ção do mesmo.

c) Em qualquer momento, desde queantes do encerramento da instrução pro-cessual, a Secretaria de AcompanhamentoEconômico poderá emitir parecer sobre asmatérias que lhe digam respeito.

d) Recebido o processo, o Presidente doCADE abre vistas à procuradoria, por 20dias, para parecer conclusivo sobre ques-tões de fato e de direito. O conselheiro-rela-tor poderá solicitar di ligências complemen-tares, novas informações, produção de novasprovas (facultado às partes), sempre que con-siderar insuficientes os elementos dos autos.

e) A decisão do CADE deverá ser funda-mentada e conterá a descrição da infração,as providências a serem tomadas para ces-sação da mesma, prazo para seu início econclusão, a multa imposta e a multa diáriapara caso de descumprimento das condi-ções e/ou continuidade da infração. A SDEfica com a incumbência de fiscalizar o cum-primento das condições. Deve-se ressaltarque a demora sem justificativa no correr doprocesso administrativo pode implicar res-ponsabilidade para os membros do CADE.

f) Durante o processo administrativo, oSecretário da SDE ou o conselheiro-relatordo CADE poderão adotar, de ofício ou porprovocação, medida preventiva, em haven-do indício ou fundado receio de que possahaver lesão irreparável ou de difícil repara-

ção ou que torne ineficaz o resultado do pro-cesso. A medida preventiva determinará acessação da prática e, se possível, a volta aostatus quo ante, e a fixação de multa diária.Dessa decisão caberá recurso voluntário,sem efeito suspensivo, no prazo de 5 dias,ao Plenário do CADE.

4.5. Controle e cartel

Por ser prática ilícita e, conseqüentemen-te, não tolerada pelo ordenamento jurídicoe pela sociedade como um todo, é necessá-rio que haja repressão à formação dos car-téis.

No caso de formação de cartéis, para bemutilizarmos o termo controle, mister que seesteja referindo à modalidade de controle aposteriori, uma vez que não pode haver umaavaliação prévia para permissão ou não deuma prática terminantemente proibida peloordenamento.

Talvez em face desse caráter é que a prá-tica do cartel seja capaz de gerar grandes etantos prejuízos, uma vez que, quando se che-ga a detectá-lo, é porque o mesmo já existe.

Isso não significa, porém, a inexistênciade punição. De ofício ou por representaçãode interessado, poderá ser aberta investiga-ção preliminar, pela SDE e, a partir daí, se-rão seguidos todos os passos já delineadosno presente.

Atualmente, para combate aos cartéis,tem sido feita opção pelo ajuizamento deação civil pública, antes mesmo do proce-dimento do CADE, vez que as decisões ju-diciais, geralmente, têm sido mais rápidas eeficazes.

5. Da proteção do consumidorcomo efeito da política de defesa

da concorrência

5.1. Generalidades

Com as novas necessidades geradas pelaRevolução Industrial, o consumidor passoua ser hipossuficiente. Como bem dissertaFILOMENO (1998, p. 107), “a sociedade in-

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dustrial engendrou uma nova concepção derelações contratuais que têm em conta a de-sigualdade de fato entre os contratantes”.

A Revolução Industrial criou a massifi-cação em todos os setores. A produção emsérie cria riscos coletivos, que são tambémos riscos do desenvolvimento.

Dessa forma, o legislador procurou pro-teger os mais fracos, devendo os contratan-tes se curvar diante do que os juristas mo-dernos chamam de ordem pública econômica.

Nesse sentido é que foi elaborado o Có-digo de Proteção e Defesa do Consumidorbrasileiro (CDC), que não é um código deconsumo, mas do consumidor; logo, centradono sujeito de direitos, e isso faz muita dife-rença, sendo seu objetivo o respeito pelapessoa humana. Os direitos do consumidorsão direitos fundamentais da pessoa huma-na. O direito de acesso ao consumo é o pri-meiro deles.

A Lei 8.078/90 (CDC) foi o diploma le-gal que trouxe grandes transformações paraa defesa do consumidor brasileiro. Pode-seressaltar sua importância quando se obser-va seu impacto sobre o mercado, que sentiua forte influência dessa regulamentação con-sumerista sobre seus mecanismos funda-mentais.

E, desde sua vigência, o CDC solidificou-se como um balizador fundamental das re-lações de mercado e de consumo, devendo-se reconhecer sua influência sobre a dinâ-mica de mercado.

Mas, mais do que inovações legislativas,um correto entendimento da evolução dadefesa do consumidor deve ser buscado nastransformações surgidas de uma sociedadede massa, nas radicais transformações dasrelações contratuais que servem de base parauma economia de mercado e no crescentepapel intervencionista do Estado. Em assimsendo, a disciplina legal das relações deconsumo surge, exatamente, da necessida-de de o ordenamento jurídico dar respostasà sociedade de massa. A sociedade de con-sumo é marcada pela impessoalidade dasrelações, pela pulverização das responsa-

bilidades e pela vulnerabilidade do consu-midor.

Com isso, surgem novas pautas de preo-cupações e reivindicações de natureza es-sencialmente coletivas.

“A princípio, o mercado, atravésde seus mecanismos naturais, funda-dos em processos de seletividade, de-veria resguardar os interesses dosconsumidores, colocados na extremi-dade da cadeia de produção. Nessaperspectiva, a liberdade de opção seencarregaria de segregar do mercadoo mau produto ou o fornecedor inidô-neo. A princípio ‘todos podem produ-zir e consumir livremente, já que omercado é aberto a todos’, sobreviven-do nele aqueles que produzissem osmelhores produtos e os vendesse sobas melhores condições. Entretanto,este ideal de liberdade de mercado foiprogressivamente corroído por obstá-culos técnicos e econômicos, que obs-taram a livre concorrência e a mobili-dade social necessária para o funcio-namento do sistema. O resultado foium processo crescente de estratifica-ção social e de formação de oligopóliose cartéis na economia. O entendimen-to desta corrosão dos vários mecanis-mos fundamentais do mercado é es-sencial para se entender o papel dodireito do consumidor na sociedademoderna. (...) A noção de mercado,assim, em nenhum momento é opostaà de Estado, que sempre ocupou emrelação àquele o papel de disciplina-dor de suas relações fundamentais.(...)

É preciso entender que a discipli-na das relações de consumo, muitoembora constitua uma intervençãoestatal no âmbito da economia, nãolimita a estrutura concorrencial domercado. Ao contrário, possibilita umreequilíbrio das relações contratuais.(...) A intervenção estatal em defesa doconsumidor possibilita um acirramen-

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to da atividade concorrencial, uma vezque permite a formação da demandade maneira mais qualitativa, aprofun-dando a dinâmica da concorrência egarantindo uma maior seletividade nomercado. A disciplina das relações deconsumo deveria atuar, assim, comoum balizamento do espaço do merca-do, favorecendo a criação de um es-paço de mercado verdadeiramenteconcorrencial, cujo funcionamentodeve estar direcionado para o desti-natário final do sistema, o consumi-dor (...)

Sem dúvida, esta influência sobreos mecanismos de regulação do mer-cado não exclui a necessidade de umanormatização da estrutura concorren-cial em um plano horizontal (fornece-dor/fornecedor), com uma legislaçãoantitruste eficiente. De qualquer for-ma, o direito do consumidor se mos-tra, ao lado das normas de defesa dalivre concorrência, um dos grandesbalizamentos legais do mercado”(SALLES, 1996, p. 85-96).

5.2. Da defesa da concorrência edo consumidor

Tanto a defesa do consumidor quanto adefesa da livre concorrência são elevadas aprincípios gerais da atividade econômicapelo art. 170 da CF/88.

Um dos diplomas legais que objeti-vam fazer valer ambos os princípios é aLei n. 8.884/94.

Entre os efeitos dessa lei, um dos maisimportantes sem dúvida é a defesa do con-sumidor. Logo em seu art. 1o, caput, prevêexpressamente que essa lei é orientada pe-los ditames constitucionais da livre concor-rência e defesa dos consumidores, entre ou-tros. Há inclusive aqueles que defendem quea defesa da concorrência só faz sentido sefocalizar o direito do consumidor, entenden-do que a defesa da competitividade/concor-rência não é valor absoluto no Brasil, massubordinada à defesa do consumidor. As-

sim, pode-se dizer que a eficácia da lei an-titruste reflete de imediato suas conseqüên-cias nas relações de consumo. A livre con-corrência, a devida informação e o repúdioaos monopólios atuam diretamente na vidade todos os consumidores.

A defesa da competitividade não é valorabsoluto no Brasil, mas subordinada à de-fesa do consumidor. Isso porque, conformevisto supra, o regime da livre concorrênciaou livre competição caracteriza-se por umgrande número de entes atuando no merca-do, com elevado número de ofertas, o queproduziria uma maior e melhor oferta depreços ao consumidor. Daí a necessidadede repressão às manobras tendentes a eli-minar a concorrência.

MARQUES (1995, p. 265, 282) defendeque a proteção dos consumidores deve ser agarantia contra todas as manifestações abu-sivas do desequilíbrio econômico, técnico efático que caracteriza as relações entre estese os fornecedores. As modalidades abusi-vas de uso do poder econômico podem con-sistir em monopólios, oligopólios, cartéis ououtras práticas concentracionistas, aindaque temporárias e meramente contratuais,desde que suscetíveis de contrariar o inte-resse público, de prejudicar o consumidorou de atentar contra os princípios da Cons-tituição Federal para reger a conduta dosdiferentes agentes econômicos.

As manifestações abusivas do ente eco-nômico, que podem ser caracterizadas emalguns casos de concentração empresarial,podem-se originar da ofensa ao direito deescolha ou da ofensa ao direito de informa-ção dos consumidores.

A liberdade de escolha de produtos eserviços consiste no direito que o consumi-dor tem de escolher o produto ou serviçoque achar melhor. É um direito básico doconsumidor o direito à escolha. Como ensi-na NASCIMENTO (1991, p. 27), os direitosbásicos nas relações de consumo “são aque-les subjetivados na pessoa do consumidor eindicados no art. 6o da lei protetiva perti-nente. Significam tutela à saúde, à vida e à

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segurança do consumidor relativamente a(...) procedimentos comerciais coercitivos oudesleais, a práticas e cláusulas abusivasinseridas nos contratos etc.”. É necessárioque sejam disponibilizadas todas as in-formações pertinentes, justamente para oconsumidor ter assegurado seu direito àescolha.

O CDC em seus arts. 31 e 37 traça o direi-to à informação clara, veraz. É partindo-sedesse pressuposto que se pode realmenteexercer o direito básico à escolha, que passapelo direito à educação. Como bem explanaFILOMENO (1998, p. 114-115), “a educaçãode que cuida o inciso II do art. 6º do CDCdeve ser aqui encarada sob dois aspectos: aeducação formal, a ser dada nos diversos cur-sos desde o primeiro grau de escolas públi-cas ou privadas; a educação informal, de res-ponsabilidade desde logo dos próprios for-necedores (...), procurando bem informar oconsumidor acerca das características dosprodutos e serviços (...). Cabe igual respon-sabilidade aos órgãos públicos de proteção edefesa dos consumidores bem como às enti-dades privadas (...)”. E finaliza de forma bri-lhante: “Referido trabalho educativo (...)para que se garanta ao consumidor liberda-de de escolha e a almejada igualdade de contra-tação, informando-se previamente das con-dições contratuais, e não ser surpreendidoposteriormente com alguma cláusula abu-siva”. E enfatiza: “Trata-se, repita-se, dodever de informar bem o público consumi-dor sobre todas as características importan-tes de produtos e serviços, para que aquelepossa adquirir produtos, ou contratar ser-viços, sabendo exatamente o que poderá es-perar deles”.

E esse direito à escolha só será bem exer-cido se o dever de informação do fornecedorfor bem cumprido.

Assim, se há concorrência, há direito àescolha, mas não necessariamente direito àinformação.

Por outro lado, eliminada a concorrên-cia, fere-se diretamente o direito básico àescolha dos consumidores.

Em determinados momentos e locais, al-gumas práticas que em tese prejudicam alivre concorrência são permitidas com vis-tas, por exemplo, a obter o fortalecimento dopaís ou seu progresso técnico, desde que nãoprejudiquem o consumidor.

Assim, desde que seja dificultada ouimpossibilitada ao consumidor a contrata-ção com certo sujeito, devido à ordem domercado ter sido imposta ou controlada porum grupo econômico, ocorre uma evidenteofensa ao seu direito de contratar, pois, dadoesse controle do mercado, não existe ou éineficaz a liberdade. E o princípio da liber-dade de escolha do consumidor resta, deforma patente, prejudicado.

Há ainda que se destacar o sistema deproteção do consumidor, sendo que o pró-prio CDC faz referência a ele. Denise Bau-mann (cf. FILOMENO, 1998, p. 109) ponde-ra que o chamado ‘direito do consumidor’ é“um conjunto de normas difusas, de origemum tanto diversificada, de textos especiaisrecentes ou de textos antigos, (...) de cons-truções jurisprudenciais e de análises dou-trinárias, e que se referem, de quando emquando, ao direito civil, ao direito comerciale ao direito penal”.

E NERY JÚNIOR (1998, p. 430) finaliza:“O ‘sistema’ de proteção ao con-

sumidor encerra conceito mais amplodo que o de um ‘código’ de proteçãodo consumidor. Incluem-se no ‘siste-ma de proteção ao consumidor’ as dis-posições legais de proteção do consu-midor em sentido estrito, bem comoas relativas à proteção indireta do con-sumidor, como as leis de combate àconcorrência desleal e leis antitruste”.

Concluindo sobre a importância da de-fesa da concorrência:

“Assim, em uma economia de mer-cado – como ainda pretende ser a nos-sa, porquanto ainda não o é –, é fun-damental que exista a livre concorrên-cia entre empresas, já que é por seuintermédio que se obtém a melhoriada qualidade dos produtos e serviços,

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o desenvolvimento tecnológico na fa-bricação e melhores opções ao consu-midor ou usuário final” (FILOMENO,1998, p. 69).

Pode-se destacar, a título ilustrativo, asconclusões do “Simpósio sobre lei antitrus-te e direitos do consumidor” (realizado de21 a 23/09/94, Porto Alegre-RS). No painelsobre a lei antitruste como instrumento paraa defesa do consumidor, ficou comprovadaa estreita ligação entre os dois temas trata-dos e a existência de uma série de objetivoscomuns: a defesa do mercado e da concor-rência, como instrumento para um mercadotransparente e saudável, e a defesa do con-sumidor e de um mercado harmônico e lealcomo objetivo maior do CDC.

6. Cartel: conceito, critérios para suaverificação, implicações para o mercado,

competência do CADE

A repressão ao abuso do poder econô-mico é uma norma programática, isto é, es-tabelece metas que devem ser cumpridaspara alcance de determinado fim. No caso,o objetivo maior é o equilíbrio do mercadocomo um todo, no intuito de proteger os con-sumidores, bem como as entidades que so-brevivem de práticas comerciais, semprepartindo do pressuposto da manutenção dalivre concorrência. Para que isso se tornereal, o Estado age como um mandatário dasociedade, tendo como papel restaurar aordem jurídica violada no caso concreto, ouainda tomar medidas preventivas para queo prejuízo não ocorra.

Nesse quadro, a formação de cartéis tal-vez seja a prática mais ofensiva, mesmo por-que geralmente é acompanhada e/ou pre-cedida de práticas de dumping e várias ou-tras formas de extermínio da concorrência.

A noção de dumping, como ensina VAZ(1993, p. 313), transposta para o âmbito domercado interno, foi delineada em julgamen-tos do CADE:

“dumping é a temporária e artificialredução de preços para oferta de bens

ou serviços por preços abaixo daque-les vigentes no mercado, provocandooscilação em detrimento de concor-rente, e subseqüente elevação, no exer-cício de especulação abusiva. Assim,o mero aliciamento de clientela decompetidor mediante oferecimento depreços menores que os daquele nãobasta, por si só, à configuração do ilí-cito”.

O Cartel pode ser definido como uma políti-ca de preços, cujas regras são ditadas por uma oumais sociedades que tenham domínio suficientedo mercado, o que significa dizer que podem-semanter e, além do mais, estão em condições deobrigar as demais sociedades, sob pena de asmesmas serem “naturalmente” excluídas domercado. Porém, nem sempre foi assim. Isa-bel Vaz ensina que, em alguns locais e épo-cas, as sociedades passaram a se associarcom outras do mesmo nível – na defesa con-tra o aviltamento dos preços em horas decrises agudas ou para subtraírem a concor-rência danosa, aumentando, assim, seuslucros. Dessa prática é que depois surgiu ocartel, com um caráter pejorativo, significan-do o acordo entre sociedades para discipli-nar a concorrência, por várias formas, evoluin-do, em muitos casos, para a própria defesaeconômica das empresas (atividade) sími-les, por meio da constituição de órgãos cen-tralizadores incumbidos da aquisição dematérias-primas, ou da venda dos produ-tos, ou da distribuição territorial das zonasde atuação.

A legislação atinente a essa prática anti-concorrencial hoje é, no Brasil, basicamen-te, a Lei Antitruste, já exaustivamente co-mentada. Porém, essa matéria mereceu aten-ção do legislador bem antes de 1994. Em1951, fora editada a Lei n. 1.521, que tipificacomo crime contra a economia popular o“ajuste de preços entre concorrentes com afinalidade de manipular o mercado”. Talvulto tomou a matéria que, em 1988, a mes-ma foi erigida ao cânone constitucional,como se depreende do art. 170, IV, da Cons-tituição Federal em vigor, e que reflete a po-

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sição dominante nas principais constitui-ções contemporâneas, qual seja, a repressãoàs práticas que possam gerar domínio domercado, com eliminação da concorrência,por meio de ajuste de preços. Como comple-mento, tem-se ainda a Lei n. 8.137/90, que,em seu art. 4o, dispõe:

“Art. 4o – Constitui crime contra aOrdem Econômica:

(...)III – discriminar preços de bens ou

prestação de serviços por ajustes ouacordo de grupo econômico, com o fimde estabelecer monopólio ou de eli-minar total ou parcialmente a con-corrência.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cin-co) anos ou multa”.

Essa prática de uniformização de pre-ços é antiga e partiu, principalmente, degrandes organizações internacionais, to-mando grande vulto o cartel de energia elé-trica, ou o de petróleo, por exemplo. Nessecontexto, foram realizadas algumas pesqui-sas que demonstraram a existência de con-tratos restritivos, monopolizando tecnolo-gia e mercados em escala mundial, o quedeterminou a divisão dos países em desen-volvidos e subdesenvolvidos. Destacam-seos contratos particulares, estabelecidos pe-las grandes corporações privadas, observa-dos princípios de boa administração empre-sarial, visando à maximização de lucros.Grandes são as conseqüências, principal-mente para os países subdesenvolvidos, quevêem ainda menor o espaço em que podematuar segundo seus próprios critérios e vi-são de mercado, vez que passam a agir con-forme regras ditadas por outrem. Nesse pas-so, pode-se citar a redução da participaçãoda indústria nacional no ramo de energiaelétrica, em virtude do cartel internacionalque comanda esse setor: em 1964, a indús-tria nacional participava em 60%, percen-tual reduzido para 8,7% em 1972, quan-do as importações implodiram, subindo deUS$ 67.016.696 para mais de US$ 1.355.581.984,em 1974 (cf. MIROW, 1978, p. 59). Em nível

internacional, os cartéis chegam a um grautão elevado de organização que há até mes-mo a regulamentação de sua estrutura e fun-cionamento. Como exemplo, Mirow cita osartigos abaixo, extraídos do Regulamentode um dos grandes cartéis internacionais:

“Artigo 24 – os preços finais devenda decididos em reunião deverãoincluir 2% para a constituição, pelocomponente que receber a encomen-da, de uma ‘reserva para combate’.

Artigo 50 – caso algum componen-te deixe de participar neste programa,ele será sistematicamente combatidopelas demais que alternar-se-ão nocombate.

Parágrafo único – para os efeitosdeste artigo, os componentes utili-zar-se-ão da reserva estabelecida noartigo 24”.

No âmbito interno, enormes são os refle-xos também e variam de acordo com o tama-nho do mercado, bem como com a impor-tância do produto ou serviço atingido. Quan-do estabelecido, o cartel obriga o concorren-te ou a agir conforme suas regras, ou a lan-çar mão de estratégias mais do que eficien-tes, de modo a aumentar sua participaçãono mercado. Desse modo, com a redução decusto e a hábil política de preços, transfe-rindo ao consumidor a economia de escalaobtida, impede o surgimento de concorren-tes novos, estabelecendo o domínio sobre omercado. Quando alcançada a posição do-minante, não mais haverá concorrente há-bil a afetar lucros e preços.

Há quem defenda a utilidade do cartel,argumentando que o consumidor seria me-lhor servido por monopólios bem estabele-cidos, utilizando toda a potencialidade decurvas de experiência acumulada. E defen-dem que leis antitrustes deverão ser revoga-das, pois custam milhões ao consumidor,perpetuando a ineficiência. E que os preçospoderiam ser melhores, os salários mais ele-vados, a produção substancialmente au-mentada por concentração industrial. Porfim, que somente os grupos monopolistas

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possuem margem de segurança bastante emsuas operações industriais para poderem-se dar ao luxo de promover o bem social.

Como referido anteriormente, a formaçãode cartel é precedida de outras práticas.Entre essas, destaca-se o monopólio de tecno-logias, sistema de licenciamentos mútuos(chamado croos-licensing), o que permite ofechamento em um só grupo, sendo os pre-juízos repassados ao consumidor, por exem-plo, e os benefícios repartidos entre os mem-bros do grupo. Além dessa, pode-se citartambém a aquisição de sociedades meno-res, o boicote e o dumping, que são utiliza-dos, principalmente, quando o concorrenteestá chegando ao mercado, o que o faz su-cumbir já de início, posto que passa a acre-ditar em sua incapacidade gerencial. Há,ainda, uma prática para manutenção docartel, que são os chamados compensationpayments (pagamentos de compensação):isso significa que os preços praticados in-cluem uma parcela variável a ser paga a umfundo de compensação destinado a indeni-zar os custos de propostas fictícias, porexemplo.

A competência para averiguação é doMinistério da Justiça, que o faz por intermé-dio do CADE, que tem competências inde-clináveis e indelegáveis, sendo auxiliadopela SDE (que instaura os processos a se-rem por ele julgados) e pela SEAE (vincula-da ao Ministério da Fazenda).

Benjamin Shieber, citado por CarlosEduardo Vieira de CARVALHO, tece o se-guinte comentário:

“os benefícios econômicos que se es-peram da concorrência podem ser en-carados sob vários aspectos. Primei-ro, o aspecto que visa os interesses doconsumidor, que goza, sob um regimeem que prevalece a concorrência, demelhor qualidade, menor preço e umgrande número de produtos entre osquais possa escolher. Segundo, o as-pecto que visa os interesses das em-presas concorrentes, da liberdade dededicar-se a um ramo de negócios e

de crescer pelo mérito de seus atribu-tos, sem sofrer entraves pelas açõesconjuntas das empresas que já fazemparte do mercado ou pelas atividadesde empresas dominantes. Finalmen-te, o aspecto que visa ao interesse danação de um parque industrial mo-derno que o fortalece e assegura aopovo os produtos que melhoram suavida quotidiana”.

Como já referido, na averiguação daspráticas anticoncorrenciais, entre elas a for-mação de cartel, deve-se levar em conside-ração não os fatos isolados, mas todo o con-texto. Isso consubstancia a regra da razão,que prega a necessidade de um levantamen-to da conjuntura econômica em que se cele-brou o reajuste ou acordo para restringir aconcorrência, bem como da conjuntura pos-terior à efetivação do acordo, para verificaras mudanças e os efeitos acarretados pelomesmo. Assim, no dizer de CARVALHO(1994, p. 16),

“haverá, portanto, situações em que aautoridade investigadora não vejaconfigurado, na conduta, objeto anti-concorrencial. Deverá, então, averi-guar os efeitos que tal conduta teriacausado ou poderia causar no merca-do, não se podendo deixar de consi-derar que o agente econômico, alémde objetivar sua eficiência, deverá,ainda, preocupar-se com eventuaisimpactos de uma medida adotada ecom a eficiência do mercado”.

Assim, a defesa da concorrência deverásempre obedecer a regra da razoabilidade,vez que, no dizer de VAZ (1993, p. 5), “inte-resses comuns, de natureza econômica eoutras, buscam as formas jurídicas comomeio de institucionalizar a aproximação dospovos, de conquistar novos mercados, for-talecer as economias mais débeis e, também,como estratégia para assegurar a manuten-ção de posições já conquistadas”.

Na investigação das práticas anticoncor-renciais (entre elas o cartel), alguns passosdevem ser trilhados, sendo os principais:

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a) avaliação da concorrência atual e fu-tura;

b) comportamento anterior dos entes;c) número, tamanho e fatias do mercado

dos concorrentes. Se o mercado é dominadopor poucas sociedades, as mesmas prova-velmente recorrerão a condutas paralelas ouresultantes de conluio;

d) situação do comércio internacional eabertura do mercado;

e) natureza da concorrência. A concor-rência entre sociedades pode assumir diver-sas formas, e nem sempre é baseada no pre-ço. Ao avaliar o nível de concorrência dospreços, pode ser importante considerarcomo os preços são determinados: se forambaseados em lista de preço publicada, ounegociados individualmente; se é importantea prática do desconto e, em caso afirmativo,sobre que base são oferecidos tais descon-tos. Além dos preços, a concorrência podeainda ser baseada na qualidade do produ-to, no serviço prestado após a venda, nodesenvolvimento de novos produtos ou noestabelecimento de critérios de fidelidade àmarca;

f) força financeira relativa das socieda-des em questão;

g) ritmo de crescimento do mercado. Devárias maneiras, isso pode produzir impac-to. Mercados declinantes ou de lento cresci-mento podem não oferecer atrativos aos quepoderiam entrar, mas as sociedades já esta-belecidas não têm necessidade de concor-rer; num mercado em rápida expansão, umasociedade pode expandir meramente peloesforço de acompanhar o resto da indústria.Em mercados de lenta expansão, as socie-dades existentes provavelmente reagirãovigorosamente aos novos concorrentes, umavez que o crescimento lento do mercado re-duz a capacidade desses novos participan-tes de serem absorvidos no mercado;

h) análise da relação custo/benefíciopara a sociedade em aderir ou não a deter-minada prática anticoncorrencial;

i) avaliação da amplitude do mercado,com conseqüente avaliação do tanto que as

atividades comerciais de uma sociedade sãoou serão limitadas pelas decisões tomadaspor outros compradores e vendedores domercado em que está competindo.

Mais especificamente, nos casos de ave-riguação da formação de cartéis, existemalguns critérios objetivos, indispensáveis àsua caracterização, a saber:

a) uniformidade de preços praticados;b) uniformidade de percentuais de rea-

justes praticados;c) diversidade ou equivalência dos cus-

tos de produção;d) procedimentos comerciais uniformes;e) notícia entre os membros do possível

cartel do ajuste prévio.Essas características devem ser analisa-

das tendo como base a situação do mercadono momento da averiguação, mesmo por-que não mais existe o tabelamento de pre-ços para praticamente todos os produtos, oque permite a existência de grandes varia-ções. Deve-se levar em consideração tambémque há uma forte tendência dos fornecedo-res em evitar a concorrência, de modo a nãoperder espaço no mercado.

Todos esses fatores são importantes por-que, atualmente, a simples existência deparalelismo não é suficiente para caracteri-zação de ação concertada. Nesse ponto,Cabanellas (cf. CARVALHO, 1994, p. 12)traz à baila jurisprudência da Suprema Corteamericana, a respeito do caso Pevely DairyCo. versus United States, em que se compro-vou que a simultaneidade e o paralelismodas alterações de preços realizadas por duassociedades do setor de industrialização deleite decorreram do fato de se tratar de umproduto homogêneo, cujos custos se com-punham, fundamentalmente, de matéria-prima com preço regulado pelo Estado e desalários resultantes de negociações coleti-vas com o mesmo sindicato, além de ocorreruma estrutura geral de custos basicamentesemelhante.

Assim, pode-se concluir que uma socie-dade exercerá posição dominante, dispon-do de poder de mercado, sempre que pos-

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suir aptidão para fixar preços acima dosníveis que prevaleceriam no mercado com-petitivo. Por isso é que, quando a Lei Anti-truste, em seu art. 21, elenca como condutaindiciária de abuso a criação de dificulda-des ao funcionamento de concorrentes, está-se referindo apenas às condutas que tenhampor objeto ou produzam o efeito de dominaro mercado, de prejudicar a livre concorrên-cia, e não às que dizem respeito, exclusiva-mente, a interesses individualizados dassociedades envolvidas, sem repercussão nomercado relevante, configurando um con-flito de natureza privada, cuja solução de-verá ser pleiteada junto ao Poder Judiciário,eis que nenhuma lesão ou ameaça a direitopoderá ser subtraída à apreciação dessePoder, não dispondo o CADE de competên-cia para conhecer e decidir casos como tais.

Por fim, tentou-se fazer a ligação entre aprática do cartel e o fenômeno concentracio-nista. A doutrina é incipiente e os poucosautores preferem não tomar partido, carac-terizando o cartel apenas como uma polí-tica ilícita, que visa à uniformização dospreços.

É mais fácil visualizar o cartel como con-seqüência de uma prática concentracionis-ta. Como já referido, o mesmo pode ser pre-cedido de várias práticas como o dumping,mas também de fusões, incorporações ououtras. Neste caso, as sociedades já são do-minadoras em potencial e apenas consoli-dam sua posição determinando a variaçãodos preços e, conseqüentemente, eliminan-do grande parte da concorrência.

Por outro lado, o cartel pode ser tambémum meio para alguma prática concentracio-nista. Aqui, ocorre o fenômeno inverso aodescrito anteriormente: pequenas socieda-des se unem para a prática uniforme de pre-ços e, dentro do grupo, algumas se desta-cam, uma vez que os preços praticados sãoiguais, porém as condições de exercício daatividade não, bem como os custos; assim,uma sociedade poderá ter lucro maior oumenor que outra. Dessa maneira, adquirin-do posição dominante no grupo, a socieda-

de poderá adquirir, fundir-se ou associar-se a outras, consolidando sua posição do-minante.

Essas são as conclusões deste estudo. Énotório que o Direito é um ramo que permiteque se chegue a conclusões diferentes, nãose podendo afirmar que algo está terminan-temente certo ou errado e imutável. Portanto,permanece a discussão quanto a ser o cartel meioou conseqüência do fenômeno concentracionista.

7. Análise da ação civil públicarelativa à cartelização dos postos de

combustíveis de Salvador-BA

Trata-se de ação civil pública, propostapelo Ministério Público, que contém obriga-ção de fazer e pedido liminar, fundamenta-da nos seguintes dispositivos legais: arts.20 e 21, Lei 8.884/94; art. 5o, Lei 7.347/85;arts. 81, 82, 91 e 92, Lei 8.078/90; arts. 127,129 e 170, IV e V, Constituição Federal de1988, instaurada em desfavor de cento e vin-te sete postos de combustíveis na cidade deSalvador.

Deu-se como conseqüência de inquéritocivil aberto em atenção ao clamor do públi-co, atemorizado com a elevação dos preçosde combustíveis e a falta de opção quantoaos mesmos, uma vez que praticados uni-formemente por mais de 90% dos entesatuantes nesse mercado. O inquérito foi ins-taurado por provocação do representante doentão existente Departamento Nacional deCombustíveis (Secretaria Regional, vincula-da ao Ministério das Minas e Energia).

O fato mais marcante, que chamou aten-ção do público em geral, foi o aumento dospreços entre 12 e 13 de julho de 1998, comreajuste de 7,7%, havendo também orienta-ção sindical, amplamente divulgada, paraque todos praticassem o mesmo preço rea-justado, embora não tivesse ocorrido aumen-to de custos motivador de tal atitude.

Na seara penal, ocorreu a notitia crimi-nis, com base no art. 4o da lei dos crimes eco-nômicos (Lei 8.137/90). Com base em dili-gências preliminares, obtidas via ofícios

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enviados à SDE, ao CADE e à Agência Na-cional do Petróleo (ANP), foi caracterizadotambém ilícito civil.

O objetivo de todas essas providênciasera viabilizar a atuação do Ministério Pú-blico, que tinha a incumbência de demons-trar a formação de cartel. Para tanto, solici-tou-se às Distribuidoras de Combustívelatuantes no Estado (Esso, Texaco, Ipiranga,Petrobrás e Shell) uma relação com os pre-ços de revenda de álcool e gasolina, pratica-dos em junho, julho e agosto de 1998. Issoporque pretendia-se fazer uma contraposi-ção entre o preço de compra pelos postos e opreço destes ao consumidor.

Nessa investigação, constatou-se que asdistribuidoras prestaram informações quedivergiam das constantes das notas fiscaisrecolhidas. Contrapondo-se a média obtidaaos preços praticados em 1996, quando ain-da havia o tabelamento, chegou-se a con-clusão de que os postos estavam lucrando600% sobre o álcool e 540% sobre a gasoli-na, o que foi considerado absurda concen-tração de renda, em um período de estabili-dade para o funcionalismo público e privado.

Para apurar a combinação de preços, oCentro de Apoio Operacional às Promoto-rias de Justiça do Consumidor (CEACON)solicitou uma reunião com representantesda ANP, da Delegacia de Crimes Econômi-cos e da Secretaria de Fazenda do Estado,quando então foram solicitadas as notas fis-cais de compras já referidas, cuja análise sóveio corroborar a hipótese já levantada: nãohouve aumento de custos que pudesse jus-tificar o aumento do preço dos combustíveis.

Apresentadas as defesas, formalizadasde maneira também uniforme, foi possívelconcluir ser fraco o argumento de que hou-ve um momento de retomada da livre con-corrência, o que descaracterizaria o cartel.Porém, esse momento coincidiu com a ins-tauração do inquérito civil que foi, na ver-dade, o único motivo para a redução dospreços.

Em março de 1998, todavia, ocorreu oponto alto do processo de cartelização, que

foi a fixação dos preços em R$ 0,99, quandoo governo federal permitiu um reajuste. Paracompletar a uniformização, os postos res-cindiram seus contratos com as administra-doras de cartão de crédito, dificultando maisainda a situação dos consumidores.

Em suma, ao final do inquérito civil, ospostos não haviam oferecido defesa funda-mentada em provas técnicas, que justificas-sem o aumento dos preços, em contraposi-ção às provas extraídas da análise das no-tas fiscais de compra.

Base legal não falta para a condenaçãoda prática uniforme e abusiva de reajustede preços. Nesse passo, interessante a colo-cação do subscritor da ação em foco:

“A livre concorrência de há muito re-cebe do legislador pátrio um tratamentosério e responsável, condizente com a te-mática, sobretudo no momento econômicoatual, quando observamos que a concen-tração absoluta do capital dos grandesconglomerados econômicos impõe as nor-mas, dita as regras nas relações jurídicas,gerando um enorme fosso entre esses e osconsumidores de bens e serviços nos seg-mentos básicos da economia”.

Interessante é o silogismo feito: atendeu-se à prescrição do art. 20, § 3o, uma vez quehouve uniformidade de preços entre maisde 90% dos entes atuantes nesse mercado;houve a prática prevista no art. 20, III, umavez que configurado o aumento de 600% noslucros; houve ainda subsunção à hipóteselegal do art. 21, parágrafo único, III, poden-do-se concluir, diante disso, ter havido aformação de cartel.

Tendo em vista tais constatações, o Mi-nistério Público solicitou: (a) liminarmente,o retorno à margem de lucros do ano de 1996;(b) em definitivo, a condenação dos réus,com fixação dos preços dos combustíveis,com base no preço do distribuidor, na mar-gem de lucro de 1996, além dos custos com-provados pelos réus; a inversão do ônus daprova (art. 6o, VIII, CDC); a desconsideraçãoda pessoa jurídica (art. 28, CDC), para res-sarcimento dos danos ao consumidor; a de-

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volução em dobro das vantagens auferidascom a formação de cartel, devendo ser rever-tido aos consumidores que assim pleitearem,e para o Fundo Estadual de Defesa do Con-sumidor (art. 42, parágrafo único, CDC);aplicação de pena de multa no valor dodano patrimonial sofrido pelo consumidor,revertido em favor do Fundo já citado; reali-zação de perícia econômico-contábil, paraavaliar a evolução econômica dos preçospraticados pelos postos.

Desse resumo, pode-se inferir que hácondição legal possibilitadora do combateàs práticas que impliquem prejuízo ao mer-cado em geral e, principalmente, ao consu-midor. Muitas vezes, falta condição políticapara concretizar a lei, tendo em vista os in-teresses envolvidos e as conseqüências queum processo desse tipo pode acarretar aosculpados.

8. Conclusão

O movimento concentracionista iniciou-se, de um lado, para evitar os males da livreconcorrência e, de outro, para propiciar oaumento da produtividade, com a raciona-lização da produção. Contudo, há que seatentar para o fato de que, atualmente, oobjetivo que leva as empresas a se concen-trarem não é mais o domínio do mercado,mas sim, de um lado, a reorganização daempresa e, de outro, o crescimento da eficiên-cia das empresas coligadas, tanto pela di-minuição dos custos, como pela elevaçãodos rendimentos e a melhoria da qualida-de, a fim de se atingir a dimensão ótima.Todas essas transformações se deram emum contexto de mundialização.

Um dos maiores desafios da atualidadeé aceitar a idéia de globalização não comoum processo hegemônico e imposto por umalógica histórica necessária, mas como umnovo momento do capitalismo moderno, queoferece novas perspectivas. É nesse momen-to que se há de ter presente o sentido de ela-borarem-se instrumentos jurídicos eficazespara a defesa do consumidor.

Como ensina VAZ (1993, p. 53),“alguns autores entendem que o fe-nômeno econômico da concorrêncianão apenas pode registrar-se nas maisdiversas atividades, como tambémexistiu em todos os tempos: sempreque num meio qualquer duas ou maispessoas se dedicarem isoladamente àmesma atividade profissional, num sólugar e servindo a um grupo único deconsumidores ou usuários, ele surgiusob formas diversas, despertando,aqui e ali, providências várias dos le-gisladores, ora no sentido de garanti-lo, ora no de limitá-lo”.

O legislador constituinte fez a opção pelotermo ‘livre concorrência’. Procedendo as-sim, acentuou o tipo de concorrência eleva-do à categoria constitucional. Não se buscaapenas a repressão às formas abusivas dopoder econômico, mas se almeja atingir

“um ‘modelo eficiente’ de concorrên-cia, compatível com as impurezas eimperfeições do mercado, mediante autilização, se necessário, das regrasjurídicas e das instituições para aque-le fim criadas. Tais regras e institui-ções devem ser capazes de prevenir,apurar e recriminar quaisquer formasconsideradas abusivas do poder eco-nômico e podem ser classificadascomo instrumentos de preservação doprincípio da livre concorrência. Nocontexto das normas constitucionaisonde se insere, a livre concorrênciafunciona também como uma das dire-trizes que se impõem a todos quantosse dedicam ao exercício das ativida-des econômicas, ao lado da defesa doconsumidor, da função social da pro-priedade e da defesa do meio ambien-te” (VAZ, 1993, p. 101).

“O Governo, por sua vez, ao invésde promover a importação de produ-tos subsidiados, como meio de puniros produtores nacionais, deveria con-ceder-lhes subsídios e cobrar, com ri-gor, a contrapartida pelos benefícios

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atribuídos. Não se compreende queum país de economia combalida comoo Brasil feche os olhos para as prá-t icas flagrantemente anticoncor-renciais, vigentes nos países ricos,acreditando, assim, poder obrigar osprodutores nacionais a baixarem seuspreços, sem lhes oferecer as vantagensque as economias desenvolvidas pro-porcionam aos seus agentes econômi-cos” (p. 355).

A defesa da ordem econômica, que poropção do sistema constitucional brasileiroimplica uma ordem econômica fundada naliberdade de iniciativa e na valorização dotrabalho humano a fim de assegurar a to-dos uma existência digna, conforme os di-tames da justiça social, aponta para a exis-tência de um direito transindividual de na-tureza indivisível em que são titulares pes-soas indeterminadas ligadas por circuns-tâncias de fato. Essa característica dos inte-resses protegidos pela Lei n. 8.884/94 legi-tima o Ministério Público a atuar nos pro-cessos.

Como resultado do presente estudo, ve-rificou-se que a legislação atinente à maté-ria de controle é suficiente. A Lei Antitrusteassociada ao Código de Defesa do Consu-midor e à Lei da Ação Civil Pública forne-cem supedâneo para que se efetive o contro-le das práticas comerciais, com o fito de quese obedeça aos princípios que regem a or-dem econômica no Brasil.

Órgãos para cumprir as leis também nãofaltam, devendo-se destacar a Secretaria deDireito Econômico, do Ministério da Justi-ça, além do CADE, que é uma autarquia fe-deral. Porém, até neste ponto, a ineficiênciajá é iminente, vez que as SDEs dos demaisEstados foram extintas, restando apenas ade Brasília e a do Rio de Janeiro, númerocom certeza insuficiente para atender a todoo país. Não bastasse isso, há ainda a demo-ra na instauração dos processos adminis-trativos que se fazem necessários. Demora-se muito na conclusão das investigaçõespreliminares, quando a lei determina o pra-

zo de dias para que isso se dê. Depois disso,mais um longo tempo decorre até o julga-mento dos processos. Quando, por fim, eleocorre, corre-se o risco da ineficácia dasmedidas adotadas, embora a lei preveja quepode haver imposição de medidas preven-tivas.

Isabel Vaz, no corpo de sua obra, váriasvezes se referiu à importância da vontadepolítica para definir quais os bens objetosde tutela e proteção legal. Assim, conformeo momento vivido pelo mercado e pelo país,pode-se reprimir ou incentivar determina-das práticas. Por isso é que se pode falarque, quando da aplicação da lei, tambémconta sobremaneira a vontade política, atémesmo para dar impulso aos atos proces-suais.

Deve-se ressaltar que, desde 1996, oCADE adotou um plano que visa otimizaros resultados no atinente ao julgamento dosprocessos administrativos. Quer-se con-cluir, porém, com essas observações que nãoadianta a prescrição legal, e é antigo o bro-cardo que apregoa a necessidade da ativi-dade humana no sentido de bem aplicá-la:“a letra é morta; o espírito, porém, vivifica”.Como sempre estão envolvidos grandes in-teresses e um volume grande de dinheiro,fica a pergunta: faltam meios, falta vontadepolítica, falta verba ou sobram interesses?

Patente se fez, ou ao menos se tentoudemonstrar, no presente trabalho, a relaçãoentre os direitos da concorrência e do con-sumidor. É de se ressaltar ainda que a pró-pria Lei 8.884/94 elenca como um de seusprincípios a defesa do consumidor.

Como se viu, o direito à escolha é umdireito básico do consumidor, aliado ao di-reito à informação, que é pressuposto da-quele. E, em havendo prática restritiva daconcorrência, o consumidor não poderá bemexercer seus direitos, sendo ainda submeti-do a políticas de preços desleais, estabeleci-dos de formas unilaterais e extremamentelesivas à livre concorrência.

Por fim, de todo o estudo ainda foi possí-vel concluir que o cartel não é, em si, um

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instrumento de concentração empresarial,sendo prática extremamente reprimida, vezque elimina, de plano, a concorrência.

Porém, muitas vezes é atividade-meiopara futuras práticas concentracionistas;outras vezes, decorre dessas.

No primeiro caso, estando o ente no con-trole de algum fator que influencia o merca-do (principalmente a fixação de preços, masnão só, ganhando relevo, atualmente, o do-mínio da tecnologia), poderá expandir suasatividades por meio de verdadeiras concen-trações, o que pode soar como vantagempara os demais entes que, já estando enfra-quecidos, às vezes podem ser beneficiadospor uma fusão, aquisição ou incorporaçãoque venham a sofrer.

De outro lado, se o ente já expandiu suaatividade de tal maneira a comandar o mer-cado, poderá oficializar esse domínio pormeio da formação de um cartel, passando afixar todos os preços e condições de ingres-so no mercado. Assim aconteceu, por exem-plo, com o já citado cartel de energia elétri-ca, que produz efeitos em âmbito mundial:sociedades, por diversas práticas, como odumping ou as megafusões, adquiriram portee importância tal que se tornaram domina-doras do mercado, fixando preços, condi-ções e impedindo a entrada de novos con-correntes, bem como eliminando aqueles quenão se adaptavam às suas regras.

Na cidade de Viçosa-MG, já foram reali-zadas averiguações preliminares nos pos-tos de combustíveis e nas padarias, sendo oresultado enviado ao Secretário de DireitoEconômico no Rio de Janeiro, bem como àPromotoria de Justiça da cidade. Não se podeainda falar na existência de cartéis, visto quecumprida apenas a primeira etapa do pro-cedimento administrativo que o apura; po-rém, os indícios são fortes, visto que a reali-zação das investigações preliminares foiimpulsionada por denúncias de unifor-mização de preços, com a prévia combi-nação, bem como extermínio de entes quenão quiseram se submeter às condiçõesimpostas.

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Notas1 Apesar de se ter originado do mundo jornalís-

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A identificação precisa do fenômeno da globa-lização ainda demanda muito esforço, podendo serfeita sob diversas óticas. Vale citar o que diz VER-NON (1980, p. 16): “As crescentes inter-relaçõesdas economias do mundo também se evidencia-ram sob outros aspectos”. Mesmo de uma óticaeconômica, compreende uma variedade de fenô-menos. Pode-se dizer que, devido a seus efeitos,um dos sentidos mais utilizados seja o relacionadoaos movimentos financeiros internacionais.

Segundo ASSIS (2000 p. A-3): “A recenteglobalização dificilmente poderia ser caracteri-zada por uma explosão dos investimentos dire-tos no exterior”.

2 Há que se ressaltar, entretanto, que não setrata de fenômeno atual. Segundo VIEIRA (1976,p. 1): “Logo após a descoberta das Américas e dosnovos caminhos para as Índias, (...) fenômenos sur-giram em decorrência do enriquecimento da Euro-pa e da brusca e extraordinária expansão do co-mércio entre as nações. (...) a criação das primeirasCompanhias Internacionais de Comércio, precur-soras das atuais Trading Companies, das quais asmais importantes foram as Companhias das Ín-dias Orientais e das Índias Ocidentais”.

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1. Considerações sobre a proposta dereforma tributária do relator da

comissão do Congresso Nacional –Deputado Mussa Demes

Analisando a proposta de Emenda Cons-titucional nº 175-A do Relator da ComissãoEspecial da Câmara dos Deputados, Depu-tado Mussa Demes1, e as tentativas de mo-dificações pelo Poder Executivo, pode-seconcluir que, mais uma vez, ao invés de di-minuir a carga tributária, pretende-se suamajoração; contrariando a própria ordemeconômica vigente.

Segundo informações da própria Recei-ta Federal2, a carga tributária passou de25,5% do PIB em 1991 para 30,1% em 1999,não havendo nenhum indício concreto dereviravolta desses indicativos.

Não é salutar que se corporifique os ter-mos contidos na síntese da matéria veicula-da pelo jornalista Joelmir Beting (2000, p. 42):

1. Considerações sobre a proposta de refor-ma tributária do relator da comissão do Con-gresso Nacional – Dep. Mussa Demes. 2. Consi-derações sobre a proposta do Ministério da Fa-zenda. 3. Considerações sobre as propostas an-teriores. 4. Comentários às Propostas de Refor-ma Tributária do Dep. Marcos Cintra – PECs nº183 e 474. 5. Proposta do Relator da Comissão –Deputado Mussa Demes. 6. Proposta do Minis-tério da Fazenda. 7. Propostas do Deputado Mar-cos Cintra. 8. Emenda Constitucional nº 33/2001.

Propostas de reforma do sistema tributáriobrasileiro

Luís Alberto Mendonça Meato

Luís Alberto Mendonça Meato é advogado.

Sumário

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Revista de Informação Legislativa248

“Está ruim? Vai piorarConsenso preliminar na confraria

dos tributaristas: a oitava proposta dereforma tributária aviada pelo Gover-no é tecnicamente ruim, sobre ser po-liticamente permissiva. Eles apontamtrês desvios de rota: 1) não simplifica acarpintaria fiscal do Governo nem doscontribuintes; 2) não redistribui a car-ga tributária excessivamente concentra-da; 3) não reduz o peso dessa carga, jásituada acima da capacidade contribu-tiva da economia e da sociedade.”

Indo além e elastecendo-se no tempo,verifica-se que nunca houve realmente umadiminuição dos gastos do Governo, comotambém demonstra estudo (DANTAS, 2000,p. B4) dos economistas João Victor Issler eLuiz Renato Lima, publicado no Journal ofDevelopment Economists:

“As tentativas de ajuste fiscal pro-movidas pelo Estado brasileiro empraticamente todo o período do pós-Guerra, de 1947 a 1992, têm uma ca-racterística comum e alarmante: nun-ca se basearam em cortes de despe-sas, sendo realizadas sempre comaumento de tributos, ou pelo impostoinflacionário.”

E seguem dizendo o mais alarmante:“Outra descoberta de Issler e Lima

é que os gastos do Estado brasileiro nãotêm nenhuma correlação com a arreca-dação tributária. “Do ponto de vistaprático, o Estado no Brasil simplesmen-te gasta para depois buscar as formasde financiar estas decisões de gasto.”

Essas afirmações são alarmantes, e infe-lizmente contundentes, principalmente seadentrarmos na análise das duas propos-tas de reforma tributária mais recentes: a doRelator da Comissão, e a nova enviada peloPoder Executivo.

O retrocesso mais marcante é a retiradada tributação eletrônica, que se disvirtuoucom a CPMF. Isso porque a proposta inicialseria a superveniência de apenas poucosimpostos junto do IMF (imposto sobre mo-

vimentação financeira), entre outros o IVA(imposto sobre o valor agregado).

2. Considerações sobre a proposta doMinistério da Fazenda

Ao Projeto de Emenda à Constituição denº 175, datada de 1995, fora encaminhadanova proposta por parte do Governo Fede-ral, no intuito de se tentar chegar a um con-senso em torno de um projeto único, que nãosofra qualquer rejeição durante a votaçãoem plenário.

Vários artigos contidos na proposta doRelator da Comissão permanecem na propos-ta do Governo, com inúmeras modificações.

Perpetua-se nessa proposta a figura doimposto eletrônico, representado pelo Im-posto sobre movimentação ou transmissãode valores de créditos e direitos de naturezafinanceira:

“Art.153. Compete à União insti-tuir impostos sobre:

(...)VIII - movimentação ou transmis-

são de valores e de créditos e direitosde natureza financeira.”

Ao contrário do Relator da Comissão doCongresso, que omite qualquer proposiçãonesse sentido, é cláusula a qual o Governose nega a negociar, tendo em vista que aCPMF é o tributo que se mostra de maioreficiência, e de menor custo na arrecadação.

3. Considerações sobre aspropostas anteriores

Tanto numa como noutra proposta in-variavelmente há uma tendência de aumen-to da carga tributária, simplesmente peloaumento do campo da incidência tributá-ria. Ao contrário do que se esperava, não hádiminuição desse respectivo campo, massua ampliação.

Ademais, como nas propostas anterio-res, não foi discutido o valor das alíquotasdos tributos, não havendo como se quantifi-car a carga tributária. Percebe-se uma am-

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pliação considerável no âmbito de incidên-cia dos tributos.

O Projeto de Reforma Tributária do Dep.Federal Luiz Roberto Ponte, que data de1991, sugere como base a implantação doITF (Imposto sobre todas as Transações Fi-nanceiras). Mesmo aprovado pela Comis-são de Justiça, não teve o clamor necessáriopara sua implantação, dando ensejo ao enor-me crescimento do endividamento internobrasileiro.

Contudo, com a implantação do IPMF, eagora por meio da CPMF, chegou-se a con-clusão que esses foram os únicos tributosaos quais todos contribuíram sem qualquerdistinção: aquele que ganha mais contribuiproporcionalmente com mais; enquantoaquele que ganha menos contribui com pro-porcionalmente menos, tendo em vista a alí-quota ser fixa.

A hora e a vez de o Brasil crescer é agora,quantificando seus gastos e melhorando suaarrecadação, observando os novos cami-nhos da economia, que invariavelmente so-frerão a incidência dos dígitos eletrônicos.

Todas as grandes operações monetáriase financeiras há muito tempo não são efeti-vas via papel-moeda, e sim por meio dosdígitos das contas bancárias. Dessa forma,desejando-se que aqueles que possuam maisrecursos contribuam com mais ênfase comos recursos para gerir a economia do Esta-do, necessário que se repense o modelo ar-caico da tributação atual.

A prática demonstra que a CPMF foi aúnica a quantificar o tamanho do rombo cri-ado com a sonegação, avaliando-se por bai-xo em 01 PIB o valor do “submundo-econô-mico”, por meio do cruzamento de dadosdessa contribuição com aqueles fornecidosà Receita Federal pelo contribuinte que pres-ta declaração de renda.

Muitos nem ao menos declaram renda,mas movimentam grandes somas de dinhei-ro em vastas contas bancárias. Ora, sendoassim, valeria a pena que o Fisco arrecadas-se todo percentual possível diante de ummaior campo de incidência, que abrangesse

todo esse mundo submerso, sendo a armacapaz de efetivar essa realização o chama-do Imposto eletrônico.

A única preocupação seria torná-lo deacordo com o objeto de sua criação; ou seja,a perpetuação de sua existência em detrimentoda retirada de outros tributos como o IOF, PIS,COFINS, e não como é atualmente mais umtributo a preencher a vasta lista já existente.

Existe até proposta nesse sentido, veicu-lada por meio do Projeto de Emenda Consti-tucional de nº 256 (JORNAL DO COMÉR-CIO, 2000, p. A-13):

“A proposta de Emenda Constitu-cional (PEC) 256, apresentada no fimde junho, prevê a substituição parcialou total da contribuição patronal paraa Previdência Social recolhida sobrea folha de salários das empresas porum Imposto sobre Movimentação Fi-nanceira (IMF) de 0,5%.”

Outro fator positivo para o Brasil, nestemomento de discussões, é aproveitar estu-dos existentes em outros países, como porexemplo na União Européia3 , que questio-na a utilização do princípio do destino emrelação ao recolhimento de impostos de con-sumo, e adaptá-los, solucionando-os com aexperiência nacional.

Na proposta do Governo, aparece no art.153, inciso IV, a figura de um imposto “so-bre bens e serviços”, similar ao imposto “so-bre o valor agregado”, o chamado IVA.

Na União Européia4, identificou-se umabrecha que tornava possível a sonegação,quando produtos fabricados em determina-do país, com alíquota mais baixa, eram alo-cados como se fossem transferidos para ou-tro país da Comunidade, isentando-o de ta-xação; mas que, na realidade, não saíam dorespectivo território.

Pois bem, diante da experiência brasilei-ra, poderia ser utilizada a figura do impos-to eletrônico, para, por exemplo, confrontaros dados concernentes às saídas das mer-cadorias e a incidência do recolhimento noconsumo. Algo idêntico foi feito pela Recei-ta Federal para tentar valorar o tamanho da

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sonegação no Brasil ao confrontar dados to-talizados de movimentação de contas bancá-rias em relação ao que se recolhe de tributos.

Nesse sentido, a proposta de Projeto deEmenda do Deputado Marcos Cintra pare-ce ser mais realista, na qual vislumbra-severdadeiramente uma busca do que seriamelhor para o Sistema Tributário Nacional,devendo apenas ser melhorado com a reti-rada de excessos, como a proposição dosadicionais do IMF. Vejamos a seguir:

4. Comentários às propostas de reformatributária do Deputado Marcos Cintra -

PECs nº 1835 e 474

Permanecendo in tactas as propostasapresentadas anteriormente, visualiza-semais satisfatória a uma ampla reformula-ção do Sistema Tributário Nacional a propos-ta elaborada pelo Deputado Federal pelo Es-

tado de São Paulo Professor Marcos Cintra,sendo necessária a retirada dos adicionaisao Imposto sobre movimentação financeira.

A proposta do Dep. Marcos Cintra é aúnica que já traz a discussão em torno dosvalores concernentes aos percentuais de in-cidência do Imposto sobre movimentaçãofinanceira, conforme afirma o mesmo emsuas “Justificativas”:

“O IMF e seus adicionais serão ar-recadados em conjunto, com alíquotaglobal estimada de 2,7%, sendo 1,4%para a Previdência Social e 1,3% paraos Estados. O IMF será arrecadado emprocedimento único, sendo de 1,35%no débito e 1,35% no crédito, e a arreca-dação será repassada diretamente dosbancos para os titulares (Previdênciae Estados).”

É o que demonstra a tabela de sua au-toria:

1 Agropecuária 29,8 8,92 Extração Mineral 26,8 8,23 Petróleo e Gás Natural 22,4 7,34 Carvão Mineral 24,6 7,25 Minerais Não-Metálicos 25,3 8,56 Metalurgia 23,8 9,97 Mecânica 22,1 8,18 Material Elétrico e de Comunicações 23,6 8,49 Material de Transporte 22,9 9,610 Madeira 26,9 9,211 Mobiliário 25,5 9,312 Papel e Papelão 25,7 9,713 Borracha 23,9 9,514 Couros e Peles 24,6 9,515 Destilação de Álcool 31,4 11,116 Refino de Petróleo 18,4 4,117 Indústria Farmacêutica 22,7 7,318 Perfumaria, Sabões e Velas 25,0 9,019 Outros Produtos Químicos 24,0 8,220 Têxtil 27,1 10,721 Vestuário e Calçados 27,0 10,422 Alimentos 28,2 10,423 Bebidas 24,5 9,024 Fumo 26,8 9,325 Editorial e Gráfica 23,5 8,0

Impacto da aplicação do imposto sobre valor agregado (IVA) de 17% e de um imposto sobre movimenta-ções financeiras (IMF) de 2,7% sobre os custos de produção de diversos setores da economia brasileira

SetoresCarga tributária % sobre custo de produção

IMF (2,7%)IVA (17%)

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Por meio da PEC 474, o Prof. Marcos Cin-tra demonstra que deseja lutar pela implan-tação do IMF – imposto único, com mais ên-fase, quedando-se pela discussão em tornode menos impostos em relação a sua pro-posta de nº 183.

Contudo, ainda traz um transtorno aopropor a criação de uma contribuição ele-trônica (CMF), ao lado do Imposto eletrôni-co (IMF), em seu art. 195, I – uma nova espé-cie de adicional, como na proposta anterior.

Por certo, a melhor proposição estaria nacriação do IMF e do IVA como os únicosimpostos arrecadatórios. O primeiro sobrea movimentação financeira, e o segundosobre o outro grande grupo de incidência: oconsumo de bens e serviços, como alinhadona tabela anterior.

Tributando-se esses dois grandes gruposde incidência, poderiamos ter uma garantiamaior em relação à transição a ser processa-da, quando da feitura dessa imensa refor-ma, sendo esse o melhor caminho para umacontundente Reforma Tributária.

5. Proposta do Relator da Comissão –Dep. Mussa Demes6

Comissão EspecialProposta de Emenda à Constituição

nº 175, de 1995Reforma Tributária

Texto da Constituição Federal com as alteraçõesdo Substitutivo da Reforma Tributária

Art. 100. À exceção dos créditos de natu-

reza alimentícia, os pagamentos devidospela Fazenda Federal, Estadual ou Munici-pal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológi-ca de apresentação dos precatórios e à con-ta dos créditos respectivos, proibida a de-signação de casos ou de pessoas nas dota-ções orçamentárias e nos créditos adicionaisabertos para este fim.

§ 4º Por opção do credor, o crédito indicadoem precatório poderá ser compensado com débi-to tributário seu, inscrito em dívida ativa, relati-vo à mesma Fazenda Pública.

MANTIDOS OS §§.

Título VIDa Tributação e do Orçamento

Capítulo IDo Sistema Tributário Nacional

Seção IDos Princípios Gerais

Art.145. A União, os Estados, o DistritoFederal e os Municípios poderão instituiros seguintes tributos:

I - impostos;II - taxas, em razão do exercício do poder

de polícia ou pela utilização, efetiva ou po-tencial, de serviços públicos específicos edivisíveis, prestados ao contribuinte ou pos-tos a sua disposição;

III – contribuição de melhoria, destinada afinanciar obra pública, que terá como limite totalsua despesa orçada.

§ 1º Sempre que possível, os impostosterão caráter pessoal e serão graduados se-gundo a capacidade econômica do contri-

26 Indústrias Diversas 25,2 8,527 Energia Elétrica 23,7 6,928 Saneamento e Abastecimento de Água 20,4 5,329 Construção Civil 25,0 8,530 Comércio 23,8 6,131 Serviços de Transportes e Comunicações 22,0 5,932 Financeiro 22,0 4,733 Outros Serviços 22,4 5,9

Impacto da aplicação do imposto sobre valor agregado (IVA) de 17% e de um imposto sobre movimenta-ções financeiras (IMF) de 2,7% sobre os custos de produção de diversos setores da economia brasileira

SetoresCarga tributária % sobre custo de produção

IMF (2,7%)IVA (17%)

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buinte, facultado à administração tributá-ria, especialmente para conferir efetividadea esses objetivos, identificar, respeitados osdireitos individuais e nos termos da lei, opatrimônio, os rendimentos e as atividadeseconômicas do contribuinte.

§ 2º As taxas não poderão ter base decálculo própria de impostos.

§ 3º É facultado à autoridade tributária re-quisitar às instituições financeiras, na forma pre-vista em lei complementar, informações sobre asoperações dos contribuintes.

§ 4º Ninguém será processado penalmenteantes de encerrado o processo administrativo tri-butário que aprecie a matéria da denúncia.

Art.146. Cabe à lei complementar:I - dispor sobre conflitos de competência

em matéria tributária, entre a União, os Es-tados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionaisao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em maté-ria de legislação tributária, especialmentesobre:

a) definição de tributos e de suas espéci-es, bem como, em relação aos impostos dis-criminados nesta Constituição, a dos res-pectivos fatos geradores, bases de cálculo econtribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, pres-crição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao atocooperativo praticado pelas sociedades co-operativas.

Art.147. Competem à União, em Territó-rio Federal os impostos estaduais e, se o Ter-ritório não for dividido em Municípios, cu-mulativamente, os impostos municipais; aoDistrito Federal cabem os impostos munici-pais.

Art.148. A União, mediante lei comple-mentar, poderá instituir empréstimos com-pulsórios:

I - para atender a despesas extraordiná-rias, decorrentes de calamidade pública, deguerra externa ou sua iminência;

II – para financiar investimentos públicos decaráter urgente e de relevante interesse nacional.

§ 1º A aplicação dos recursos provenientesde empréstimo compulsório será vinculada àdespesa que fundamentou sua instituição.

§ 2º Não poderá ser instituído empréstimocompulsório se a União estiver inadimplente emrelação a outro.

Art.149. Compete exclusivamente à Uniãoinstituir contribuições de intervenção no domí-nio econômico e de interesse das categorias pro-fissionais ou econômicas, como instrumento desua atuação nas respectivas áreas, observado odisposto nos arts. 146, III e 150, I e III, e semprejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativa-mente às contribuições a que alude o dispositivo.

§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Mu-nicípios poderão instituir contribuição, cobradade seus servidores, para o custeio, em benefíciodestes, de sistemas de previdência e assistênciasocial.

§ 2º O Distrito Federal e os Municípios po-derão instituir contribuições destinadas ao cus-teio de serviços de limpeza e de iluminação delogradouro público, que terão como limite total adespesa a realizar.

Seção II

Das Limitações do Poder de Tributar

Art.150. Sem prejuízo de outras garanti-as asseguradas ao contribuinte, é vedado àUnião, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei queo estabeleça;

II - instituir tratamento desigual entrecontribuintes que se encontrem em situaçãoequivalente, proibida qualquer distinção emrazão de ocupação profissional ou funçãopor eles exercida, independentemente dadenominação jurídica dos rendimentos, tí-tulos ou direitos;

III - cobrar tributos:a) em relação a fatos geradores ocorri-

dos antes do início da vigência da lei que oshouver instituído ou aumentado;

b) no mesmo exercício financeiro em quehaja sido publicada a lei que os instituiu ouaumentou;

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c) antes de decorridos noventa dias da publi-cação da lei que os instituiu ou aumentou, aindaque observado o disposto na alínea anterior;

IV - utilizar tributo com efeito de confisco;V – estabelecer limitações ao tráfego de pesso-

as ou bens, por meio de tributos interestaduais ouintermunicipais, admitida a cobrança de pedágio;

VI - instituir impostos sobre:a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos

outros;b) templos de qualquer culto;c) patrimônio, renda ou serviços dos par-

tidos políticos, inclusive suas fundações,das entidades sindicais dos trabalhadores,das instituições de educação e de assistên-cia social, sem fins lucrativos atendidos osrequisitos da lei;

d) livros, jornais, periódicos e o papeldestinado a sua impressão.

§ 1º A vedação do inciso III, ‘b’ e ‘c’, não seaplica aos empréstimos compulsórios e aos im-postos previstos nos arts. 153, I, II e V, § 6º, II, e154, apenas no que for cobrado pela União.

§ 2º A vedação do inciso VI, a, é extensi-va às autarquias e às fundações instituídase mantidas pelo Poder Público, no que serefere ao patrimônio, à renda e aos serviços,vinculados a suas finalidades essenciais ouàs delas decorrentes.

§ 3º As vedações do inciso VI, 2, e doparágrafo anterior não se aplicam ao patri-mônio, à renda e aos serviços, relacionadoscom exploração de atividades econômicasregidas pelas normas aplicáveis a empre-endimentos privados, ou em que haja con-traprestação ou pagamento de preços outarifas pelo usuário, nem exonera o promi-tente comprador da obrigação de pagar im-posto relativamente ao bem imóvel.

§ 4º As vedações expressas no inciso VI,alíneas b e c, compreendem somente o patri-mônio, a renda e os serviços, relacionadoscom as finalidades essenciais das entida-des nelas mencionadas.

§ 5º A lei determinará medidas para queos consumidores sejam esclarecidos acercados impostos que incidam sobre mercadori-as e serviços.

§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, reduçãode base de cálculo, concessão de crédito presumi-do, anistia ou remissão relativos a impostos, ta-xas ou contribuições só poderá ser concedidomediante lei específica, federal, estadual ou mu-nicipal, que regule exclusivamente as matériasacima enumeradas ou o correspondente tributoou contribuição.

§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivode obrigação tributária a condição de responsá-vel pelo pagamento de imposto ou contribuição,cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente,assegurados o pagamento da diferença quando abase de cálculo presumida tiver valor inferior àefetivamente ocorrida e a imediata e preferencialrestituição da quantia paga, ou paga em excesso,quando não se realizar o fato gerador presumidoou, realizado o fato gerador, a base de cálculopresumida tiver valor superior à efetivamenteocorrida.

Art.151. É vedado à União:I - instituir tributo que não seja uniforme

em todo o território nacional ou que impli-que distinção ou preferência em relação aEstado, ao Distrito Federal ou a Município,em detrimento de outro, admitida a conces-são de incentivos fiscais destinados a pro-mover o equilíbrio do desenvolvimento só-cio-econômico entre as diferentes regiões doPaís;

II - tributar a renda das obrigações dadívida pública dos Estados, do Distrito Fe-deral e dos Municípios bem como a remu-neração e os proventos dos respectivos agen-tes públicos em níveis superiores aos que fi-xar para suas obrigações e para seus agentes;

III - instituir isenções de tributos da com-petência dos Estados, do Distrito Federal oudos Municípios.

Art.152. É vedado aos Estados, ao Dis-trito Federal e aos Municípios estabelecerdiferença tributária entre bens e serviços dequalquer natureza, em razão de sua proce-dência ou destino.

Seção IIIDos Impostos da União

Art.153. Compete à União instituir im-

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postos sobre:I – importação de produtos estrangeiros e de

serviços;II – exportação, para o exterior, de produtos

nacionais ou nacionalizados, e de serviços;III - renda e proventos de qualquer natu-

reza;IV – (REVOGADO)V - operações de crédito, câmbio e segu-

ro, ou relativas a títulos ou valores mobiliá-rios;

VI - propriedade territorial rural;VII - grandes fortunas, nos termos de lei

complementar.§ 1º É facultado ao Poder Executivo, atendi-

das as condições e os limites estabelecidos em lei,alterar as alíquotas dos impostos enumerados nosincisos I, II e V.

§ 2º O imposto previsto no inciso III:I - será informado pelos critérios da ge-

neralidade, da universalidade e da progres-sividade, na forma da lei;

II – poderá ser exigido, antecipadamente,dentro do período de apuração, nos termos dalei, sem prejuízo da compensação ou restituiçãodo valor que exceder ao efetivamente devido noencerramento do mesmo período.

§ 3º (REVOGADO)§ 4º O imposto previsto no inciso VI terá

suas alíquotas fixadas de forma a desesti-mular a manutenção de propriedades im-produtivas e não incidirá sobre pequenasglebas rurais, definidas em lei, quando asexplore, só ou com sua família, o proprietá-rio que não possua outro imóvel.

§ 5º O ouro, quando definido em lei comoativo financeiro ou instrumento cambial,sujeita-se exclusivamente à incidência doimposto de que trata o inciso V do caput des-te artigo, devido na operação de origem; aalíquota mínima será de um por cento, asse-gurada a transferência do montante da ar-recadação nos seguintes termos:

I - trinta por cento para o Estado, o Dis-trito Federal ou o Território, conforme a ori-gem;

II - setenta por cento para o Municípiode origem.

§ 6º A União poderá instituir:I – imposto sobre a renda negativo, aplicável

às famílias de baixa renda, nas condições e limi-tes estabelecidos em lei;

II – na iminência ou no caso de guerra exter-na, impostos extraordinários, compreendidos ounão em sua competência tributária, os quais se-rão suprimidos, gradativamente, cessadas ascausas de sua criação.

Seção IVDo Imposto da União, dos Estados

e do Distrito Federal

Art. 154. As operações relativas à circulaçãode mercadorias e as prestações de serviços, aindaque as operações e as prestações se iniciem noexterior, ficarão sujeitas a imposto, cuja arreca-dação será compartilhada entre a União, os Es-tados e o Distrito Federal, instituído e reguladoem lei complementar, observado o seguinte:

I – o imposto será não-cumulativo, compen-sando-se o que for devido, em cada operação ouprestação:

a) na determinação do imposto devido aosEstados e ao Distrito Federal, com o montantepor eles cobrado nas operações e prestações ante-riores;

b) na determinação do imposto devido àUnião, com o montante por ela cobrado nas ope-rações e prestações anteriores;

II – a lei complementar indicará as formas deaproveitamento e de ressarcimento do saldo cre-dor do imposto em poder do contribuinte;

III – as alíquotas serão uniformes em todo oterritório nacional, e poderão ser seletivas;

IV – as alíquotas da União serão fixadas emlei, sendo admitida a faculdade de que trata oart. 153, § 1º;

V – as alíquotas dos Estados e do DistritoFederal serão fixadas pelo Senado Federal, me-diante resolução de iniciativa do Presidente daRepública ou de um terço dos Senadores, apro-vada por três quartos de seus membros;

VI – a lei estadual poderá aumentar ou redu-zir, em até dez por cento, as alíquotas estaduais;

VII – as alíquotas da União e as dos Estadose do Distrito Federal serão aplicadas sobre amesma base de cálculo;

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VIII – nas operações e prestações interesta-duais entre contribuintes, a alíquota estadual seráeliminada e a federal acrescida dos pontos per-centuais correspondentes à alíquota estadual;

IX – nas operações e prestações interestadu-ais destinadas a não contribuinte ou a contribu-inte submetido a sistema simplificado que im-plique a não utilização do imposto anteriormen-te pago, será devido à União o montante do im-posto resultante da aplicação da alíquota esta-dual na forma prevista no inciso anterior;

X – no caso do inciso anterior, a União entre-gará aos Estados e ao Distrito Federal o produtoda arrecadação do imposto calculado através daalíquota estadual, proporcionalmente à receitatotal do imposto;

XI – o imposto incidirá sobre a importaçãode bem, mercadoria e serviço cuja prestação te-nha se iniciado no exterior destinados a pessoafísica ou jurídica, qualquer que seja a finalidade,cabendo o montante do imposto cobrado atravésda alíquota estadual ao Estado em que situado oestabelecimento ou a residência do destinatário;

XII – o imposto não incidirá:a) sobre a operação de exportação de merca-

doria, nem sobre serviços prestados a destinatá-rio no exterior;

b) sobre a prestação de serviço de navegaçãoaérea;

c) sobre o ouro, nas hipóteses definidas noart. 153, § 5º;

XIII – a lei complementar poderá equiparar aoperação ou prestação:

a) a transmissão de título que represente amercadoria;

b) a transferência de mercadoria para estabe-lecimento do mesmo titular;

c) o recebimento, do exterior, de bem, merca-doria ou serviço, ainda que o remetente ou pres-tador seja o destinatário;

XIV – a lei complementar poderá estabelecersistema simplificado de pagamento do imposto,pelo qual poderão optar a microempresa e a em-presa de pequeno porte por ela definidas, cujasoperações e prestações se destinem, exclusiva-mente, a não contribuintes do imposto;

XV – a lei complementar:a) disporá sobre a atribuição prevista no art.

150, § 7º, no caso do imposto;b) disciplinará o regime de compensação do

imposto;c) indicará o local de ocorrência das opera-

ções e prestações para efeito da cobrança do im-posto e definição do estabelecimento responsá-vel;

XVI – medida provisória não poderá ser ado-tada para dispor sobre o imposto;

XVII – é vedada a concessão de isenção, in-centivo ou benefício fiscal relativos à parcela es-tadual do imposto;

XVIII – os gêneros alimentícios de primeiranecessidade, listados em lei complementar, rece-berão tratamento mais favorecido;

XIX – a isenção relativa à parcela do impos-to arrecadada pela União e a não-incidência se-rão uniformes em todo o território nacional e,salvo determinação em contrário da lei comple-mentar:

a) não implicarão crédito para compensaçãocom o montante devido nas operações ou presta-ções seguintes;

b) acarretarão a anulação do crédito relativoàs operações anteriores;

XX – os Estados e o Distrito Federal fiscali-zarão o imposto, sem prejuízo da fiscalizaçãocumulativa ou supletiva da União;

XXI – órgão do Poder Executivo dos Esta-dos e do Distrito Federal decidirá o contenciosoadministrativo relativo ao imposto;

XXII – será da competência da Justiça esta-dual o julgamento das ações relativas ao imposto;

XXIII – lei complementar criará órgão cole-giado com participação paritária da União, dosEstados e do Distrito Federal com atribuição,entre outras que indicar, de responder consultase uniformizar a jurisprudência administrativa;

XXIV – caberá à União expedir o regula-mento e os atos administrativos normativos, coma prévia audiência do órgão mencionado no in-ciso anterior.

Parágrafo único. O disposto no art. 102, §2º,será aplicado também, quanto a seus efeitos e efi-cácia, às demais decisões definitivas de méritodo mesmo Tribunal, proferidas por pelo menosdois terços de seus membros, relativas ao impos-to de que trata este artigo.

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Seção VDos Impostos dos Estados e do

Distrito Federal

Art. 155. Compete aos Estados e ao DistritoFederal instituir impostos sobre:

I - transmissão causa mortis e doação, dequaisquer bens ou direitos;

II – (REVOGADO)III - propriedade de veículos automoto-

res;§ 1º O imposto previsto no inciso I:I - relativamente a bens imóveis e respec-

tivos direitos, compete ao Estado da situa-ção do bem, ou ao Distrito Federal;

II - relativamente a bens móveis, títulos ecréditos, compete ao Estado onde se proces-sar o inventário ou arrolamento, ou tiverdomicílio o doador, ou ao Distrito Federal;

III - terá a competência para sua institui-ção regulada por lei complementar:

a) se o doador tiver domicílio ou residên-cia no exterior;

b) se o de cujus possuía bens, era residen-te ou domiciliado ou teve o seu inventárioprocessado no exterior;

IV - terá suas alíquotas máximas fixadaspelo Senado Federal.

§ 2º (REVOGADO)§ 3º (REVOGADO)

Seção VI

Dos Impostos dos Municípios

Art. 156. Compete aos Municípios insti-tuir impostos sobre:

I - propriedade predial e territorial urba-na;

II - transmissão inter vivos, a qualquertítulo, por ato oneroso, de bens imóveis, pornatureza ou acessão física, e de direitos re-ais sobre imóveis, exceto os de garantia, bemcomo cessão de direitos a sua aquisição;

III – venda a varejo e prestação de serviçosefetuadas a não contribuintes do imposto de quetrata o art. 154.

§ 1º O imposto previsto no inciso I poderáter alíquotas diferenciadas, de acordo com a lo-calização ou o uso do imóvel, nos termos de lei

municipal, e terá suas alíquotas máximas fixa-das em lei complementar.

§ 2º O imposto previsto no inciso II:I - não incide sobre a transmissão de bens

ou direitos incorporados ao patrimônio depessoa jurídica em realização de capital,nem sobre a transmissão de bens ou direi-tos decorrente de fusão, incorporação, cisãoou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nes-ses casos, a atividade preponderante doadquirente for a compra e venda desses bensou direitos, locação de bens imóveis ou ar-rendamento mercantil;

II - compete ao Município da situação dobem.

§ 3º O imposto previsto no inciso III:I – incide sobre serviços listados em lei com-

plementar;II – não incide na exportação de mercadori-

as, nem sobre serviços prestados a destinatáriono exterior;

III – incide na importação de bem, mercado-ria e serviço cuja prestação tenha se iniciado noexterior destinados a não contribuintes do im-posto de que trata o art. 154;

IV – terá sua alíquota máxima fixada em leicomplementar.

Seção VII

Da Repartição das Receitas Tributárias

Art. 157. Pertencem aos Estados e ao Dis-trito Federal:

I - o produto da arrecadação do impostoda União sobre renda e proventos de qual-quer natureza, incidente na fonte sobre ren-dimentos pagos, a qualquer título, por eles,suas autarquias e pelas fundações que ins-tituírem e mantiverem;

II – (REVOGADO)Art. 158. Pertencem aos Municípios:I - o produto da arrecadação do imposto

da União sobre renda e proventos de qual-quer natureza, incidente na fonte sobre ren-dimentos pagos, a qualquer título, por eles,suas autarquias e pelas fundações que ins-tituírem e mantiverem;

II – cinqüenta por cento do produto da arre-

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cadação do imposto da União sobre a proprieda-de territorial rural, relativamente aos imóveisneles situados, sendo esse percentual elevado paracem por cento no caso de a União delegar, aoMunicípio, a fiscalização e a arrecadação do im-posto;

III - cinqüenta por cento do produto daarrecadação do imposto do Estado sobre apropriedade de veículos automotores licen-ciados em seus territórios;

IV – vinte e cinco por cento do produto daarrecadação estadual referente ao imposto sobreoperações relativas à circulação de mercadoriase sobre prestações de serviços.

Parágrafo único. As parcelas de receitapertencentes aos Municípios, mencionadasno inciso IV, serão creditadas conforme osseguintes critérios:

I - três quartos, no mínimo, na proporçãodo valor adicionado nas operações relati-vas à circulação de mercadorias e nas pres-tações de serviços, realizadas em seus terri-tórios;

II - até um quarto, de acordo com o quedispuser lei estadual ou, no caso dos Terri-tórios, lei federal.

Art. 159. A União entregará:I – do produto da arrecadação do imposto

sobre a renda e proventos de qualquer natureza edo produto de sua arrecadação do imposto sobreoperações relativas à circulação de mercadoriase sobre prestações de serviços, quarenta e sete porcento na seguinte forma:

a) vinte e um inteiros e cinco décimos porcento ao Fundo de Participação dos Esta-dos e do Distrito Federal;

b) vinte e dois inteiros e cinco décimospor cento ao Fundo de Participação dosMunicípios;

c) três por cento, para aplicação em pro-gramas de financiamento ao setor produti-vo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financei-ras de caráter regional, de acordo com osplanos regionais de desenvolvimento, fican-do assegurada ao semi-árido do Nordeste ametade dos recursos destinados à região, naforma que a lei estabelecer;

II – (REVOGADO)§ 1º Para efeito de cálculo da entrega a

ser efetuada de acordo com o previsto noinciso I, excluir-se-á a parcela da arrecada-ção do imposto de renda e proventos de qual-quer natureza pertencente aos Estados, aoDistrito Federal e aos Municípios, nos ter-mos do disposto nos arts. 157, I, e 158, I.

§ 2º (REVOGADO)§ 3º (REVOGADO)Art. 160. É vedada a retenção ou qual-

quer restrição à entrega e ao emprego dosrecursos atribuídos, nesta Seção, aos Esta-dos, ao Distrito Federal e aos Municípios,neles compreendidos adicionais e acrésci-mos relativos a impostos.

§ 1º A vedação prevista neste artigo não im-pede a União e os Estados de condicionarem aentrega de recursos ao pagamento de seus crédi-tos, inclusive de suas autarquias.

§ 2º O valor dos recursos retidos em virtudedo disposto no parágrafo anterior não poderáexceder o dos créditos.

§ 3º Não se aplicará o disposto no § 1º en-quanto o destinatário dos recursos ou autarquiasua for credor da União, dos Estados ou de suasautarquias.

Art. 161. Cabe à lei complementar:I - definir valor adicionado para fins do

disposto no art. 158, parágrafo único, I;II - estabelecer normas sobre a entrega

dos recursos de que trata o art. 159, especi-almente sobre os critérios de rateio dos fun-dos previstos em seu inciso I, objetivandopromover o equilíbrio sócio-econômico en-tre Estados e entre Municípios;

III - dispor sobre o acompanhamento,pelos beneficiários, do cálculo das quotas eda liberação das participações previstas nosarts. 157, 158 e 159.

Parágrafo único . O Tribunal de Contasda União efetuará o cálculo das quotas refe-rentes aos fundos de participação a que alu-de o inciso II.

Art. 162. A União, os Estados, o DistritoFederal e os Municípios divulgarão, até oúltimo dia do mês subseqüente ao da arre-cadação, os montantes de cada um dos tri-

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Revista de Informação Legislativa258

butos arrecadados, os recursos recebidos, osvalores de origem tributária entregues e aentregar e a expressão numérica dos critéri-os de rateio.

Parágrafo único . Os dados divulgadospela União serão discriminados por Estadoe por Município; os dos Estados, por Muni-cípio.

Art. 167. São vedados:§ 4º É permitida a vinculação de receitas pró-

prias geradas pelos impostos a que se referem osarts. 154, 155 e 156, e dos recursos de que tra-tam os arts. 157, 158 e 159, I, ‘a’ e ‘b’, para aprestação de garantia ou contragarantia à Uniãoe para pagamento de débitos para com esta.

MANTIDOS OS INCISOS E DEMAIS §§.Art. 171. A lei poderá definir práticas de co-

mércio exterior danosas à economia nacional, eautorizar a cobrança de direitos e a imposição delimitações e sanções que visem a neutralizá-lasou coibi-las.

Parágrafo único. A cobrança de direitos e aimposição de limitações e sanções poderão retro-agir à data da publicação do ato que indicar oinício do processo de apuração das práticas.

Título VIIIDa Ordem Social

Capítulo IDisposição Geral

Art.193. A ordem social tem como base oprimado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

§ 1º A União instituirá contribuição social,devida por qualquer pessoa jurídica, de direitopúblico ou privado, ou por quem a ela a lei equi-parar, para o custeio de suas ações sociais nasáreas de:

I - seguridade social;II – ensino fundamental público;III – amparo ao trabalhador, especialmente

através dos programas de:a) seguro-desemprego;b) apoio à geração de emprego, através de

microempresas e pequenas empresas.§ 2º Parcela da contribuição prevista no pa-

rágrafo anterior será destinada ao financiamen-to da seguridade social.

§ 3º A contribuição de que trata o § 1º:I – será não-cumulativa, nos termos da lei,

podendo, inclusive, para os contribuintes doimposto de que trata o art. 154, ser cobrada naforma de um adicional da parcela federal daque-le imposto;

II – não incidirá sobre a exportação para oexterior nem sobre a receita dela decorrente;

III – incidirá sobre a importação de bens eserviços, efetuada por pessoas físicas e jurídicas;

IV – poderá ter fatos geradores, alíquotas ebases de cálculo diferenciados em razão da ativi-dade econômica ou da intensividade de utiliza-ção de mão-de-obra;

V – sujeitar-se-á ao disposto no art. 150, III,c, e não se sujeitará ao disposto no art. 150, III, b.

§ 4º O total dos percentuais dos adicionaisprevistos no § 3º, I, ou das alíquotas da contri-buição não poderá ser superior a sessenta porcento da correspondente alíquota estadual doimposto de que trata o art. 154.

§ 5º Lei complementar disporá sobre parce-las mínimas do produto da arrecadação da con-tribuição de que trata o § 1º a serem destinadasao financiamento das ações mencionadas em seusincisos, e na seguridade social, bem como sobre aconstituição de reserva, adicional à prevista noart. 239, § 1º, a ser aplicada no financiamentode programas que visem a ampliar a geração deemprego, com critérios de remuneração que lhespreservem o valor.

Art. 194. (MANTIDO)Art.195. A seguridade social será finan-

ciada por toda a sociedade, de forma diretae indireta, nos termos da lei, mediante re-cursos provenientes dos orçamentos daUnião, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios, e das seguintes contribuiçõessociais:

I - do empregador, da empresa e da enti-dade a ela equiparada na forma da lei, inci-dentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimen-tos do trabalho pagos ou creditados, a qual-quer título, à pessoa física que lhe presteserviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento, no caso de nãocontribuintes da contribuição de que trata o art.

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 259

193, § 1º;c) REVOGADOII - do trabalhador e dos demais segura-

dos da previdência social, não incidindocontribuição sobre a aposentadoria e pen-são concedidas pelo regime geral de previ-dência social de que trata o art. 201;

III - sobre a receita de concursos de prog-nósticos.

§ 4º (REVOGADO)DEMAIS §§ MANTIDOS.Art. 212. A União aplicará, anualmente,

nunca menos de dezoito, e os Estados, oDistrito Federal e os Municípios vinte e cin-co por cento, no mínimo, da receita resul-tante de impostos, compreendida a prove-niente de transferências, na manutenção edesenvolvimento de ensino.

§ 5º O ensino fundamental público terá comofonte adicional de financiamento recursos pro-venientes do produto da arrecadação da contri-buição social de que trata o art. 193, § 1 º.

§ 6º Para a aplicação dos percentuais previs-tos no caput, a receita será deduzida do montan-te dos recursos efetivamente transferidos aosPoderes Legislativo e Judiciário.

DEMAIS §§ MANTIDOS.Art. 239. O programa do seguro-desempre-

go e o abono de que trata o § 3º deste artigo,atendidas as condições e os termos da lei, serãocusteados por recursos do fundo de amparo aotrabalhador, que contará com parcela do produ-to da arrecadação da contribuição social de quetrata o art. 193, § 1º.

§ 4º (REVOGADO)DEMAIS §§ MANTIDOS.Art. 251. A transferência de novos encargos

aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípi-os estará condicionada à correspondente transfe-rência de recursos pela União e pelos Estados.

Art. 252. A União, os Estados, o DistritoFederal e os Municípios poderão, na forma pre-vista em lei, negociar os créditos tributários ins-critos em dívida ativa.

Art. 253. Mantido o disposto no art. 246 daConstituição Federal, é vedada a adoção de me-dida provisória que institua ou aumente taxa,imposto ou contribuição.

Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias

Art. 76. O disposto no art. 145, § 3 º, da Cons-tituição Federal, não admite a recepção de legis-lação vigente na data da publicação desta Emen-da.

Art. 77. O disposto no art. 148, § 2 º, da Cons-tituição Federal, não será aplicado em relação aempréstimo compulsório instituído antes da en-trada em vigor desta Emenda.

Art. 78. Nos primeiros quatro anos de suavigência, o imposto de que trata o art. 154 seráexigido pelos Estados e pelo Distrito Federal tam-bém nas operações relativas a circulação de mer-cadorias e nas prestações de serviços de trans-porte e de comunicação interestaduais.

§ 1º As alíquotas interestaduais serão as efe-tivamente exigidas em 1º de janeiro de 1999,com redução anual, a partir do segundo ano, devinte e cinco, cinqüenta e setenta e cinco por cen-to.

§ 2º As alíquotas federais, nas mesmas ope-rações e prestações, serão acrescidas da diferençaentre a alíquota estadual fixada pelo Senado Fe-deral e a interestadual prevista no parágrafoanterior.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, a Uniãoentregará aos Estados e ao Distrito Federal oproduto da arrecadação do imposto calculadoatravés da alíquota estadual, proporcionalmen-te à receita total do imposto.

§ 4º O disposto no caput deste artigo não seaplica às operações que destinem a outros Esta-dos petróleo, inclusive lubrificantes, combustí-veis líquidos e gasosos dele derivados, e energiaelétrica.

Art. 79. Até que seja fixada em lei comple-mentar, a alíquota máxima do imposto de quetrata o art. 156, III, será de três por cento.

Art. 80. As desonerações relativas ao impos-to sobre produtos industrializados, concedidassob condição e por prazo certo, serão observadas,até seu término, quanto à parcela federal do im-posto de que trata o art. 154 da ConstituiçãoFederal.

Art. 81. São acrescidos dez anos ao prazofixado no art. 40 do Ato das Disposições Consti-

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Revista de Informação Legislativa260

tucionais Transitórias.Art. 82. Em relação à Zona Franca de Ma-

naus, até 5 de outubro de 2023, a legislação doimposto previsto no art. 154 da ConstituiçãoFederal, na redação dada por esta Emenda obser-vará:

I – quanto à competência da União:a) as operações relativas a mercadorias a ela

destinadas, dela provenientes ou realizadas emseu território receberão o mesmo tratamento tri-butário dispensado pelo imposto sobre produtosindustrializados em 1º de janeiro de 1999;

b) a União não acrescerá às suas, total ouparcialmente, as alíquotas do imposto estadual;

c) concessão de crédito presumido, ao adqui-rente estabelecido fora da Zona Franca de Ma-naus, igual ao montante do imposto não exigidorelativo a mercadorias nela produzidas;

II – quanto à competência dos Estados e doDistrito Federal:

a) as operações relativas a mercadorias a eladestinadas ou dela provenientes receberão o mes-mo tratamento tributário dispensado em 1º dejaneiro de 1999 pela legislação do imposto pre-visto no art. 155, II da Constituição Federal;

b) a legislação do imposto a ser observadanas operações realizadas em seu território seráda competência do Estado do Amazonas.

Art. 83. Em relação à Zona Franca de Ma-naus, até 5 de outubro de 2023, a importação deprodutos estrangeiros receberá o mesmo trata-mento tributário dispensado, em 1 º de janeiro de1999, pelo imposto de que trata o art. 153, I, daConstituição.

Art. 84. Pelo prazo de cinco anos, a receita daUnião decorrente dos impostos previstos nosarts. 153, I e 154 da Constituição Federal, inci-dentes sobre petróleo e combustíveis dele deriva-dos, lubrificantes, álcool carburante e prestaçãode serviços de transporte será destinada à con-servação, recuperação, eliminação de pontos crí-ticos, melhoria e adequação de capacidade do sis-tema viário federal.

Parágrafo único. No caso do imposto previs-to no art. 154, o montante da receita vinculadaprevista neste artigo será calculado após dedu-zidos os valores das transferências previstas noart. 159 da Constituição Federal.

6. Proposta do Ministério da Fazenda7

Proposta de Emenda à Constituição n º 175-A,de 1995 (do Poder Executivo)Altera o Sistema Tributário Nacio-

nal e dá outras providências.Art. 1º Os artigos da Constituição Fede-

ral abaixo enumerados passam a vigorarcom as seguintes alterações:

“Art. 34. ................................................V - ..............................................................c) retiver parcela que não lhe per-

tença do produto da arrecadação doimposto previsto no art. 154;

.................................................................”“Art. 36...................................................V - no caso do art. 34, V, de solici-

tação do Poder Executivo de qualquerEstado ou do Distrito Federal.”

“Art.145...................................................§ 3º Os Municípios e o Distrito Fe-

deral poderão instituir taxa que tenhapor fato gerador a prestação efetivados serviços de conservação, limpezaou iluminação de logradouros públi-cos urbanos.

§ 4º A exigência de imposto e taxapoderá ser efetuada na mesma notifi-cação de lançamento.

§ 5º A lei complementar estabele-cerá a forma e os critérios a serem ob-servados e indicará as autoridadestributárias que poderão requisitar, àsinstituições financeiras, informaçõessobre as operações dos contribuintes.

§ 6º No que se refere a matéria tri-butária, o disposto no art. 102, § 2º,será aplicado, também, quanto a seusefeitos e eficácia, às demais decisõesdefinitivas de mérito do mesmo Tri-bunal, proferidas por no mínimo doisterços de seus membros.”

“Art.146...................................................III -.............................................................a) definição de tributos e de suas

espécies, bem como, em relação aosimpostos discriminados nesta Cons-tituição, a dos respectivos fatos gera-

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 261

dores, contribuintes e bases de cálcu-lo, inclusive para fins do disposto noart. 150, § 7º;

...................................................................IV - dispor sobre a integração dos

cadastros de contribuintes e da estru-tura de fiscalização tributária federal,estadual e municipal. ”

“Art. 148. A União, mediante lei,poderá instituir empréstimos compul-sórios para atender a despesas extra-ordinárias decorrentes de calamida-de pública e de guerra externa ou suaiminência.”

“Art. 149. Compete exclusivamen-te à União instituir, como instrumen-to de sua atuação nas respectivas áre-as, observado o disposto nos arts. 146,III, e 150, I e III, contribuições:

I - sociais;II - de intervenção ambiental;III - de intervenção no domínio eco-

nômico;IV - de interesse das categorias pro-

fissionais oueconômicas.§ 1º As contribuições previstas no

inciso II poderão ter fatos geradores,alíquotas e bases de cálculo diferenci-ados em razão do grau de utilizaçãoou degradação dos recursos ambien-tais ou da capacidade de assimilaçãodo meio ambiente.

§ 2º Os Estados, o Distrito Federale os Municípios poderão instituir con-tribuição, cobrada de seus servidores,para custeio, em benefícios destes, desistemas de previdência e assistênciasocial.

§ 3º Os Municípios e o Distrito Fe-deral poderão instituir contribuiçãode suplementação dos serviços de se-gurança pública prestados pelos Es-tados, cuja cobrança ficará condicio-nada à prévia consulta popular e àaprovação de plano suplementar desegurança.”

“Art.150..................................................

V - estabelecer limitações ao tráfe-go de pessoas ou bens, por meio detributos interestaduais ou intermuni-cipais, admitida a cobrança de pedá-gio;

§ 1º A vedação do inciso III, b, nãose aplica aos empréstimos compulsó-rios e aos impostos previstos no art.153, I, II, IV e V, e § 8º.

..................................................................§ 6º Qualquer subsídio ou isenção,

redução de base de cálculo, conces-são de crédito presumido, anistia ouremissão relativos a impostos, taxasou contribuições só poderá ser conce-dido mediante lei específica, federalestadual ou municipal, que regule ex-clusivamente as matérias acima enu-meradas ou o correspondente impos-to, taxa ou contribuição.

§ 7º A lei poderá atribuir a sujeitopassivo de obrigação tributária a con-dição de responsável pelo pagamen-to definitivo de imposto ou contribui-ção, cujo fato gerador deva ocorrerposteriormente, observado o dispostoem lei complementar para definiçãodas hipóteses de restituição e basesde cálculo aplicáveis.”

“Art. 153..................................................I - importação de produtos estran-

geiros e de serviços;II - exportação, para o exterior, de

produtos nacionaisou nacionalizados e de serviços;...................................................................IV - bens e serviços;...................................................................VIII - movimentação ou transmis-

são de valores e de créditos e direitosde natureza financeira.

§ 1º É facultado ao Poder Executi-vo, atendidas as condições e os limi-tes estabelecidos em lei, alterar as alí-quotas dos impostos enumerados nosincisos I, II, IV e V.

...................................................................3º O imposto previsto no inciso IV:

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Revista de Informação Legislativa262

I - será não-cumulativo;II - incidirá sobre bens e serviços

listados em lei complementar;III - não incidirá sobre:a) bens e serviços destinados ao

exterior;b) operações relativas a energia elé-

trica, derivados de petróleo, combus-tíveis e minerais do País e serviços detelecomunicações.

§ 4º O ouro, quando definido emlei como ativo financeiro ou instru-mento cambial, sujeita-se exclusiva-mente à incidência do imposto de quetrata o inciso V do caput deste artigo,devido na operação de origem.

§ 5º A alíquota mínima, na hipóte-se de incidência referida no parágra-fo anterior, será de um por cento, as-segurada transferência do montanteda arrecadação nos seguintes termos:

I - trinta por cento para o Estado, oDistrito Federal ou o Território, con-forme a origem;

II - setenta por cento para o Muni-cípio de origem.

§ 6º O montante pago a título doimposto previsto no inciso VIII:

I - será compensado com outrosimpostos ou contribuições federais,até o limite do valor devido relativo aesses impostos ou contribuições, naforma da lei;

II - terá alíquota máxima fixada emlei complementar.

§ 7º A compensação a que se refereo parágrafo anterior não poderá im-plicar redução de base de cálculo detransferências federais.

§ 8º A União poderá instituir, naiminência ou no caso de guerra exter-na, impostos extraordinários, compre-endidos ou não em sua competênciatributária, os quais serão suprimidos,gradativamente, cessadas as causasde sua criação.”

Art. 2º A Seção IV do Capítulo I do TítuloVI da Constituição Federal passa a vigorar

com a seguinte redação:“Seção IVDo Imposto de Competência Conjun-

ta dos Estados e do Distrito FederalArt. 154. Compete aos Estados e ao

Distrito Federal instituir imposto não-cumulativo sobre operações relativasà circulação de mercadorias e sobreprestações de serviços, ainda que asoperações e as prestações se iniciemno exterior.

§ 1º O imposto previsto neste arti-go atenderá ao seguinte:

I – sua instituição far-se-á por leiestadual que ratificará as normas es-tabelecidas em lei complementar;

II – incidirá, também:a) sobre a importação de bem, mer-

cadoria ou serviço cuja prestação te-nha se iniciado no exterior destina-dos a pessoa natural ou jurídica, qual-quer que seja a sua finalidade;

b) sobre a exploração, com ou semcessão de direitos, de bens corpóreosou incorpóreos, que assegurem a frui-ção ou criem utilidades por meios ele-trônicos ou por quaisquer outros;

c) a transferência de bem de uso,consumo ou ativo fixo ou de merca-doria entre estabelecimentos da mes-ma pessoa;

III - não incidirá:a) sobre a exportação para o exte-

rior de mercadorias, nem sobre servi-ços prestados a destinatário no exte-rior, assegurado o aproveitamento oumanutenção do montante do impostocobrado nas operações e prestaçõesanteriores;

b) sobre o ouro, nas hipóteses defi-nidas no art. 153, § 4º;

IV – poderá ser seletivo;V – terá alíquotas fixadas pelo Se-

nado Federal, mediante resoluçãoaprovada por dois terços de seus mem-bros, de iniciativa privativa de um ter-ço dos senadores ou de um terço dosGovernadores dos Estados e do Dis-

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 263

trito Federal e uniformes em todo ter-ritório nacional por mercadoria ouserviço, vedada a distinção entre ope-rações e prestações internas, interes-taduais e de importação, ressalvado odisposto no inciso seguinte;

VI – O disposto no inciso anteriorobservará as seguintes classes de alí-quotas definidas em lei complemen-tar:

a) padrão;b) mínima;c) reduzida;d) ampliada;VII – a lei estadual poderá aumen-

tar, por classe, em até vinte por cento,as alíquotas aplicáveis às operações eprestações internas;

VIII – na forma da lei complemen-tar:

a) será exigido no Estado ou noDistrito Federal onde ocorrer o fatogerador da operação ou prestação;

b) o produto de sua arrecadaçãoserá atribuído ao Estado ou ao Distri-to Federal de localização do destina-tário da mercadoria ou do serviço;

c) poderá ser atribuída ao Estadoou ao Distrito Federal de origem daoperação ou prestação uma parcela daarrecadação de que trata a alínea a,com a finalidade exclusiva de custeara fiscalização, mediante deliberaçãodo órgão de que trata o § 4º deste arti-go;

IX – é vedada a concessão de isen-ção, diferimento, redução de base decálculo, crédito outorgado ou qual-quer outro incentivo ou benefício fis-cal equivalente que implique renún-cia de receita, relativos ao imposto,admitida:

a) a opção pelo abatimento de per-centagem fixa a título do montante doimposto cobrado em etapas anterio-res, nos termos do regulamento;

b) a concessão de subsídios finan-ceiros à conta do orçamento dos Esta-

dos ou do Distrito Federal;§ 2º A lei complementar regulará o

imposto e especialmente:I – definirá fatos geradores, bases

de cálculo e contribuintes;II – disporá sobre a substituição

tributária, a base de cálculo presumi-da a ela aplicável e os critérios parasua fixação;

III – disciplinará o regime de com-pensação do imposto;

IV – indicará o local de ocorrênciadas operações e prestações, para efei-to de cobrança do imposto e definiçãodo estabelecimento responsável;

V – estabelecerá sanções, inclusi-ve a retenção dos recursos a que serefere o § 1º, VIII, aos Estados e ao Dis-trito Federal ou aos seus agentes, pordescumprimento da legislação do im-posto;

VI – estabelecerá regimes especi-ais ou simplificado de tributação;

VII – poderá instituir fundo, de ti-tularidade e administração conjuntados Estados e do Distrito Federal,constituído por receitas provenientesda arrecadação do imposto, relativaàs operações e prestações interestadu-ais, para efeito de aplicação do dis-posto no § 1º, VIII;

VIII – regular a forma de funciona-mento do órgão colegiado de que tra-ta o § 4º deste artigo.

§ 3º Sem prejuízo do disposto noart. 61, a lei complementar de que tra-ta este artigo poderá, também, ser deiniciativa de um terço dos Governa-dores dos Estados e do Distrito Fede-ral.

§ 4º Compete a órgão colegiado,composto por um representante decada Estado e do Distrito Federal, alémdas atribuições estabelecidas em leicomplementar:

I – expedir o regulamento único edemais normas necessárias à admi-nistração do imposto;

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Revista de Informação Legislativa264

II – aplicar sanções aos Estados eao Distrito Federal

ou a seus agentes por descumpri-mento da legislação do

imposto, sem prejuízo do dispostono art. 34, V, c.”

Art. 3º Os arts. 155 e 156 passam a inte-grar as Seções V e VI do Capítulo I do TituloVI da Constituição Federal, com as seguin-tes alterações:

“Seção VDos Impostos dos Estados e do Distri-

to FederalArt. 155. Compete aos Estados e ao

Distrito Federal instituir impostos so-bre:

...................................................................II – propriedade de veículos auto-

motores.Parágrafo único. O imposto pre-

visto no inciso I:...................................................................IV – será progressivo e terá suas

alíquotas mínima e máxima fixadaspelo Senado Federal.”

“Seção VIDos Impostos dos MunicípiosArt. 156. ....................................................................................................................III - venda a varejo de mercadorias

e prestação de serviços.§ 1º O imposto previsto no inciso I

poderá ter alíquotas diferenciadas, deacordo com a localização ou o uso doimóvel, e alíquotas progressivas notempo ou em razão do valor do imó-vel, nos termos de lei municipal, e terásuas alíquotas máximas fixadas emlei complementar.

..................................................................§ 3º O imposto previsto no inciso

III:I - não incidirá na exportação de

mercadorias, nem sobre serviços pres-tados a destinatário no exterior;

II - incidirá na importação de bem,mercadoria e serviço cuja prestaçãotenha-se iniciado no exterior, destina-

dos a não contribuintes do impostode que trata o art. 154;

III - quanto à tributação dos servi-ços, incidirá sobre:

a) os de alojamento e alimentação;b) os demais, prestados a não con-

tribuintes do imposto de que trata oart. 154;

IV - terá alíquota uniforme fixadaem lei complementar para todas asvendas e prestações;

V - não será objeto de isenção, be-nefício ou incentivo fiscal;

VI - será regulado em lei comple-mentar que, inclusive, definirá vendaa varejo e fixará prazos de recolhimen-to.”

Art. 4º Os arts. 157 a 162 passam a inte-grar a Seção VII do Capítulo I do Título VIda Constituição Federal, com as seguintesalterações:

“Seção VIIDa Repartição das Receitas Tributá-

riasArt. 157. Pertence aos Estados e ao

Distrito Federal o produto da arreca-dação do imposto da União sobre ren-da e proventos de qualquer natureza,incidente na fonte, sobre rendimentospagos, a qualquer título, por eles, suasautarquias e pelas fundações que ins-tituírem e mantiverem.”

“Art. 158. Pertencem aos Municí-pios:

...................................................................IV - vinte e cinco por cento do pro-

duto da arrecadação do imposto deque trata o art. 154.

................................................................”“Art. 159. A União entregará do

produto da arrecadação dos impos-tos previstos:

I - no art. 153, III e IV, quarenta esete por cento na

seguinte forma:.................................................................II - no art. 153, IV, dez por cento

aos Estados e ao Distrito Federal, pro-

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 265

porcionalmente ao valor das respecti-vas exportações.

§ 1º Para efeito de cálculo da en-trega a ser efetuada de acordo com oprevisto no inciso I, excluir-se-á a par-cela da arrecadação do imposto de ren-da e proventos de qualquer naturezapertencente aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municípios, nos termosdo disposto nos arts. 157 e 158, I.

................................................................”“Art. 160..................................................§ 1º A vedação prevista neste arti-

go não impede a União e os Estadosde condicionarem a entrega de recur-sos ao pagamento de seus créditos,inclusive de suas autarquias.

§ 2º O valor dos recursos retidosem virtude do disposto no parágrafoanterior não poderá exceder o dos cré-ditos.”

“Art. 161. .................................................§ 1º No caso das usinas hidrelétri-

cas, cinqüenta por cento do valor adi-cionado serão atribuídos aos Municí-pios em que estiverem instaladas e cin-qüenta por cento serão atribuídos aosMunicípios impactados pelo reserva-tório, proporcionalmente à área ala-gada.

§ 2º O Tribunal de Contas daUnião efetuará o cálculo das quotasreferentes aos fundos de participaçãoa que alude o inciso II.”

Art. 5º Os arts. 167, IV e § 4º e 171, daConstituição Federal passam a vigorar coma seguinte redação:

“Art.167. ...............................................IV - a vinculação de receita de im-

postos a órgão, fundo ou despesa, res-salvadas as vinculações expressa-mente previstas nesta Constituição eao fundo previsto no art. 21, XIV;

.................................................................§ 4º É permitida a vinculação de

receitas próprias geradas pelos impos-tos a que se referem os arts. 154, 155 e156, e dos recursos de que tratam os

arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para aprestação de garantia ou contragaran-tia à União e para pagamento de débi-tos para com esta.”

“Art. 171. A lei poderá definir prá-ticas de comércio exterior danosas àeconomia nacional e autorizar a co-brança de direitos compensatórios e aimposição de limitações e sanções quevisem a neutralizá-las ou coibi-las.

Parágrafo único. A cobrança dedireitos compensatórios e a imposiçãode limitações e sanções poderão al-cançar as práticas ocorridas a partirda data da publicação do ato que in-dicar o início do processo de sua apu-ração.”

Art. 6º O art. 195 da Constituição Fede-ral passa a vigorar com a seguinte altera-ção:

“Art. 195 ................................................§ 4º As contribuições sociais refe-

ridas no inciso I, b:I - não incidirão sobre as receitas

decorrentes de exportação;II - não serão objeto de isenção ou

não-incidência, ressalvado o dispos-to no inciso anterior;

III - incidirão, também, sobre o va-lor de bem ou serviço recebido do ex-terior, inclusive se o destinatário forpessoa natural, que, no caso, seráequiparada a pessoa jurídica;

IV - terão alíquotas estabelecidasem lei;

V - observadas normas gerais fixa-das em lei complementar, de iniciati-va privativa do Presidente da Repú-blica, terão base de cálculo determi-nada em lei, que estabelecerá as hipó-teses, condições e forma de:

a) exclusão de receitas ou deduçãode despesas;

b) aproveitamento de créditos;c) exigência monofásica ou medi-

ante regime simplificado de tributa-ção.

.................................................................”

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Revista de Informação Legislativa266

Art. 7º Ao art. 203 da Constituição Fede-ral é acrescentado o seguinte parágrafo úni-co:

“Art. 203 ................................................Parágrafo único. A União institui-

rá programa de garantia de renda mí-nima destinado a assegurar a subsis-tência das famílias de baixa renda, aser realizado por meio de convênioscom os Estados, o Distrito Federal e osMunicípios, na forma da lei.”

Art. 8º Os arts. 212 e 239 da ConstituiçãoFederal passam a vigorar com as seguintesalterações:

“Art. 212. ................................................§ 5º O ensino fundamental públi-

co terá como fonte adicional de finan-ciamento a contribuição do salário-educação recolhida pelas empresas,como adicional da alíquota da contri-buição a que se refere o art. 195, I, b.”

“Art. 239. O programa do seguro-desemprego e o abono de que trata o §3º deste artigo, atendidas as condiçõese os termos da lei, serão financiadoscom recursos correspondentes a de-zoito por cento do produto da arreca-dação de que trata o art. 195, I, b.

.................................................................§ 3º Aos servidores públicos e aos

empregados que percebam até dois sa-lários mínimos de remuneração men-sal, é assegurado o pagamento de umsalário mínimo anual, computadonesse valor o rendimento das contasindividuais, no caso daqueles que jáparticipavam dos programas previs-tos no parágrafo anterior em 5 de ou-tubro de 1988.”

Art. 9º São acrescentados os seguintesartigos ao Ato das Disposições Constitucio-nais Transitórias:

“Art. 76. Os recursos do art. 155, II,da Constituição Federal, previstos noart. 60, § 2º, deste Ato das Disposi-ções Constitucionais Transitórias, se-rão substituídos por recursos decor-rentes da arrecadação do imposto de

que trata o art. 154 da ConstituiçãoFederal, na redação dada por estaEmenda.”

“Art. 77. A lei complementar quedisciplinar o imposto previsto no art.154, da Constituição Federal, com aredação dada por esta Emenda, dis-porá sobre o regime de transição peloprazo de sete exercícios financeiros,contados a partir do início de sua co-brança, observado o seguinte:

I – nos três primeiros exercícios fi-nanceiros, o produto da arrecadaçãorelativa às operações interestaduaisserá partilhado entre o Estado ou oDistrito Federal de localização do re-metente e o de localização do destina-tário da mercadoria ou do serviço,considerando-se as alíquotas interes-taduais vigentes em 31 de dezembrode 1999;

II – no quarto, quinto, sexto e séti-mo exercícios financeiros, a partilhareferida no inciso anterior obedeceráa redução de vinte por cento ao ano,naquelas alíquotas interestaduais;

III – nos três primeiros exercíciosfinanceiros em que for exigido, o im-posto não se sujeitará ao disposto noart. 150, III, b.”

“Art. 78. Ficam mantidos os diferi-mentos, as isenções, os incentivos oubenefícios fiscais ou financeiros, con-cedidos até 31 de dezembro de 1999,sob condição e por prazo certo, pelosEstados e pelo Distrito Federal, na for-ma de suas respectivas legislações,com base no ICMS, observado o se-guinte:

I – os diferimentos, as isenções, osincentivos ou benefícios referidos nes-te artigo:

a) serão compensados com o pro-duto da arrecadação de que trata o art.154, da Constituição Federal na reda-ção dada por esta Emenda, incidentenas operações e destinadas, o produ-to da arrecadação, resultante da dife-

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rença entre a alíquota vigente em 31de dezembro de 1999 e a fixada nostermos do disposto no art. 154, § 1º, V,da Constituição Federal, na redaçãodada por esta Emenda, será atribuídoao Estado ou Distrito Federal de loca-lização do destinatário da mercado-ria.”

“Art. 82. O disposto no art. 195, §4º, V, da Constituição, será implemen-tado gradualmente, no prazo de trêsanos, contado da promulgação destaEmenda Constitucional.”

“Art. 83. As leis que instituírem osimpostos previstos nos arts. 153, IV, e154, da Constituição, na redação dadapor esta Emenda, estabelecerão a for-ma de aproveitamento dos saldos cre-dores dos impostos de que tratam osarts.153, IV, e 155, II, da Constituição.”

Art. 10. O imposto de que trata o art. 153,VIII, não poderá ser cobrado enquanto forexigível a contribuição provisória sobremovimentação ou transmissão de valores ede créditos e direitos de natureza financei-ra, prevista nos arts. 74 e 75 do Ato das Dis-posições Constitucionais Transitórias, nostermos das Emendas Constitucionais nºs 12,de 15 de agosto de 1996, e 21, de 18 de mar-ço de 1999.

Art. 11. Os impostos de que tratam osarts. 153, IV, 154 e156, III, serão exigidos apartir de 1º de janeiro do ano subseqüenteao de publicação das leis complementares aque se referem, respectivamente:

I - o inciso II do § 3º do art. 153;II - o § 2º do art. 154;III - o inciso VI do § 3º do art. 156.Parágrafo único. Enquanto não forem

cobrados os impostos a que se refere esteartigo, continuarão sendo exigidos os im-postos de que tratam os arts. 153, IV, 155, II,e 156, III, da Constituição Federal, na reda-ção anterior a esta Emenda.

Art. 12. Ressalvado o disposto nos arts.10 e 11, esta Emenda ao texto constitucionalentrará em vigor em 1º de janeiro do anosubseqüente ao de sua promulgação.

Art. 13. Ficam revogados, a partir da dataprevista no caput do art. 11 desta Emenda,os §§ 2º e 3º do art. 155 da Constituição Fe-deral.

7.Propostas do DeputadoMarcos Cintra

Proposta de Emenda à Constituição n º 183 de1999 (do Sr. Marcos Cintra e outros)

“ Dispõe sobre o SistemaTributário Nacional “

As Mesas da Câmara dos Deputados edo Senado Federal, nos termos do § 3º doart. 60 da Constituição Federal, promulgama seguinte Emenda ao texto constitucional:

Artigo 1º O artigo 62, “caput”, e o artigo100, passam a vigorar com a seguinte reda-ção:

Artigo 62. Em caso de relevância eurgência, que não implique institui-ção ou majoração de tributos, o Presi-dente da República, poderá adotarmedidas provisórias, com força de lei,devendo submetê-las de imediato aoCongresso Nacional, que, estando emrecesso, será convocado extraordina-riamente para se reunir no prazo decinco dias.

Artigo100 ...............................................§ 4º Por opção do credor, o crédito

indicado em precatório poderá sercompensado com débito tributário seu,inscrito em dívida ativa, relativo àmesma Fazenda Pública.

Artigo 2º O Capítulo I do Título VI daConstituição Federal passa a vigorar com aseguinte redação:

Capítulo IDo Sistema Tributário Nacional

Seção IDos Princípios Gerais

Artigo 145. A União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios po-derão instituir os seguintes tributos:

I - impostos;II - taxas, em razão do exercício do

poder de polícia ou pela utilização,

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efetiva ou potencial, de serviços pú-blicos específicos e divisíveis, presta-dos ao contribuinte ou postos a suadisposição, limitadas ao custo da pres-tação desses serviços;

III - contribuição de melhoria decor-rente de obras públicas ou destinada afinanciá-las, limitada ao seu custo.

§ 1º Sempre que possível, os im-postos terão caráter pessoal e serãograduados segundo a capacidade eco-nômica do contribuinte, facultado àadministração tributária, especial-mente para conferir efetividade a es-ses objetivos, identificar, respeitadosos direitos individuais e nos termosda lei, o patrimônio, os rendimentos eas atividades econômicas do contri-buinte.

§ 2º Na forma prevista em LeiComplementar e sob segredo da Justi-ça e sigilo fiscal, é facultado à autori-dade tributária federal, em casos ex-cepcionais e mediante despacho fun-damentado, requisitar a responsávelpelo pagamento, arrecadação, ou re-colhimento de tributo, informaçõessobre o montante devido e respectivabase de cálculo.

§ 3º As taxas não poderão ter basede cálculo própria de impostos.

§ 4º Ninguém será processado porcrime contra a ordem tributária antesde encerrado, na via administrativa,o processo respectivo.

Artigo 146. Cabe à lei complemen-tar:

I - dispor sobre conflitos de com-petência, em matéria tributária, entrea União, os Estados, o Distrito Fede-ral e os Municípios;

II - regular as limitações constitu-cionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais emmatéria de legislação tributária, espe-cialmente sobre:

a) definição de tributos e de suasespécies, bem como, a de seus respec-

tivos fatos geradores, bases de cálcu-lo, alíquotas, e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito,decadência e prescrição tributários;

c) fixação de procedimentos e re-quisitos para a criação de tributos, oupara alteração de alíquotas dos exis-tentes;

d) determinação de juros, multas,e outras penalidades pecuniárias in-cidentes sobre débitos tributários, comobservância do artigo 150, IV, destaConstituição Federal, limitando-se asmultas ao máximo de 20% (vinte porcento) do valor do tributo devido;

IV - definir, entre União, Estados,Distrito Federal e Municípios, as com-petências de normatização, arrecada-ção e fiscalização dos tributos.

Artigo 147. Competem à União, emTerritório Federal, os impostos esta-duais e, se o Território não for dividi-do em Municípios, cumulativamente,os impostos municipais; ao DistritoFederal cabem os impostos municipais.

Artigo 148. A União, mediante leicomplementar, poderá instituir em-préstimos compulsórios para atendera despesas extraordinárias, decorren-tes de calamidade pública, de guerraexterna ou sua iminência.

Parágrafo único. A aplicação dosrecursos provenientes de empréstimocompulsório será vinculada à despe-sa que fundamentou sua instituição.

Artigo 149. Compete exclusiva-mente à União instituir contribuiçõessociais, de intervenção no domínioeconômico e de interesse das catego-rias profissionais ou econômicas,como instrumento de sua atuação nasrespectivas áreas, observado o dispos-to nos artigos 146, III, e 150, I e III, esem prejuízo do previsto no artigo 195,§ 5º, relativamente às contribuições aque alude o dispositivo.

Parágrafo único. Os Estados, oDistrito Federal e os Municípios po-

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derão instituir contribuição, cobradade seus servidores, para o custeio, embenefício destes, de sistemas de previ-dência e assistência social.

Seção IIDas Limitações doPoder de Tributar

Artigo 150. Sem prejuízo de outrasgarantias asseguradas ao contribuin-te, é vedado à União, aos Estados, aoDistrito Federal e aos Municípios:

I - instituir ou aumentar tributosem lei que o estabeleça;

II - instituir tratamento desigualentre contribuintes que se encontremem situação equivalente, proibidaqualquer distinção em razão de ocu-pação profissional ou função por elesexercida, independentemente da de-nominação jurídica dos rendimentos,títulos ou direitos;

III - cobrar tributos:a) em relação a fatos geradores

ocorridos antes do início da vigênciada lei que os houver instituído ou au-mentado;

b) no mesmo exercício financeiroem que haja sido publicada a Lei queos instituiu ou aumentou, e antes dedecorridos 180 (cento e oitenta) diasda data da publicação.

IV- utilizar tributo e respectivaspenalidades pecuniárias com efeito deconfisco;

V - estabelecer limitações ao tráfe-go de pessoas ou bens por meio de tri-butos interestaduais ou intermunici-pais, ressalvada a cobrança de pedá-gio pela utilização de vias conserva-das, ou cedidas em concessão, pelopoder público;

VI - instituir impostos sobre:a) patrimônio, renda, ou serviços,

uns dos outros;b) patrimônio, renda ou serviços

das entidades cujo objetivo seja reali-zar e promover o culto religioso;

c) patrimônio, renda ou serviçosdos partidos políticos, inclusive suasfundações, das entidades sindicais,das instituições de educação e de as-sistência social, sem fins lucrativos,atendidos os requisitos da lei comple-mentar;

d) o ato cooperativo, como tal defi-nido em legislação própria, praticadopelas sociedades cooperativas;

e) sobre recursos destinados aocusteio dos planos de natureza previ-denciária operacionalizados pelasentidades de previdência privada,bem como sobre os investimentos erendimentos das mesmas entidadesprovenientes das aplicações de reser-vas técnicas, fundos, e provisões;

§ 1º As vedações expressas no in-ciso III, alínea b, não se aplicam aosimpostos previstos nos artigos 153, IIIe IX, e 154.

§ 2º As vedações expressas no in-ciso VI não se aplicam ao tributo pre-visto no artigo 153, I e VII.

§ 3º A vedação do inciso VI, alíneaa, é extensiva às autarquias e às fun-dações instituídas e mantidas pelopoder público, no que se refere ao pa-trimônio, à renda e aos serviços vin-culados a suas finalidades essenciaisou às delas decorrentes.

§ 4º As vedações do inciso VI, alí-nea a, e do parágrafo anterior não seaplicam ao patrimônio, à renda e aosserviços relacionados com exploraçãode atividades econômicas regidas pe-las normas aplicáveis a empreendi-mentos privados, ou em que haja con-traprestação ou pagamento de preçosou tarifas pelo usuário, nem exoneramo promitente comprador da obrigaçãode pagar imposto relativamente aobem imóvel.

§ 5º As vedações expressas no in-ciso VI, alíneas b e c, compreendemsomente o patrimônio, a renda e osserviços relacionados com as finali-

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dades essenciais das entidades nelasmencionadas.

§ 6º A lei determinará medidaspara que os consumidores sejam es-clarecidos acerca dos impostos queincidam sobre mercadorias e serviços.

§ 7º Qualquer subsídio ou isenção,redução de base de cálculo, conces-são de crédito presumido, anistia ouremissão relativos a impostos, taxasou contribuições só poderá ser conce-dido mediante lei específica, federal,estadual ou municipal, que regule ex-clusivamente as matérias acima enu-meradas.

§ 8º Para efeito do disposto no in-ciso VI, alínea d, consideram-se, entreoutros, atos cooperativos:

I- o empréstimo, financiamento ourepasse de recursos financeiros aosseus sócios;

II- a saída de bens, produtos oumercadorias do estabelecimento deprodutor para o estabelecimento decooperativa de que faça parte;

III- a saída de bens, produtos oumercadorias de um estabelecimentopara outro da mesma cooperativa oupara estabelecimento de outra, suaassociada;

IV- o fornecimento de bens, produ-tos ou mercadorias, inclusive combus-tíveis, da cooperativa a seus sócios;

V- a entrega de habitações de coo-perativa a seus sócios;

VI- a prestação, direta ou indireta,de serviços de qualquer natureza dacooperativa a seus sócios, ou de coo-perativas entre si, quando associadas;

VII- a devolução, a seus sócios, dassobras resultantes de atos cooperati-vos.

§ 9º A instituição de outros tribu-tos, além dos discriminados nestaConstituição, bem como a majoraçãode alíquotas dos tributos existentesalém do limite máximo previsto noartigo 153, § 2º, ficam condicionadas

à aprovação prévia por referendo, res-salvados os dispositivos constitucio-nais em contrário.

Artigo 151. É vedado à União:I - instituir tributo que não seja

uniforme em todo o território nacio-nal ou que implique distinção ou pre-ferência em relação a Estado, ao Dis-trito Federal ou a Município, em detri-mento de outro, admitida a concessãode incentivos fiscais, desde que portempo determinado, destinados a pro-mover o equilíbrio do desenvolvimen-to sócio-econômico entre as diferen-tes regiões do País;

II - tributar a renda das obrigaçõesda dívida pública dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios, bemcomo a remuneração e os proventosdos respectivos agentes públicos, emníveis superiores aos que fixar parasuas obrigações e para seus agentes;

III - instituir isenções de tributosda competência dos Estados, do Dis-trito Federal ou dos Municípios.

Artigo 152. É vedado aos Estados,ao Distrito Federal e aos Municípiosestabelecer diferença tributária entrebens e serviços, de qualquer nature-za, em razão de sua procedência oudestino.

Seção IIIDos Tributos

Artigo 153. Integram o Sistema Tri-butário Nacional os seguintes tribu-tos:

I – imposto sobre movimentação outransmissão de valores e de créditos edireitos de natureza financeira (IMF);

II – imposto sobre produção de be-bidas, veículos, energia, tabaco, petró-leo e combustíveis, inclusive deriva-dos daquele e destes, e serviços de te-lecomunicações, bem assim, desdeque definidos em lei complementar,sobre produção de outros bens e so-bre outros serviços (Seletivos);

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III – imposto sobre comércio exte-rior (Importação e Exportação, de bense serviços) ;

IV – imposto sobre renda e proven-tos:

a-) de qualquer natureza auferidospor pessoas físicas (IRPF);

b-) de natureza financeira, auferi-dos por pessoas jurídicas em opera-ções nos mercados financeiro e de ca-pitais (IRPJ-F);

V – imposto sobre propriedadeimobiliária, urbana e rural (IPTU eITR);

VI – imposto sobre propriedade deveículos automotores (IPVA);

VII – adicionais ao imposto sobremovimentação ou transmissão de va-lores e de créditos e direitos de natu-reza financeira:

a-) para os Estados e ao DistritoFederal (AEIMF) ;

b-) como contribuição para o finan-ciamento da seguridade social (ASSI-MF);

VIII- adicional ao imposto sobrerenda e proventos, para os Estados eo Distrito Federal (AEIR);

IX- imposto sobre operações de cré-dito, câmbio e seguro, ou relativas atítulos ou valores mobiliários (IOF);

X- imposto sobre vendas a varejode mercadorias de prestação de servi-ços de qualquer natureza (IVV);

XI- contribuição especial de inter-venção no domínio econômico paraequalização tributária (CET).

§ 1º Compete:I - à União, instituir os tributos pre-

vistos nos incisos I, II, III, e IV, no inci-so VII, alínea b, no inciso IX, e no inci-so XI, sendo este último incidente so-bre a entrada de quaisquer produtosou serviços vindos de outros países,objetivando equiparar o produto ouserviço importado ao nacional, à luzdos artigos 149 e 150, II, da Constitui-ção Federal;

II - aos Estados e ao Distrito Fede-ral, instituir:

a) o tributo previsto no inciso VI,devido pelos proprietários dos auto-veículos registrados respectivamenteem cada Estado e Distrito Federal;

b) o tributo previsto no inciso VII,alínea a, como adicional ao impostoprevisto no inciso I;

c) o tributo previsto no inciso VIII,como adicional percentual do que forpago à União por pessoas físicas e ju-rídicas domiciliadas nos respectivosterritórios a título do imposto previs-to no artigo 153, IV, alínea a e b;

III - aos Municípios, instituir: a) o tributo previsto no inciso V,

devido pelos proprietários de imóveisrurais e urbanos localizados em seusrespectivos territórios;

b) o tributo previsto no inciso X,devido pelos adquirentes consumido-res finais de mercadorias e de servi-ços em todas as vendas e transaçõesrealizadas em seus respectivos terri-tórios.

§ 2º Cabe à lei complementar fixaras alíquotas mínimas e máximas dostributos previstos nos incisos I, II , IV,V, VI, VII, VIII e X , inclusive as apli-cáveis às hipóteses previstas no § 8ºdeste artigo.

§ 3º O imposto previsto no inciso II:I - incidirá uma única vez;II - será seletivo, e não incidirá so-

bre as exportações;III - incidirá sobre as importações;IV - poderá ser pago com os crédi-

tos assegurados aos contribuintes,nos termos do § 5º deste artigo;

§ 4º Lei Complementar fixará oscritérios para a definição e fixação dasduas alíquotas dos adicionais do Im-posto sobre Movimentação ou Trans-missão de Valores e de Créditos e Di-reitos de Natureza Financeira (IMF)previsto no inciso VII, que serão, nocaso do inciso VII, alínea a, uma alí-

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quota estadual uniforme, fixada emconjunto pelos Estados e Distrito Fe-deral, cuja arrecadação será destina-da aos mesmos, e outra, no caso doinciso VII, alínea b, fixada pela União,para o financiamento exclusivo daseguridade social.

§ 5º Os tributos previstos nos inci-sos I, II e VII terão as respectivas re-percussões financeiras sobre os pre-ços das mercadorias e dos serviçoscalculadas através de metodologiaaceita por organismo internacional decomércio, com vista a determinar:

a) as alíquotas dos respectivos tri-butos a serem aplicados, a título decontribuição de equalização tributá-ria, prevista no inciso XI, sobre a en-trada de quaisquer produtos ou servi-ços vindos de outros países objetivan-do equiparar o produto ou serviçoimportado ao seu similar nacional;

b) o crédito cujo ressarcimento efe-tivo será assegurado ao exportadorpara compensar o correspondentevalor da repercussão financeira em-butido no custo do bem ou serviço queexportar para o exterior;

c) o crédito cujo ressarcimento efe-tivo será assegurado ao produtor na-cional de bens de capital quando des-tinados ao ativo fixo das unidadesprodutoras de bens e serviços; e

d) o crédito cujo ressarcimento efe-tivo será assegurado à operação devenda ao comércio varejista de bensde primeira necessidade, listados emLei Complementar.

§ 6º O imposto previsto no incisoIV será informado pelos critérios dageneralidade, da universalidade, e daprogressividade, nos termos e limitesfixados em Lei Complementar, e po-derá ser pago com os créditos assegu-rados aos contribuintes nos termos do§ 5º deste artigo.

§ 7º São imunes ao imposto pre-visto no inciso IV, alínea a, as pessoas

físicas com rendimentos até o valor de20 (vinte) salários mínimos mensais.

§ 8º As alíquotas do imposto pre-visto no inciso V, observados os limi-tes fixados no § 2º, poderão ser pro-gressivas no tempo, nos termos de leimunicipal, até atingirem cinco vezesa alíquota padrão, para assegurar ocumprimento da função social da pro-priedade urbana; terão suas alíquo-tas fixadas de forma a desestimular amanutenção de propriedade ruralimprodutiva, e não incidirão sobrepequenas glebas rurais, definidas emlei, quando as explore, só, ou com suafamília, o proprietário que não pos-sua outro imóvel.

§ 9º Os municípios poderão insti-tuir contribuição para suplementaçãodos serviços de segurança públicaprestados pelos Estados, execução deobra de pavimentação e saneamentonas zonas urbanas, custeio de coletade lixo e iluminação pública, obser-vados os seguintes critérios:

I- quando a contribuição for refe-rente à segurança pública, a sua co-brança fica condicionada a préviaconsulta popular e à aprovação deplano de segurança suplementar, como respectivo cálculo do valor a ser co-brado;

II- quando a contribuição for refe-rente a obra de pavimentação e sane-amento, será feito prévio edital da obraa ser realizada, com seu respectivocusto e rateio, limitada a cobrança aocusto desta;

III- quando a contribuição for refe-rente ao custeio de coleta de lixo e ilu-minação pública, fica limitada ao va-lor orçado pelo órgão técnico, poden-do sua cobrança ser incluída nas con-tas dos consumidores de água e de ele-tricidade, de forma individualizada.

§ 10º Respeitado o disposto no §2º, a soma das alíquotas dos tributosprevistos no inciso I , e no inciso VII,

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alíneas a e b, se majorada, deverá im-plicar idêntica majoração nas alíquo-tas das partes que a compõem, guar-dando-se a mesma proporcionalida-de existente antes da majoração nadistribuição do produto da arrecada-ção.

§ 11. Os tributos previstos nos in-cisos I e VII:

a-) não incidirão sobre transaçõesrealizadas nos mercados financeiro ede capitais, que serão alcançadas peloimposto previsto no inciso IV, alíneaa e alínea b, sempre que possível atra-vés de métodos não-declaratórios;

b-) incidentes sobre as transaçõesgeradas por rendimentos do trabalhoassalariado, quando inferiores a 9(nove) salários mínimos mensais, se-rão pagos pelo empregador, e acres-centados ao valor do salário líquidodevido, independentemente da formade pagamento;

c-) incidirão em dobro sobre sa-ques e depósitos de numerário juntoao sistema bancário nacional, sendoque tanto a incidência sobre os crédi-tos como a incidência sobre os débi-tos bancários onerarão os titulares dascontas bancárias envolvidas naque-las operações.

§ 12. As transações, acima de va-lores a serem definidos em Lei Com-plementar, de compra, venda, ou dequalquer outra natureza, de qualquerbem ou serviço, assim como as tran-sações nos mercados financeiro e decapitais, somente serão consideradasjuridicamente liquidadas se realiza-das através de contas correntes à vis-ta em instituições do sistema bancá-rio nacional cujos titulares sejam osparticipantes diretos nas mesmastransações, observadas as condiçõesa serem estabelecidas em Lei Comple-mentar.

§ 13. O imposto previsto no incisoX:

I- será devido no Município ondea operação de venda for realizada;

II- não incidirá na exportação demercadorias, nem sobre serviços pres-tados a destinatários no exterior;

III-terá alíquota uniforme para to-das as vendas de mercadorias e servi-ços, fixada em lei municipal, observa-do o disposto no § 2º deste artigo;

IV- poderá ser substituído por adi-cional do imposto previsto no incisoI, mediante determinação expressa emLei Complementar.

§ 14. A emissão de cheques e dequalquer outro tipo de ordem de pa-gamento ou de créditos e direitos denatureza financeira, será obrigatoria-mente nominativa, e não-endossável,devendo legislação específica deter-minar sanções pecuniárias que deses-timulem o desrespeito a esta normaconstitucional.

§ 15. Lei Complementar estabele-cerá sistema simplificado de paga-mento de tributos, pelo qual poderãooptar a microempresa e a empresa depequeno porte por ela definidas.

Artigo 154. A União poderá insti-tuir, na iminência ou no caso de guer-ra externa, impostos extraordinários,compreendidos ou não em sua com-petência tributária, os quais serão su-primidos, gradativamente, cessadasas causas de sua criação.

Seção IVDa Repartição das Receitas Tributárias

Artigo 155. Do produto da arreca-dação dos tributos previstos no artigo153, I, II, III, IV, IX, e XI pertencem:

I- 73% (setenta e três por cento), àUnião;

II- 25% (vinte e cinco por cento),aos Municípios;

III- 2% (dois por cento), a progra-mas de financiamento ao setor produ-tivo das regiões menos desenvolvidas,através de suas instituições financei-

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ras de caráter regional, ficando asse-gurada ao semi-árido do Nordeste ametade dos recursos destinados à Re-gião, na forma que a lei estabelecer.

Parágrafo único. A entrega dasparcelas pertencentes à União, aosMunicípios, e aos gestores dos progra-mas de financiamento mencionadosno inciso III, será feita imediata, dire-ta e automaticamente pelas institui-ções ou órgãos recebedores dos tribu-tos, conforme Lei Complementar.

Artigo 156. As parcelas do produ-to da arrecadação referidas no artigo155, II , serão rateadas e entregues aosMunicípios a ao Distrito Federal emconformidade com os seguintes crité-rios:

I- 40% (quarenta por cento) do seumontante, proporcionalmente à somado valor da arrecadação dos impos-tos previstos no artigo 153, V e X, eincidentes, no primeiro caso, sobre aspropriedades localizadas, e no segun-do caso, sobre as operações de vendaa consumidores finais realizadas, nosrespectivos territórios dos Municípi-os ou do Distrito Federal;

II- 40% (quarenta por cento) do seumontante, proporcionalmente à popu-lação do respectivo Município ou doDistrito Federal;

III- 5% (cinco por cento) do seumontante, proporcionalmente à exten-são territorial do respectivo Municí-pio ou do Distrito Federal.

§ 1º Cabe à lei estadual:I - definir os critérios para o cálcu-

lo do rateio dos restantes 15% (quinzepor cento) do montante das parcelasreferidas no artigo 155, II, de confor-midade com princípios que objetivemestabelecer o equilíbrio sócio-econômi-co entre os Municípios e o Distrito Fe-deral;

II - dispor sobre o controle e o acom-panhamento, pelos beneficiários, dosvalores arrecadados, do cálculo das

quotas de rateio, e da entrega automá-tica e imediata dos mesmos, bem comosobre a criação de um organismo parao exercício dessas funções, do qual,obrigatoriamente, participem repre-sentantes do Estado, dos Municípiose do Distrito Federal.

§ 2º O Tribunal de Contas dos Es-tados efetuará, em qualquer dos ca-sos, o cálculo das quotas de que trataeste artigo.

Artigo 157. A arrecadação do im-posto referido no artigo 153, VII, alí-nea a), será rateada e repassada aosEstados e Distrito Federal em confor-midade com os seguintes critérios:

I- 40% (quarenta por cento) do seumontante, proporcionalmente à somado valor da arrecadação dos impos-tos previstos no artigo 153, VI e VIII eincidentes, no primeiro caso, sobre osautoveículos registrados respectiva-mente em cada Estado e Distrito Fede-ral, e no segundo caso, sobre o adicio-nal percentual do que for pago à Uniãopor pessoas físicas e jurídicas domi-ciliadas nos respectivos territórios dosEstados e Distrito Federal a título doimposto previsto no artigo 153,IV;

II- 40% (quarenta por cento) do seumontante, proporcionalmente à popu-lação do respectivo Estado ou Distri-to Federal;

III- 5% (cinco por cento) do seumontante, proporcionalmente à exten-são territorial do respectivo Estado ouDistrito Federal.

§ 1º Cabe à lei complementar:I - definir os critérios para o cálcu-

lo do rateio dos restantes 15% (quinzepor cento) do montante das parcelasreferidas no “caput” deste artigo, deconformidade com princípios que ob-jetivem estabelecer o equilíbrio sócio-econômico entre os Estados e o Distri-to Federal.

II - dispor sobre o controle e o acom-panhamento, pelos beneficiários, dos

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 275

valores arrecadados, do cálculo dasquotas de rateio, e da entrega automá-tica e imediata dos mesmos, bem comosobre a criação de um organismo fe-derativo para o exercício dessas fun-ções, do qual, obrigatoriamente, par-ticipem representantes da União, dosEstados e do Distrito Federal.

§ 2º O Tribunal de Contas da Uniãoefetuará em qualquer dos casos, o cál-culo das quotas de que trata este artigo.

Artigo 158. O montante da arreca-dação do tributo referido no artigo153, VII, alínea b), correspondente àalíquota a ser estabelecida em lei com-plementar para o financiamento daseguridade social será a ela repassa-do automaticamente, e aplicado exclu-sivamente em despesas referentes àseguridade social, inclusive aos pro-gramas custeados com as contribui-ções sociais, não se lhe aplicando odisposto no artigo 212.

Artigo 159. Os tributos previstosno artigo 153, incisos I e VII, serão ar-recadados em procedimento único,tendo por alíquota global a soma dasalíquotas fixadas para aqueles tribu-tos, devendo o produto da arrecada-ção total ser imediata, direta e auto-maticamente repassado pelas institui-ções ou órgãos arrecadadores aos res-pectivos titulares desses tributos, naproporção exata das respectivas alí-quotas individuais.

Artigo 160. É vedada a retenção ouqualquer restrição à entrega e ao em-prego dos recursos atribuídos, nestaSeção, à União, aos Estados, ao Dis-trito Federal e aos Municípios, nelescompreendidos adicionais e acrésci-mos relativos a impostos.

Parágrafo único. Essa vedaçãonão impede a União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios decondicionarem a entrega de recursoscuja arrecadação esteja sob sua in-cumbência, ao pagamento de seus cré-

ditos de qualquer natureza, inclusivedos créditos de suas autarquias e em-presas sob seu controle, desde quevencidos, líquidos e certos.

Artigo 161. É permitida a vincula-ção dos recursos de que trata o artigo155 para a prestação de garantia oucontragarantia, entre as unidades fe-derativas e a União, e para pagamen-to de débitos entre as mesmas.

Artigo 162. A União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios di-vulgarão, até o último dia do mês sub-seqüente ao da arrecadação, os mon-tantes de cada um dos tributos arre-cadados, os recursos recebidos, osvalores de origem tributária entreguese a entregar e a expressão numéricados critérios de rateio.

Parágrafo único. Os dados divul-gados serão discriminados por Esta-do e por Município.

Artigo 3º A expressão final “artigos 150,II, 153, III e 153, § 2º, I”, constante nos arti-gos 27, § 2º, 29, V, 37, XV, 49, VII, 95, III, e128, § 5º, I, c, fica substituída por “artigos150, II e 153, IV”.

Artigo 4º O artigo 167, IV, da Constitui-ção, passa a vigorar com a seguinte redação:

“IV - a vinculação de receita deimpostos a órgão, fundo ou despesa,ressalvado o disposto nos artigos 155,161 e 212, bem como a prestação degarantias às operações de crédito porantecipação de receita, previstas noartigo 165, § 8º”.

Artigo 5º O artigo 195, da Constituição,passa a vigorar com a seguinte redação:

Artigo 195. A seguridade socialserá financiada por toda a sociedade,de forma direta e indireta, nos termosda lei, mediante recursos provenien-tes dos orçamentos da União, dos Es-tados, do Distrito Federal e dos Muni-cípios, e dos seguintes tributos:

I – contribuição dos segurados daprevidência social, não incidindocontribuição sobre a aposentadoria e

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Revista de Informação Legislativa276

pensão concedidas pelo regime geralde previdência social de que trata oart. 201;

II – parcela da receita de concur-sos de prognósticos;

III- adicional previsto no artigo153,VII, alínea b).

§ 1º As receitas dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios des-tinadas à seguridade social constarãodos respectivos orçamentos, não inte-grando o orçamento da União.

§ 2º A proposta de orçamento daseguridade social será elaborada deforma integrada pelos órgãos respon-sáveis pela saúde, previdência sociale assistência social, tendo em vista asmetas e prioridades estabelecidas nalei de diretrizes orçamentárias, asse-gurada a cada área a gestão de seusrecursos.

§ 3º A pessoa jurídica em débitocom o sistema da seguridade social,como estabelecido em lei, não poderácontratar com o poder público nemdele receber benefícios ou incentivosfiscais ou creditícios.

§ 4º Do montante da arrecadaçãoreferido no artigo 158, parte será des-tinada a prover os recursos necessári-os para custear, nos termos que a leidispuser,

a) o programa do seguro-desem-prego previsto no artigo 7º, inciso II;

b) os gastos projetados com o ensi-no fundamental público anteriormen-te financiados pela extinta contribui-ção social do salário-educação;

c) as entidades privadas de servi-ço social e de formação profissionalvinculadas ao sistema sindical.

§ 5º Nenhum benefício ou serviçoda seguridade social poderá ser cria-do, majorado ou estendido sem a cor-respondente fonte de custeio total.

§ 6º Aplicam-se às contribuiçõessociais de que trata este artigo o dis-posto no artigo 150, III.

§ 7º Dos recursos reservados naforma do parágrafo 4º:

I – pelo menos quarenta por centoserão administrados, e destinados afinanciar programas de desenvolvi-mento econômico, através do BancoNacional de Desenvolvimento Econô-mico e Social com critérios de remu-neração que lhes preservem o valor;

II – pelo menos dez por cento se-rão administrados, e destinados a fi-nanciar programas de desenvolvi-mento agropecuário, através do Ban-co do Brasil S/A com critérios de re-muneração que lhes preservem o va-lor.

§ 8º O produtor, o parceiro, o meei-ro e o arrendatário rurais, o garimpei-ro e o pescador artesanal, bem comoos respectivos cônjuges, que exerçamsuas atividades em regime de econo-mia familiar, sem empregados perma-nentes, contribuirão para a segurida-de social conforme os ganhos que de-clararem e farão jus aos benefícios nostermos da lei.

§ 9º A lei definirá os critérios detransferência de recursos para o siste-ma único de saúde e ações de assis-tência social da União para os Esta-dos, o Distrito Federal e os Municípi-os, e dos Estados para os Municípios,observada a respectiva contrapartidade recursos.

Artigo 6º O artigo 239 da Constituiçãopassa a vigorar com a seguinte redação:

Artigo 239. São preservados ospatrimônios acumulados nas contasindividuais dos participantes do Pro-grama de Integração Social e do Pro-grama de Formação do Patrimônio doServidor Público, mantendo-se os cri-térios de saque nas situações previs-tas nas leis específicas, com exceçãoda retirada por motivo de casamento.

Artigo 7º O artigo 34 do Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias passa avigorar com a seguinte redação:

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 277

“Artigo 34. O disposto nesta emen-da constitucional será implantado deacordo com o estabelecido neste artigo.

§ 1º O sistema tributário nacionalentrará em vigor a partir do primeirodia do sétimo mês seguinte seguinteao da promulgação desta emendaconstitucional, mantidos até então to-dos os dispositivos constitucionaisvigentes no dia anterior à sua promul-gação.

§ 2º Promulgada esta emenda cons-titucional, a União, os Estados, osMunicípios e o Distrito Federal pode-rão editar as leis necessárias à aplica-ção do sistema tributário nela previsto.

§ 3º As leis editadas nos termos doparágrafo anterior produzirão efeitosa partir da entrada em vigor do siste-ma tributário nacional previsto nestaemenda constitucional.

§ 4º Vigente o novo sistema tribu-tário nacional, fica assegurada a apli-cação da legislação anterior, no quenão seja incompatível com ele e com alegislação referida nos §§ 2º e 3º, emespecial no tocante a programas e pro-jetos que deverão ter seu prossegui-mento assegurados após substituiçãode fontes de recursos prevista nestaemenda constitucional.

§ 5º O disposto no artigo 150, inci-so III, alínea b) não se aplica aos tribu-tos referidos no § 2º, que, uma únicavez após a entrada em vigor do siste-ma tributário nacional, conforme pre-visto no § 1º, poderão ser cobradostrinta dias após a publicação da lei queos tenha instituído ou aumentado.

§ 6º A Lei Complementar que ins-tituir os tributos referidos no artigo153, I, e VII, definirá um período detempo, após a data prevista no §1º ,para a implantação gradual das alí-quotas previstas, durante o qual irãosendo reduzidas, até sua total extin-ção, as alíquotas dos tributos que elessubstituirão.

§ 7º Promulgada esta EmendaConstitucional, enquanto não forem ex-tintos, nos termos do § 6º, os impostos eas contribuições neles referidos, perma-necem em vigor, desde que compatíveiscom o disposto nesta emenda constitu-cional e a legislação dela decorrente, osanteriores dispositivos constitucionais,a legislação e as normas que regem asua instituição e estabelecem os critéri-os de repartição de suas receitas, per-mitidas suas alterações.

§ 8º O disposto no parágrafo ante-rior não se aplica ao artigo 155, § 3º,daConstituição, na redação vigente nodia anterior à data da promulgaçãodesta Emenda, o qual fica com ela re-vogado.

§ 9º Promulgada esta EmendaConstitucional, Lei Complementardeverá instituir mecanismo de formaassegurar, mensal e automaticamen-te, a cada Estado, Distrito Federal eMunicípio, recursos da União de for-ma a garantir-lhes, após a entrada emvigor do sistema tributário nacional,ingressos tributários líquidos totaisiguais aos valores das médias men-sais das receitas tributárias totais lí-quidas efetivamente por eles obtidasnos anos de 1996 a 1999, corrigidasmonetariamente, caso os ingressosefetivos sejam inferiores às médiasacima referidas.

§ 10. O Tribunal de Contas daUnião determinará:

I - os valores das médias e dastransferências mensais a serem repas-sadas aos Estados e aos Municípios,referidas no parágrafo anterior;

II - até a promulgação das LeisComplementares previstas nos artigos156, § 1º, e 157, § 1º, o rateio do mon-tante referido nos incisos I daquelesparágrafos, adotará para o seu cálcu-lo os mesmos critérios utilizados nadeterminação do rateio da parcela re-ferida no inciso II daqueles artigos.

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Revista de Informação Legislativa278

§ 11. Enquanto não entrar em vi-gor a lei prevista no artigo 155, III, éassegurada a aplicação dos recursosprevistos naquele inciso pelos mesmoscritérios utilizados para distribuiçãodos recursos a que se refere o artigo159, I, c, da Constituição, na redaçãovigente no dia anterior à data da pro-mulgação desta Emenda.

§ 12. Promulgada esta EmendaConstitucional, Lei Complementardeverá instituir, dentro de 90 dias,mecanismo concedendo anistia demultas e juros sobre os valores tribu-tários devidos até o dia 30 de Julho de1999 à União, aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municípios, bem comoestabelecer o parcelamento em 96 me-ses a partir da promulgação da mes-ma Lei Complementar do principaldos mesmos valores tributários devi-dos, corrigidos monetariamente pelainflação do período.

Artigo 8º Revogam-se o § 4º do artigo167 e o § 5º do artigo 212, da ConstituiçãoFederal.

Artigo 9º Esta emenda constitucionalentra em vigor na data de sua publicação,revogadas as disposições em contrário.

Proposta de Emenda à Constituição n º 474,de 2001 (do Sr. Marcos Cintra e outros)

Aperfeiçoa o Sistema TributárioNacional e o financiamento da Seguri-

dade Social, estabelece normas detransição e dá outras providências.

As Mesas da Câmara dos Deputados edo Senado Federal, nos termos do § 3º doart. 60 da Constituição Federal, promulgama seguinte emenda ao texto constitucional:

Art. 1º Esta proposta de emenda consti-tucional tem por escopo introduzir, no ar-cabouço fundamental do sistema tributárionacional, a figura do imposto único federal,incidente sobre movimentações e transações fi-nanceiras, sob a dupla forma jurídica de im-posto arrecadatório genérico e de contribui-

ção social para o financiamento da seguri-dade social.

Art. 2º Ficam alteradas as redações doart. 150, III, “b” e § 1º, art. 153, III, e §§ 1º, 2ºe 3º , art. 159, I, “a”, “b”, “c”, “d” e §§ 2º e 3º,art. 195, I, e acrescidos os §§ 8º e 9º ao art.150, §§ 4º, 9º, 12 e 13, “a”, “b” e “c”, ao art.195, no texto da Constituição Federal, nosseguintes termos:

“Art.150. .................................................III - ............................................................b-) no mesmo exercício financeiro

em que haja sido publicada a Lei queos instituiu ou aumentou, e antes dedecorridos cento e oitenta dias da datada publicação.

.................................................................§ 1º As vedações expressas no in-

ciso III, “b”, não se aplicam aos im-postos previstos nos artigos 153, I e II,e 154, II.

.................................................................§ 8º As vedações expressas no in-

ciso VI, “b” a “d”, não se aplicam aoimposto previsto no artigo 153, III.

§ 9º A instituição de outros tribu-tos, além dos discriminados nestaConstituição, bem como a majoraçãodos tributos existentes além do limitemáximo previsto no art. 153, § 3º, “a”,ficam condicionadas à aprovação pré-via por referendo, ressalvados os dis-positivos constitucionais em contrá-rio.

Art. 153 ...................................................................................................................III - imposto sobre movimentação

ou transmissão de valores e de crédi-tos e direitos de natureza financeira;

..................................................................§ 1º É facultado ao Poder Executi-

vo, atendidas as condições e os limi-tes estabelecidos em lei complemen-tar, alterar as alíquotas dos impostosenumerados nos incisos I e II;

§ 2º O imposto previsto no incisoIII será informado pelos critérios dageneralidade e da universalidade,

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 279

podendo ser progressivo, na forma dalei, em função dos somatórios agrega-dos periodicamente, por titular pes-soa física, das movimentações outransmissões a ele sujeitas;

§ 3º Lei complementar especifica-rá, no que se refere ao imposto previs-to no inciso III, bem como à contribui-ção que o acompanha, referida no art.195, I :

a) as alíquotas máximas;b) a forma como, respeitadas as

normas de tratados internacionais delivre comércio de que o Brasil seja sig-natário, serão implementados os prin-cípios da desoneração tributária dasexportações de bens e serviços e doidêntico tratamento do produto ouserviço importado ao seu similar na-cional;

c) os bens de primeira necessida-de cuja venda, no varejo, possa serbeneficiada com desoneração tributá-ria, implementada segundo metodo-logia idêntica à da hipótese de expor-tação de que trata a alínea anterior;

d) as movimentações e transaçõesenvolvendo aplicações financeiras emobiliárias, inclusive em ouro comoativo financeiro, submetidas ao prin-cípio do diferimento da tributação,excluídas da incidência desses tribu-tos durante todo o tempo em que osrecursos correspondentes não retorna-rem, dos circuitos dos mercados finan-ceiros e de capitais, para consumo ouinvestimento em ativos não financei-ros ou mobiliários;

e) o limiar, aproximadamente equi-valente ao valor da renda líquida mé-dia anteriormente sujeita ao revoga-do imposto sobre a renda das pessoasfísicas, abaixo do qual a incidênciadesses tributos, sobre os rendimentosdo trabalho assalariado, será assumi-da previamente pelo empregador,mediante adição ao salário liquidopago, creditado ou posto à disposição;

f) as restrições preventivas à eva-são tributária, dentre as quais a formaobrigatoriamente nominal e não en-dossável de toda e qualquer ordem depagamento ou título de crédito, bemcomo as sanções eficazes para dissu-adir sua burla;

g) as alíquotas acrescidas, inciden-tes sobre saques e depósitos de nume-rário junto ao sistema bancário, com ointuito de estimular a prática de tran-sações sujeitas às alíquotas normais;

h) a divisão da incidência entre osdébitos e os créditos bancários;

i) as restrições à validade do adim-plemento de obrigações jurídicas one-rosas, se não for comprovada a liqui-dação por intermédio de contas corren-tes à vista, de titularidade dos respecti-vos intervenientes envolvidos, em ins-tituições do sistema bancário nacional,com a retenção dos tributos devidos;

j) o procedimento unificado de ar-recadação simultânea de ambos ostributos, mediante aplicação de alí-quota total igual à soma das alíquo-tas singulares de cada um deles, comrepasse direto, imediato e automáti-co, pelas instituições ou órgãos res-ponsáveis pela arrecadação, aos res-pectivos destinatários, na proporçãoexata das alíquotas relativas ao im-posto e à contribuição social;

k) as salvaguardas impeditivas deque a parcela da arrecadação, previs-ta na alínea precedente, representati-va da contribuição social descrita noart. 195, I, possa ser desviada paraempregos alheios à sua finalidade in-trínseca, não estando sujeita às vin-culações, estranhas à sua natureza,dos arts . 198, § 2º e 212 , nem à parti-lha de que tratam os arts. 158 e 159.

Art. 159 ....................................................I – do produto da arrecadação do

imposto previsto no artigo 153, III,quarenta e quatro por cento na seguin-te forma:

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Revista de Informação Legislativa280

a-) vinte por cento ao Fundo deParticipação dos Estados e do Distri-to Federal;

b-) vinte por cento ao Fundo deParticipação dos Municípios;

c-) três por cento, para aplicaçãoem programas de financiamento aosetor produtivo das Regiões Norte,Nordeste e Centro-Oeste, através desuas instituições financeiras de cará-ter regional, de acordo com os planosregionais de desenvolvimento, fican-do assegurada ao semi-árido do Nor-deste a metade dos recursos destina-dos à região, na forma que a lei esta-belecer;

d-) um por cento aos Estados e aoDistrito Federal, proporcionalmenteao valor das respectivas exportaçõesde produtos industrializados.

...................................................................§ 2º A nenhuma unidade federa-

da poderá ser destinada parcela su-perior a vinte por cento do montante aque se refere o disposto no item “d”do inciso I, devendo o eventual exce-dente ser distribuído entre os demaisparticipantes, mantido, em relação aesses, o critério de partilha nele esta-belecido.

§ 3º Os Estados entregarão aos res-pectivos Municípios vinte e cinco porcento dos recursos que receberem nostermos do item “d” do inciso I, obser-vados os critérios estabelecidos no art.158.

...................................................................Art. 195. ................................................I – sobre movimentação ou trans-

missão de valores e de créditos e di-reitos de natureza financeira, acom-panhando, mediante aplicação de alí-quota adicional, a exigência do impos-to previsto no art. 153, III, na forma dalei e respeitados os requisitos de quetrata o art. 153, § 3º ;

.................................................................§ 4º As finalidades de custeio, su-

pridas pela contribuição prevista noinciso I deste artigo, abrangem tam-bém, na forma da lei:

a-) o programa do seguro desem-prego previsto no artigo 7º, inciso II, eo abono de que trata o § 3º do art. 239;

b-) os gastos projetados, com o en-sino fundamental público, anterior-mente financiados pela extinta con-tribuição do salário-educação;

c-) as entidades privadas de servi-ço social e de formação profissionalvinculadas ao sistema sindical.

§ 9º A contribuição social previstano inciso I não será exigida dos segu-rados que contribuam sob a modali-dade prevista no inciso II deste arti-go.”

Art. 3º A expressão final “artigos 150, II,153, III e 153, § 2º, I”, constante nos artigos27, § 2º, 29, V, 37, XV, 49, VII, 95, III, e 128, §5º, I, c, fica substituída por “artigo 150, II”.

Art. 4º Ficam revogados os incisos IV aVII e os §§ 4º e 5º do art. 153, o inciso I do art.157, os incisos I e II do art. 158, o inciso II e o§ 1º do art. 159, o § 7º do art. 195, o § 5º doart. 212 e o art. 240, da Constituição Federal.

Art. 5º Ficam acrescidos, ao texto do Atodas Disposições Constitucionais Transitó-rias, os arts. 84 e 85, nos seguintes termos:

“Art. 84. O imposto previsto no art.153, III, da Constituição Federal, subs-titui, para todos os efeitos, desde o ter-mo inicial de sua exigibilidade, a con-tribuição de que tratam os arts. 74, 75e 80, I, deste Ato.

Art. 85. Lei complementar disporásobre a forma como:

I - os fundos, programas e projetosalimentados com recursos, benefíciosou renúncias, decorrentes dos tribu-tos extintos juntamente com a entra-da em vigor do imposto e da contri-buição previstos, respectivamente, noart. 153, III e 195, I, da ConstituiçãoFederal, terão suas fontes de financia-mento substituídas ou sofrerão solu-ção de continuidade;

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Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 281

II - serão ajustados e compatibili-zados, sem prejuízo para o interessepúblico, os direitos e obrigações pen-dentes, decorrentes das legislaçõesrelativas aos tributos extintos, em vir-tude da nova ordem tributária instau-rada com a entrada em vigor dos tri-butos referidos no inciso anterior des-te artigo;

III - será assegurada, a cada ente polí-tico beneficiário de partilhas constitucio-nais de receitas federais, sem interrupção,o fluxo e o volume de recursos não inferi-ores ao que se tiver verificado no últimoexercício financeiro anterior ao da entra-da em vigor dos tributos referidos no inci-so I deste artigo.

Art. 6º Esta emenda constitucional entraem vigor na data de sua publicação e torna-se eficaz, no que se refere à extinção de tri-butos e à deflagração de novas relações obri-gacionais tributárias, no primeiro dia dosétimo mês subseqüente.

8. Emenda Constitucional nº 33/2001

A pretensão do Governo Federal é reali-zar mini-reformas tributárias, uma vez quea complexidade dos caminhos para a reali-zação de uma modificação mais radical en-contra várias resistências.

Uma reivindicação antiga de vários ju-ristas é a desoneração das exportações. Estaencontra-se explícita neste parágrafo, queregula o caput do art. 149, que identifica acompetência restrita da União para instituircontribuições sociais.

A intenção do Governo é substituir a PPE– Parcela de Preços Específica por uma con-tribuição direta sobre o valor do petróleo ederivados – a CIDE. A questão aqui será adiscussão jurídica em torno da existênciade um imposto específico sobre a importa-ção, em concomitância com uma contribui-ção social também tratando de uma impor-tação. Recentemente, no final de 2001, pormeio de um forte lobby dos Prefeitos, os De-putados Federais aprovaram uma contribui-

ção social sobre a iluminação pública, quese encontra dentro da incidência de um im-posto (IPTU), a qual foi rechaçada pelo Se-nado.

Vejamos o texto dessa Emenda:

Emenda Constitucional nº 33,de 11 de dezembro de 20018

Altera os arts. 149, 155 e 177da Constituição Federal

As Mesas da Câmara dos Deputados edo Senado Federal, nos termos do § 3º doart. 60 da Constituição Federal, promulgama seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O Art. 149 da Constituição Fede-ral passa a vigorar acrescido dos seguintesparágrafos, renumerando-se o atual pará-grafo único para § 1º:

“Art. 149. .............................................§ 1º.........................................................§ 2º As contribuições sociais e de

intervenção no domínio econômico deque trata o caput deste artigo:

I - não incidirão sobre as receitasdecorrentes de exportação;

II - poderão incidir sobre a impor-tação de petróleo e seus derivados, gásnatural e seus derivados e álcool com-bustível;

III - poderão ter alíquotas:a) ad valorem, tendo por base o fa-

turamento, a receita bruta ou o valorda operação e, no caso de importação,o valor aduaneiro;

b) específica, tendo por base a uni-dade de medida adotada.

§ 3º A pessoa natural destinatáriadas operações de importação poderáser equiparada a pessoa jurídica, naforma da lei9.

§ 4º A lei definirá as hipóteses emque as contribuições incidirão umaúnica vez”(NR)10.

Art. 2º O art. 155 da Constituição Fede-ral passa a vigorar com as seguintes altera-ções:

“Art. 155. .................................................§ 2º ...........................................................

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Revista de Informação Legislativa282

IX - .........................................................a) sobre a entrada de bem ou mer-

cadoria importados do exterior porpessoa física ou jurídica, ainda quenão seja contribuinte habitual do im-posto, qualquer que seja a sua finali-dade, assim como sobre o serviço pres-tado no exterior, cabendo o impostoao Estado onde estiver situado o do-micílio ou o estabelecimento do desti-natário da mercadoria, bem ou servi-ço;

XII - ..........................................................h) definir os combustíveis e lubri-

ficantes sobre os quais o imposto inci-dirá uma única vez, qualquer que sejaa sua finalidade, hipótese em que nãose aplicará o disposto no inciso X, b;

i) fixar a base de cálculo, de modoque o montante do imposto a integre,também na importação do exterior debem, mercadoria ou serviço.

§ 3º À exceção dos impostos de quetratam o inciso II do caput deste artigoe o art. 153, I e II, nenhum outro im-posto poderá incidir sobre operaçõesrelativas a energia elétrica, serviços detelecomunicações, derivados de petró-leo, combustíveis e minerais do País.

§ 4º Na hipótese do inciso XII, h,observar-se-á o seguinte:

I - nas operações com os lubrifican-tes e combustíveis derivados de petró-leo, o imposto caberá ao Estado ondeocorrer o consumo;

II - nas operações interestaduais,entre contribuintes, com gás natural eseus derivados, e lubrificantes e com-bustíveis não incluídos no inciso Ideste parágrafo, o imposto será repar-tido entre os Estados de origem e dedestino, mantendo-se a mesma pro-porcionalidade que ocorre nas opera-ções com as demais mercadorias;

III - nas operações interestaduaiscom gás natural e seus derivados, elubrificantes e combustíveis não inclu-ídos no inciso I deste parágrafo, desti-

nadas a não contribuinte, o impostocaberá ao Estado de origem;

IV - as alíquotas do imposto serãodefinidas mediante deliberação dosEstados e Distrito Federal, nos termosdo § 2º, XII, g, observando-se o seguin-te:

a) serão uniformes em todo o terri-tório nacional, podendo ser diferenci-adas por produto11;

b) poderão ser específicas, por uni-dade de medida adotada, ou ad valo-rem, incidindo sobre o valor da opera-ção ou sobre o preço que o produto ouseu similar alcançaria em uma vendaem condições de livre concorrência;

c) poderão ser reduzidas e resta-belecidas, não se lhes aplicando o dis-posto no art. 150, III, b12.

§ 5º As regras necessárias à apli-cação do disposto no § 4º, inclusiveas relativas à apuração e à destinaçãodo imposto, serão estabelecidas me-diante deliberação dos Estados e doDistrito Federal, nos termos do § 2º,XII, g.”(NR)

Art. 3º O art. 177 da Constituição Fede-ral passa a vigorar acrescido do seguinteparágrafo:

“Art. 177. ................................................§ 4º A lei que instituir contribui-

ção de intervenção no domínio eco-nômico relativa às atividades de im-portação ou comercialização de petró-leo e seus derivados, gás natural e seusderivados e álcool combustível deve-rá atender aos seguintes requisitos:

I - a alíquota da contribuição po-derá ser:

a) diferenciada por produto ou uso;b) reduzida e restabelecida por ato

do Poder Executivo, não se lhe apli-cando o disposto no art. 150, III, b;

II - os recursos arrecadados serãodestinados:

a) ao pagamento de subsídios apreços ou transporte de álcool com-bustível, gás natural e seus derivados

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e derivados de petróleo;b) ao financiamento de projetos

ambientais relacionados com a indús-tria do petróleo e do gás;

c) ao financiamento de programasde infra-estrutura de transportes.”(NR)

Art. 4º Enquanto não entrar em vigor alei complementar de que trata o art. 155, §2º, XII, h, da Constituição Federal, os Esta-dos e o Distrito Federal, mediante convêniocelebrado nos termos do § 2º, XII, g, do mes-mo artigo, fixarão normas para regular pro-visoriamente a matéria.

Art. 5º Esta Emenda Constitucional en-tra em vigor na data de sua promulgação.

Brasília, 11 de dezembro de 2001.

Notas1 Fonte: “camara.gov.br”(CÂMARA..., [2002?]).2 “A Secretaria da Receita Federal, em docu-

mento liberado em junho, sob o título Carga tributá-ria no Brasil – Texto para Discussão 07, disponível naInternet (www.receita.fazenda.gov.br), revela quea carga bruta, incluído o FGTS, escalou de 25,5%do PIB, em 1991, para 30,1% em 1999. Ficou quaseum quinto maior”(BETING, 2000, pág. 42).

3 “Espera-se que, em futuro próximo criem-secondições ideais para a cobrança do imposto sobrevalor adicionado no local de origem, mesmo que seadote o princípio do destino ou um critério misto,no intuito de se conceder a totalidade ou parte dotributo arrecadado a instituições governamentaisque sirvam aos que exercem a demanda final, su-postamente o consumidor. Pretende-se, inclusive,a uniformização de alíquotas” (SILVA, 1998, p.149).

4 “(...) Eu estive ano passado num Congressoem que estavam alguns diretores de impostos eu-ropeus, e o da Itália me disse: “olha, na medida emque acabou o controle de fronteira, nós estimamosque 30% das exportações nossas são fraldadas, sãodadas como destinadas a exportação e ficam nonosso território.”

“O representante de Portugal também falouentre 25% ou 30%. (...)” (LOPES FILHO, 1999, p.61).

5 Informações concedidas via e-mail (CINTRA,2001).

6 Fonte: “camara.gov.br” (CÂMARA..., [2002?]).7 Fonte: “fazenda.gov.br” (MINISTÉRIO...,

[2002?]).

8 Fonte: “planalto.gov.br” (PRESIDÊNCIA...,[2002?]).

9 A questão da responsabilidade tributária foineste artigo bem explicitada, já que, ao tornar apessoa física um importador direto, este se encon-trará adstrito à regra contida no art. 121 do CTNque trata do sujeito passivo da obrigação tributá-ria.

10 Este parágrafo prevê que a lei esclareça quan-do a contribuição não sofrerá o chamado “efeitocascata”; ou seja, como se dará a cobrança sem sercumulativa nas várias etapas da produção.

11 Essa alínea é uma das principais regras vei-culadas nesta legislação, uma vez que já prelecionaum caminho correto a ser traçado quando da cria-ção do IVA (imposto sobre valor agregado). Por setratar de um tributo sobre o consumo, a regra daunificação das alíquotas entre os Estados é de sumaimportância para evitar a “guerra fiscal”, sendo oprimeiro passo para um possível convencimentona órbita política em retirar dos Estados o poder delegislar sobre a matéria, tornando-a federal.

12 A regra em tela suprime a limitação tributá-ria contida no art. 149, que na atual redação indicaa impossibilidade de cobrança de contribuições so-ciais no mesmo exercício financeiro ao qual forapublicada a respectiva norma (art. 150, III, b) .Ocorre que a presente Emenda Constitucional nãoprevê a modificação do caput do art. 149.

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Orlando Venâncio dos Santos Filho

1. Introdução

Este trabalho objetiva estudar os elemen-tos fundamentais do sistema político idea-lizado por Rousseau, a Democracia Rous-seauniana Do contrato social, sem, entretan-to, ter pretensões de esgotar o tema.

Para tanto, no item “2” se contextualizaa Europa do século XVIII, nas suas diversasformas de governo, todos com traços co-muns, caracterizados por governos oligár-quicos ou absolutistas, com concentração depoderes nas mãos de poucos da aristocra-cia ou, na maioria dos casos, do rei absolu-tista, senhor de todos e de tudo.

Em seguida, no item “3”, abordam-se osvalores fundamentais do pensamento polí-tico de Rousseau, igualdade e liberdadetransformadas e qualificadas, pelo pactosocial, como única saída para “preservação”– troca – desses bens supremos do estadode natureza, no estado social.

No item “4”, a essência do pensamentopolítico de Rousseau desnuda-se em suasentranhas. Um sistema político, submetidoao soberano – povo – pela vontade geral, àqual todos os poderes do estado devem obe-diência.

Democracia em Jean-Jacques Rousseau

Orlando Venâncio dos Santos Filho éAdvogado, Professor de Processo Civil da Uni-sinos, Pós-graduado em Processo Civil e Mes-trando em Direito.

Sumário1. Introdução. 2. Contextualização históri-

co-política. 3. Liberdade e igualdade: valoresindissociáveis e fundamentais. 4. Vontade ge-ral: essência da soberania popular e da demo-cracia em Rousseau. 5. Conclusão.

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Na conclusão, um pouco da influênciade Rousseau no pensamento e valores dassociedades moderna e contemporânea, quenão é pouca, como se verá em brevíssimasconsiderações.

Segue, portanto, Rousseau, o filósofo e,acima de tudo, pensador político rebelde,infeliz, resumo da contradição do gênio coma sociedade, como sabiamente anota Bona-vides, o mais estranho e renovador que o oci-dente já produziu.

2. Contextualização histórico-política

Para compreensão do pensamento deRousseau, impõe-se “viajarmos” à Europa,especialmente àquela do século XVIII, semolvidar que, como em qualquer viagem, parase chegar ao meio do caminho é preciso tê-lo iniciado.

Politicamente, a Europa se apresentavacom bastante heterogeneidade, porquantoos cinco regimes políticos estabelecidos na-quele momento – o feudalismo aristocráti-co, repúblicas patrícias, monarquia absolu-ta, despotismo esclarecido e a monarquiainglesa – decorriam de condições históricasdiferenciadas.

O feudalismo aristocrático e as repúbli-cas patrícias – 1º grupo – eram, a rigor, duasvertentes do regime oligárquico, no qual opoder é exercido por um grupo restrito, porvezes, a título hereditário.

Já a monarquia absoluta, tal como exis-tia na França ou Espanha do século XVII, eo despotismo esclarecido, que só aparece noséculo XVIII, tinham algo em comum, ine-rente às suas naturezas, qual seja, a concen-tração absoluta dos poderes na mão de umsoberano autoritário (2º grupo).

Quanto à monarquia inglesa, observaRené RÉMOND, não é possível reduzi-la aapenas um tipo de regime político, porque,embora possuindo traços do 2º grupo – éuma monarquia –, possui parlamento, ad-ministração local, sugerindo tratar-se de umregime aristocrático, o que a levaria para o1º grupo. Entretanto, exatamente por essas

particularidades, recebe um tratamento di-ferenciado, sendo de todos os regimes o quetem o futuro mais longo, tornando-se ummodelo universal ([19 - -?], p. 61).

Entretanto, era o absolutismo monárqui-co, que conseguiu libertar-se dos entravesdo feudalismo, a principal forma de organi-zação política da Europa no século XVIII,consistindo num poder não partilhado, pro-fundamente personalizado, concentrado napessoa do rei, senhor de tudo e de todas ascoisas, a quem todos devem obediência, con-forme pugna Hobbes.

O poder do soberano não era, ainda, fi-xado e limitado por constituições políticas.

Ainda no século XVIII, é de importânciacrucial a existência dos impérios coloniais;os decadentes – Portugal e Espanha – e osemergentes – França e Inglaterra –, que dis-putavam, no dizer do adágio popular, a tapa,o espólio dos decadentes e a supremaciacolonial.

Infelizmente, das relações entre estados,do comércio, da guerra, conquistas e dos tra-tados Rousseau não tratou, pondo fogo emparte do seu projeto primitivo que seria suasInstituições Políticas, conforme melancolica-mente lamenta no Capítulo IX, Livro Quarto,que trata da conclusão Do contrato social.

É nesse contexto, portanto, em que os semnada têm a perder, que deve ser compreen-dida e estudada a Obra do filho de relojoei-ro, Jean-Jacques Rousseau, a submissão detodos à vontade geral, expressão do povo, agorasim, soberano, corpo político, senhor do seu pró-prio destino.

3. Liberdade e igualdade : valoresindissociáveis e fundamentais

O grande desafio encarado por ROUS-SEAU, a sua grande “invenção” (apudCHEVALLIER, 2001, p. 164), foi formular econceber toda uma organização política naqual a liberdade e igualdade presentes noestado de natureza, pelo do pacto social,fossem reencontradas no estado social, noqual o homem substitui o instinto pela justi-

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ça, e dar às suas ações uma moralidade atéentão inexistente.

A compreensão de ROUSSEAU de quetodos os homens, no estado de natureza,são iguais e livres já se mostra presente noseu Discurso sobre a desigualdade, obra pre-nunciadora do Contrato social, ao diagnosti-car, na espécie humana, a existência de doistipos de desigualdade, quais sejam, umanatural ou física, consistindo nas diferençasde idade, saúde, força, espírito e alma; aoutra, moral ou política, porque dependentede convenção pelo menos autorizada peloshomens, consistindo em privilégios goza-dos por alguns em detrimento dos outros(1988, p. 39).

Analisando a liberdade e igualdade noestado de natureza, no Discurso..., critica osfilósofos que, embora sentindo indispensá-vel à análise da sociedade o retorno ao esta-do de natureza, não lograram êxito, por-quanto uns não hesitaram em supor, no homem,nesse estado, a noção do justo e do injusto...Outrosfalaram do direito natural, que cada um tem, deconservar o que lhe pertence, sem explicar o queentendiam por pertencer. Outros, dando inicial-mente ao mais forte autoridade sobre o mais fra-co, logo fizeram nascer o Governo...

Todos, conclui ROUSSEAU, transporta-ram para o estado de natureza idéias ad-quiridas em sociedade; falavam do homemdo estado de natureza – selvagem, primitivo– e descreviam o homem civil (1988, p. 40).

Esses filósofos, conforme Rousseau, aonão compreenderem que o homem no esta-do de natureza é bom e justo, e que a socie-dade o corrompe, acabavam transpondo to-dos aqueles defeitos do homem – orgulho,avidez, opressão, desejo, etc. – para o esta-do de natureza. Olhavam, portanto, o esta-do de natureza com os olhos cegos pelosvícios da sociedade que conheciam.

A crítica aos filósofos que professavamser inerente ao estado de natureza a supre-mácia do mais forte sobre o mais fraco desti-nava-se a Maquiavel, Hobbes e Aristóteles,conforme, resta claro, mais tarde, no Contra-to Social, Livro Primeiro, Capítulo II, ao re-

bater a idéia segundo a qual os homens, noestado de natureza, em absoluto seriamiguais, uns nascendo para escravidão, outrospara dominação (ROUSSEAU, 1987, p. 24).

Diz Rousseau, não sem razão, que Aris-tóteles e, porque não dizer, os demais filóso-fos que professavam essa equivocada pre-missa não discerniam o efeito da causa, qualseja, a sociedade imperfeita que pela forçaforjou a desigualdade e escravidão.

Ao criticar Aristóteles, ressalta que, se há,pois, escravos pela natureza, é porque houve es-cravos contra a natureza, tendo a força feito osprimeiros escravos, e a covardia os per-petuado (1987, p. 25).

Vê-se, pois, que Rousseau enxerga o ho-mem – ainda que escravo! – como sujeitocapaz de se insurgir e transformar a suarealidade. Até então, nunca alguém foi tãolonge no questionamento das estruturas depoder, que durante séculos conceberam aescravidão como algo natural, inerente àprópria condição humana.

Tendo como bem supremo a liberdade –direito e dever –, ROUSSEAU, arguto obser-vador da realidade que o cercava numa Eu-ropa impregnada de monarquias absolu-tistas decadentes e voltadas, quase que ex-clusivamente, para os interesses da aristo-cracia, explicita no Contrato social toda asua repugnância ao pretenso direito do maisforte de impor-se pela força, deixando claroque a força não gera direito, tampouco o maisforte será sempre senhor se não transformarsua força em direito e obediência em dever (p. 25).

Eis a genialidade de Rousseau: o maisforte, ao transformar força em direito e obe-diência em dever, necessariamente, terá quese submeter à vontade geral, expressão po-lítica do soberano, a quem cabe aprovar asleis – o direito –, e a essa deverá obedecer!

A força em si não produz qualquer direi-to, não se justificando a autoridade pela for-ça, tampouco a escravidão, pois renunciar àliberdade é renunciar à qualidade de homem, aosdireitos da humanidade, e até aos próprios deve-res, sendo nulo, portanto, o direito de escra-vidão, pois nada significa; direito e escravi-

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dão encerram uma contradição lógica in-conciliável (ROUSSEAU, 1987, p. 27, 29).

Mesmo por convenção, não seria possí-vel a escravidão, porquanto tal convençãoimplicaria o soberano abrir mão da sua li-berdade, do seu poder, e a vontade geral,ver-se-á adiante, também assentada na mo-ral, não se prestaria a tal fim.

A rigor, a desigualdade não é da es-sência do estado de natureza, quandomuito sendo este apenas sensível àquela(ROLLAND, 1960, p. 59).

Era preciso, portanto, cunhar institui-ções políticas para uma nova sociedade;enuncia-se o alicerce fundamental dessanova ordem política e social: só um pactosocial nascido da força e liberdade de to-dos, em que cada indivíduo, obedecendo aotodo, só obedece a si mesmo, seria capaz depreservar a liberdade e igualdade presentesno estado de natureza!

A rigor, substituí-las; a igualdade natu-ral, por uma igualdade moral e legítima, quetornaria todos os homens iguais por conven-ção e direito, superando eventual desigual-dade decorrente da força, gênio e outras dife-renças entre os homens, próprias do estadode natureza. Entretanto, para que essa igual-dade convencional fosse possível, o governoteria que ser voltado à construção de um esta-do social justo, pois nos maus governos essaigualdade é, apenas, aparente e ilusória, ser-vindo para manter o pobre na miséria e o ricona usurpação (ROUSSEAU, 1987, p. 39).

Igualdade, portanto, não só formal, mas,moral e política, que não se coaduna com amiséria de uns e a opulência de outros. Tan-to mais desigual o Estado, mais está sujeitoao tráfico da liberdade pública. Quereis en-tão dar consistência ao Estado? Aproximai osgraus extremos tanto quanto possível; não su-porteis nem opulentos nem indigentes (ROUS-SEAU, 1987, p. 85).

Rousseau como que prenuncia a reali-dade que hoje se constata, qual seja, não hápaíses que socialmente sejam profundamen-te desiguais, com instituições democráticassólidas. Quando muito, essas nações sofrem

das mais diversas formas de autoritarismo,intercaladas por pequenos lapsos de demo-cracia política.

Quanto à liberdade, para ROUSSEAU,no pacto social, o homem faz uma troca: pri-va-se de algumas poucas vantagens do es-tado de natureza, recebendo em troca vá-rias outras, que desenvolvem suas faculda-des, alargam suas idéias, enobrecem seussentimentos e elevam a sua alma, galgandouma condição superior, qual seja, a liberda-de civil (1987, p. 36).

Enfim, o homem troca a liberdade do es-tado de natureza, limitada, apenas, pelasforças do indivíduo, pela liberdade civil,produto do pacto social, submetido à von-tade geral.

4. Vontade geral: essência da soberaniapopular e da democracia em Rousseau

Se por meio do pacto social os homensalienariam as suas liberdade e igualdadeindividuais, do estado de natureza, em tro-ca das liberdade e igualdade civis, do esta-do social, era preciso pensar um poder polí-tico legítimo, efetivamente comprometidocom o bem comum.

ROUSSEAU, profundo estudioso do Po-der Político, observador arguto da formacomo as monarquias absolutistas européiasgovernavam e os parlamentos elaboravamas leis, ao conceber o Contrato social, haveriaque se cercar, como de fato o fez, de garanti-as que impedissem a apropriação desse novopoder por maus governos, que se prestam,apenas, para manter os pobres na miséria eos ricos na usurpação, cuidando dos inte-resses particulares, em detrimento do bemcomum.

Assim o fez, submetendo as bases dopacto social à vontade geral, que não é asimples soma das vontades particulares, davontade de todos ou da maioria, guiadapelos interesses privados, e, sim, uma von-tade voltada para o bem comum (p. 46-47).

Vontade, sem dúvida, qualificada pelasua dimensão política e moral, só podendo

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ser alcançada se cada cidadão opinar deacordo com a sua consciência.

Vontade geral essa a expressão políticada vontade do soberano – o povo. Respon-de ROUSSEAU uma indagação essencial dafilosofia política, como a busca do funda-mento último do poder (apud BOBBIO, 2000,p. 68). A quem o povo deve obedecer? Ora, asi mesmo, responde Rousseau!

O soberano – o povo – é pois, pela pri-meira vez na história da filosofia política,alçado à condição de senhor de si mesmo –não esqueçamos que Atenas era a democra-cia da parcela de homens livres!; precisamen-te por isso, deve exercer o seu poder comfirmeza e responsabilidade, sempre tendoem conta o bem comum.

Não poderia ser diferente porque o sobe-rano é um corpo político, e não é possívelofender um de seus membros sem atacar ocorpo, tampouco atacar o corpo sem ferir osseus membros.

O Povo, portanto, é detentor de uma so-berania que, além de absoluta, é infalível,inalienável e indivisível.

Absoluta, porque o poder do soberanoprescinde de garantias em relação aos seussúditos, porquanto seria ilógico o corpo po-lítico desejar prejudicar um de seus mem-bros, como visto.

Diferentemente de Hobbes, embora ab-soluta a soberania, não se apresenta, em es-sência, como uma contraposição, uma po-tência adversa à liberdade individual, de-vendo ser entendida como resultado quali-tativo da associação de todos os particula-res, voltada para o bem comum, e, portanto,uma força incapaz de ferir seus elementosformadores sem a si mesmo ferir-se.

A soberania é infalível, não podendo avontade geral errar, pelo simples fato de queo soberano, somente por sê-lo, é sempre aquiloque deve ser (ROUSSEAU, 1987, p. 35).

Eis a razão pela qual aquele que desobe-decer à vontade geral será constrangido portodo o corpo político a obedecê-la, que o for-cará a ser livre, constituindo essa condiçãoartifício e jogo da máquina política, legiti-

mando os compromissos civis, que de outromodo tornar-se-iam absurdos tirânicos esujeitos a abusos de toda ordem.

A soberania é inalienável, devendo opovo exercê-la diretamente, não podendo sersuscetível de cessão ou de transmissão, penade, em cedendo a sua vontade, deixar de serpovo, agente político, senhor de si mesmo.

É partidário Rousseau da democracia di-reta, entendendo tratar-se a representação deforma de alienação da soberania. Os deputa-dos do povo, destarte, não são seus represen-tantes mas, apenas, seus comissários.

O exercício do poder político é tratadocomo um serviço público, uma tarefa de Es-tado, da qual o povo não pode jamais abrirmão. Igualmente, o combate, a luta para de-fender o novo Estado, que se encaminhapara ruína quando o cidadão prefere servi-lo com sua bolsa e não com sua pessoa. Daiouro logo terei ferros. A palavra finança é umapalavra de escravos, não é conhecida na pólis(ROUSSEAU, 1987, p. 106-107).

Para Rousseau, a representação políticatraz consigo outro problema grave, que deveser combatido nos seios do Estado, qual seja,o tráfico dos interesses privados nos negó-cios públicos.

Essa concepção de organização políticavai de encontro ao preconizado por Mon-tesquieu, segundo Rousseau, um feudal maldisfarçado, que, a partir do estudo da Ingla-terra e, especialmente, do parlamento britâ-nico, optou pela defesa da democracia re-presentativa.

A soberania é indivisível, afirma Rous-seau, mais uma vez se contrapondo a Mon-tesquieu, para quem a divisão do poder polí-tico entre legislativo, executivo e judiciário,“independentes e igualmente poderosos” –embora o judiciário fosse concebido como umpoder temporário e nulo! –, era imprescindí-vel à manutenção do estado de direito.

Para Rousseau, ou a vontade é geral ounão é; é a do corpo do povo ou somente de umaparte; sendo de uma parte, não passa de umavontade particular; portanto, dividi-la emseu princípio é matá-la.

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Tratando da liberdade, Hannah ARENDTafirma ser Rousseau o mais coerente represen-tante da teoria da soberania, derivada por ele davontade, de modo a poder conceber o poder polí-tico à imagem estrita da força de vontade indivi-dual (2000, p. 211-212).

Como então a vontade geral se expres-sa? Por meio da lei, é claro, cuja elaboraçãodeve ficar a cargo do legislador, um ser su-perior, inteligente, quase divino, mas, porvia das dúvidas(!), submetida à vontadegeral, pelo sufrágio popular. Por isso que,para fazer a lei, só alguém capaz de umaempresa acima das forças humanas e, para exe-cutá-la, uma autoridade que nada é.

Mesmo sendo alguém quase divino,quem redige as leis não pode ter qualquerdireito legislativo; este é inalienável, perten-ce ao povo soberano.

Para Rousseau, preocupado em pôr li-mites aos abusos, desejos e vontades priva-das, só a lei, a mais sublime de todas as ins-tituições humanas, seria capaz de assegu-rar ao estado social a justiça e a liberdade.

O objeto da lei, entretanto, deve ser ne-cessariamente geral, considerando os súdi-tos no seu conjunto e as ações como abstra-tas, jamais um homem individualmente, nemuma ação particular.

O legislador, na elaboração das leis, nãopode esquecer dos hábitos, costumes e so-bretudo da opinião; ou seja, o legislador, nasua tarefa quase divina de elaborar as leis,haverá que examinar a que povo se destina,se está apto a suportá-las, antes de empre-ender o seu hercúleo empreendimento.

Quanto à execução das leis, é tarefa dogoverno – formado por magistrados ou reis,governadores –, que age como ministro dosoberano. É, portanto, um corpo intermediá-rio (Príncipe) entre súditos e soberano, en-carregado da manutenção da liberdade ci-vil e política. Esse corpo executa as leis, nãoas interpreta; tarefa essa reservada ao legis-lativo (vontade geral).

Eis a democracia de Rousseau: o poderpolítico integralmente na mão do povo – so-berano –, a quem, diretamente, cabe a apro-

vação das leis; e um governo que, na execu-ção das leis, se limita a ser ministro da von-tade geral.

5. Conclusão

O primeiro grande legado de Rousseaufoi a necessidade de legitimidade do poderpolítico, concebendo o povo como titulardessa legitimidade, como agente político detransformação. Nunca, em tempo algum,repita-se, filósofo ou pensador político atri-buiu tanto poder ao povo, que deixa de sermero coadjuvante para ganhar uma dimen-são política que jamais lhe fora atribuída.

Ao estabelecer que a renúncia à liberda-de – e à igualdade, indissociavelmente àque-la ligada – seria renunciar aos direitos dehumanidade, acabou por inspirar aquiloque veio a ser A Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão, aprovada pela Assem-bléia Nacional, em 26 de agosto de 1789,como ato de constituição de um povo, segun-do palavras de membro da assembléia, con-forme BOBBIO (1992, p. 85).

O grande historiador Georges Lefebvre,em breve trecho referido por Bobbio, anota:proclamando a liberdade, a igualdade e a sobe-rania popular, Declaração foi o atestado de óbitodo Antigo Regime, destruído pela Revolução.Ora, indubitável tratar-se de inspiração noContrato social.

A separação entre os interesses públicoe privado, e, porque não dizer, a próprianoção daquilo que veio a se chamar, poste-riormente, Direito Público, como ramo dodireito voltado para regular os interesses eatividades do Estado e, conseqüentemente,para o bem comum, deve-se a Rousseau.

Os costumes, senão como fonte de direi-to, como um elemento indispensável a serobservado pelo legislador, sábio instituidor,eis que a lei, então, deve ser produto tam-bém do meio social, da sociedade, na qualdeverá ser aplicada.

Em contra-ponto, papel importante naafirmação do positivismo jurídico, à época,

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fundamental para assegurar o respeito dosparticulares, especialmente dos despossuí-dos de poder e bens no Estado imaginado àvontade geral do povo soberano.

O instituto do sufrágio universal, atéhoje, elemento fundamental da prática polí-tica nas mais diversas instâncias do poderpolítico e na sociedade em geral.

As influências de Rousseau são majes-tosas. Não sem razão BONAVIDES afirmaque “o Contrato Social sacode o homem doséculo XVIII com a mesma intensidade comque o Manifesto Comunista abala o século XX”(1961, p. 187).

Eis o pensador político rebelde, revolu-cionário, cuja obra, quase cem anos antesdo Manifesto Comunista de Marx, fez tremertoda Europa.

Eis Rousseau, um homem cuja influên-cia no pensamento político contemporâneoé imedida e, longe de ter-se esgotado, recla-ma que continuemos a discuti-lo, como di-ria Bonavides, seja para refutá-lo, seja paraconsagrá-lo.

Acima de tudo, entretanto, para buscar-mos inspiração à resolução de um proble-ma crucial da democracia burguesa atual: alegitimidade política.

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Alexandre Santos de Aragão

1. Introdução

A criação de entidades dotadas de espe-cial autonomia frente ao Poder ExecutivoCentral não é fenômeno exclusivo do Brasil.Muitos países, uns há mais, outros há me-nos tempo, recorreram a esse modelo orga-nizativo para dar conta da regulação de se-tores sensíveis da vida social, neles incluí-dos certos setores da economia.

O nosso objetivo não é traçar um perfilpormenorizado dessas instituições nos di-reitos nas quais foram adotadas, mas ape-nas o de realizar um corte metodológicopara, sempre ressalvadas as peculiaridadesde cada sistema jurídico, identificar como adoutrina e a jurisprudência desses paísesvêm tratando questões polêmicas tambémsuscitadas entre nós.

Em estudo de Direito Comparado, Dio-go de Figueiredo Moreira Neto (2000, p. 80),ao versar sobre as agências administrativasindependentes, observou que,

“tanto na Espanha como no Brasil, asopiniões se encontram divididasquanto à constitucionalidade das ad-ministrações independentes e às enti-dades que devem ser incluídas no gê-nero. Assim é que dificuldades técni-

As agências reguladoras independentes –algumas desmistificações à luz do direitocomparado

Sumário

1. Introdução 2. Inglaterra 3. Estados Uni-dos da América do Norte 4. França 5. Espanha6. Itália 7. Argentina 8. Conclusões

Alexandre Santos de Aragão é Mestre emDireito Público pela U.E.R.J. Professor contra-tado de Direito Administrativo e da disciplinaeletiva “Agências Reguladoras” da Universi-dade do Estado do Rio de Janeiro – U.E.R.J. Pro-fessor da Pós-Graduação em Direito Econômi-co Internacional da PUC/RJ e da Pós-Gradua-ção em Direito da Administração Pública daUFF. Procurador do Estado e Advogado no Riode Janeiro.

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co-jurídicas, como a dependência di-reta do Legislativo sem intermediaçãoda Administração, a substituição deum controle de natureza judicial porum órgão estatal não judicial e o pro-blema da independência da direçãodas agências frente ao Governo cen-tral, suscitam, tanto aqui como alhu-res, instigantes debates”.

Com efeito, como veremos, é curioso no-tar como, em todo sistema jurídico em queforam adotadas, as agências reguladorasindependentes levantaram polêmicas e can-dentes questões quanto à incolumidade dopoder de direção da Administração centrale ao amplo poder normativo do qual sãodotadas. É curioso também como, em todoseles, a constitucionalidade dessas entida-des foi afirmada por meio de interpretaçõesconstrutivas da Constituição. São esses pon-tos que constituirão o foco da nossa investi-gação comparada, sempre com vistas a for-necer a maior luz possível sobre os desafioscolocados no Direito pátrio.

2. Inglaterra

As agências reguladoras independentesnão possuem, na Inglaterra, uma peculiari-dade que as distinga dos demais corposadministrativos, uma vez que a Adminis-tração Pública inglesa é caracterizada porseu fortíssimo policentrismo e pela autono-mia de seus órgãos1, denominados QuasiAutonomous non Governmental Organizations– QUANGOS, boards ou quasi tribunals.2

No dizer de Howard Machin,“os Ministérios em Londres não exis-tem para administrar, mas para geriras atividades administrativas de ou-tras organizações. Não existem, por-tanto, ‘serviços externos’, mas apenasuma pequena administração central,cujas funções se limitam a definir asgrandes linhas das políticas públicas,à preparação das leis, dos regulamen-tos, das respostas às questões formu-ladas pelos parlamentares e ao con-

trole da função administrativa exerci-da por outros organismos. (...) A no-ção de ‘autoridade’ implica, pois, aexistência de uma organização distin-ta e autônoma, exterior ao serviço pú-blico (à la fonction publique), e dotadade poderes, de responsabilidades e derecursos financeiros outorgados peloEstado”(1988, p. 236).

Começaram a surgir no século XIX.Como não havia a idéia de AdministraçãoPública, mas apenas de Governo, quandoera editada uma lei para dar conta de deter-minado interesse público, era concomitan-temente criado um órgão para implementá-la. Dessa maneira, foram criados quangospara as mais diversas finalidades (assisten-ciais, de controle, reguladoras3 etc.), chegan-do a alcançarem em seu conjunto o impres-sionante número de mil e quinhentas orga-nizações4.

Como exemplos, podemos citar a Mono-polies and Mergers Commission, criada em1949 e encarregada da proteção da concor-rência; a British Broadcasting Corporation(B.B.C.); a Independent Broadcasting Authori-ty, incumbida da supervisão das empresasprivadas de televisão; a University GrantsCommittee, incumbida da repartição de re-ceitas entre as universidades e os centros depesquisa; o British Council, executor da polí-tica de promoção cultural inglesa no exteri-or; o Medical Research Council, a Civil Aviati-on Authority etc.

A doutrina observa a diversidade estru-tural dos quangos, dificilmente sujeitos auma conceituação homogênea ou mesmo auma classificação dotada de maior raciona-lidade. Tony Prosser afirma a “necessidadede ser destacado o enorme pluralismo daregulação britânica: um enorme espectro dediferentes formas institucionais foi adota-do, com variedade de propósitos e aborda-gens, não tendo predominado ao longo dosanos qualquer razão ou tipo de instituição”(1997, p. 32).

Existem pequenas instituições como oConselho de Desenvolvimento da maçã e da

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pêra, até aquelas com grandes responsabi-lidades, a exemplo da Autoridade da Ener-gia Atômica. “As fronteiras deste estranhoreino do ‘quasi government’ é, destarte, mui-to difícil de ser delineada. Como notou SirNorman Chester, o único elemento comum aestes organismos é o de que a sua responsabi-lidade frente às autoridades políticas – o mi-nistro, o parlamento ou o Conselho local – éindireta e limitada” (MACHIN, 1988, p. 240).

A doutrina inglesa comenta que“o problema das relações entre umaautoridade e seu ministro supervisor,encarregado da sua tutela, geralmen-te não é difícil. Em princípio, a res-ponsabilidade do ministro é bastanteatenuada, e o ministro é responsávelperante o Parlamento pelas grandespolíticas e pelo orçamento da autori-dade. Normalmente esta idéia de res-ponsabilidade limitada é estabeleci-da pela legislação da autoridade emquestão, já que, sem definição jurídi-ca dos poderes de intervenção do mi-nistro, não há autoridade que seja re-almente ‘independente’. Todavia, al-gumas autoridades são regidas portradições ou regras não-escritas denão-intervenção ministerial, tradiçõesestas que muitas vezes evoluem se-gundo o contexto político. De qual-quer forma, a debilidade dos meiospolíticos do Executivo geralmente levaos ministros a não se imiscuírem”(MACHIN, 1988, p.247).

Inicialmente havia dúvidas quanto àpossibilidade de os quangos serem controla-dos jurisdicionalmente, o que foi expressa-mente afirmado por via legislativa em 1958.Também estão sujeitos ao controle adminis-trativo exercido pelo Council of Tribunals.

No Governo Tatcher, partidário da dere-gulation, buscou-se aumentar o controle so-bre os quangos e extinguir uma série deles.Todavia, apesar de terem sido extintos cer-ca de quinhentos quangos, foram criadosoutros sessenta, principalmente para regu-lar as atividades então desestatizadas (PAS-

SARO,1996, p. 64). Esses novos quangos, se-guindo a tendência global, adotaram a no-menclatura norte-americana de agencies oucommissions.

Todavia, ao contrário do que uma apre-ciação apressada poderia dar a entender,essas agencies ou commissions não se inspi-raram de maneira tão forte na secular expe-riência inglesa, nem nas Agencies norte-ame-ricanas. Para Tony Prosser (1997, p. 57) asprincipais razões para não adotar integral-mente modelos ingleses antigos ou os dosEUA5 foi o desejo de evitar formalismos elegalismos, assim como o de reduzir o con-trole jurisdicional – o que não foi de todoalcançado – e o de aumentar o controle mi-nisterial6.

De forma geral, os quangos reguladorespós-privatização tiveram a sua competên-cia repartida com os ministros de cada se-tor. Estes ficaram incumbidos da modela-gem inicial do setor regulado, possuindo acompetência para expedir as licences (equi-valentes aproximadamente às nossas con-cessões e permissões de serviços públicos),ao passo que as agencies ficaram com as com-petências sancionatórias, de alteração daslicenses e de proteção dos consumidores(PROSSER, 1997, p. 48). Aos ministros com-pete a fixação das políticas públicas; às agên-cias, executá-las com autonomia, inclusivefinanceira (CATTANEO, 1999, p. 259).

Apesar da enorme importância históri-ca dos quangos ingleses, a sua disciplina,pelas peculiaridades do Direito britânico,não é uma ferramenta comparada muitohábil para auxiliar-nos na resolução dasquestões postas no Direito brasileiro em re-lação às agências reguladoras.

Com efeito, o caráter flexível da Consti-tuição consuetudinária do Reino Unido, oseu exacerbado parlamentarismo e a verda-deira fusão (não separação) de poderes –fusion of powers – existente na arquiteturapolítico-institucional desse país (BAREN-DT, 1998, p. 34-35, 107-108), fazem com quequestões como a amplitude do poder regu-lamentar das agências independentes e a

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sua independência frente ao poder centraldo Estado, comuns a todos os demais paí-ses que adotaram esse modelo, não tenhamrazão de existir.

Nos EUA, país afiliado à common law,mas dotado de uma Constituição rígida eescrita que acolhe o Princípio da Separaçãodos Poderes, a situação é de todo diversa.

3. Estados Unidos da Américado Norte

O estudo das agências reguladoras noDireito norte-americano é de grande impor-tância, uma vez que os EUA foram o primei-ro país a adotar esse modelo organizativo7,apenas recentemente adotado em países datradição francesa do Direito Administrati-vo, tais como a própria França, Itália, Espa-nha, Brasil e Argentina.

A demora na adoção do modelo dasagências reguladoras independentes pelosdemais países se deve menos a um supostoatraso na evolução do Direito Administrati-vo e mais às circunstâncias político-econô-micas neles verificadas. Mais especificamen-te, os EUA sempre tiveram uma perspectivaliberal e não-estatizante bastante forte, aopasso que a América Latina e a Europa Con-tinental se viram ao longo de todo o séculopassado envolvidas em uma série de deman-das e convulsões sociais que levaram o Es-tado a adotar uma política estatizante.

Nessas circunstâncias, não era necessá-ria a criação de agências independentespara regular atividades econômicas ou ser-viços públicos que já eram prestados pelopróprio Estado ou por empresas da suaAdministração Indireta.

Tudo mudou com o movimento da de-sestatização, que fez com que as circunstân-cias político-econômicas desses países seaproximassem daquelas que sempre se ve-rificaram nos EUA.

Sendo assim, mais do que supostos “im-perialismos”, a adoção do modelo das agên-cias reguladoras independentes é decorrên-cia natural da mudança da realidade dos

países da América Latina e da Europa Con-tinental, que os fez se aproximarem dosEUA. Podemos dizer que, partindo de extre-mos opostos em direção à mesma direção,EUA e América Latina/Europa acabaramchegando a um ponto aproximado do pon-to de vista do Direito Econômico.

Os EUA saíram de uma situação em queo liberalismo vigia em toda a sua ortodoxia(até cerca de 1887), passaram a uma forteregulação estatal (New Deal), gradativamen-te atenuada após a guerra. Na década deoitenta, os EUA sofreram o movimento daderegulation, pelo qual se propugnava a ex-tinção ou a diminuição da regulação esta-tal. O ideário, nunca implementado em suaradicalidade, até pelo insucesso da maiorparte das suas experiências, não gerou mui-tos frutos, o que levou ao retorno de umasituação de equilíbrio.

A América Latina e a Europa tambémpartiram de um liberalismo ortodoxo (sécu-los XVIII e XIX), passaram a um breve perío-do de regulação da economia, embarcandoentão na estatização da economia a partirdo Segundo Pós-Guerra, situação revertidaapenas na década de oitenta com a desesta-tização acompanhada da regulação dos se-tores passados à iniciativa privada.

Na América Latina/Europa, o Estadodeixou de prestar ou explorar diretamente(ou por intermédio da sua AdministraçãoIndireta) a maior parte dos serviços públi-cos e atividades econômicas que, no entan-to, pela sua sensibilidade com os interessesmaiores da coletividade, deviam ser objetode uma regulação independente, inclusivefrente aos eventuais ocupantes de cargospolíticos. Esse é o principal telos das agênci-as reguladoras independentes, que sempreexistiu nos EUA, mas que apenas recente-mente tomou corpo na América Latina e naEuropa Continental.

Destacando a diferença de formação his-tórica das duas realidades, Sabino Casseseafirma que,

“nos Estados Unidos, o desenvolvi-mento das independent regulatory agen-

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cies foi o fruto do alargamento da gor-venment regulation e da produção le-gislativa do direito. Na Itália, ao re-vés, a instituição de autoridades in-dependentes é acompanhada de umamudança na disciplina pública dasatividades privadas dirigida antes àliberalização, à deregulation, à substi-tuição de normas finalísticas por nor-mas condicionais” (1996, p. 219).

Podemos, calcados nas lições de AndresBetancor Rodríguez (1994, p. 32-55), elen-car as seguintes razões para o fato de osEUA terem conferido independência a mui-tas de suas agências: (a) o fato de, ainda quesem caráter de coisa julgada, comporemconflitos (função quase-jurisdicional), o querequer uma posição de “terceiro imparcial”;(b) a tradicional desconfiança do Congres-so em relação ao Presidente; (c) a neutrali-zação política da Administração promove-ria a competência profissional, a estabilida-de das instituições colocadas sob a prote-ção do Congresso e seria favorecida a coe-rência e a responsabilidade das ações ad-ministrativas; (d) o pragmatismo típico doespírito anglo-saxão; (e) para, na época doNew Deal, compensar o inevitável incremen-to das funções e regulamentações estatais,evitando, com a atribuição de grande partedestas funções a agências independentes,que o poder do Presidente aumentasse des-mesuradamente; (f) as novas tecnologiasexigiam uma regulação técnica, de especia-listas, com o que também se asseguraria aadoção de critérios objetivos de decisão, des-vinculados de interesses político-partidári-os; (g) as eventuais contradições com o Prin-cípio da Separação dos Poderes não as tor-nou desfuncionais por terem atendido aosobjetivos do New Deal e por contarem com orespaldo da maioria dos congressistas; e (h)são importantes para o equilíbrio das rela-ções entre os Poderes porque a impossibili-dade de livre exoneração dos seus dirigen-tes pelo Presidente as torna um importanteinstrumento à disposição do Congresso paraassegurar a fidelidade da Administração à

lei, funcionando como um contra-peso dospoderes do Executivo.

A primeira agência reguladora indepen-dente de que se tem notícia foi a InterstateCommerce Commission, criada nos EstadosUnidos da América do Norte em 1887 pararegulamentar os serviços interestaduais detransporte ferroviário8. Essas entidades fo-ram-se multiplicando de tal forma que hojeo direito administrativo norte-americano épraticamente confundindo com o direito dasagências (DI PIETRO, 1999, p. 385), sejamelas reguladoras ou meramente executivas,independentes ou subordinadas hierarqui-camente ao Presidente da República9.

Para a compreensão da disciplina dasagências nos EUA e das possibilidades desua utilização como ferramenta de DireitoComparado, devemos estar atentos para aformação do Direito Administrativo dessepaís. Neste escopo, Mariano Magide Herre-ro observa que

“no final do século XIX era tradicio-nal na literatura norte-americana adistinção entre poder executivo e po-der administrativo. O primeiro era di-retamente atribuído ao Presidentepela Constituição, e não ia muito alémdas atribuições concretas do artigo II(relações internacionais, defesa, etc.)e tinha substância política. O segun-do era, em tese, um poder basicamen-te apolítico, que deveria ser exercidoprincipalmente por especialistas esobre cujos titulares decidia o Con-gresso. O incremento de funções daAdministração interventora da déca-da de trinta progressivamente aumen-tou esse poder administrativo, quecumulava potestades próprias dostrês poderes tradicionais para melhorcumprir as suas funções de direção esupervisão dos diferentes setores emque operava. Essa concentração depoderes executivos, legislativos e ju-diciais, entendidos à maneira norte-americana, justificava para alguns asua atribuição a uma quarta instân-

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cia, não hierarquicamente subordina-da ao presidente, para que fosse man-tida a essência do princípio da divi-são dos poderes entendido como sis-tema de cheks and balances tal comoadotado pela Constituição de 1787”(HERRERO, 2000, p. 170).

O mais relevante do estudo da discipli-na legal dos EUA e, sobretudo, da jurispru-dência da Suprema Corte acerca das agên-cias reguladoras é o fato de revelarem dis-cussões que já são seculares e que apenasagora, obviamente que com suas peculiari-dades, se iniciam na América Latina e naEuropa Continental.

É realmente curioso notar a homogenei-dade com que as mais importantes e polê-micas questões referentes às agências regu-ladoras independentes se repetem ao longodo tempo nos mais diversos países, inclusi-ve, e pela primeira vez, nos EUA.

Assim, questões como a posição dasagências reguladoras independentes no tra-dicional esquema dos três poderes; as suasrelações com o Chefe do Poder Executivo,inclusive a possibilidade deste exonerar adnutum os seus dirigentes; o seus poderesnormativos; a legitimação dos seus proce-dimentos; e a abrangência do controle juris-dicional sobre os seus atos são há décadasdiscutidas nos EUA e, certamente, guarda-das as peculiaridades do sistema norte-ame-ricano, as decisões e fundamentos que asdirimiram podem lançar ótimas luzes à suasolução também em outros países em que,tal como o nosso, apenas recentemente, mascom intensidade, surgiram.

Uma das mais tormentosas questões co-locadas pelas agências reguladoras inde-pendentes, mas que não é exclusiva delas,abrangendo também outros órgãos e enti-dades administrativas não-independentes,é a atribuição de competências relaciona-das com os três poderes tradicionais do Es-tado: administram, compõem conflitos en-tre os particulares e o Estado ou até mesmoapenas entre particulares e editam normasgerais e abstratas. Assim, nos EUA se come-

çou a afirmar que exerciam funções admi-nistrativas “quase-judiciais” e “quase-legis-lativas”, o que, no entanto, não violaria oPrincípio da Separação de Poderes consti-tucionalmente consagrado.

Aqui cabe uma observação: nos EUA adecisão de conflitos com administrados e aexpedição de normas gerais e abstratas pelaAdministração não são consideradas, aocontrário do que se dá entre nós, funçõesadministrativas materiais.

Alguns chegaram a defender que as agên-cias teriam-se tornado um verdadeiro “hea-dless forth branch”. O Juiz da Suprema CorteRobert Jackson afirmou que

“ter-se-iam tornado um verdadeiroquarto campo de Governo, que ultra-passou a nossa teoria dos três pode-res. (...) As agências administrativasforam chamadas de ‘quasi-executi-vas’, ‘quasi-judiciais’ e ‘quasi-legisla-tivas’ como forma de conciliá-las como esquema de separação de poderesconsagrado na Constituição. A sim-ples qualificação como ‘quasi’ trazimplícita a confissão de que as classi-ficações reconhecidas não mais sãoaplicáveis sem problemas e ‘quasi’ éuma cobertura que damos para alivi-ar nossa confusão da mesma formaque poderíamos usar uma colcha paracobrir uma cama desarrumada”10.

Refutando a figura de um “quarto po-der”, mas sustentando uma benéfica “con-fusão dos poderes” típicos da divisão tri-partite, Peter Strauss (apud VASCONCE-LOS, 1994, p. 92) afirma que o Princípio daSeparação dos Poderes deve ser hoje inte-grado por considerações ligadas à proteçãodas garantias individuais, mediante a im-posição de requisitos de objetividade e im-parcialidade, e por preocupações inerentesao “sistema de freios e contrapesos” entreos diversos órgãos e entidades estatais. As-severa ainda que a separação do poder intothree separate branche apenas diz respeito àcúpula do Estado, sendo as agencies irredu-tíveis a um só dos poderes. A vitalidade e

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legitimidade destas adviria, ao contrário,exatamente do equilíbrio entre os influxos –cheks and balances – sobre elas exercidos pe-los três poderes tradicionais do Estado11.

Todavia, constata-se na evolução juris-prudencial que, de uma posição que asse-gurava amplas ingerências de todos os po-deres nas agências independentes, a Supre-ma Corte passou a restringir a existência depoderes do Legislativo sobre os dirigentesdas agências com competências administra-tivas, contemplando, dessa forma, a teoriado executivo unitário12. Em Buckley v. Valeo(1976), rechaçou a nomeação de dirigentesde agências pelo Congresso; em Immigrati-on and Naturalization Service v. Chadha (1983),reconheceu a inconstitucionalidade dos ve-tos legislativos, pelos quais o Congressopoderia suspender decisões das agências;em Bowsher v. Synar (1986), refutou a possi-bilidade de exoneração de dirigente da Ad-ministração pelo Congresso.

A concepção originária dos EUA e o sis-tema do Common Law praticamente desco-nheciam a função administrativa, daí a jámencionada utilização da nomenclatura defunção “quase-judicial” e “quase-legislati-va” das agências reguladoras, para o que,em realidade, não era nada mais do que, res-pectivamente, a função processual e regula-mentar da Administração Pública. Com aatual posição da Suprema Corte, que impe-de uma série de ingerências do Poder Legis-lativo sobre as agências que exercem fun-ções administrativas, ficou claro que as ou-trora chamadas funções “quase-judiciais”e “quase-legislativas” das agências regula-doras são espécies da função administrati-va lato sensu, sendo inclusive de se observarque os autores mais modernos abandona-ram essa nomenclatura.

Especificamente quanto à vedação de li-vre exoneração dos dirigentes das agênciasindependentes por parte do Presidente daRepública, condicionada às justas causasenumeradas em lei, o que é considerada aprincipal nota da sua conceituação e dife-renciação das demais agências, a jurispru-

dência norte-americana tem os seguintesprincipais marcos: (a) Myers v. United States(1926): interpretando a seção 1ª do art. II daConstituição Norte-Americana, a SupremaCorte inferiu da competência do Presidentede zelar pela fiel execução das leis a suacompetência para exonerar livremente ostitulares dos órgãos da Administração; (b)Humphrey’s Executor v. United States (1935):limitou as conclusões havidas em Myersapenas às agências puramente executi-vas, afirmando que seria constitucional odispositivo que limitasse às justas cau-sas a possibilidade de exoneração dosdirigentes das agências que exercem po-deres quase-jurisdicionais e quase-legis-lativos; (c) Wiener v. United States (1958):indo além, a Corte afirmou que se a agên-cia exerce funções quase-jurisdicionais ouquase-legislativas, os seus dirigentes nãopodem ser exonerados sem justo motivo,ainda que a lei se silencie a este respeito;e (d) Morrison v. Olson (1988): a SupremaCorte entendeu que as limitações ao po-der de exoneração dos dirigentes dasagências independentes pelo Presidente,limitada a algumas hipóteses taxativas de“justa causa”, não é inconstitucional, vezque, “apesar de supor uma limitação dospoderes presidenciais, esta não era tal queimpedisse ao Presidente exercer a sua obri-gação de velar pela fiel execução das leis,nem a um indevido enfraquecimento daautoridade do Executivo” (HERRERO, 2000,p. 170). O poder de exoneração, apesar decondicionado a uma good cause, continua-va, entendeu a Suprema Corte, nas mãos doExecutivo (RODRIGUES, 1994, p. 52).

Diretamente afinada com a concepção de“poder executivo unitário” acima vista, essaúltima decisão é de grande importância,uma vez que, confirmando as conclusões deHumphrey’s Executor v. United States, adotou-as sob outra perspectiva.

Como observa Andres Betancor Rodrí-guez (1994, p. 52), o que se afirmava emHumphrey’s era a inexistência de livre exo-neração nas agências que não fossem pura-

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mente executivas, ao passo que em Morrisona perspectiva é outra:

“apesar de o Congresso ter limitado opoder presidencial de exoneração, estecontinua contando com o poder ne-cessário para cumprir as suas atribui-ções constitucionais, para o que o Tri-bunal afirma que o relevante não é seé puramente executiva ou não, massim se as restrições ao poder de exo-neração impedem ou não ao Presiden-te o cumprimento de suas atribuiçõesconstitucionais. O Tribunal conclui quenão, já que o Presidente continua tendouma ampla autoridade para assegurarque o Conselho (a agência independen-te, diríamos) execute competentementeas suas responsabilidades legais”13.

Isso fez com que os que se opunham àsagências não mais insistissem na impossi-bilidade de o Congresso fixar limites à exo-neração, propugnando principalmente apartir de então pela possibilidade de o Pre-sidente editar normas cogentes para as agên-cias, integrando e harmonizando a sua atu-ação no conjunto do Executivo, sempre den-tro da idéia de unidade deste. Ora, se umaagência descumprisse essas normas, verifi-cada estaria a good cause para legitimar asua exoneração. Seria a idéia de que “nãoimporta quem faça, desde que faça o que eudetermine”.

Os marcos dessa nova tendência foramas Executive Orders nº 12.291 e 12.498, emiti-das pelo presidente Reagan, que, em sínte-se, submeteram os atos das agências à pré-via aprovação do Office of Management andBudget (OMB), diretamente vinculado aoPresidente. Para evitar eventuais argüiçõesde inconstitucionalidade, eram apenas fa-cultativas para as agências independentes.Todavia, por conveniências políticas, pelomenos sete das mais importantes agênciasindependentes a elas aderiram, o que aca-bou lhes retirando de fato o caráter inde-pendente (RODRIGUES, 1994, p. 48-49).

Essa disciplina foi aperfeiçoada pelaExecutive Order nº 12.886/93 – Regulatory

Planning and Review, editada pelo Presiden-te Bill Clinton. Esse ato estabelece procedi-mentos obrigatórios para as agências, nosentido de que, antes de iniciarem os seusprocedimentos regulatórios, devem comu-nicar a sua intenção a um órgão central doGoverno – o Regulatory Working Group – in-cumbido de alertá-las para as regulaçõesdesnecessárias, dúplices ou contraditóriasentre si ou com a política governamental.“O procedimento de revisão, em princípio,só afeta às agências executivas e aos regula-mentos de aplicação geral significativa – sig-nificant regulatory action –, tanto por seu im-pacto (superior a cem milhões de dólaresanuais), como por razões de coordenação(interferência nas ações de outras agênciasfederais, na política presidencial, nas açõesdos estados ou dos entes territoriais lo-cais)”14.

Podemos constatar que, em virtude daevolução da jurisprudência da SupremaCorte, hoje sufragadora de um “Executivounitário”, e da edição das Executive Ordersacima citadas, a relação das agências inde-pendentes nos EUA tem-se aproximado bas-tante do que se verifica nos países da tradi-ção do direito administrativo.

Colocado o quadro geral das agênciasreguladoras independentes dos EstadosUnidos da América do Norte, deve ser des-tacado o avanço procedimental a que che-garam com o Administrative Procedure Act –APA de 1946, que assegura a participaçãodos indivíduos e dos grupos (relacionadoscom interesses coletivos e difusos) nos pro-cessos decisórios das agências, mesmo na-queles que visam à emissão de normas ge-rais e abstratas.

Note-se, todavia, que na doutrina e ju-risprudência majoritárias essas garantias deexigências não são consideradas decorrên-cias diretas do due process of law constitucio-nalmente assegurado, tendo, portanto, na-tureza meramente infraconstitucional (LA-VILLA RUBIRA, 1991, p. 1101-1120).

De toda forma, Laurence H. Tribe obser-va que as garantias procedimentais concer-

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nentes às decisões das agências objetivamimpedir arbitrariedades no desempenho dasfunções a elas delegadas pelo Congresso(2000, p. 988).

Quanto ao desempenho de funções re-gulamentares pelas agências (na nomencla-tura norte-americana, funções quase-legis-lativas), a orientação prevalecente, apesarde alguns adeptos da non-delegation doctri-ne, é no sentido de que a lei deve conter osstandards mínimos – inteligible principle doc-trine – pelos quais deve a Administração sepautar (CARBONEL, 1996, p. 25-29).

Ocorre que também esses parâmetrospodem ser extraídos tanto da letra de algu-ma disposição legal como, de forma implí-cita, do seu espírito ou do sistema jurídicocomo um todo. Nesse sentido, a SupremaCorte Norte Americana chegou a decidir queo mero estabelecimento da finalidade de al-cançar o “interesse público”, a ser persegui-da no exercício do poder regulamentar decerta agência independente, já era capaz delegitimar o seu exercício: “O termo ‘interes-se público’, tal como empregado, não é umconceito desvestido de critérios, mas possuirelação direta com a adequação dos servi-ços de transporte, com as suas condiçõesessenciais de economia e eficiência (...)(SCHWARTZ, 1950, p. 26).

Quanto ao controle jurisdicional sobreas decisões das agências, o Poder Judiciárioacaba, em razão de uma salutar autolimita-ção, tendo pouca ingerência material nasdecisões das agências, desde que razoáveis,limitando-se, na maioria das vezes, comoimposição do Estado de Direito, aos aspec-tos procedimentais assecuratórios do devi-do processo legal e da participação dos di-reta ou indiretamente interessados no obje-to da regulação. Assim, Bernard Schwartzafirma que, “se há um ponto duvidoso, nósdevemos hesitar em rejeitar a conclusão daComissão, baseada em juízos claros, espe-cíficos e compreensíveis apoiados nos fa-tos” (1950, p. 119). Em outras palavras, emhavendo diversos entendimentos razoáveis,deverá prevalecer o adotado pela agência.

4. França

O fenômeno das agências reguladorasindependentes, que implica um pluricentris-mo administrativo, alcançou até mesmo aFrança, país que tradicionalmente semprezelou pela unidade e organização hierár-quica da sua Administração Pública15.

Na França, esses centros competenciaisautônomos de regulação adotaram a deno-minação de “autoridades administrativasindependentes”16, possuindo algumas pe-culiaridades em relação aos demais países,entre as quais destaca-se a ausência de per-sonalidade jurídica, o que nos leva a cons-tatar a prescindibilidade desta para a con-cepção de organismos autônomos dado opróprio relativismo da importância da per-sonalização jurídica no Direito Público17.

A doutrina gaulesa18 costuma conceitu-ar as autoridades administrativas indepen-dentes a partir dos seus próprios termos, ouseja, seriam (a) autoridades, no sentido deexercerem competências decisórias, exclu-indo-se, assim, aqueles órgãos que exercemfunções meramente consultivas; (b) admi-nistrativas, “exercentes de uma função deregulação destinada a estabelecer as ‘regrasdo jogo’ entre os atores sócio-econômicos –missão mais ampla que aquela de coman-do”; e (c) independentes, já que não inte-gram a linha hierárquica do Poder Executi-vo central. “Apesar de serem desprovidasde personalidade jurídica, sendo orçamen-tariamente ligadas às estruturas ministeri-ais, escapam a todo poder hierárquico oude tutela19. Os únicos limites à sua autono-mia consistem na obrigação de publicar umrelatório anual de prestação de contas e nocontrole exercido sobre certas decisões suaspelo juiz, normalmente do contencioso ad-ministrativo, e às vezes do Poder Judiciá-rio”. Além disso, René Chapus observa que

“o estatuto funcional destas autorida-des é geralmente concebido de manei-ra tal que assegure a efetividade dasua liberdade de decisão. Em outraspalavras, notadamente, os requisitos

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de investidura das pessoas que serãodotadas desta liberdade decisória e omodo de sua designação, o regime decassação do seu mandato, assim comoa instituição de casos de incompati-bilidade tendentes a prevenir ou tor-nar inócuas as pressões e influênciasde qualquer ordem que poderiam sur-gir em relação a eles.

Contribuindo para este estatuto, oConselho de Estado decidiu que oGoverno não pode legalmente dar fimàs funções do presidente (e, sem dúvi-da, também dos demais membros) deuma autoridade administrativa inde-pendente por ter alcançado a idadede aposentadoria no seu órgão públi-co de origem” (CHAPUS, 1999, p. 215).

Essa caracterização, aparentemente sim-ples, gera, no entanto, muitas divergênciasao serem abordadas as autoridades admi-nistrativas independentes em espécie. Me-recem destaque as divergências existentesem relação à característica de “autoridade”:parte da doutrina a concebe de maneira maisampla, abrangente não apenas dos órgãosque exercem decisões obrigatórias – fiscali-zatórias, sancionatórias e regulamentares –, verticais, em sentido tradicional, mas tam-bém as “organizações que exercem umaautorité morale ou algum outro tipo de influ-ence déterminante, ainda que os seus atos se-jam formalmente meras recomendações”20.

Nesse sentido, GÉRARD TIMSIT, pro-pugnando mesmo por uma autre logique dudroit, afirma que

“as instâncias de emissão de normasnão podem ser reduzidas apenasàquelas investidas de um poder deedição de normas obrigatórias, isto é,cujo desrespeito acarreta uma sançãono sentido clássico do termo. As auto-ridades administrativas independen-tes contribuem tanto para a elabora-ção do Direito quanto as autoridadesadministrativas clássicas, por meiosque não são necessariamente meios deconstrição e de imposição, mas que –

geralmente – não são menos eficazes:informação, investigação, proposição,recomendação” (1988, p. 316).

Essa concepção mais ampla das autori-dades administrativas independentes foilegislativamente adotada em relação aoMédiateur de la Republique (Leis de 3 de ja-neiro de 1973 e de 13 de janeiro de 1989),semelhante a um ombudsman; à CommissionNationale de d’Évalution des Universités (Leide 10 de julho de 1989); à Commission Natio-nale de Contrôle des Interceptions de Securité(Lei 10 de julho de 1991) e à Commission Con-sultative du Secret de la Défense Nationale (Leide 8 de julho de 1998) (VAN LANG, 1999, p.37). Parte da doutrina também inclui entreas autoridades administrativas independen-tes a Commission d’Accès aux Documents Ad-ministratifs – CADA (Lei de 17 de julho de1978), que, apesar de não possuir poderescoercitivos sobre os proprietários públicose privados de bancos de dados, tem exerci-do um eficaz papel persuasivo, bastandodizer que 80% das suas recomendações têmsido voluntariamente atendidas pela Admi-nistração. Jacqueline Morand-Deviller assi-nala que “estas recomendações são consi-deradas como uma quase ‘jurisprudência’com grande valor pedagógico, o que corres-ponde à própria missão da CADA, que é deconvencer e não de obrigar” (1996, p. 116).

Uma característica peculiar das autori-dades administrativas independentes fran-cesas é que, ao contrário de muitos países,tais como o próprio Brasil, não se limitam àregulação de setores econômicos ou de ser-viços públicos delegados a particulares,abrangendo também funções de proteção dedireitos fundamentais e de proteção dos ci-dadãos frente à Administração Pública, nãosendo, portanto, no seu conjunto, vincula-das exclusivamente à desestatização e à li-beralização de setores da economia.

A relação das autoridades administra-tivas qualificáveis como independentesvaria bastante de autor para autor, todosdestacando, no entanto, a sua heteroge-neidade.

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Michel Gentot (1994, p. 100-148), queadota um conceito amplo para as autorida-des administrativas independentes, exclui,malgrado opiniões divergentes, o ComitéConsultatif National d’Étique pour les Sciencesde la Vie et de la Santé (Decreto de 23 de janei-ro de 1983) e o Banque de France (Reformadas Leis de 4 de agosto e de 31 de dezembrode 1993) por possuírem personalidade jurí-dica21; o Conseil des Bourses de Valeurs, já que,além de possuir personalidade jurídica, temnatureza corporativa; o Conseil du Marché àTerme, por ser composto apenas pelos pro-fissionais do setor; o Conseil de la Réglemen-tation Bancaire, por ser presidido pelo Mi-nistro das Finanças, não sendo, portanto,independente; e a Commission Nationale deControle des Campagnes Électorales, por fun-cionar apenas nos períodos das eleiçõespresidenciais – não tendo um caráter per-manente, não podendo ser considerada uma“instituição”.

Partindo da classificação constante daobra de Michel Gentot (1994, p. 99-100)acrescidas da enumeração mais recentemen-te elaborada por René Chapus (1999, p. 215-217), podemos dividir as autoridades ad-ministrativas independentes francesas nosseguintes grupos:

1) Autoridades Administrativas Inde-pendentes de Regulação de Atividades Eco-nômicas e Financeiras: Commission des Ope-rations de Bourse – COB, dirigidas, a exem-plo das demais autoridades administrati-vas independentes, por um órgão colegiadocomposto por membros designados peloConselho de Ministros, pelo Conselho deEstado, pela Corte de Cassação, pelo Tribu-nal de Contas, pelo Banco da França e pelosprofissionais do setor (Lei de 2 de agosto de1989); Conseil de Discipline des Organismes dePlacement Collection em Valeurs Mobilières –OPCVM (Lei de 2 de agosto de 1989); Com-mission Bancaire (Lei 24 de janeiro de 1984),integrante da Estrutura do Banque de Fran-ce22; Commission de Contrôle des Assurances (Leide 31 de dezembro de 1989), criada em vir-tude da abertura do mercado francês de se-

guros; Conseil de la Concurrence (Decretos de29 de dezembro de 1986 e de 2 de maio de1988), incumbido da manutenção das regrasdo livre mercado e do controle das concen-trações do poder econômico, exercendo for-tes poderes sancionatórios por meio do co-legiado que o dirige, composto de 16 mem-bros, sendo que sete deles advêm do Conse-lho de Estado, da Corte de Contas e da Cortede Cassação; a Commission des Clauses Abu-sives (Lei de 10 de janeiro de 1978) e a Com-mission de la Securité des Consommateurs (Lei21 de 1983), que, desprovidas de poderescoercitivos, são destinadas à proteção dosdireitos dos consumidores; Médiateur du Ci-nema (Lei de 29 de julho de 1982), que, sempoderes de decisão, vela pela manutençãoda livre concorrência na indústria cinema-tográfica; Autorité de Régulation des Télecom-munications (Lei de 26 de julho de 1996), do-tada de poderes regulamentares e sancio-natórios.

2) Autoridades Administrativas Indepen-dentes de Regulação da Informação e da Co-municação: Conseil Supérieur de l’Audivisuel –CSA (Lei de 17 de janeiro de 1989), compostode membros indicados pelo Presidente daRepública, pelo Senado e pela AssembléiaNacional, e dotado de poderes autorizatóri-os e sancionatórios sobre o setor televisivo eradiofônico, anteriormente monopolizadospelo Estado23; Conseil Supérieur de l’AgenceFrance-Presse (Lei de 10 de janeiro de 1957);Commission Paritaire des Publications et desAgences de Presse, criada por Decreto de 1950,destinada a proteger os benefícios e imuni-dades fiscais dos órgãos de imprensa; Com-mission des Sondages (Lei de 19 de julho de1977), encarregada da deontologia dos ins-titutos de pesquisa; Commission Nationale desComptes et des Financements Politiques, criadaem janeiro de 1990.

3) Autoridades Administrativas Inde-pendentes de Proteção contra a Adminis-tração Pública: Commission Nationale del’Informatique et des Libertes – CNIL (Lei de 6de janeiro de 1978), que controla as aplica-ções da informática às informações pesso-

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ais; Commission d’Accès aux Documents Ad-ministratifs – CADA (Lei de 17 de julho de1978), que vela pelo direito de acesso aosdocumentos e dados pessoais e que possuialguns pontos de conflitos de competênciacom a CNIL; Médiateur de la Republique (Leisde 3 de janeiro de 1973 e de 13 de janeiro de1989), semelhante a um ombudsman, despro-vido de poderes decisórios; Commission desInfractions Fiscales (Lei de 29 de setembro de1977), que tem como principal escopo as-segurar os contribuintes contra os abusosda persecução penal em matéria tributária.

4) Autoridades Administrativas Inde-pendentes de Avaliação da AdministraçãoPública: Comité National d’Évalution des Éta-blissements Publics à Caractère Scientifique,Culturel et Profissionel (Lei de 22 de janeirode 1990), em cujo colegiado participam di-versos representantes das universidades.

Podemos constatar que, segundo essaenumeração, nem todas as autoridades ad-ministrativas independentes francesas po-dem ser incluídas no conceito de autorida-des reguladoras, o que pressupõe a elabora-ção de regras e/ou aplicação de sançõesincidentes sobre setores não integrantes dopróprio Estado. Assim, poderíamos dizerque o conceito das nossas agências regula-doras independentes está contido no con-ceito de autoridades administrativas inde-pendentes francesas.

Podemos constatar também que, diver-samente das nossas agências reguladoras,o Poder Executivo não é o único órgão a in-dicar os membros dos seus respectivos cole-giados, o que não seria admissível no nossosistema presidencialista.

Todavia, algumas das orientações juris-prudenciais concernentes às autoridadesadministrativas independentes francesaspodem ser de grande valia para a avaliaçãode questões que também surgiram entre nós.

Uma das mais relevantes diz respeito àsubtração desses organismos à linha hie-rárquica da Administração central, vez quea Constituição da França, a exemplo, danossa, atribui ao Governo a determinação

da política nacional e da AdministraçãoPública (art. 20), ao passo que os dirigentesdas autoridades administrativas indepen-dentes são nomeados em caráter irrevogá-vel por determinado prazo de tempo.

O Conselho de Estado, em seus estudos,ou seja, não em sede jurisdicional, primei-ramente afirmou que “se integram sem difi-culdade no sistema político e administrati-vo francês”, e posteriormente recuou ao res-salvar que “as autoridades administrativasindependentes constituem uma categorianão prevista pela Constituição, e dificilmen-te conciliável com o equilíbrio de poderespor ela estabelecido” (apud HERRERO,2000, p. 190).

Apesar de o Conselho Constitucionalnunca haver tratado da questão especifica-mente, ao julgar matérias concernentes àsautoridades administrativas independen-tes, jamais inquinou a sua constitucionali-dade, afirmando que a direção da Adminis-tração central pode ser satisfeita pela possi-bilidade de desencadeamento dos contro-les jurisdicionais de legalidade. Já atestou,por outro lado, a possibilidade de o Legisla-dor extinguir uma autoridade administrati-va independente no curso do mandato dosseus dirigentes (HERRERO, 2000, p. 191).

A questão da confusão e acumulaçãonas autoridades administrativas indepen-dentes de poderes de diversa natureza tam-bém aflige a doutrina e a jurisprudênciafrancesa. Nicole Decoopman afirma que,“de um ponto de vista funcional, a confu-são de poderes geralmente caracteriza asautoridades administrativas independen-tes. Mesmo considerando que a leitura clás-sica da separação de poderes deve ser mati-zada, as autoridades administrativas inde-pendentes oferecem exemplos tópicos deinstâncias que dispõem de poderes os maisvariados e que são constantemente fortale-cidos” (1998, p. 251).

Quanto aos robustos poderes regulamen-tares dos quais a maioria dessas autorida-des é dotada, o Conselho Constitucional osadmitiu, mas, semelhantemente à doutrina

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norte-americana dos inteligible principles ,exige que a lei estabeleça critérios e princí-pios retores determinados para o seu desen-volvimento (HERRERO, 2000, p. 192-193),ressalvando ainda que a determinação daspolíticas públicas a serem implementadasdeve ficar a cargo do Governo, ou seja, daAdministração central (p. 191-192), quepode, inclusive, editar regulamentos na áreade competência da autoridade independente(GUÉDON, 1991, p. 44).

Como denota Jacques Chevallier, as au-toridades administrativas independentesforam aclimatadas ao arcabouço constitu-cional francês “graças a um trabalho de in-terpretação, notadamente jurisprudencial,objetivando aparar as arestas de algumasde suas particularidades e a suavizar algu-mas das suas asperezas, a fim de que fos-sem compatibilizadas com a arquitetura ins-titucional” (CHEVALLIER, 1998, p. 41).

5. Espanha

O surgimento de entidades de regulaçãodotadas de grande autonomia em relação àAdministração Pública central tambémvem, desde 1980, desafiando a doutrina ejurisprudência espanholas, que destacam ainspiração norte-americana do modelo (RA-MÓN, 1994, p. 576), sem esquecer das mar-cantes influências francesas e germânicas24.

A Espanha sempre contou com entida-des dotadas de personalidade jurídica ins-tituídas pelo Estado, que em seu conjuntosão denominadas Administração Instru-mental, termo equivalente à nossa Adminis-tração Indireta.

Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández (1999, p. 420), após des-tacar a “artificiosidade da personificação”das entidades instrumentais, que se man-têm sob a direção e controle da Administra-ção Central, que tem sempre a possibilida-de de recuperar a direção eventualmenteperdida mediante a substituição dos seusdirigentes, afirmam que desse quadro geralescapam algumas entidades recentemente

criadas que representam uma “vontadeconsciente de limitar a, de outra forma, in-condicionada disponibilidade das mesmas– e das funções a elas confiadas – por partedo Governo que estiver no poder, ou seja,uma vontade de ‘neutralizar’ politicamentea sua gestão, afastando-a, na medida dopossível, dos conflitos partidários”.

Com isso se pretende que “certas fun-ções de regulação e ordenação da vida soci-al, econômica ou cultural, ainda quandoestejam materialmente integradas no Exe-cutivo, sejam, de forma estável e permanen-te, subtraídas pelo Legislador da influênciaindiscriminada das maiorias políticas”(ORTIZ, 1994, p. 62).

As autoridades administrativas inde-pendentes espanholas foram criadas comopessoas jurídicas de direito público, apesarde haver setores da doutrina que sustentamque a personificação jurídica não é um dadoessencial do seu conceito, uma vez que po-dem existir órgãos despersonalizados aosque se atribuam as mesmas prerrogativasde autonomia25.

A doutrina espanhola é tranqüila em cri-ticar a adoção do termo “independente”,afirmando que o que ele quer expressar é,outrossim, uma autonomia real ou reforça-da em relação à que gozam as entidades daadministração instrumental (indireta) emgeral.

Referindo-se às autoridades administra-tivas independentes, Elisenda Malaret ob-serva que,

“apesar de a atribuição de personali-dade jurídica implicar sempre reco-nhecimento de um certo grau de auto-nomia, na hipótese agora considera-da a autonomia não é tanto a conse-qüência, mas uma das condições quegarantem a efetividade do cumpri-mento da tarefa atribuída. Evidente-mente, sempre que a personificaçãoseja acompanhada dos corresponden-tes recursos pessoais e financeiros eque o reconhecimento de poderes e arespectiva atribuição de competênci-

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as configure um âmbito de livre confi-guração sem a adoção de mecanismosadministrativos de controle ou de tu-tela” (MARALET).

Essa independência deve ser assegura-da tanto do ponto de vista orgânico – ga-rantias de incolumidade aos seus dirigen-tes – como funcional – proteção das suasdecisões contra os juízos políticos do Go-verno –, sem o que a entidade não poderáser caracterizada como uma autoridade ad-ministrativa independente.

Nesta senda, é mencionada a existênciade uma série de medidas e garantias de neu-tralidade desses organismos, qualificadas de

“garantias de caráter orgânico – entre asquais se inclui: a) a existência de umpluralismo nas instâncias de nomea-ção dos seus órgãos dirigentes; b) ainclusão de requisitos que suponhama despolitização dos dirigentes a se-rem nomeados; c) a tomada de deci-sões por órgãos colegiados; d) estabe-lecimento de prazo para o mandatodos dirigentes superior ao da legisla-tura; e) estabelecimento de causas ta-xativas que possam permitir a exone-ração dos dirigentes – e de garantiasde caráter funcional – entre as quais secita: a) a independência frente as de-cisões do Governo; b) a inexistênciade faculdades de direção típicas deuma relação hierárquica; e c) a inexis-tência de recurso ao Governo contraas decisões do organismo” [grifo nos-so] (NAVAJAS REBOLLAR, 2000, p.145-146).

Mais uma vez podemos verificar a se-melhança com que as questões constitu-cionais se colocam nos diversos países emrelação a essas autoridades ou agênciasindependentes.

Com efeito, também em Espanha as mai-ores dúvidas quanto à sua constitucionali-dade dizem respeito ao art. 97 da Consti-tuição Espanhola, que atribui ao Gover-no a direção de toda a AdministraçãoPública, colocando-se ainda dúvidas

quanto à possibilidade de exercerem pode-res regulamentares.

Em favor da constitucionalidade dasautoridades administrativas independen-tes, muitos setores doutrinários invocam oprincípio da imparcialidade da Adminis-tração Pública (art. 103, Constituição de Es-panha).

Todavia, José Ramón Parada Vásquezafirma, minoritariamente, que,

“além do desrespeito ao poder de di-reção do Governo sobre toda a Admi-nistração, há outra razão para descar-tar no constitucionalismo espanhol atécnica das administrações indepen-dentes: a Constituição espanhola obri-ga todas as Administrações a servircom ‘objetividade’ (...). Não cabe, porisso, que umas administrações sejammais objetivas e neutrais que outrasem razão das funções por elas de-sempenhadas. (...) Ademais, admitirque determinadas funções ou serviçospúblicos exigem garantias especiaiscontra o Governo significa aceitar quea regra é a do desrespeito da objetivi-dade e da imparcialidade, o que seriaconstitucionalmente inaceitável”(1994, P. 688-669).

A doutrina amplamente majoritária, con-tudo, afirma que as administrações inde-pendentes são compatíveis com o poder dedireção do governo, já que a Constituiçãopreceitua que este deve ser exercido na for-ma da lei, o que faz com que esta possa mo-delá-lo com maior ou menor intensidade,

“não se rompendo, em todo caso, oslaços com o Governo e o Parlamento,o que seria inconstitucional, mas se-ria sim um simples reforço da autono-mia de gestão para melhor implemen-tação de valores albergados pelaConstituição (pluralismo informativo,direito à intimidade, estabilidade eco-nômica...), valores que poderão sermelhor protegidos e satisfeitos se a suagestão for colocada a salvo das lutaspartidárias.

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Apenas nestes casos, isto é, quan-do a ‘neutralização’ inerente à ‘sepa-ração’ ou ‘independentização’ carac-terísticas desta figura seja exigidapela realidade, seja avalizada por umconsenso social e se apóie em algumvalor constitucional relevante, paracuja melhor implementação a reclame,poderá ser considerada constitucio-nalmente legítima a criação destasentidades de autonomia reforçada,autonomia que, de qualquer maneira,não poderá se traduzir em uma ruptu-ra total dos vínculos de união com oGoverno e o Parlamento. Tampouco,naturalmente, não poderá jamais levarà exclusão do controle jurisdicionalsobre as suas decisões” (GARCÍA EN-TERRÍA; FERNANDEZ, 1999, p. 423).

Quanto ao geralmente amplo poder re-gulamentar atribuído às autoridades admi-nistrativas independentes, devemos fazeruma distinção. Há questões que tradicional-mente sempre são postas quanto à amplitu-de do poder regulamentar da Administra-ção Pública, inclusive das entidades daAdministração Pública Instrumental. Toda-via, deparamo-nos também com questõesespecíficas relacionadas à atribuição depoder regulamentar às entidadeS adminis-trativas independentes, não subordinadasao Governo, desvestidas, portanto, aindaque indiretamente, da legitimidade demo-crática da qual este é investido e que nor-malmente é exercida por meio da livre exo-neração dos dirigentes das entidades daadministração instrumental – cuja inadmis-sibilidade (da livre exoneração) é a princi-pal nota caracterizadora das autoridadesadministrativas independentes.

O Tribunal Constitucional espanhol,consolidando a posição inicialmente ado-tada na STC 135/92, decidiu na STC 133/97 serem constitucionais as atribuições depoder regulamentar às autoridades admi-nistrativas independentes, desde que hajahabilitação legal específica (MAGIDE HER-RERO, 2000, p. 435-450).

Analisando a questão de forma seme-lhante à orientação do Conselho Constitu-cional Francês vista no item anterior, Lucia-no Parejo Alfonso afirma que “é imprescin-dível que a atribuição às autoridades admi-nistrativas independentes de um poder nor-mativo seja objeto de uma habilitação legal(formal) expressa e determinada (no senti-do de delimitadora do âmbito, caráter e al-cance do respectivo poder normativo). Asautoridades independentes são, pois, orde-namentos apoiados em outro ordenamento,possuindo, portanto, natureza derivada”(1994, P. 651).

Devemos observar que as autoridadesadministrativas independentes não são umfenômeno homogêneo, havendo, ao revés,grandes disparidades entre elas em funçãodos distintos graus de “autonomia reforça-da” que lhes é assegurada, o que inclusiveleva a um sem-número de divergências dou-trinárias quanto à inclusão desta ou daque-la entidade na categoria.

A exemplo da França, as autoridadesadministrativas independentes espanholasnão se limitam à seara econômica, incidin-do também sobre a seara dos direitos fun-damentais.

Existem posições mais amplas, que in-cluem na categoria entidades sem funçõesregulatórias, mas cuja autonomia é consti-tucionalmente assegurada, como as univer-sidades (GARCÍA ENTERRÍA; FERNAN-DEZ, 1999, p. 421-422); e mais restritivas,que contemplam apenas as entidades regu-ladoras que possuem um grau bastante ele-vado de autonomia.

Podemos adotar, não sem algumas críti-cas, a posição intermediária de Miguel Na-vajas Rebollar (2000, p. 151-160), para quema Espanha teria as seguintes autoridadesadministrativas independentes:

1) Banco de Espanha, que, na forma dasLeis nºs 13/94 e 12/98, vem gozando de umacrescente autonomia, mormente em funçãodas diretivas européias concernentes ao sis-tema financeiro; 2) Comisión Nacional delMercado de Valores, criada pela Lei nº 24/98,

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dotada de um amplo poder regulamentar;3) Consejo de Seguridad Nuclear, criada pelaLei nº 15/80, é considerada a primeira au-toridade administrativa independente espa-nhola26; 4) Agencia de Protección de Dados, atu-almente disciplinada pela Lei nº 15/99; 5)Comisión del Mercado de las Telecomunicacio-nes, cujos poderes normativos, apesar de nãoserem explícitos, foram sendo afirmadospela doutrina (SALA ARQUER, 2000, p. 70-75); 6) Comisión Nacional de Energia, criadapela Lei nº 34/98 para regular o setor dehidrocarburetos – a indústria petrolífera emgeral –, sendo asseguradas aos seus diri-gentes amplas garantias funcionais; 7) EntePúblico Radio Television Española, objeto daLei nº 4/80, que por muitos não é conside-rado uma autoridade administrativa inde-pendente por não ser um ente regulador, massim prestador de serviços de radiodifusão.

A maioria da doutrina não considera aComisión del Sistema Eléctrico Nacional umaautoridade administrativa independente, vezque o Governo pode revogar ou suspender assuas decisões tanto nos aspectos de legalida-de como de conveniência e oportunidade27.

Vemos assim que as autoridades admi-nistrativas espanholas – nem sempre regu-ladoras (p. ex., Ente Público Radio TelevisionEspañola) –, apesar de serem em número bemmais reduzido que as francesas, incidemsobre várias áreas sensíveis do ponto de vis-ta dos valores tutelados constitucionalmen-te, o que justifica o reforço da autonomiaorgânica e funcional, inclusive normativa,a elas assegurado.

6. Itália

A Itália vem acompanhando o movimen-to europeu de criação de autoridades ad-ministrativas independentes, sendo sempredestacada a relevância que o instituto ad-quiriu após a desestatização de uma sériede serviços até então prestados diretamentepelo Estado, não olvidado, contudo, o rele-vante papel que desempenham também natutela de direitos fundamentais28.

A importância do estudo das autorida-des administrativas independentes da Itá-lia se deve em grande parte ao fato de a dou-trina desse país ser uma das mais ricas ecriativas na matéria, razão pela qual nãopodemos dela prescindir, vez que nos podenos fornecer elementos essenciais para oesclarecimento de algumas das nossas per-plexidades com as agências reguladorasindependentes brasileiras.

A riqueza da doutrina italiana faz comque haja uma enorme quantidade de cor-rentes acerca das entidades administrativasindependentes. Uma primeira e grande di-ferença de perspectiva é dada por aqueles quea vêem como um quarto poder e aqueles que aintegram entre as funções administrativas29.

Afirmam os primeiros, partindo do pres-suposto de que as autoridades independen-tes exercem parte dos poderes normativosordinariamente exercitáveis pelo Parlamen-to e restringem as competências do Gover-no, que “tornou-se impossível a inclusãodas autoridades em questão ao âmbito dequalquer um dos tradicionais poderes doEstado” (FRANCHINI, 2000, p. 281-282).

A tese foi, no entanto, refutada pela Cor-te Constitucional Italiana. Em uma dessasdecisões, asseverou que “a independênciada Autoridade deve ser vista não como umaseparação do ordenamento geral, mas, emoutros termos, como ‘a expressão de umaprofunda transformação das concepçõesrelativas à intervenção do Estado na econo-mia, imposta pela necessidade de determi-nadas atividades econômicas se desenvol-verem sob o controle de autoridades imparci-ais, em posição de eqüidistância em relaçãoaos interesses públicos e privados em jogo’”30.

Claudio Franchini, bem ao estilo da teo-rização e profundidade características dadoutrina italiana, vê

“na base da difusão deste novo mo-delo organizativo um fenômeno par-ticular: aquele da dissociação entre aalocação formal do poder e o efetivoexercício que se verifica por razõespolíticas, econômicas ou burocráticas.

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Com efeito, geralmente as decisões, emvez de derivarem livremente dos seusatores formais, são expressões de umasérie de elementos que se produzemem diversos níveis e condicionam defato, às vezes de maneira definitiva, adecisão final: é notório que, freqüen-temente, numerosos sujeitos – dospartidos aos sindicatos, dos gruposde pressão à burocracia, das grandesempresas às instituições financeiras– influem as decisões do Estado: emconseqüência, se verifica que nem sem-pre a sede formal do poder coincide comaquela do seu real exercício”31,32.

Conclui o jurista italiano afirmando quecontra as ingerências ilegítimas sobre osprocessos decisórios da Administração Pú-blica, notadamente naqueles setores social-mente sensíveis, demandou-se a instituiçãode entidades que “exercessem as suas fun-ções sem condicionamentos ou interferên-cias de quem quer que seja, públicos ou pri-vados” (FRANCHINI, 2000, p. 279).

Comparando as autoridades administra-tivas independentes com os outros entesinstrumentais do Estado (equivalentes àsnossas entidades da Administração Indire-ta), que acabaram vinculados à Adminis-tração central de forma quase absoluta, Vi-cenzo Cerulli Irelli afirma que “fenômenodiverso é aquele mais recente das autorida-des administrativas independentes, dota-das ou não de personalidade jurídica, insti-tuídas por lei para disciplinar setores daadministração em sentido substancial, se-gundo modelos organizativos e funcionais detodo desvinculados de quaisquer relaçõescom a organização ministerial” (1997, p. 230).

É destacada a heterogeneidade das au-toridades administrativas italianas, haven-do ainda, como não poderia deixar de ser,divergências quanto a enumeração das en-tidades que integram o seu rol.

Pensamos poder adotar a enumeraçãoelaborada por Filippo ROMANO (2000,p. 25-43) que possui a completude neces-sária para expressar a importância des-

sas entidades no Direito Público Italiano.Vejamo-la33:

1) Difensore Civico Regionale, DifensoreCivico Comunale e Difensore Civico Provinci-ale: equivalente ao ombudsman escandinavo,é um órgão monocrático incumbido de pro-teger os direitos dos cidadãos perante asadministrações regionais, atuando de ma-neira precipuamente informal e preventivade conflitos. É displinado pelas Leis de cadaregião (por exemplo, a Lei reg. Lazio 17/80), que, naturalmente, dão diversos contor-nos aos seus respectivos Difensores Civicos.

2) Autorità Garante della Concorrenza e delMercato (o Antitrust): criada pela Lei nº 287/90 para proteger o livre mercado e a concor-rência, é dirigida por um colegiado cujosmembros são nomeados por determinaçãoem comum acordo dos Presidentes das Câ-maras entre integrantes das categorias pro-fissionais enumeradas na lei (magistrados,professores universitários etc.). Com exce-ção do seu Secretário-Geral, que é nomeadopelo Ministro da Indústria, o Poder Executi-vo não tem qualquer outra ingerência sobrea autoridade independente em questão.

3) Autorità per l’Energia Elettrica ed il Gas:criada pela Lei nº 481/95, compõe, junta-mente com a Autorità per le Garanzie nelleComunicazioni, o grupo das autoridades in-dependentes reguladoras de serviços públi-cos, cuja criação adveio da desestatizaçãodos respectivos setores. Os Autorità perl’Energia Elettrica ed il Gas são nomeados peloPresidente da República para um prazo desete anos sem recondução, após prévia deli-beração do Conselho de Ministros e a apro-vação da Comissão Parlamentar do setor.

Um ponto interessante da Autorità perl’Energia Elettrica ed il Gas e que pode trazeruma contribuição para o legislador brasi-leiro é o sistema de incompatibilidades, aquarentena imposta pela lei aos seus diri-gentes. Por um prazo de quatro anos, nemos ex-dirigentes ou seus parentes próximospodem ter qualquer espécie de relação comas empresas do setor regulado, sendo que,em caso de inobservância da quarentena,

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tanto o ex-dirigente como a empresa que ocontratou devem sofrer sanções pecuniárias.

4) Autorità per le Garanzie nelle Comunica-zioni: possui os mesmos traços da Autoritàper l’Energia Elettrica ed il Gas, sendo disci-plinada pela mesma Lei nº 481/95 e pelaLei nº 249/97. O seu Presidente é nomeadopelo Presidente da República por propostado Ministro das Telecomunicações. Os seusdemais membros dirigentes são escolhidospelo Parlamento. A ela compete a regulaçãodos serviços de telecomunicação e da im-prensa em geral.

5) Garanti dei dati Personali (Lei nº 31/96): o Garanti dei dati Personali é um órgãocolegiado, composto de quatro membros,dois deles eleitos pela Câmara dos Deputa-dos e dois pelo Senado da República, e, naforma disposta na própria lei institutiva, atuacom plena autonomia e independência.

O ente tem como função disciplinar o tra-tamento dos bancos de dados pessoais, es-pecialmente aqueles informatizados, ditan-do as normas para a sua instituição, coibin-do abusos, emitindo autorizações para insti-tuição de bancos cujos dados sejam conside-rados sensíveis, fomentar a auto-regulamen-tação dos operadores de bancos de dados etc.

6) Comissione di Garanzia per l’Attuazionedella Legge sull’Esercizio del Diritto di Sciope-ro (Lei nº 146/90): a Comissão possui novemembros nomeados pelo Presidente da Re-pública por designação do Parlamento deespecialistas em Direito Constitucional, Di-reito do Trabalho e relações industriais. A suafunção é atuar na composição e solução deconflitos coletivos de trabalho, inclusive nosque envolvam o exercício do direito de greve.

7) Autorità per la Vigilanza sui Lavori Pub-blici (Lei nº 109/94): demonstrando a hete-rogeneidade das razões que levam à insti-tuição de autoridades independentes na Itá-lia, à Autorità per la Vigilanza sui Lavori Pub-blici é atribuída a função de zelar pelo es-correito andamento das obras públicas. Écomposta de cinco membros nomeados con-juntamente pelos Presidentes da Câmara edo Senado.

8) Autorità per l’Informatica nella PubblicaAmministrazione (D. L. 39/93): composta decinco membros nomeados após deliberaçãodo Conselho de Ministros, é encarregada dacoordenação e planejamento das iniciativase investimentos estatais em informática, in-clusive sobre as aquisições governamentaisno setor. Atua com autonomia técnica e fun-cional e independência decisória.

9) Commissione Nazionale per le Società e laBorsa – CONSOB (Lei nº 281/85): é uma daspoucas autoridades administrativas inde-pendentes italianas dotadas de personali-dade jurídica, composta de quatro membrosnomeados pelo Presidente da Repúblicaapós deliberação do Conselho de Ministros.É incumbida da regulação do mercado devalores mobiliários, sendo dotada inclusi-ve de elevado poder regulamentar sobre osagentes do setor.

10) Instituto Superiore per la Vigilanza sul-le Assicurazioni Private – ISVAP (Lei nº 576/82): também é dotado de personalidade ju-rídica, sendo o seu Presidente nomeado peloPresidente da República após deliberaçãodo Conselho de Ministros por proposta doMinistro da Indústria. Regula o mercado deseguros, velando pela sua eficiência, estabi-lidade e solvabilidade. É, contudo, sujeito àtutela do Ministério da Indústria.

A enumeração elaborada é oriunda deuma concepção abrangente das autoridadesadministrativas independentes. Há autoresque, a exemplo de Vicenzo Cerulli Irelli(1997, p. 233), entendem que qualquer vín-culo com a Administração Pública desna-tura a sua independência. Para esses auto-res, seriam autoridades administrativas in-dependentes apenas aquelas em cuja nome-ação dos membros a Administração Públi-ca ou o Governo sequer participassem, como que guardariam uma posição bastante se-melhante à do Conselho de Estado e da Cor-te de Contas.

É isso que leva muitos autores a susten-tarem a existência de autoridades adminis-trativas semi-independentes, corresponden-tes àquelas em que, malgrado a existência

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de mandatos irrevogáveis ad nutum, os seusdirigentes são nomeados pelo Governo ouas suas funções se submetem a qualquerespécie de controle ministerial (AMATO,1997, p. 645-664).

Outros autores, outrossim, afirmam quea nomeação pelo Parlamento não deve sercolocada como condição da caracterizaçãocomo autoridade independente, vez quepode, tanto quanto a nomeação feita peloGoverno, estar imbuída de critérios políti-cos. Essa posição dá relevo, outrossim, aosrequisitos de nomeação e à autonomia orgâ-nica e funcional da qual os entes enumera-dos são dotados34 (ROMANO, 2000, p. 40).

Algumas das discussões mais canden-tes na Itália, até mesmo pela amplitude dofenômeno das suas autoridades indepen-dentes, que, como visto, diversamente do quese dá entre nós, abrangem entes cujos diri-gentes são nomeados diretamente pelo Po-der Legislativo, não possuindo qualquervínculo com a Administração Pública, di-zem respeito à sua constitucionalidade fren-te ao seu sistema parlamentar de responsa-bilidade do Governo pelos órgãos e entesadministrativos.

Como justificativa para essa certa exce-ção ao seu sistema parlamentar, os argu-mentos são vários, fulcrando-se principal-mente no princípio da imparcialidade daAdministração Pública (art. 97, ConstituiçãoItaliana) (MASSERA, 1988, p. 453) ou na ne-cessidade de especial tutela de valores cons-titucionais de maior sensibilidade, seja a li-vre concorrência, o direito à intimidade dosdados pessoais etc (LONGO, 1996 p. 14-15).

7. Argentina

O estudo dos entes reguladores argenti-nos é relevante tendo em vista a raiz comumque Argentina e Brasil possuem na matéria.De fato, lá, como aqui, o surgimento de en-tidades reguladoras dotadas de um especialperfil institucional se iniciou com o processode desestatização a partir de 1989 (BIANCHI,2001, p. 201) concentrando-se nos setores pri-

vatizados35, não abrangendo, ao contrário daexperiência européia, entes de garantia dedireitos fundamentais, também não possuin-do a acentuada heterogeneidade institucio-nal que se verifica nos países europeus, como que se reduzem consideravelmente as dis-cussões que a respeito deles surgem.

A exemplo das nossas agências regula-doras, os chamados “entes reguladores”argentinos “possuem a condição jurídicaprópria das entidades autárquicas, tratan-do-se de descentralizações jurídicas do Es-tado, de cuja natureza pública participam,pertencendo, na realidade, à sua organiza-ção administrativa, apesar de possuírempersonalidade jurídica diferenciada” (CAS-SAGNE, 1994, p. 152).

Existe, todavia, uma diferença funda-mental dos entes reguladores argentinos emrelação às agências reguladoras brasileiras.As nossas agências reguladoras, apesar denão possuírem alguns traços atípicos dasautoridades administrativas independenteseuropéias, são dotadas de uma especial au-tonomia frente à Administração central doEstado, consistente principalmente na ve-dação da exoneração ad nutum dos seus di-rigentes e sujeição a uma supervisão minis-terial bastante atenuada. Já os entes regula-dores argentinos, malgrado possuírem al-guns traços institucionais especiais, mor-mente quanto aos requisitos técnicos dosseus dirigentes, não se revestem de garanti-as funcionais para os seus dirigentes ou deproteções da sua esfera competencial emface da supervisão ministerial.

O fundamento constitucional específicodos entes reguladores da Argentina está noterceiro parágrafo do art. 42 da sua Consti-tuição, que dispõe: “La legislación estableceráprocedimientos eficaces para la prevención y so-lución de conflictos, y los marcos regulatorios delos servicios públicos de competencia nacional,previendo la necesaria participación de las asocia-ciones de consumidores y usuarios y de las pro-vincias interesadas, en los organismos de control”.

Agustín GORDILLO (2000, p. VII18-VII20), certamente um dos maiores adminis-

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trativistas da América Latina, lamenta, to-davia, a distância existente entre o preceitua-do no dispositivo constitucional e as leis ins-tituidoras dos entes reguladores, o que fazcom que na prática sejam comuns, por exem-plo, os recursos de alzada (correspondentes aosnossos recursos hierárquicos impróprios),julgados pelos Ministros de Estado contra atospraticados pelos entes reguladores36.

O autor portenho enumera de maneiranão exaustiva como entes reguladores o EnteNacional Regulador de la Electricidad – ENRE(Lei nº 24.065), Ente Nacional Regulador DelGas – ENERGAS (Lei nº 24.076), ComisiónNacional de Comunicaciones – CNC (Decretonº 660/96), Ente Tripartito de Obras y Servici-os Sanitários – ETOSS (Lei nº 23.696), Comisi-ón Nacional de Correos y Telégrafos – CNTC,Comisión Nacional de regulación del Transpor-te (Decreto nº 660/96), Organo de Control delas Concessiones de la Red de Acessos a la Ciu-dad de Buenos Aires – OCRABA (Decreto nº1994/93), Ente Nacional Regulador Nuclear(Decreto nº 1504/94), Comisión Nacional deValores (Decreto-Lei nº 17.811), Superinten-dencia de Seguros de la Nación (Lei nº 20.091),Superintendencia de Administradoras de Fon-dos de Jubilaciones y Pensiones (Lei nº24.241), Comisión Nacional de Comercio Exte-rior (Decreto nº 766/94), etc (GORDILLO,1998, p. XV2-XV3).

Da enumeração podemos constatar quemuitos dos entes reguladores foram criadospor Decreto do Poder Executivo, o que, alémdas indagações quanto à sua inconstitucio-nalidade37, deixa fora de dúvidas a sua par-ca ou nenhuma autonomia, uma vez que,pelo Princípio do Paralelismo das Formas,podem ser extintos a qualquer momento porato (Decreto) do Poder Executivo.

Quanto à inamovibilidade, elemento es-sencial para a eventual caracterização comoentes “independentes”, a disciplina legis-lativa é bastante díspare, mas, em geral, sepode afirmar que os integrantes dos seuscolegiados diretores são exoneráveis ad nu-tum. Apenas os dirigentes da Comisión Naci-onal de Comunicaciones – CNC podem ser

exonerados por descumprimento de suasfunções38. Em relação aos dirigentes do EnteNacional Regulador de la Electricidad – ENREe do Ente Nacional Regulador Del Gas – ENER-GAS, a lei não estabelece condições para aexoneração, dispondo tão-somente que oPoder Executivo os exonerará por ato moti-vado previamente comunicado a uma co-missão parlamentar bicameral39.

Também na Argentina é reconhecida amultiplicidade de funções conferidas aosentes reguladores, sendo que especiais con-trovérsias despertam as suas amplas com-petências regulamentares, condicionadas,no entanto, aos standards40 que devem serpreviamente fixados pela lei formal regula-mentada. Neste sentido, Daniel M. Nallarentende que seria “ilógico aceitar as compe-tências do Legislador para criar entidadesdescentralizadas e ao mesmo tempo imporlimites à atribuição de competências e fa-culdades a estas entidades por parte doCongresso” (1999, p. 90).

Podemos ver, portanto, que, se os entesreguladores argentinos são competencial-mente bastante semelhantes às nossas agên-cias reguladoras, dela se distinguem pelaausência de uma autonomia reforçada emrelação às demais autarquias, o que é deno-tado pela possibilidade de exoneração adnutum dos dirigentes da maior parte delas ede interposição do recurso de alzada.

8. Conclusões

O nosso objetivo foi o de abordar o fenô-meno dos órgãos ou entidades independen-tes de regulação nos países cujo direito po-sitivo, doutrina e jurisprudência podem for-necer maiores contribuições para destrin-char as questões que são colocadas às agên-cias reguladoras brasileiras. Não nos pro-pusemos a tratar do fenômeno em todos ospaíses em que se verifica, a exemplo do Ca-nadá41, Irlanda, Suíça, Suécia, Áustria, Ale-manha42 e Portugal43, ou a analisar a impor-tância desses entes independentes para aestruturação da integração européia44.

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Ao longo de cada Tópico, já chegamos aalgumas conclusões parciais. No ponto aque chegamos, podemos, todavia, sintetizaralguns aspectos comuns aos países anali-sados: (a) a “independência” de que sãodotados consiste na realidade em uma au-tonomia reforçada em relação ao aparatotradicional da Administração Direta e Indi-reta; (b) a restrição ao poder de exoneraçãodos dirigentes dos órgãos ou entidades in-dependentes de regulação não compromete opoder de direção do Governo, sendo este com-preendido nos termos das respectivas leis cri-adoras; (c) todos eles concentram poderes fis-calizatórios, sancionatórios, compõem con-flitos e editam regulamentos; e (d) os amplospoderes regulamentares que geralmente pos-suem são admitidos desde que a lei fixe osstandards em que deverão se desenvolver.

Constatamos, assim, que a maioria dasquestões hermenêuticas existentes em rela-ção às nossas agências reguladoras inde-pendentes também foram suscitadas nosdemais países em que esse modelo organi-zativo foi adotado, onde foram dadas solu-ções jurisprudenciais bastante semelhantes.É importante notar, inclusive, o importantepapel que a jurisprudência teve em compa-tibilizar tais entes ao arcabouço constituci-onal de cada país, desmistificando algumasperplexidades iniciais da doutrina.

Tudo indica que a jurisprudência doSupremo Tribunal Federal – STF está a tri-lhar a mesma senda, já tendo reconhecido aconstitucionalidade do modelo de autono-mia reforçada inerente às agências regula-doras45, assim como a legitimidade da ve-dação da exoneração ad nutum dos seus di-rigentes enquanto vigente o prazo dos res-pectivos mandatos.

As restrições ao poder de livre nomea-ção e exoneração pelo Chefe do Poder Exe-cutivo, principal nota característica da sua“independência”, foram consideradas cons-titucionais pelo Supremo Tribunal Federalno julgamento da Medida Cautelar pedidana ADIN nº 1949-0. A primeira em virtudede o art. 52, III, “f”, da Constituição Federal

admitir a prévia aprovação do Senado Fede-ral na escolha de “titulares de outros cargosque a lei determinar”. Quanto à constitucio-nalidade da vedação da exoneração ad nutumdos dirigentes das agências reguladoras in-dependentes, o Supremo entendeu que nãoviola as competências do Chefe do Poder Exe-cutivo, admitindo a exoneração apenas porjusta causa e mediante o prévio procedimen-to administrativo, assegurado o contraditó-rio e a ampla defesa, ou se advier a mudançada lei criadora da agência independente46.

Notas

1 Observe-se que o Direito inglês não elaboroua figura da personalidade jurídica de direito públi-co, razão pela qual é despicienda a discussão acer-ca da personificação jurídica ou não das suas agên-cias reguladoras.

2 Alguns autores afirmam que a gênese da in-dependência das Agências reguladoras está no es-pírito auto-regulatório e juridicamente pluralistadas comunidades inglesas, reminiscência, talvez,das guildas medievais. As funções dessas peque-nas auto-organizações sociais teriam-se tornado tãovultosas e complexas que se impôs a criação de umgoverno em miniatura, uma agência (cf. PROSSER,1997, p. 34, 37).

3 Na área regulatória, os principais setores atin-gidos no primeiro momento, ainda nas dinastiasTudor e Stuart, foram o mercado exterior, a quali-dade de produtos, emprego, agricultura e uso dosolo. Na regulação das public utilities, merece desta-que a criação da Board of Trade, criada pelo The EletricLighting Act de 1882 (cf. PROSSER, 1997, p. 33, 37).

4 Ao contrário das independent agencies norte-americanas, geralmente não são criadas pelo Parla-mento, mas por “cartas reais” ou decisões ministe-riais (cf. Quermonne, 1991, p. 255).

5 Em sentido contrário, afirmando a grande se-melhança dos quangos reguladores às Agências in-dependentes americanas, ver, Howard Machin(1988, p. 250).

6 Howard Machin observa, contudo, que, apósuma série de escândalos, tem-se novamente reafir-mado a independência dessas autoridades.

7 É inegável o fato de que os EUA se abebera-ram da tradicional organização policêntrica ingle-sa, o que certamente contribui para obstar a intensi-dade dos preconceitos contra as suas primeiras agên-cias independentes (cf. PROSSER, 1997, p. 40 -).

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8 Bernard Schwartz, (1950, p. 6 - 7). O objetivodas agências reguladoras não era o de limitar oMercado, mas sim o de organizá-lo e racionalizá-lo, evitando inclusive a concorrência predatória e odesperdício de recursos, como ocorreria, por exem-plo, se fossem construídas várias ferrovias no mes-mo percurso.

9 Para uma classificação das agências no Direi-to Norte-Americano, ver Ángel Manuel MorenoMolina, (1995, p. 44 -), destaca inclusive a existên-cia de agências independentes que não são regula-doras, mas meramente executivas (p. 64 - 65). Po-demos observar inclusive que, na década de 70,proliferaram as agências encarregadas de prestarassistência social.

10 Citação feita por Peter Strauss em Conferên-cia proferida no Seminário Internacional de Direito,realizado na Fundação Armando Álvares Pentea-do, São Paulo, em 2000.

11 Vê-se, portanto, que a independência de gran-de parte das agências reguladoras norte-america-nas não é total, sendo, inclusive, mais próprio fa-lar-se em autonomia, que, por definição, semprepossui balizamentos.

12 “Essa inversão marca a mudança de atitudedo Tribunal face aos poderes do Executivo. Não setrata tanto de fixar os limites do poder do Executi-vo, mas de definir os limites do poder do Legislati-vo em relação ao âmbito do Poder Executivo, preci-samente para resguardar o exercício coordenadoda direção política que ao Presidente compete parazelar pela execução das leis. O Tribunal foi conclu-sivo: ‘precisely because they exercise a substancial functi-on in the administration and enforcement of public law,those agencies are to be numbered among the Depart-ments’” (RODRIGUEZ, 1994, p. 45 – os trechos eminglês constam do original).

13 O autor, citando Bernad Schwartz, destaca oparadoxo a que essa orientação pode levar, umavez que pode representar a possibilidade de o Con-gresso impor limitações às exonerações dos diri-gentes de quaisquer agências, ainda que sejam pu-ramente executivas.

14 Eloísa Carbonell e José Luis Muga, (1996, p.43 – 47). Essa disciplina, apesar de ter reduzido aliberdade das agências independentes na elabora-ção de “regulamentos de aplicação geral significa-tiva”, não acarretou o fim da distinção entre elas eas agências desprovidas de independência, umavez que aquelas continuam fora da linha hierárqui-ca do Poder Executivo, que não pode ditar-lhesordens diretamente, possuindo, como visto, influ-ência apenas sobre alguns regulamentos, não podeexonerar ad nutum os seus dirigentes etc.

15 “A expressão apareceu pela primeira vez naLei de 6 de janeiro de 1978 relativa à informática,arquivos e liberdades, a propósito da CommissionNationale de l’Informatique et des Libertes – CNIL (art.

8 da Lei). A atribuição de independência a organis-mos públicos não é totalmente nova (CommissionCentrale des Banques, criada em 1941, posteriormen-te substituída). Mas foi a partir dos anos 70 que adoutrina começou a colocar na categoria das auto-ridades administrativas independentes organismosdiversos, dotados, no entanto, de algumas caracte-rísticas semelhantes”, (VAN LANG, 1999, p. 37).

16 Como demonstração de que a recente legisla-ção brasileira das agências reguladoras se abebera,não apenas na experiência norte-americana, comotambém nas recentes construções legislativas e dou-trinárias européias, cuja escola do Direito Admi-nistrativo integramos, é digno de nota o art. 9º daLei Geral de Telecomunicações – Lei nº 9.472/97 –, que dispõe que a Agência Nacional de Telecomu-nicações – ANATEL “atuará como autoridade ad-ministrativa independente”. A mesma qualificação éutilizada pelo art. 1º , § 2º do Projeto de Lei decriação da Agência Nacional de Defesa do Consu-midor e da Concorrência, atualmente submetido àconsulta pública pela Casa Civil da Presidência daRepública. Todavia, tal como se dá entre nós, tal“independência” é relativizada, sendo identificadamais propriamente como uma “autonomia” maisefetiva, mais reforçada do que a dos demais orga-nismos apenas nominalmente “autônomos” (cf.TEITGEN-COLLY, 1988, p. 50).

17 O Conselho de Estado, por exemplo, já deci-diu que, mesmo sem possuírem personalidade jurí-dica, podem, em razão da sua autonomia, “acionaro Poder Judiciário sem terem que se fazerem repre-sentar por um Ministro” (CHAPUS, 1999, p. 218).

18 Valemo-nos aqui das lições de JacquelineMorand-Deviller, (1996, p. 107).

19 Jean-Louis Quermonne (1991, p. 253). Aonosso ver, essa afirmação deve ser matizada, umavez que, ao tratarmos especificamente de algumasautoridades administrativas independentes, pode-remos verificar mecanismos de tutela ou supervi-são ministerial bastante fortes, podendo chegar, porexemplo, no caso extremo da Commission des Opera-tions de Bourse – COB, à submissão de algumas dassuas decisões à aprovação do Ministro (cf. CHA-PUS, 1999, p. 218).

20 Mariano Magide Herrero, (2000, p. 187-188).Para uma profícua exposição das duas posiçõesver Jean-Louis Quermonne, (1991, p. 259).

21 Já vimos que na França a ausência de perso-nalidade jurídica é considerada requisito da qua-lificação dos organismos como autoridades admi-nistrativas independentes.

22 Para uma análise pormenorizada das rela-ções entre o Banque de France e a Commission Bancai-re , assim como das suas respectivas naturezas jurí-dicas, ver Mariano Magide Herrero, (2000, p. 193).

23 O Conseil Supérieur de l’Audivisuel – CSA é osucessor de uma série de organismos independen-

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tes anteriores que, todavia, foram extintos, por te-rem sido colocados sob suspeita de parcialidade(MORAND-DEVILLER, 1996, p. 117).

24 Eduardo García Enterría e Tomás-Ramón Fer-nández, (1999, p. 420). Também merece nota o fatode as autoridades administrativas independentesnão se sujeitarem à Ley Orgánica de Funcionamientode la Administración General del Estado, a conhecidaLOFAGE.

25 Mariano Magide Herrero, (2000, p. 33-34). Aautora destaca, inclusive, que na França todas asautoridades administrativas independentes sãodespersonalizadas.

26 Por essa razão – foi criada quando as autori-dades administrativas independentes ainda “nãoestavam na moda” – foram muito ricos os debatesparlamentares que envolveram a sua instituição,sendo interessante observar, já que as autoridadesou agências independentes são muitas vezes indi-cadas como obra do neoliberalismo, que foi justa-mente a bancada comunista que mais lutou pelamaior autonomia possível do Consejo de Seguri-dad Nuclear (cf. RODRIGUEZ, BETANCOR, (1994,p. 111 et seq.).

27 Eduardo García Enterría e Tomás-Ramón Fer-nández, (1999, p. 422). Em sentido contrário, parteda doutrina afirma que a Comisión del Sistema Eléc-trico Nacional apenas se encontra em um nível infe-rior de autonomia reforçada, já que, de qualquerforma, foram conferidas garantias orgânicas aosseus dirigentes (cf. ALVAREZ GRACÍA; DUARTEMARTÍNEZ, 1997, p. 110). Ao nosso ver, comoacima já mencionamos, a caracterização de deter-minada entidade como autoridade administrativaindependente só pode se dar pela conjunção dasgarantias de autonomia orgânicas e funcionais.Como o Governo pode revogar ou anular livremen-te as suas decisões, não possui garantia funcional,elemento indispensável para que pudesse ser ca-racterizada como autoridade administrativa inde-pendente.

28 Nesa passagem é bom lembrarmos que omodelo das autoridades administrativas indepen-dentes, adotado também pela Itália, é mais amplodo que o das nossas agências reguladoras indepen-dentes, que nele estariam contidas.

29 Ao contrário do que se deu em nosso país, emque as agências reguladoras independentes foramdesde logo denominadas autarquias, o que deixouclaro o seu vínculo e integração à Administração,mesmo que com efetiva autonomia.

30 C.d.S., Comm. Spec., parere 29-5-1998, nº988 /97 .

31 Claudio Franchini, (2000, p. 278). Na mesmapassagem, o autor observa, no entanto, que o fenô-meno não é novo, que desde o início do século pas-sado era advertida a necessidade de neutralizaçãoda Administração Pública. Esses problemas teri-

am sido, todavia, agravados, sublinha o autor, pelacomplexização das funções estatais nas esferas eco-nômicas e sociais.

32 Alguns autores vêem a proliferação das au-toridades independentes na Itália também comouma decorrência da desmoralização de uma Ad-ministração Pública envolvida por escândalos decorrupção e de ligações com a máfia (verbi gratia ,ARCIDIACONO, Luigi. Governo, autorità indipen-denti e pubblica amministrazione. Le Autorità indi-pendenti: da fattori evolutivi ad elementi della tran-sizione nel diritto pubblico italiano. Milano Giuffrè:1999. p. 72-78).

33 Observamos que várias das entidades inde-pendentes enumeradas advêm da fusão ou datransformação de autoridades igualmente indepen-dentes já existentes anteriormente.

34 Note-se que no Brasil a discussão é despicien-da, uma vez que a natureza autárquica das agênci-as reguladoras, com a conseqüente inclusão naAdministração Indireta, e a necessidade de obser-vância das políticas públicas traçadas pela Admi-nistração central deixam fora de dúvidas a sua in-tegração ao Poder Executivo, ainda que dotadasde uma especial autonomia “reforçada” em com-paração com as demais entidades da Administra-ção Indireta.

35 Para uma ampla exposição do processo dedesestatização argentino, ver Chirillo, Eduardo J.Rodríguez. Privatización de la empresa pública y postprivatización, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994.

36 Note-se que Juan Carlos Cassagne chega acolocar a possibilidade de interposição de recursosde alzada como uma das características comuns quese extraem do regime jurídico dos diversos entesreguladores (cf. Cassagne, 1994, p. 152). Há, con-tudo, aqueles que sustentam que as suas decisõestécnicas ou de natureza jurisdicional não estão su-jeitas ao recurso de alzada, ao passo que outros en-tendem que os entes criados por Decreto, por esta-rem sujeitos ao Reglamento de Procedimientos Admi-nistrativos (RPA), submetem-se aos recursos de alza-da , enquanto tal regulamento pode ser excepciona-do para aqueles entes criados por lei. As correntesdoutrinárias existentes a respeito são expostas porAlberto Bianchi, (2001, p. 254 –256).

37 Atualmente a doutrina Argentina majoritáriaentende que as entidades autárquicas podem sercriadas pelo Poder Executivo, salvo quando a Cons-tituição expressamente exigir lei para a sua cria-ção. Para uma detalhada abordagem das contro-vérsias existentes na matéria, ver Bianchi, AlbertoB., La Regulación Económica, Editorial Ábaco de Ro-dolfo Depalma, Buenos Aires, 2001, Tomo 1, pp.227 a 237.

38 Art. 18, Decreto nº 1.185/90.39 Fazendo uma construção sobre a letra da lei,

Juan Carlos Cassagne, admitindo que a sua opi-

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Revista de Informação Legislativa316

nião é questionável, entende que tal “ato motivadonão pode ser um ato totalmente discricionário eque, em todo caso, deverá invocar uma causa justade exoneração relacionada com o descumprimentodas obrigações e deveres do funcionário” (CAS-SAGNE, 1994, p. 163).

40 Agustín Gordillo se refere aos “marcos esta-belecidos pelas respectivas leis” (GORDILLO, 1998,p. XV-8).

41 Para um estudo das régies canadenses, verFrank Moderne, Les Modèles étrangers, constante daobra coletiva Les autorités administratives indépendan-tes , coordenada por Claude-Albert Colliard e Ge-rard Timsit. (1988, p. 198-199).

42 Apesar da profundidade do Direito Públicoalemão, a figura nele adotada dos “âmbitos livresde direção ministerial” (ministerialfreie räume) é tãoampla que necessariamente nos levaria muito lon-ge dos nossos objetivos, razão pela qual remete-mos o leitor a Mariano Magide Herrero, (2000, p.178-186), assim como para Giorgio Giraudi e Ma-ria Stella Righettini, (2001, p. 124-134).

43 Também Portugal adotou o modelo europeudas autoridades administrativas independentes,mas curiosamente a atenção a elas dispensada peladoutrina é bastante escassa, sendo que os princi-pais manuais de Direito Administrativo, inclusiveo célebre Curso de Diogo Freitas do Amaral, sequerlhes faz alusão. Uma das poucas referências dou-trinárias pode ser encontrada em António CarlosSantos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria ManuelLeitão Marques, (1998, p.144-148).

44 A neutralização de centros de poderes nacio-nais possibilita a sua integração em redes regulató-rias comunitárias. O exemplo mais significativo nosé dado pela atribuição de independência aos Ban-cos Centrais dos países membros, cuja ação inte-grada com o Banco Central da Europa, tambémindependente, possibilitou a instalação e funciona-mento do sistema financeiro europeu. Ver a respei-to Luciano Parejo Alfonso, (1994, p. 18). Giampie-ro Di Plinio afirma que “a difusão do modelo (dasautoridades administrativas independentes) corres-ponde ao interesse preciso, vital para as institui-ções européias, de criação de sistemas uniformes ecomuns (e, portanto, técnicos e certos à luz da ges-tão do poder) de administração, de modo a facili-tar os processos de aproximação dos sistemas jurí-dicos e de integração administrativa, e criar as ba-ses para uma rede de novas instituições sobre asquais poderá se apoiar a constitucionalização daunidade européia. (...) Se este processo não sofrerrupturas ou retrocessos, é provável que no futuroas autoridades independentes nacionais venham aser formalizadas como instituições comunitáriasdescentralizadas, mas algumas delas já desenvol-vem, de fato, este papel” (1998, p. 345-346). Dignode nota também é o art. 8º da Carta dos Direitos

Fundamentais da União Européia que dispõe, paratodos os países da UE, que o respeito aos direitosde proteção dos dados pessoais será fiscalizado“por uma autoridade independente”.

45 ADIn nº 1.668-5.46 O entendimento minoritário considerou apli-

cável à espécie a Súmula nº 25, que dispõe: “Anomeação a termo não impede a livre demissão,pelo Presidente da República, de ocupante de car-go de dirigente de autarquia” (fonte: www.stf.gov.br). Note-se, contudo, que, apesar de nãoser muito notado pela doutrina, a Súmula nº 25nunca foi tomada em termos absolutos, tendo sidosempre excepcionada em relação aos reitores dasuniversidades públicas, geralmente de natureza au-tárquica, conforme o que dispõe a Súmula nº 47:“Reitor de Universidade não é livremente demissí-vel pelo Presidente da República durante o prazode sua investidura.”

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Seção Resenha Legislativa daConsultoria Legislativa do Senado Federal

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Heloisa H. T. Camargo

1. Perspectivas da FAO para2015-2030

Previsões de longo prazo são freqüente-mente consideradas meros exercícios de fu-turologia, pelo grande número de variáveisenvolvidas e pelo alto grau de incerteza ine-rente a esse tipo de estudo. Entretanto, cer-tas tendências identificadas e as possibili-dades de acontecimentos relacionados comdeterminados cursos de ação recomendama análise desses documentos pelos formu-ladores das políticas públicas.

Estudo elaborado em 2002 pela FAO(Food and Agriculture Organization) sobreo panorama da agricultura mundial para operíodo 2015/2030 confirma a tese de quehaverá alimentos em quantidade suficientepara alimentar a população estimada parao período, “mas que milhões de pessoas nospaíses em desenvolvimento permanecerãofamintos e que permanecerão sérios muitosdos problemas ambientais causados pelaagricultura”1.

Conforme a fonte anteriormente citada,permanecerá a tendência já observada deredução na taxa de crescimento de popula-ção, bem como uma redução na pressão da

Produção agrícola e alimentação –tendências para o futuro

Heloisa H. T. Camargo é Consultora Legis-lativa para a área de agricultura.

Sumário

1. Perspectivas da FAO para 2015-2030. 2.As tendências da agricultura brasileira. 3. Con-clusão.

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agricultura nos recursos naturais. Entretan-to, para mais de 1,1 bilhão de pessoas vi-vendo em extrema pobreza, em sua maioriano meio rural, o crescimento econômico base-ado nas atividades agrícolas permanece es-sencial para melhorar suas condições de vida.

Embora reconheça a importância do co-mércio internacional no aumento da segu-rança alimentar, a FAO estima que o déficitcomercial agrícola dos países em desenvol-vimento aumentará de forma drástica até2030. Recomenda, para aperfeiçoar o papeldo comércio exterior no desenvolvimentoagrícola, maior acesso aos mercados daOECD (Organization for Economic Co-ope-ration and Development)2 e a eliminação detarifas, em especial dos produtos agrícolasprocessados, tanto nos países desenvolvi-dos como naqueles em desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, o estudo alerta paraos riscos da globalização na agricultura,pois a maior atuação das multinacionais nosmercados locais pode reduzir a capacidadede decisão dos agricultores. Assim, admiteque, para obter os benefícios do processo, ospaíses em desenvolvimento necessitam deestruturas legais e administrativas para con-trolar eventuais prejuízos.

O mencionado documento também iden-tificou algumas tendências de caráter mun-dial, capazes de afetar a produção agrícolae de alimentos no período 2015-2030, queapresentamos de forma sumária nos pará-grafos seguintes.

Sobre a pressão demográfica, o documen-to confirma a tendência de decréscimo dataxa de crescimento da população mundial,passando dos 1,7% aa observados nos últi-mos trinta anos para 1,1% aa até 2030. Tam-bém estima que um maior número de indi-víduos apresentará melhoria nos padrõesalimentares, com um consumo estimado de3.050 kcal. diárias comparado com as 2.360kcal. na metade da década de 60 e das 2.800kcal. estimadas atualmente.

O aumento na qualidade, com maior in-gestão de proteína animal, e o alcance, porexpressivos segmentos da população, de

padrões alimentares adequados do pontode vista nutricional acabam por estabilizarou mesmo reduzir a demanda por algunstipos de alimento. Esse fato ocorre porque,uma vez satisfeita a necessidade nutricio-nal, o consumo fica estabilizado para a po-pulação cuja demanda foi atendida. Entre-tanto, em muitos países em desenvolvimen-to, existem boas perspectivas para a expan-são da demanda por alimentos, tanto peloaumento da renda quanto pela sua melhordistribuição.

Evidentemente tais estimativas são de ca-ráter geral, pois, mesmo considerando as ex-pectativas de aumento na qualidade e nonúmero de pessoas beneficiadas, substan-ciais parcelas da população mundial aindasofrerão o flagelo da fome. O declínio dosatuais 777 milhões de famintos para os esti-mados 440 milhões em 2030 não é sequercompatível com as metas estabelecidas em1996, na Cúpula Mundial de Alimentação.Nessa ocasião, foi proposta a meta de redu-zir a metade, em 2015, os 815 milhões defamintos existentes em 1990-92.

Embora a projeção indique um cresci-mento substancial no consumo de carnes eprodutos lácteos, os cereais ainda cons-tituem a maior fonte de alimentos da huma-nidade, tanto para consumo humano quan-to para ração animal. A pesquisa estima queserá necessário um bilhão de tonelada decereais adicionais para atender a demandano período considerado.

A mesma fonte considera que os paísesem desenvolvimento deverão tornar-se cadavez mais dependentes das importações decereais, carnes e produtos lácteos, pois aprodução local não será capaz de atenderas necessidades alimentares da população.Foi estimado que em 2030 esses países pro-duzirão apenas 86% da sua demanda porcereais, com as importações passando dasatuais 103 milhões de toneladas para 265milhões de toneladas em 2030.

Embora tanto os países tradicionalmen-te exportadores quanto os emergentes nomercado internacional de produtos agríco-

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las possam atender ao aumento da deman-da, persiste o fato de que os países mais po-bres encontrarão dificuldades em pagar asimportações de alimentos. A vulnerabilida-de destes países às mudanças climáticas,como secas e inundações, também deveráagravar o quadro de dependência das im-portações de alimentos para atender a de-manda interna, drenando recursos escassospara as aquisições de cereais, carnes e pro-dutos lácteos nos países desenvolvidos.

Uma conclusão de grande importânciaé a que indica o aumento da produtividadeagrícola como o principal responsável peloaumento da produção. Assim, nos paísesem desenvolvimento, o aumento na produ-ção será devido, em aproximadamente 70%,ao aumento da produtividade. A incorpo-ração de novas áreas de cultivo ocorrerá deforma mais lenta, mas o deflorestamentocontinuará preocupante, especialmente emáreas da América do Sul e da África.

Outro fator crucial para os países pobresfoi o aumento da área irrigada, que devepassar dos 202 milhões de hectares atuaispara 242 milhões em 2030. Também a dis-ponibilidade e o acesso aos recursos hídri-cos foram considerados como decisivospara a agricultura e o abastecimento alimen-tar no futuro. Estima a FAO que um em cadacinco países em desenvolvimento sofrerácom a escassez de água e que uma políticade uso racional dos recursos hídricos paraa agricultura, que consome aproximada-mente 70% da água disponível, será essen-cial para garantir a produção agrícola.

Sobre as tecnologias, as previsões são damaior utilização daquelas capazes de aliaraumento na produtividade com proteção am-biental, tais como plantio direto, manejo in-tegrado de pragas e de nutrientes. Sobre abiotecnologia, mais precisamente sobre autilização de organismos geneticamentemodificados, o estudo reconhece o poten-cial para aumentar a produção agrícola,mas recomenda o aperfeiçoamento de testese protocolos de segurança para sua maiorutilização.

O referido estudo também aborda um pro-blema muito sensível, decorrente da utiliza-ção de novas tecnologias capital-intensivas,ou seja, a impossibilidade de os pequenosprodutores, especialmente na pecuária,competirem com as grandes empresas, pro-vocando sua expulsão do mercado. Reco-menda a FAO a adoção de políticas especí-ficas para evitar que esses grupos não per-cam suas fontes de subsistência, gerandomais pobreza no meio rural. Sobre a pesca,o estudo confirma o esgotamento já obser-vado dos recursos pesqueiros naturais e anecessidade de investimentos em aqüicul-tura para atender a demanda por esse tipode proteína.

Resumindo, mesmo considerando asprevisões de longo prazo, o estudo confir-ma algumas tendências evidentes na atua-lidade, como o aumento na dependência dospaíses pobres por alimentos importados.Outras previsões, como a maior utilizaçãode tecnologias não agressivas ao meio am-biente, os aumentos na produção com basena produtividade, a redução da taxa de in-corporação de novas áreas agrícolas, o es-gotamento de recursos naturais e a necessi-dade de controle na utilização dos recursoshídricos, também podem ser observadas naatualidade.

A necessidade de políticas públicas ca-pazes de garantir a inclusão no mercado depequenos agricultores, mesmo na presençade empresas capital-intensivas, pode serconsiderada uma tendência já existente, in-clusive nos países desenvolvidos, onde umconjunto de políticas de incentivo, inclusi-ve com a concessão de subsídios, garante apermanência dos produtores nos mercadoslocal e internacional.

Para finalizar, foi confirmado o impor-tante papel dos governos dos países em de-senvolvimento na proteção dos interessesdos produtores e consumidores locais docomércio internacional, utilizando todos osrecursos legais e políticos disponíveis paraevitar as perdas decorrentes do processo deglobalização.

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2. As tendências da agriculturabrasileira

Comparando as estimativas globais apre-sentadas pela FAO para a agricultura e aalimentação no horizonte 2015-2030, é viá-vel interrogar se algumas dessas tendênciasestão presentes no setor agrícola brasileiro.

Uma importante tendência observada, ade redução da taxa de expansão da áreacultivada e da maior rentabilidade comofonte de crescimento da produção, está con-firmada na agricultura brasileira. Na safra2001/2002, a produção foi de mais de 100mil t., enquanto na safra 1995/1996 foi de69 mil t. No mesmo período, a rentabilidadepassou de 1,98 t. por hectare para 2,61 t., oque correspondeu a um aumento de 31,8%3.

Atualmente estão presentes na agricul-tura brasileira indicativos como acréscimodas áreas irrigadas, maior regulamentaçãode uso dos recursos hídricos, adoção de tec-nologias menos agressivas com o meio am-biente, reformulação do processo de ocupa-ção das terras agriculturáveis. Embora odeflorestamento continue a ocorrer em ta-xas preocupantes, especialmente na RegiãoNorte e Centro-Oeste, é válido afirmar que ocrescimento da produção agrícola dependecada vez menos da incorporação de novasáreas e cada vez mais da utilização de no-vas tecnologias e do conseqüente aumentoda produtividade.

Outras importantes tendências mundiaisidentificadas no Brasil são a redução do rit-mo de crescimento da população e uma rea-lidade em que existem alimentos suficien-tes para o atendimento da população, sen-do fome e desnutrição conseqüências dire-tas da situação econômica em que vivem aspopulações atingidas.

Pesquisa apresentada pelo FIBGE infor-ma que o Brasil “termina o século marcadopela permanência da desigualdade: na dé-cada de 90, o rendimento dos 10% mais ri-cos e dos 40% mais pobres cresceu 38% (pas-sando de 13,30 salários mínimos para18,40) e 40% (da fração de 0,70 salário míni-

mo para 0,98), respectivamente, mantendoinalterada a elevada concentração da ren-da na sociedade brasileira” 4.

De fato, “a fome que subsiste no Brasil é,essencialmente, uma questão de acesso aosalimentos e não uma questão de disponibi-lidade. O país produz mais do que o neces-sário para atender as demandas alimenta-res da população e, no entanto, não conse-gue promover uma distribuição eqüitativadesses alimentos” 5.

Outra característica mundial tambémobservada no Brasil é que a maior pobreza ea maior carência nutricional ocorrem nomeio rural, especialmente nas Regiões Nortee Nordeste. Essa regiões ainda hoje apresen-tam os maiores problemas relacionados aoacesso a alimentação e nessas regiões o meiorural é o mais seriamente comprometido6.

No que se refere à importância do comér-cio internacional de produtos agrícolascomo promotor do desenvolvimento, cita-mos o Ministro da Agricultura, Pecuária eAbastecimento, que informou em setembrodo corrente ano ter a “balança comercial doagronegócio apresentado em agosto um su-perávit de US$ 2,051 bilhões, resultado dasexportações de US$ 2,409 bilhões e impor-tações de US$ 358 milhões”. A mesma fontemenciona que a “participação dos produ-tos do agronegócio representou 41,9% dototal arrecadado com as exportações brasi-leiras registradas no mês de agosto, US$5,751 bilhões” 7.

Entretanto, como exemplo dos danoscausados pelo protecionismo dos paísesdesenvolvidos, cabe mencionar que os pro-dutores de soja brasileiros deverão recorrerà OMC (Organização Mundial do Comércio),pois entendem que os subsídios norte-ameri-canos para a soja devem provocar um prejuí-zo de aproximadamente US$ 900 milhõespara o Brasil. Estudo elaborado pela CNA(Confederação da Agricultura e Pecuária doBrasil) mostra que, “em um cenário de elimi-nação dos programas de subsídios, os preçosda commodity teriam sido 9,19% maiores”. Omesmo documento detalha que apenas a re-

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dução dos preços causou um prejuízo deaproximadamente US$ 600 milhões, enquan-to a redução da produção brasileira causouuma perda estimada em US$ 247 milhões8.

Produtos como suco de laranja e, fora dosetor agrícola, o aço ilustram, com precisão,a diferença entre o discurso e a prática nocomércio internacional. Entretanto, o pró-prio estudo apresentado pela FAO reconhe-ce o problema e advoga a necessidade demecanismos legais e administrativos capa-zes de proteger os produtores agrícolas dospaíses menos desenvolvidos. Ou seja, cabeao governo brasileiro garantir aos nossosprodutores oportunidades de acesso aomercado internacional, pois sem esse apoio,mesmo produzindo de forma eficiente, nãoexiste possibilidade de uma competiçãoequilibrada.

Também deve ser mencionada a tendên-cia do aumento da importação de alimen-tos. No caso específico do Brasil, citamostrigo e produtos lácteos, cujo abastecimentotradicionalmente depende do comércio in-ternacional. As importações de trigo passa-ram de 25,2 mil t. em 1992 para 7.181,2 mil t.em 2001 e, no mesmo per 0íodo, as comprasde produtos lácteos como leites, creme de lei-te e queijos passaram de 43 mil t. para 142 milt9.

Mesmo considerando que o país é tradi-cionalmente auto-suficiente nos produtosalimentares básicos e que tem capacidadepara produzir internamente quase tudo oque consome, a tendência de aumento nadependência de produtos alimentares me-rece muita atenção quando da elaboraçãode políticas agrícolas.

3. Conclusão

Documento elaborado pelo governo erepresentantes da sociedade civil do Brasilapresentado em 1996, na Cúpula Mundialde Alimentação, apresentou a seguinte de-finição de segurança alimentar :

“A Segurança Alimentar e Nutri-cional significa garantir, a todos, con-

dições de acesso a alimentos básicosde qualidade, em quantidade suficien-te, de modo permanente e sem com-prometer o acesso a outras necessida-des essenciais, com base em práticasalimentares saudáveis, contribuindo,assim, para uma existência digna, emum contexto de desenvolvimento in-tegral da pessoa humana”.

Considerando que no ano 2000 a pro-porção de indigentes atingiu 13% da popu-lação brasileira, equivalente a aproximada-mente 22 milhões de pessoas, e que a con-centração da renda e o desemprego persis-tem, a segurança alimentar e nutricionaldefinida em 1996 não está presente na vidade grande parcela da população brasileira.

As análises da FAO e as tendências ob-servadas internamente indicam que a agri-cultura é capaz de proporcionar alimentosem volume suficiente para atender as ne-cessidades alimentares da população comoum todo. Também comprova que a produ-ção agrícola pode expandir-se pelo aumen-to na produtividade, com tecnologias nãoagressivas ao meio ambiente, respeitando epreservando a natureza.

As observações indicam ainda que, naera da globalização, o sucesso de um paísem garantir a permanência dos produtoresna atividade agrícola, o acesso dos mesmosaos mercados externos em termos competi-tivos e a satisfação das necessidades alimen-tares e nutricionais da população dependemuito da ação do governo no estabelecimen-to de políticas públicas internas e da vigo-rosa defesa dos interesses nacionais no ce-nário internacional.

Para finalizar, é importante lembrar queas tendências para o futuro não são imutá-veis – podem ser modificadas pela vontadepolítica e o melhor momento para construiro futuro sempre foi o presente.

Notas

1 FAO – World Agriculture 2030: global foodproduction will exceed population growth. Dispo-

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nível em: <hhtp://www.fao.org/english/news-room/news/2002/7828-en.html>. Acesso em:2002.

2 Entre os países membros, mencionamos Fran-ça, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Finlândia,Espanha, Portugal, Suíça, Reino Unido, USA, Ca-nadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coréia.

3 BEGHIN, Nathalie et al (Coord.). A segurançaalimentar e nutricional e o direito humana à ali-mentação no Brasil. Brasília: IPEA, 2002.

4 FIBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2000.Disponível em: < http://www1.ibge.gov.br/ibge/presidencia/noticias/0404sintese.shtm>.

5 BEGHIN, Natalie (op. cit).6 “O Mapa da Fome mostrou, em 1993, que o

Nordeste continua apresentando índices extrema-mente elevados de indigência, com todas suas con-seqüências, entre as quais a fome e a desnutrição

da população atingida. Índices menos elevados,mas também presentes em outras regiões, mostramque o país conserva bolsões de miséria em todo oseu território. Nas zonas mais populosas, como asdas áreas metropolitanas no Sudeste, o número defamílias em condição de pobreza extrema é signifi-cativo. Contudo, é na área rural que, proporcional-mente, a indigência mostra-se mais severa. Os índi-ces de mortalidade infantil e na infância e os indica-dores de peso e altura de crianças até 5 anos confir-mam o que foi demonstrado no Mapa da Fome,apontando o Nordeste brasileiro em uma situaçãoinaceitável, principalmente em sua área rural”.MENEZES, Francisco. Panorama atual da segurançaalimentar no Brasil. (S. l.): BASE, [19 --?].

7Agência Brasil, 04/09/20028 Gazeta Mercantil - 04/09/20029 Fonte: SECEX/MDIC; CONAB.