A proteção constitucional à liberdade

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  • Braslia a. 40 n. 160 out./dez. 2003 111

    Manoel Jorge e Silva Neto

    1. Justificativa do artigoPoltica, religio, futebol. Temas que des-

    pertam discusses muitas vezes acaloradas,implicando, portanto, aqui e ali, e incontro-lvel acirramento de nimo.

    E por qu? Simplesmente em face da cir-cunstncia de todos terem opinio formadaa respeito, nem que seja para no apreciar apoltica, a religio ou o futebol.

    J, agora mesmo, quando, no incio dejulho de 2002, extasiada com a conquistado pentacampeonato na sia, a nao, qua-se em transe, entusiasticamente recebe os

    A proteo constitucional liberdadereligiosa

    Manoel Jorge e Silva Neto Procurador doMinistrio Pblico do Trabalho (BA). Mestre eDoutor em Direito Constitucional pela PUC/SP.

    Sumrio1. Justificativa do artigo. 2. Objetivos. 3. Bre-

    ve histrico sobre a proteo liberdade reli-giosa. 4. As Constituies brasileiras e a prote-o liberdade religiosa. 5. Proteo liberda-de religiosa na Constituio de 1988. 6. Ques-tes controvertidas sobre a liberdade religio-sa. 6.1. A incluso do nome de Deus no Prem-bulo do texto constitucional afasta a posiolaica do Estado brasileiro? 6.2. A expressoDeus seja louvado em notas de Real hip-teses de proselitismo religioso? 6.3. A polmi-ca sobre o dia da semana para a realizao deconcurso pblico. 6.4. O caso do Dique do To-ror (BA) e de Braslia (DF) a exibio de ima-gens de Orixs. 6.5. O sacrifcio de animais nasliturgias do Candombl e Umbanda um exa-me luz da Constituio e da legislao ordi-nria. 7. A proteo constitucional da liberda-de religiosa dos trabalhadores. 8. Concluso.

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    jogadores da seleo para a festa da chega-da, assisto entrevista na televiso do ex-jogador argentino Diego Maradona, afir-mando, em alto e bom som, que a Copa doMundo fora medocre e que no fora mereci-da a vitria da seleo brasileira.

    Milhes de brasileiros devem ter-se irri-tado com a reao do ex-craque portenho...E a postura apaixonada de cada um de ns a causa da legtima irritao!

    Conquanto autntico o entusiasmo peloesporte breto, reconheo que o convite foifeito para escrever-se sobre a proteo cons-titucional liberdade religiosa, fato noimpeditivo de aproveitar para, a um s tem-po, homenagear a conquista e revelar queambos os temas, religio e futebol, so inva-riavelmente cercados por grande e acesapolmica (razo mais do que justificvelpara incluir-se, nesta obra, trabalho espec-fico sobre a liberdade religiosa).

    Firmo, por isso, nessas linhas iniciais,que a justificao para dedicar-se artigo ex-clusivo acerca da liberdade religiosa, talcomo posta em nvel constitucional, guar-da, ofuscantemente, relao apertada com ofato de o constituinte originrio, no rol dosdireitos individuais, ter-se ocupado de li-berdade da espcie nos incisos VI ( invio-lvel a liberdade de conscincia e de crena,sendo assegurado o livre exerccio dos cul-tos religiosos e garantida, na forma da lei, aproteo aos locais de culto e a suas liturgi-as), VII ( assegurada, nos termos da lei, aprestao de assistncia religiosa nas enti-dades civis e militares de internao coleti-va) e VIII (ningum ser privado de direi-tos por motivo de crena religiosa ou de con-vico filosfica ou poltica, salvo se as in-vocar para eximir-se de obrigao legal atodos imposta e recusar-se a cumprir pres-tao alternativa, fixada em lei).

    Sobremais, se correto concluir que seopera no contexto das liberdades as maisacirradssimas discusses (liberdade de in-formao jornalstica X direito intimida-de, por exemplo), no menos rematar a res-peito de a liberdade de religio, por se cons-

    tituir em conquista relativamente nova nahistria dos sistemas constitucionais, ain-da est, em larga medida, por ser consolida-da, especialmente em virtude da forma am-bgua como a questo tratada no Brasil.

    Roberto Pompeu de TOLEDO (2002, p.114) explica: (...) o Estado por aqui no temreligio. Mas tanto a Cmara quanto o Se-nado expem um crucifixo na parede atrsdas respectivas mesas. Um candidato a pre-sidente, por mais ateu que seja, acaba re-zando na campanha e comungando no exer-ccio do cargo, como se comprovou aindah pouco. E caracterstica no s brasilei-ra decreta-se, aqui, feriado em dias de fes-tas catlicas. verdade que ficamos todossatisfeitos e corremos para a praia. Mas quetm a ver judeus e muulmanos, umbandis-tas, budistas e membros de outras comuni-dades religiosas que convivem sob a juris-dio do Estado laico brasileiro com a Sex-ta-feira Santa ou o dia de Corpus Christi?.

    2. ObjetivosApontadas as circunstncias autoriza-

    tivas (qui determinantes) escolha dotema para o artigo, cumpre apresentar, des-de logo, os seus propsitos, a fim de que oleitor se apresse a uma dessas trs provi-dncias: fechar imediatamente o livro, pas-sar para outro artigo ou (quem sabe?) inici-ar a sua leitura.

    No prximo item (3), h caminho a sernecessariamente percorrido que o relativoao exame da liberdade religiosa ao longo dahistria da humanidade. No ser, entre-tanto, longa a digresso, de modo precisoporque, como afirmado em trecho anterior,o direito individual vitria recente.

    Outro exame indeclinvel: o estudo daliberdade de religio nas Constituies bra-sileiras. Para conhecer-se a realidade daConstituio de 1988, imprescindvel sa-ber o que se passou nos textos anteriores, oque ser realizado no item 04.

    No item 05, tratar-se- da liberdade reli-giosa da forma como positivada pela Cons-

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    tituio de 1988, com nfase amplitude dodireito individual.

    Se, como se afirmou no incio do artigo, otema se encontra marcado por indelvel con-trovrsia, nada mais lgico do que apresen-tar item distinto para a indicao de ques-tes controvertidas, assunto para o qual serdestinado o item 06.

    Outrossim, no se deve esquecer que ostrabalhadores representam categoria dasmais tolhidas em sua liberdade de religio,o que enseja a anlise de possveis ofensasno plano das relaes de trabalho, notada-mente em face da subordinao jurdica trao delineador mais ntido do vnculo deemprego. O item 07 ser reservado ao tema.

    Por fim, e naturalmente, ao item 08 seroguardadas as concluses de tudo (ou dopouco...) que se exps.

    3. Breve histrico sobre a proteo liberdade religiosa

    Consolidado o Cristianismo e a ReligioCatlica Apostlica Romana como a f ofi-cial do Estado, qualquer tentativa de cria-o de novo segmento religioso ou manifes-tao de culto de forma distinta dos rituaissacralizados pelos procedimentos catlicosera considerada bruxaria ou heresia, e, por-tanto, duramente castigada.

    No foram poucos os supostos hereges ebruxos queimados vivos na fogueira da San-ta Inquisio; ocorre que a Igreja Catlicachegou mesmo a utilizar os sacrossantospoderes inquisitoriais para, com a conde-nao de indivduos abastados, aumentaro seu patrimnio. Por isso que costumo de-nominar o processo inquisitorial de SantaAquisio, sem nenhum intento, todavia,de macular a imagem das organizaes ca-tlicas, cujos erros cometidos naquela po-ca j so reconhecidos por suas lideranasreligiosas atuais.

    O predomnio da Igreja Catlica, de con-traparte, bem poderia ser creditado pr-pria justificao do poder poltico dos mo-narcas, vinculado, segundo se pensava

    poca, origem divina; era a consagraoda Teoria da Origem Divina Sobrenaturaldo Poder, que, de um s golpe, consolidou oAbsolutismo Monrquico (materializado naafirmao conhecidssima de Lus XIV, se-gundo a qual O Estado sou eu) e transfor-mou a Religio Catlica na nica, exclusivae aceitvel f a ser professada pelas pesso-as.

    Com isso, as perseguies se mantive-ram, e at recrudesceram, especialmente apartir das incisivas contestaes de MartinLutero e Joo Calvino. O primeiro deles, fun-dador do Luteranismo, conquanto ordena-do padre agostiniano, denunciou, com vi-gor, a prtica reinante da venda de indul-gncias, afixando na porta da Igreja de Wit-tenberg as histricas 95 teses. Nessas tesese em escritos que se lhes seguiram, negou ainfalibilidade do papa, rejeitou as ambiespolticas do papado, sustentando a consti-tuio de igrejas nacionais, alm de investircontra o instituto do celibato eclesistico,tendo, inclusive, em 1525, se casado com aex-freira Catarina de Bora, com a qual teveseis filhos. O segundo, Joo Calvino, con-verteu-se doutrina da Reforma em 1533,quando, acusado de heresia, refugiou-se emBasilia, importante cidade da Sua, opor-tunidade em que escreveu A Instituio daReligio Crist. Alguns anos mais tarde,mudou-se para Genebra, fundando as ba-ses do Calvinismo, que, em sntese, consis-tiu na separao entre a Igreja e o Estado, naorganizao de sociedade suportada porprincpios cristos e imposio de rigorosadisciplina aos indivduos mediante o Con-sistrio rgo destinado a manter a disci-plina religiosa, que pressionava o povo afreqentar a igreja e policiava a vida moralda cidade. Foi considerado o gnio teol-gico da Reforma.

    Arthur Conan DOYLE (19--?), muito em-bora responsvel pela criao do persona-gem Sherlock Holmes, retratou, com fideli-dade, no romance Os fugitivos, o encalo aoshuguenotes, protestantes franceses seguido-res de Calvino. O governo catlico francs

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    promoveu violenta represso aos estafetasda Reforma, como aconteceu na sangrentaNoite de So Bartolomeu (24 de agosto de1572), quando se estima que 50.000 calvi-nistas foram massacrados impiedosamen-te.

    Ainda que a questo religiosa tenha per-durado na Frana at meados do sculoXVII, correto afirmar que a tolerncia di-versidade de opo religiosa somente foiguindada ao plano de liberdade pblica coma Declarao dos Direitos do Homem e doCidado, de 1789, ao prescrever o art. 10 queningum deve ser molestado por suas opi-nies, mesmo religiosas, desde que sua ma-nifestao no perturbe a ordem pblicaestabelecida pela lei (nul ne doit tre in-quiete pour ss opinions, mme religieuses,purvu que leur manifestation ne trouble pslordre public tabli par la loi).

    a Declarao francesa de 1789, de con-seguinte, o marco divisrio entre a proscri-o da liberdade religiosa e o seu reconheci-mento.

    4. As constituies brasileiras e aproteo liberdade religiosa

    Os ventos transformadores da Revolu-o Francesa no balanaram os estandar-tes da monarquia absolutista brasileira, aomenos no que se refere liberdade religiosa.

    Se a Carta Constitucional de 1824 ou-torgada, portanto, por ser Carta , impos-ta por D. Pedro I, j que dissolvera a Assem-blia Constituinte em 1823, chegou a preverdiversos direitos individuais, consoante senota nos incisos I/XXXV do art. 179, issorevela que o monarca resolvera adequar osprincpios iluministas ao absolutismo, como que pode ser reputado como seguidor dodespotismo esclarecido.

    Mas, no contexto da liberdade de reli-gio, nada se alterou.

    Se bem que no houvesse perseguioaos que professassem outra f, apenas a Igre-ja Catlica era reconhecida pela Constitui-o de 1824.

    O art. 5 d a noo precisa dessa reali-dade: A Religio Catholica Apostolica Ro-mana continuar a ser a Religio do Impe-rio. Todas as outras Religies sero permit-tidas com seu culto domestico, ou particu-lar em casas para isso destinadas, sem fr-ma alguma exterior de Templo.

    O art. 106, ao disciplinar o juramento doChefe de Estado e de Governo, inclui, entreoutras obrigaes a ele cometidas, manter aReligio Catlica Apostlica Romana.

    Com a ruptura institucional ocorrida apartir da Proclamao da Repblica, a Cons-tituio de 1891 modificou substancialmen-te a proscrio para a qual eram remetidosos demais segmentos religiosos.

    Para tanto, nota-se a redao do art. 11,2, ao determinar ser vedada ao rgo cen-tral e aos Estados-membros estabelecer, sub-vencionar ou embaraar o exerccio de cul-tos religiosos.

    Mas no trecho pertinente aos direitosindividuais que mais se ressalta a preocu-pao do constituinte de 1891 a respeito daliberdade religiosa, consubstanciada em al-guns pargrafos do art. 72: 3 Todos osindivduos e confisses religiosas podemexercer e livremente o seu culto, associan-do-se para esse fim e adquirindo bens, ob-servadas as disposies do direito com-mum; 4 A Repblica s reconhece ocasamento civil, cuja celebrao ser gratui-ta (como efeito da separao entre a Igrejae o Estado, no se poderia assumir outraconduta que no o reconhecimento exclusi-vo do matrimnio civil, em detrimento domilenar casamento religioso, tornando-seemblemtico o dispositivo constitucional deum novo perodo da histria da civilizaobrasileira, com menor interferncia e, por-tanto, com reduo de poderes das autori-dades eclesisticas); 5 Os cemitriostero caracter secular e sero administradospela autoridade municipal, ficando livre atodos os cultos religiosos a pratica dos res-pectivos ritos em relao aos seus crentes,desde que no offendam a moral publica eas leis; 6 Ser leigo o ensino ministra-

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    do nos estabelecimentos publicos (inician-do-se um novo perodo na educao brasi-leira, j, a partir de ento, completamenteliberta, ao menos no domnio dos estabele-cimentos oficiais de ensino, de todo e qual-quer patrulhamento ou vinculao de car-ter religioso); 7 Nenhum culto ou igre-ja gozar de subveno official, nem terrelaes de dependencia ou alliana com oGoverno da Unio, ou o dos Estados (apreviso constitucional tem destinatriocerto: a Igreja Catlica que, na Constituiode 1824, era a religio oficial do Imprio); 28 Por motivo de crena ou funco reli-giosa, nenhum cidado brazileiro poderser privado de seus direitos civis e polticosnem eximir-se do cumprimento de qualquerdever cvico; e, finalmente, o 29 Os queallegarem motivo de crena religiosa com ofim de se isentarem de qualquer onus que asleis da Republica imponham aos cidados,e os que acceitarem condecoraes ou titu-los nobiliarchicos estrangeiros perdero to-dos os direitos polticos.

    A Constituio de 1934 segue a linhaseparatista iniciada pelo texto republicano,cuja vedao para relacionamento entre Igre-ja e Estado se encontra firmada no art. 17,II/III, ao passo que restou consagrada a li-berdade religiosa como direito individual,no art. 113, itens 4, 5, 6 e 7, quadro inaltera-do pela Constituio de 1937.

    O Texto Constitucional de 1946 traz umanova dimenso a respeito do relacionamen-to entre a Igreja e o Estado. Sim, porque ul-trapassado o perodo de desconfiana doEstado para com a Igreja Catlica pelo queesta poderia representar de perigo para ri-valizar com o poder poltico estatal, trata-va-se, naquele instante, de admitir a colabo-rao dos segmentos religiosos em prol daprevalncia do interesse pblico. No toa,portanto, a dico do art. 31, III, segundo oqual era vedado aos entes da Federao bra-sileira ter relao de aliana ou dependn-cia com qualquer culto ou igreja, sem preju-zo da colaborao recproca em prol do in-teresse coletivo.

    Outros significativos avanos da Cons-tituio de 1946 so os seguintes: i) a recu-sa, por convico religiosa, quanto ao cum-primento de obrigao a todos imposta noimplicaria perda de qualquer direito, excetose o indivduo se eximisse tambm de satis-fazer obrigao alternativa prevista em lei,e, por outro lado, ii) direito prestao reli-giosa nos estabelecimentos de internaocoletiva, como os presdios.

    Quanto aos Textos Constitucionais de1967/1969, cumpre apontar que a nicanovidade presenciada, e assim mesmo per-tinente ao ltimo deles, refere-se inclusodo credo religioso como gnero, tal qual osexo, raa, trabalho e convices polticas( 1, art. 153), impedindo-se a consumaode desequiparaes fortuitas fundadasigualmente na opo religiosa.

    5. A proteo liberdade religiosana Constituio de 1988

    Nenhum curioso das coisas da Consti-tuio se sentiria vontade em demonstrarcomo se operou a proteo liberdade reli-giosa sem consultar os Princpios Funda-mentais.

    Se vou casa de algum, se no for pa-rente muito prximo (pai, me, irmos),muito dificilmente entrarei pela porta dacozinha, mas sim pela da sala.

    Costumo utilizar a figura de linguagempara dizer que os Princpios Fundamentaisso a porta da sala da interpretao cons-titucional e, sendo assim, o procedimentointerpretativo de qualquer domnio do Tex-to de 1988 deve pressupor a anlise dos re-feridos princpios.

    No art. 1, dois fundamentos despertamateno pela pertinncia liberdade religi-osa: a dignidade da pessoa humana (art. 1,III) e o pluralismo poltico (art. 1, V).

    Fcil concluir acerca da associaoexistente entre dignidade da pessoa huma-na e liberdade religiosa. O valor-fonte detodos os valores, como esclarece judiciosa-mente Miguel REALE (19--?, p. 3), inspira o

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    sistema do direito positivo de uma maneirageral a adotar solues que aclamem o di-reito vida, incolumidade fsica (banin-do-se a tortura), intimidade, vida priva-da, imagem e liberdade, compreendidaem sua multifria acepo, inclusive a decontextura religiosa.

    Algumas perguntas so mais esclarece-doras sobre a ligao entre a dignidade dapessoa humana e a liberdade de religio doque eventuais consideraes a fazer-se emtorno ao tema: Preserva-se a dignidade dapessoa quando o Estado a probe de exercera sua f religiosa? Conserva-se-lhe no mo-mento em que o empregador, nos domniosda empresa, convida o empregado paraculto de determinado segmento religioso?Reveste-se de alguma dignidade o procedi-mento por meio do qual alguns segmentosreligiosos investem contra outros, no des-cartado at o recurso violncia?

    Sem dvida, a opo religiosa est toincorporada ao substrato de ser humano at, como se ver mais adiante, para no seoptar por religio alguma que o seu des-respeito provoca idntico desacato digni-dade da pessoa.

    Outrossim, percebe-se que o fundamen-to do Estado brasileiro atinente ao pluralis-mo poltico tambm conduz concretiza-o da liberdade religiosa. E como? Precisa-mente porque pluralismo poltico no deve,em primeiro lugar, ser confundido com plu-ripartidarismo princpio vinculado or-ganizao poltico-partidria no Brasil,conforme acentua o art. 17, caput. Pluripar-tidarismo significa sistema poltico dentrodo qual se permite a criao de inmerospartidos. Mais abrangente, e, por isso, deconceituao um pouco mais difcil, o plu-ralismo poltico. A despeito de sua maioramplitude, pode-se arriscar um conceito:pluralismo poltico o fundamento do Es-tado brasileiro tendente a viabilizar a coe-xistncia pacfica de centros coletivos irra-diadores de opinies, atitudes e posiesdiversas. Esquadrinhando-o, temos que re-presenta: i) fundamento do Estado brasi-

    leiro, em face da residncia constitucio-nal do postulado; ii) tendente a viabilizara coexistncia pacfica, porquanto o idealpluralista reflete a regra de ouro do livre ar-btrio: a liberdade de um indivduo terminaquando comea a liberdade do outro (Spen-cer); iii) de centros coletivos, porque nose presta o pluralismo poltico a assegurara liberdade de manifestao de pensamen-to da pessoa individualmente considerada,direito assegurado pelo fundamento concer-nente cidadania e consubstanciado, porexemplo, no art. 5, IV; iv) irradiadores deopinies, atitudes e posies diversas, sen-do certo que, ali onde se verificar diversida-de quanto opo poltica, ideolgica, se-xual e religiosa, deve ser conduzido esforo respectiva e imprescindvel harmoniza-o.

    Conseqentemente, ao decompor o con-ceito de pluralismo poltico, deixei clara (aomenos tentei faz-lo...) a relao entre o Prin-cpio Fundamental e a liberdade religiosa:se indiscutvel que a liberdade em questo daquelas que as pessoas exercitam em con-junto, surge a necessidade de se organizarente coletivo destinado a congregar e forta-lecer a crena especfica dos que professamuma dada f religiosa.

    E mais: quando o pluralismo polticoaparece como fundamento a autorizar a exis-tncia de diversos rgos forjados no alti-plano de idias e posies as mais varia-das, termina por reforar um aspecto dessedireito individual sob investigao: a liber-dade de organizao religiosa.

    E a referncia liberdade de organiza-o religiosa traz tona a obrigatoriedadede indicar os demais desdobramentos dodireito individual. Assim, alm de estar ga-rantida pela Constituio de 1988 a plenaliberdade para instituir-se segmento religi-oso (art. 19, I), de modo semelhante, encon-tram-se nela asseguradas a liberdade deculto e de crena. Ambas correspondem aoenunciado do art. 5, VI: inviolvel a li-berdade de conscincia e de crena, sendoassegurado o livre exerccio dos cultos reli-

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    giosos e garantida, na forma da lei, a prote-o aos locais de culto e a suas liturgias.

    A liberdade de culto somente admite ascontenes impostas pela j decantada re-gra de ouro da liberdade. Por exemplo, nose dever aceitar como legtima expressode tal liberdade o prosseguimento de cultosruidosos noite adentro, impedindo o siln-cio indispensvel ao sono e ao descanso dacomunidade. Ou, pior ainda: admitir-se sa-crifcio de vidas humanas em prol de su-posta liberdade de culto. Se, no passado, emtribos primitivas, homens, mulheres e, prin-cipalmente, crianas eram sacrificados paraaplacar a ira dos deuses, hoje, em todos ossistemas jurdicos contemporneos, semexceo, a conduta tipificaria ilcito penal.

    Ocorre que liberdade no se admitir aoposio de barreiras com lastro na idia debons costumes, cumprindo frisar que osistema constitucional brasileiro abando-nou regra anloga antes mencionada, porexemplo, na Constituio de 1891, cujo art.72, 5, promovera referncia ao critriomoral pblica como dado legitimamenterestritivo liberdade de culto.

    Mas a proteo constitucional liberda-de de culto, nos termos do art. 5, VI, estcondicionada ao estabelecido em lei (em sen-tido formal, claro), razo suficiente paraentender-se que o enunciado em questo norma constitucional com eficcia relativarestringvel: enquanto no demarcados oslimites ao exerccio do direito individual,exerce-o o indivduo plenamente. No casoda liberdade de culto, at no tocante aoshorrios para as reunies se mostra neces-srio reverenciar aqueles fixados pelo Mu-nicpio1, e, quanto liturgia, isto , o ritualutilizado pelo segmento religioso, o prprioCdigo Penal brasileiro descreve as condu-tas que podem ser subsumidas em homic-dios ou leses corporais.

    A liberdade de crena, conjugada deconscincia, permite considerar que o indi-vduo poder crer no que quiser, e expres-sar publicamente a sua crena; mas no selhe interdita, contudo, a liberdade de no

    crer em absolutamente nada, assim como deutilizar meios para a divulgao do seu ag-nosticismo.

    6. Questes controvertidas sobrea liberdade religiosa

    O assunto controvertido por exceln-cia. A cada momento em que se pesquisa arespeito, mais se vai encontrando aspectosbastante polmicos em torno ao exerccio daliberdade religiosa.

    Assim, muitas outras questes to oumais polarizadas do que as sugeridas nosprximos subitens certamente sero desco-bertas por quem se propuser apreciaomais detida; todavia, o objetivo, aqui, apon-tar, de modo exemplificativo, situaes en-sejadoras de razovel grau de controvrsiaque se submeteram reflexo, e, portanto,so todas, indistintamente (e no poderiaser mesmo de outra forma...), concluses aoconfronto, ao cotejo.

    6.1. A incluso do nome de Deus noPrembulo do texto constitucional afasta a

    posio laica do Estado brasileiro?Repita-se, mais uma vez, para enfatizar

    um dos desdobramentos da liberdade reli-giosa: a Constituio garante ao indivduoa liberdade para crer e no crer em nada,assim como para expressar a sua crena oudescrena.

    O Prembulo expressa o seguinte: Ns,representantes do povo brasileiro, reunidosem Assemblia Nacional Constituinte parainstituir um Estado democrtico, destinadoa assegurar o exerccio dos direitos sociais eindividuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a desigualdade ea justia como valores supremos de umasociedade fraterna, pluralista e sem precon-ceitos, fundada na harmonia social e com-prometida, na ordem interna e internacio-nal, com a soluo pacfica das controvrsi-as, promulgamos, sob a proteo de Deus, aseguinte CONSTITUIO DA REPBLICAFEDERATIVA DO BRASIL.

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    Persiste, ento, a dvida: invocar aproteo de Deus na norma preambularinduz existncia de um Estado brasilei-ro crente?

    No h qualquer novidade na discus-so, visto que, desde a Assemblia Nacio-nal Constituinte, grassavam incertezas so-bre se incorporar o nome Deus conduziria auma opo do constituinte originrio, tor-nando oficial o fato de se crer em uma ou emdiversas divindades.

    Se isso fosse correto, como compatibili-zar tal invocao com as liberdades de cons-cincia e de crena expressas no art. 5, VI?Haveria antinomia, contradio entre osdispositivos constitucionais?

    Logo no incio do curso de direito cons-titucional, na graduao, aprende-se que aconstituio no deve ser interpretada emtiras ou filetes, devendo-se conferir, destar-te, prevalncia ao seu sentido unitrio. ochamado princpio da unidade, vertido naatitude do intrprete tendente a prestigiar osistema como um todo, e no apenas umanorma em particular.

    No certo encontrar antinomias entrenormas constitucionais, mas sim interpre-t-las de tal modo que se evitem colises.

    E precisamente por essa razo que novislumbro qualquer incoerncia entre inse-rir-se o nome de Deus no Prembulo e a li-berdade preconizada no corpo dos direitosindividuais.

    Observe-se como inicia o Prembulo:Ns, representantes do povo brasileiro(...). O recurso personificao d a exataidia de que o nome de Deus fora menciona-do para ressaltar a postura crente da maio-ria dos parlamentares que atuaram na ela-borao do vigente Texto Constitucional. Soos legisladores constituintes de competn-cia originria que resolveram rogar prote-o divina, no sendo correto promovercontingente vinculao do Estado brasilei-ro crena religiosa, porquanto se recorreao uso do pronome pessoal da primeira pes-soa do plural para reforar a antedita per-sonificao.

    6.2. A expresso Deus seja louvadoem notas de Real hiptese de

    proselitismo religioso?

    Porque se cogitou da insero do nomede Deus no Prembulo da Constituio de1988, cuida investigar se o mesmo procedi-mento implica proselitismo religioso em setratando de moeda de curso forado no Pas.

    O padro monetrio brasileiro, o Real,no rigorosamente novo. Em verdade, eleretoma o nome da velha moeda, real, de plu-ral mil-ris, utilizada pelos nossos antepas-sados, at 1942, quando foi substituda pelocruzeiro por Getlio Vargas.

    Dos muitos traos delineadores de umanao que um conceito sociolgico, e nojurdico , tais como a lngua, os acidentesgeogrficos mais conhecidos e os seus vul-tos histricos, a moeda igualmente se insereno conjunto dos elementos preservadores deuma identidade nacional.

    Renato Janine RIBEIRO (19--?, p. 65-66)pondera que uma das questes essenciaisda doutrina econmica a da moeda comorepresentao, no caso, de riquezas. Mas amoeda tambm pode ter o papel de repre-sentar ou simbolizar contedos menostangveis, no econmicos, em especial osque constituem, por exemplo, uma naciona-lidade. Esse outro carter representativo damoeda, estreitamente ligado sua denomi-nao, mas que obviamente depende de suaeficcia propriamente econmica, no cons-titui, porm, tema da economia. Investig-locabe quelas cincias humanas que lidamcom a significao das aes, o que o casoda antropologia ou, se deixarmos de ladoa aspirao cientfica, para enfatizar o exa-me dos pressupostos e significaes, o dafilosofia poltica. Alis, para no ficarmosna simples teoria, basta lembrar o papel queo marco alemo, moeda oficial da Alema-nha Federal, desempenhou no orgulho na-cional daquele pas. Os alemes, tendo emsua memria do sculo XX a inflao talvezmaior da histria, identificaram sua pros-peridade capacidade de administrar uma

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    moeda estvel e invejada. Basta, por isso,assinalar o receio que muitos deles sentem,de que a substituio de sua divisa pelamoeda comum europia acarrete o fim des-se perodo ureo de sua economia e de suavida social.

    Na Alemanha, nos Estados Unidos e noBrasil. Onde quer que se tente estabilizar aeconomia especialmente quando se recor-re a polticas econmicas monetaristas , amoeda cumpre atribuies muito mais im-portantes do que se converter em mero esimples instrumento facilitador das relaesde cunho econmico, mxime quando estcompletamente associada a um determina-do planejamento econmico.

    sintomtico que os mirabolantes pla-nos econmicos urdidos nos escaninhos dosgabinetes refrigerados em Braslia tenhamsido invariavelmente acompanhados damudana do padro monetrio brasileiro.Cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeironovo, real, cada moeda, enfim, foi apresen-tada como a soluo de todos os nossosmales...

    Explica-se: a economia, conquanto sevalha da matemtica, estatstica e clculoseconomtricos, no , definitivamente, cin-cia exata. Com isso, a norma econmica pla-nejadora, para dar certo, necessita ser rece-bida como um mito pela comunidade des-tinatria. Mito, por sua vez, representati-vo da coincidncia das aspiraes da maio-ria com as diretrizes econmicas propostas.E, portanto, perseguindo-se a viso mticado planejamento, lanam mo os governosde todos os expedientes democraticamentelegtimos, entre os quais a incluso do nomede Deus, como vem acontecendo com bas-tante habitualidade no Brasil, inclusive comas notas de Real.

    Insubsistente, nesse passo, a defesa dequalquer entendimento que insinue vincu-lao do Estado brasileiro crena religio-sa, porquanto a referncia ao nome de Deusem notas de curso forado cumpre simples-mente o propsito de identificar os indiv-duos ao Plano Real, creditando-o como nor-

    ma planejadora apta e eficaz para a melho-ria da vida das pessoas.

    6.3. A polmica sobre o dia da semanapara a realizao de concurso pblico

    indiscutvel que o art. 37, II, da Consti-tuio concretiza o postulado democrticono tocante ao acesso a cargos e empregospblicos.

    Ocorre, entretanto, que muitos segmen-tos religiosos se abstm completamentequanto a qualquer atividade em determina-do dia da semana. o caso, por exemplo,dos adeptos da Igreja Adventista do StimoDia, que guardam o dia de sbado para odescanso e a organizao de cerimnias re-ligiosas.

    Surge, ento, a dvida: Pode o adventis-ta se recusar submisso prova no diadesignado por recair em sbado?

    Atente-se, de logo, para o seguinte: aAdministrao Pblica deve reverncia aoprincpio da impessoalidade, entre outrosassinalados no art. 37, caput, da Constitui-o.

    Ora, se o contedo do princpio da im-pessoalidade retrata uma Administraoque no beneficia ou prejudica determina-dos indivduos, impedindo-se, destarte, tra-tamento diferenciado2, como tornar aceit-vel que o Adventista do Stimo Dia realizeprova de concurso pblico em data distintada fixada para os demais candidatos? Nohaveria quebra do sigilo e vulnerao de todoo certame?

    Logicamente, se o(s) candidato(s) obteve(tiveram) autorizao para realizar (em) aprova em outro dia, bvio que no ser amesma avaliao a ser aplicada aos doisgrupos de candidatos.

    Embora represente um custo maior parao rgo que disponibiliza as vagas a serempreenchidas por via de concurso pblico, odireito individual liberdade religiosa doadventista no deve ceder espao comodi-dade da Administrao Pblica.

    O Supremo Tribunal Federal, pelo seuPresidente, Min. Marco Aurlio Mello, in-

  • Revista de Informao Legislativa120

    deferiu, em 18/04/2002, o pedido de limi-nar na Suspenso de Segurana n 2.144,ajuizada pela Unio com o objetivo de cas-sar a deciso concessiva de tutela antecipa-da a um candidato de concurso pblico queimpetrara mandado de segurana contra aEscola de Administrao Fazendria, exa-tamente em virtude de a data designada terrecado em dia de sbado3.

    Elogivel a deciso do STF no particu-lar, notadamente porque, pondo na balan-a o valor liberdade religiosa, no o dei-xou parecer em prol da convenincia dosorganizadores do concurso pblico.

    No mbito do Congresso Nacional, oDeputado Doutor Evilsio (PSB/SP) apre-sentou Cmara projeto de lei que impede arealizao de exames vestibulares entre as18 horas das sextas-feiras e as 18 horas dossbados. De acordo com o texto apresentado,caso a instituio de ensino realize provasnesses horrios, dever fixar perodos alter-nativos para os alunos que se ausentarem4.

    6.4. O caso do Dique do Toror (BA) e deBraslia (DF) a exibio de imagens de

    OrixsUm aspecto interessantssimo e polmi-

    co a respeito da liberdade religiosa ocorreucom a exposio de imagens de Orixs re-presentativos das divindades do Candom-bl e da Umbanda, no Dique do Toror, nacidade do Salvador, e em Braslia.

    Em ambas as exposies, as peas foramproduzidas pelo artista plstico baiano TatiMoreno.

    Entretanto, muitos adeptos de IgrejasEvanglicas, entre as quais a Igreja Univer-sal do Reino de Deus e a Assemblia deDeus, protestaram contra a exposio p-blica das imagens dos Orixs, argumentan-do que a iniciativa representava recnditoestmulo do Estado expanso das religi-es afro-brasileiras, e, portanto, ofensiva liberdade religiosa.

    No entendo dessa forma.Desde os primrdios da colonizao bra-

    sileira, os negros sempre foram cerceados

    no tocante ao exerccio de sua f religiosa,tanto que emblemtico da situao o fen-meno do sincretismo, pelo qual os antigosescravos africanos vinculavam uma divin-dade da sua religio aos santos catlicos.

    O tempo passou e a manifestao religi-osa do povo africano no Brasil deixou deconfigurar mera opo por credo para evi-denciar autntico direito cultural da nossacivilizao.

    E, na condio de direito cultural, asse-gura-se no Texto Constitucional a sua frui-o por todos, consoante enuncia o art. 215,caput: O Estado garantir a todos o plenoexerccio dos direitos culturais e acesso sfontes da cultura nacional, e apoiar e in-centivar a valorizao e a difuso das ma-nifestaes culturais.

    Se, reconhecidamente, na hiptese deexibio de imagens produzidas por artistaplstico, o que se v no corresponde ten-tativa do Estado quanto a privilegiar ou fo-mentar a consolidao de um segmento re-ligioso, mas, to-somente, a difuso do pa-trimnio cultural, deve ser rechaado o sec-tarismo que pugnava pela retirada das ima-gens.

    6.5. O sacrifcio de animais nasliturgias do Candombl e Umbanda um exame luz da Constituio e da

    legislao ordinriaMais uma questo controvertida cuja

    anlise reconduz ao exame tambm dos dis-positivos infraconstitucionais pertinentes.

    Viu-se que a liberdade religiosa se per-faz igualmente na liberdade de culto, repre-sentativo do ritual utilizado pelos adeptosde uma f para exteriorizar o seu sentimen-to religioso.

    O art. 5, VI, parte final, da Constituio,protege os locais de culto e as liturgias, naforma da lei. Evidentemente, embora o cons-tituinte originrio refira a lei como instru-mento efetivador da liberdade de culto, pa-rece clara a concluso no sentido de que aliberdade apontada no se condiciona existncia de disciplina infraconstitucional;

  • Braslia a. 40 n. 160 out./dez. 2003 121

    a aluso lei apenas remarca a eficcia re-lativa restringvel do dispositivo constitu-cional em questo5.

    Significa dizer o seguinte: a eficcia res-tringvel do enunciado constitucional fazcom que, desde logo a sua vigncia, venha aproduzir todos os efeitos que lhes so nsi-tos e co-naturais, assemelhando-se, por essarazo, aos preceitos dotados de eficcia ple-na. A distino que se opera est relaciona-da ao fato de que os preceptivos restring-veis podem vir a ter a sua amplitude encur-tada pela atuao judicial ou legislativa. Nocaso, sem dvida, em face da literalidadedo art. 5, VI, suposta conteno liberdadede culto somente poderia ser legitimada pelapreviso, no ordenamento jurdico, de lei emsentido formal limitativa do direito.

    absolutamente decisivo para entender-se a liberdade de culto e, no particular, aliberdade de sacrifcio de animais no ritualdo Candombl e Umbanda situar o art. 5,VI, no contexto da teoria da aplicabilidadedas normas constitucionais, como se reali-zou no momento, sob pena de equivocadacompreenso da sua amplitude.

    Assim, torna-se impositivo percorrer osistema normativo, de l retornando com aconcluso a respeito da existncia ou node regra limitativa do sacrifcio de animais.

    E a resposta positiva: h, sim. preci-samente o art. 64 da Lei das ContravenesPenais, cuja conduta caracterizada comofato tpico tratar animal com crueldadeou submet-lo a trabalho excessivo.

    Inegavelmente, uma vez ocorrido o sa-crifcio de animais, no h como se desven-cilhar do fato tpico descrito no art. 64 daLCP.

    Poder-se-ia argumentar que o termo cru-eldade caracterizado por fortssimo com-ponente ambguo, porque aquilo que seriaconsiderado cruel por um indivduo no oseria por outro, e, assim, os adeptos dos seg-mentos religiosos afro-brasileiros ou qual-quer outro que se utilizasse da prtica litr-gica certamente no reconheceria a cruel-dade em tais sacrifcios. Mas no seriam

    os integrantes da faco religiosa aquelesque estariam legitimados a concluir a res-peito, mas sim a sociedade de uma formageral, o que se consuma como o exame dasituao pelo juiz.

    7. A proteo constitucional daliberdade religiosa dos trabalhadores

    O problema referente ao desrespeito aodireito fundamental liberdade religiosarecrudesce no campo das relaes de traba-lho.

    Quando no o empregador quem su-gestiona os seus trabalhadores participa-o em culto religioso, so os prprios em-pregados que no impem limites sanhapara converter novos adeptos sua f...

    Recentemente tomei conhecimento de umfato inusitado ocorrido em audincia na Jus-tia do Trabalho: determinada empresa dis-pensou uma empregada por justa causa emvirtude de tentar, a todo tempo, converter osseus colegas f religiosa que abraara. Emaudincia, aps a contestao, a juza dotrabalho que a presidia dispensou a produ-o de qualquer prova porque a reclamantetentou tambm convert-la...

    Transcreva-se, de incio, os dispositivosconstitucionais assecuratrios da liberda-de religiosa, no caso o art. 52, IV ( inviol-vel a liberdade de conscincia e de crena,sendo assegurado o livre exerccio dos cul-tos religiosos e garantida, na forma da lei, aproteo aos locais de culto e a suas liturgi-as), o inciso VIII (ningum ser privadode direitos por motivo de crena religiosaou de convico filosfica ou poltica, salvose as invocar para eximir-se de obrigaolegal a todos imposta e recusar-se a cumprirprestao alternativa, fixada em lei), garan-tia fundamental que se completa com a dic-o do art. 19, I, que estabelece: vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicpios: I estabelecer cultos religiososou igrejas subvencion-los, embaraar-lheso funcionamento ou manter com eles ou seusrepresentantes relaes de dependncia ou

  • Revista de Informao Legislativa122

    aliana, ressalvada, na forma da lei, a cola-borao de interesse pblico.

    Para Lon DUGUIT (1925?, p. 451), todoindivduo tem incontestavelmente o direitode crer no que quiser em matria religiosa.Essa propriamente a liberdade de consci-ncia, que no apenas a liberdade de nocrer, mas tambm a liberdade de crer no quequiser. Nem de fato, nem de direito poder olegislador penetrar nas conscincias indi-viduais e lhes impor uma obrigao ou proi-bio qualquer.

    A conquista da liberdade religiosa emtodos os pases algo ainda a ser realizado,mxime porque apesar de as Constituiesatuais a consagrarem normalmente e de em1981 as Naes Unidas terem aprovado umaDeclarao sobre a Eliminao de todas asFormas de Intolerncia e de DiscriminaoBaseadas na Religio ou na Convico, fal-ta ainda percorrer um bem longo caminhoat se alcanar, por toda a parte, uma efeti-va liberdade e igualdade religiosa, comoensina Jorge MIRANDA (1993, p. 358-359).

    Acompanhando a concluso do consti-tucionalista portugus, digo que a liberda-de religiosa enfrenta problemas quanto suaelevao ao patamar de garantia fundamen-tal em muitos sistemas normativos, masacrescento para pr em destaque um fato:mesmo nas constituies contemporneasque a consagram, viceja desconfortvel he-sitao quanto efetiva aplicabilidade dodireito relativamente a inmeras situaes.E a relao contratual trabalhista uma de-las...

    Para se ter uma idia do que se propeem termos de busca de maior compreensoda liberdade religiosa dos trabalhadores,concretizando-a, coloco os seguintes ques-tionamentos: I) possvel, sob o manto daliberdade de crena, admitir que emprega-dos faam proselitismo de determinado seg-mento religioso no mbito interno da em-presa? II) facultado ao empregador con-vocar os seus trabalhadores para participa-rem de culto vinculado a certa religio, comohabitualmente ocorre em datas especiais

    (inaugurao de novas instalaes da em-presa ou de filiais, festas de final de ano,etc.)? III) Pode o empregador, nos domniosfsicos da unidade empresarial, construirtemplo representativo de segmento religio-so? IV) Podem as organizaes religiosascontratar exclusivamente empregados queprofessem a f por elas abraada?

    As questes trazidas, necessariamente,reconduzem a um exame da temtica den-tro de um contexto de ordem supra-indivi-dual, visto que, conquanto integrado ao ple-xo de garantias individuais do art. 5, a li-berdade religiosa, em substncia, um fe-nmeno comunitrio, as pessoas vivem-noem conjunto, prestam culto em conjunto esentem mesmo que a religio implica umarelao de umas com as outras (MIRANDA,1993, p. 359).

    Mas, para responder adequadamente sindagaes formuladas, indispensvelexaminar a amplitude da liberdade religio-sa, que, segundo a doutrina, converte-se emtrs formas diferenciadas: liberdade de cren-a, culto e de organizao religiosa (SILVA,19--?, p. 241).

    A liberdade de crena corresponde aolivre arbtrio outorgado ao indivduo paracrer e manifestar a sua crena e tambmpara no crer, divulgando o seu agnosticis-mo. Na liberdade de crena entra a liber-dade de escolha da religio, a liberdade deaderir a qualquer seita religiosa, a liberda-de (ou direito) de mudar de religio, mastambm compreende a liberdade de noaderir a religio alguma, assim como a li-berdade de descrena, a liberdade de serateu (...) (SILVA, 19--?, p. 242).

    Outrossim, desde as sociedades maisprimitivas, o homem adota maneiras de ado-rar deuses e divindades, que terminam porconformar uma peculiar expresso de cul-to. Modernamente o que se convencionouchamar de liberdade de culto.

    O direito de celebrar cultos da forma quemelhor se adapte s tradies e s particu-laridades do grupo social configura garan-tia fundamental prevista na Constituio de

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    1988 (art. 5, VI), no podendo ser limitadasob o fundamento de ofensa ordem pbli-ca ou aos bons costumes. As contenes liberdade de culto so ditadas, por um lado,pelo sistema penal, j que se no consentirse cometam crimes contra a pessoa (lesescorporais ou mesmo homicdio) a pretextode salvaguarda de uma liberdade de culto;e, por outro, pela consagrao da mximade que a liberdade de algum termina ondecomea a liberdade de outrem, com o queno se poder argir a garantia para, porexemplo, impor vizinhana de uma igrejaque suporte pacientemente celebraes rui-dosas noite adentro.

    O derradeiro aspecto da liberdade reli-giosa nem por isso menos importante sobre o qual cabe refletir o relativo ao di-reito de constituir organizaes religiosas,ou simplesmente, como dito, liberdade deorganizao religiosa.

    O Estado brasileiro laico repita-se ,tanto que o art. 19, I, da Constituio tornadefeso s pessoas jurdicas de direito pbli-co territorial (e todas as outras) estabelecercultos religiosos ou igrejas, subvencion-los,embaraar-lhes o funcionamento ou man-ter com eles ou seus representantes relaesde dependncia ou de aliana, sendo corre-to enfatizar, destarte, que o sistema consti-tucional positivou a separao da igreja doEstado. A liberdade de organizao religio-sa materializa a separao consumada peloconstituinte originrio e, sem ela, no tera-mos por completa, plena a garantia funda-mental.

    Investigada a extenso da liberdade re-ligiosa em toda a sua inteireza, posso j, aesta altura, apresentar as respostas que re-velam o entendimento que defendo.

    Quanto ao primeiro quesito, que versasobre a possibilidade de empregados per-suadirem colegas de trabalho ao ingressoem segmento religioso, fazendo-o dentro daempresa e durante o horrio de trabalho ouno intervalo intrajornada, certo que a li-berdade de crena outorga ao indivduo agarantia de crer ou no crer em coisa algu-

    ma, alm de permitir-lhe divulgar a sua cren-a ou descrena.

    Lon DUGUIT (1925?) adverte, todavia,que o crente tem a certeza inabalvel de queest em possesso da verdade e, ao fazerproselitismo, muito provvel que se tornarintolerante, j que a escolha religiosa e a to-lerncia so duas realidades que se exclu-em mutuamente.

    exatamente com lastro na caractersti-ca intolerncia conformadora da liberdadede crena que no admito o exerccio da ga-rantia no ambiente de trabalho.

    A empresa o local para onde se diri-gem os trabalhadores com o propsito derealizao profissional e material, mas in-discutvel se tratar de comunidade altamen-te heterognea, mais ainda quando forma-da por diversas categorias profissionais.

    A heterogeneidade latente no corpo detrabalhadores abre srio precedente ao sepossibilitar a empregado faa proselitismode uma religio dentro da empresa, j quemuitos colegas podem eventualmente terfeito a opo ou mesmo no ter consuma-do escolha qualquer, o que garantido pelaConstituio, como vimos , criando-se, as-sim, constrangimentos com imprevisveisconseqncias, quer em virtude de a defesade concepo religiosa perante quem j abra-ou outro segmento significar grave ofensa liberdade de crena, quer porque o traba-lhador agnstico pode no aceitar de modopassivo a investida do crente.

    No obstante possa-se tratar de proble-ma ocasionado por um nico empregado, ofato que a situao leva ofensa de inte-resses transindividuais dos trabalhadores,no caso a liberdade de crena e tambm omeio ambiente do trabalho, pois as atitudesvoltadas obteno de adeptos e conversode agnsticos causam profundo mal-estar,mais ainda quando provm de superior hi-errquico.

    Sendo assim, uma vez ocorrida a cir-cunstncia, abre-se ao empregador a facul-dade de extinguir por justa causa a relaocontratual de todos os que se utilizam de tal

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    prtica, diante da incontinncia de condu-ta (art. 482, b, CLT).

    Alm disso, podero tambm o sindi-cato profissional ou o Ministrio Pblicodo Trabalho conduzirem a questo aoPoder Judicirio, pleiteando a adequaoda(s) conduta(s) do(s) empregado(s) queincorre(m) no equvoco diante da transgres-so a interesse individual indisponvel dostrabalhadores.

    Outra questo interessantssima e quecomumente ocorre no trato das relaes en-tre empregado e empregador se refere aoseventos organizados na empresa quando,no raro, so convocados os trabalhadorespara participar de culto de um dado seg-mento religioso.

    Inauguraes de filiais e festas de fim deano muitas vezes se convertem em veladaofensa liberdade religiosa dos trabalha-dores, quando o empresrio escolhe a cele-brao de culto de sua preferncia.

    Ora, da mesma forma do Estado, a em-presa est obrigada a assumir uma posturaimparcial quanto aos segmentos religiosos;a empresa, enfim, no tem religio. O pro-prietrio pode ter; os trabalhadores tambm,mas a empresa, como coletividade destina-da satisfao material e profissional detodos a ela vinculados, est proibida de abra-ar uma dada seita religiosa, exceo feitas organizaes religiosas.

    Por isso que o convite endereado aostrabalhadores a fim de que participem deculto por ocasio do Natal flagrante des-respeito liberdade de religio. A propsi-to, a inexistncia de atividade empresarialdurante feriados religiosos como o Natal no contradiz a afirmao feita no pargra-fo anterior, vista do fato de que a lei probe aabertura do estabelecimento em tais dias.

    Um fato interessante que no deve esca-par nossa apreciao com referncia a tra-balho executado em dias religiosos concerne seguinte pergunta: Pode o empregado exi-mir-se quanto sua presena na empresa emdata tida por inadequada por sua faco reli-giosa, mesmo no sendo feriado reconhecido

    por lei? A rigor, nada impede que ele, medi-ante comunicao prvia ao empresrio, in-forme-o a respeito da impossibilidade de com-parecimento naquele dia, desde que compen-se a ausncia em data a ser estipulada.

    Se o empregador no atende ao pleitoformulado, aberta est a via para requererjudicialmente a resciso indireta do contra-to de trabalho (art. 483, b, CLT), alm de ou-tras providncias que podem e devem seradotadas com o fim de salvaguardar a ga-rantia fundamental dos trabalhadores li-berdade religiosa.

    Outrossim, um dos caracteres mais mar-cantes para a configurao do vnculo em-pregatcio a subordinao jurdica. Pode-ria ser dito que tal elemento caracterizadorda relao de emprego determina o obedeci-mento irrestrito do empregado s diretrizestraadas pelo empregador para o desenvol-vimento da prestao de trabalho, e nadamais. Seria assim? Parece-nos que a subor-dinao expande o seu raio de ao parafazer com que o trabalhador se insira de talforma realidade empresarial que at mes-mo a escolha por uma religio seja consu-mada pelo empregador, de modo ostensivoou subliminarmente.

    E o empregado se integra, hoje, to in-tensamente vida da empresa que passa aser conhecido como o Joo da firma tal, che-gando ao cmulo de o seu crach valer mui-to mais do que a prpria carteira de identi-dade quando se dirige ao comrcio paraaquisio de bens por credirio.

    Maria Aparecida Rhein SCHIRATO(1999, p. 11-13), em entrevista concedida Revista VEJA sob o ttulo Empresa no me,adverte para as seqelas irreversveis quepodem comprometer, por definitivo, a iden-tidade do cidado-trabalhador. Para ela, aempresa como grande me gera filhos de-pendentes, trabalhadores inseguros e semvida pessoal, quando, inclusive, foi consta-tado que vrios empregados nunca haviamcontrolado a sua prpria conta bancriaporque o salrio era depositado a cada quin-ze dias. Ademais, boa parte das contas pa-

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    gas em dbito automtico e com diversos be-nefcios administrados pela empresa, o em-pregado vai-se distanciando da vida. E omaior perigo desse distanciamento ele serconfundido com a empresa; ele comear aacreditar que tudo aquilo que os inmerosadereos empresariais e benefcios corpora-tivos lhe proporcionam: passar na frente dafila do check-in, ter preferncia para ocuparmesa em restaurante, o cheque especial. Elepassa a se movimentar como instituio,como organizao. O trabalhador no temmais posse de si mesmo, no sabe mais quan-to ele custa, quanto vale, e at no sabe arespeito do que pode oferecer ao mercado.

    Em um quadro delineador de tamanhaalienao, est aberto o espao para que seperpetre contra os empregados toda gamade sortilgios, entre os quais os direciona-dos supresso de sua liberdade religiosa.

    O empregador no pode convidarempregados para a participao em cultosde segmento religioso, ainda que seja um sim-ples convite, especialmente porque, nombito das relaes de trabalho, a expressarecusa ou ausncia ao evento por parte dotrabalhador poder soar no como um atorepresentativo da sua liberdade religiosa, massim como demonstrao explcita de rebeldia.

    Por conseguinte, exceo dos cultosecumnicos, que funcionam como elementointegrativo das confisses religiosas, qual-quer outra celebrao na empresa est ve-dada pelo sistema constitucional, competin-do precipuamente ao Ministrio Pblico doTrabalho, por conta da sua vocao institu-cional, atuar no sentido de impedir a reali-zao dos eventos, instando, para isso, oJudicirio Trabalhista para a proteo dointeresse transindividual.

    De uma certa forma, ao definirmos que aempresa no pode ter religio (exceto as or-ganizaes religiosas propriamente ditas),j acenamos para a proibio quanto a serconstrudo na unidade empresarial um tem-plo representativo de confisso religiosa,pois a edificao seria paradigmtica do en-volvimento do ente coletivo com certa seita.

    No relutamos em concluir que, dianteda ocorrncia, torna-se imperiosa a conver-so do templo em espao ecumnico, cujaresistncia do empregador no leva a outroresultado que o seu fechamento ou mesmodemolio, por mais radicais que possamtransparecer as solues aqui trazidas, queperseguem, todavia, a proteo liberdadereligiosa dos trabalhadores.

    Outrossim, as entidades religiosas, como escopo de atingimento dos seus propsi-tos institucionais, necessitam contratar tra-balhadores. E, nesse momento, bvio queno podero restringir o universo dos even-tuais contratados queles que professam af religiosa abraada pela organizao.

    Nem mesmo em questionrios ou entre-vistas para admisso de trabalhadores possvel indagar a respeito de crena docandidato ao posto de trabalho (proibioque se estende a todo e qualquer procedi-mento admissional).

    E, assim, cremos ter respondido s qua-tro indagaes formuladas no incio do su-bitem, buscando, com isso, convergir a aten-o dos operadores e do aplicador do direi-to do trabalho para este assunto ainda nosuficientemente explorado pela cincia dodireito e que versa sobre a garantia funda-mental da liberdade religiosa no plano dasrelaes de trabalho.

    Concluindo o exame do tema no recintoda relao de emprego, oportuno trazer hi-ptese concreta de atuao do MinistrioPblico do Trabalho. Refiro-me ao Termo deAjustamento de Conduta celebrado no Riode Janeiro, por iniciativa do Procuradordo Trabalho, Marcelo Jos Fernandes daSilva:

    Termo de compromisso de ajustamentode conduta n 83/02

    O MINISTRIO PBLICO DO TRABA-LHO PRT DA 1a REGIO, representada,neste ato, pelo Procurador do TrabalhoMARCELO JOS FERNANDES DA SILVA,resolve tomar o presente Termo de Compro-

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    misso de Ajustamento de Conduta da Em-presa NEVER INDSTRIA E COMRCIOLTDA, CNPJ n 31.199.029/0001-78, comsede na Estrada de Vigrio Geral, 371, Vig-rio Geral, Rio de Janeiro, neste ato, repre-sentada por Senhor Luiz Carlos de S, CI

    02846756-1 IFP/RJ, CPF n 267.954.347-53,residente e domiciliado na Av. Meriti, n2907, apto. 202, Vila da Penha, Rio de Janei-ro, nos seguintes termos:

    CONSIDERANDO que segundo o Cen-so de 1991:

    Varivel = Populao residente (Habitante) Ano = 1991 Religio Brasil, Regio Geogrfica e Unidade da Federao

    Brasil 121.812.771 Sudeste 49.552.235 Catlica romana

    Rio de Janeiro 8.538.220 Brasil 553.949

    Sudeste 240.834 Outra crist tradicional Rio de Janeiro 78.630

    Brasil 4.388.281 Sudeste 1.882.841 Evanglica tradicional

    Rio de Janeiro 592.978 Brasil 8.179.706

    Sudeste 4.035.995 Evanglica pentecostal Rio de Janeiro 954.462

    Brasil 621.298 Sudeste 313.410 Crist reformada no determinada

    Rio de Janeiro 77.863 Brasil 8.179.706

    Sudeste 4.035.995 Neo-crist Rio de Janeiro 954.462

    Brasil 1.644.355 Sudeste 1.048.273 Esprita

    Rio de Janeiro 253.921 Brasil 648.489

    Sudeste 437.018 Candombl e umbanda Rio de Janeiro 248.874

    Brasil 86.416 Sudeste 70.960 Judaica ou israelita

    Rio de Janeiro 26.190 Brasil 368.578

    Sudeste 290.478 Oriental Rio de Janeiro 52.137

    Brasil 94.556 Sudeste 51.494 Outra

    Rio de Janeiro 14.610 Brasil 6.946.221

    Sudeste 3.910.508 Sem religio Rio de Janeiro 1.759.364

    Brasil 595.979 Sudeste 417.631 Sem declarao

    Rio de Janeiro 114.314 Fonte: IBGE (1991?).

    CONSIDERANDO que as diversas reli-gies professam princpios de f diversos epossuem livros sagrados ou no;

    CONSIDERANDO que o CENSO de1991 conseguiu dimensionar as seguintesreligies:

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    Afro-tradicionais religio tradicionaldo continente africano. Tem como principalcaracterstica a ausncia de um livro sagra-do, baseando-se em mitos e rituais que sotransmitidos oralmente. No Brasil encon-tramos o CANDOMBL com seus rituais eordem de orixs e outras divindades, quevariam de acordo com a regio africana deorigem, e o UMBANDISMO de origem afri-cana, mas que resultado de um forte sin-cretismo e tambm com seus cultos e orixs.

    Budismo religio fundada por Si-ddharta Gautama o Buda na sia Cen-tral, por volta de 563-483 a.C., baseada, emsntese, em cinco princpios: a vida sofri-mento; o sofrimento causado pelo desejo;para se libertar do sofrimento preciso ex-tinguir o karma, ensinando como o serhumano pode escapar do ciclo nascimentoe morte (reencarnao), por meio da con-quista do mais alto conhecimento.

    Confucionismo doutrina tica e polti-ca, fundada por Confcio (551-479 a.C.), quepor mais de dois mil anos constituiu o siste-ma filosfico dominante da China. Seu pen-samento consiste em definir as relaes hu-manas individuais em funo das institui-es sociais, principalmente da coletividade.

    Cristianismo conjunto das religiescrists (catolicismo, protestantismo e religi-es ortodoxas orientais), que se baseia nosensinamentos de Jesus Cristo. O CATOLI-CISMO tem como chefe o papa, baseia-se nasEscrituras, na Infalibilidade da Igreja e naTradio, seu livro: a Bblia, que possui seislivros a mais que a Bblia Protestante, cujoAntigo Testamento possui apenas 39 livros.Os cristos ortodoxos no reconhecem aautoridade do papa. O protestantismo abri-ga as religies crists reformistas, baseia-sena Bblia, cuja autoridade soberana, rejei-ta a missa, o culto aos santos, a autoridadepapal. As igrejas dividem-se em tradicio-nais, pentecostais e neopentecostais.

    Espiritismo doutrina organizada porAllan Kardec com base no ensino dado pe-los espritos. No tem livros sagrados, nemliturgias, nem rituais, nem sacramentos. Tem

    como princpios: Deus, a imortalidade daalma, a mediunidade, a reencarnao e apluralidade dos mundos habitados. Para osespritas, Jesus o modelo de conduta moral.

    Hindusmo religio professada pelamaioria dos povos da ndia. Cultua um gran-de nmero de deuses e deusas e seus segui-dores acreditam na reencarnao e na uniocom Deus supremo Brahma pela liberta-o espiritual. Os hindustas tm rituais di-rios obrigatrios e tambm os no-obriga-trios, mas de enorme valor para eles, comoa peregrinao a lugares sagrados: rio Gan-ges, por exemplo.

    Judasmo religio do povo hebreu fun-dada na aliana com Deus feita por Abraoe no Torah. Os judeus no acreditam que oCristo era o Messias (filho de Deus) e aindaesperam pela sua vinda. Existe tambm umoutro tipo de judasmo judasmo alexan-drino que fortemente influenciado pelopensamento grego. Moiss, que libertou opovo hebreu da escravido no Egito, con-siderado seu profeta maior.

    Taosmo filosofia religiosa desenvolvi-da principalmente pelo filsofo Lao-tse (s-culo VI a.C.). A noo fundamental dessadoutrina o Tao o Caminho princpiosintetizador e harmnico do Yin (feminino)e Yang (masculino). O acesso ao Caminhose d pela meditao e pela prtica de exer-ccios fsicos e respiratrios.

    Maometismo religio fundada porMaom (570-652 d.C.); do isl, muulmana.Afirma a existncia de um nico Deus Al e acredita que o Cristo foi um grande pro-feta. Maom, no entanto, no cultuado emsi mesmo nem considerado um intermedia-dor entre Deus e os homens. Para os muul-manos, sua vida o ponto mximo da eraproftica, sendo as leis do islamismo o cum-primento das revelaes anteriores feitaspelos profetas das religies reveladas, comoo cristianismo e o judasmo. O Alcoro olivro nico em que esto contidos os seusprincpios e crenas.

    FONTE: Censo Demogrfico 1991 (IBGE,1991?).

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    CONSIDERANDO, ainda, os sem reli-gio;

    CONSIDERANDO que a Repblica Fe-derativa do Brasil, que tem como fundamen-to a dignidade da pessoa humana, art. 1,IV, como objetivo promover o bem de todossem preconceito de origem, raa, sexo, cor,idade e quaisquer outras formas de discri-minao (art. 3, IV), bem como elevou ca-tegoria de direito e garantia fundamental ainviolabilidade liberdade de conscinciade crena, art. 5, VI, assim como a garantiade ningum ser privado por motivo de cren-a religiosa, art. 5, VIII, todos da Constitui-o da Repblica Federativa do Brasil;

    CONSIDERANDO que os dados verifi-cados pela compromissria, quando dasentrevistas para vagas em seu estabeleci-mento e anotados em uma agenda, atinen-tes opo religiosa, Igreja que o candidatofreqentava, bem como que os havia indica-do na igreja, representam verdadeira discri-minao;

    CONSIDERANDO que a referida aferi-o no encontra amparo, ou melhor, re-pudiada pelo Sistema Jurdico vigente, con-forme acima apontado;

    CONSIDERANDO que o CULTO reali-zado todos os dias na sede da empresa (noauditrio) tem ntido carter religioso pro-testante, uma vez que se louva a Jesus Cris-to e l-se a Bblia protestante;

    CONSIDERANDO como acima aponta-do que o ensinamento de Jesus no funda-mento de muitas das religies existentes eprofessadas no Brasil;

    CONSIDERANDO que a Bblia Protes-tante no partilha alguns livros existentesna Bblia Catlica;

    CONSIDERANDO que a Bblia no li-vro sagrado para muitas religies;

    CONSIDERANDO que no ambiente detrabalho no pode ser criado qualquer tipode constrangimento que atinja as opesreligiosas dos trabalhadores, principalmen-te porque a subordinao se presume;

    CONSIDERANDO ainda que a coao participao no culto se presume, ante a for-

    ma como feita a seleo dos candidatos avagas na empresa, uma vez que a condiode evanglico por demais aferida pela com-promissria;

    CONSIDERANDO que na inspeo rea-lizada verificou-se que mais de 90% dos tra-balhadores internos estavam no CULTO;

    CONSIDERANDO que a alta taxa deadeso ao CULTO se explica pela prpriaforma com que os trabalhadores so admiti-dos, ou seja, com privilgio para os protes-tantes;

    CONSIDERANDO, ainda, que as pesso-as no podem ser discriminadas no acessoao emprego, pelo simples fato de serem fu-mantes;

    A pessoa Jurdica Never Indstria e Co-mrcio Ltda compromete-se, doravante, asatisfazer e cumprir fielmente as seguintesobrigaes:

    a) No mais se utilizar, no processo sele-tivo, de indagaes, perguntas ou qualqueroutra forma de aferio das opes, crenase militncias religiosas;

    b) No discriminar quer candidatos,quer os atuais e futuros empregados, quercom relao admisso, quer com relaos promoes e outras vantagens legais ouestabelecidas pela empresa ou normas cole-tivas;

    c) No mais realizar CULTOS em seuestabelecimento ou em qualquer de suasdependncias, dentro do horrio de trabalho;

    d) Que a participao em qualquer atode carter religioso no pode ser impingi-da, nem exigida, nem haver qualquer for-ma de assdio ou coao, por mais dissimu-lados que sejam, para os trabalhadores par-ticipem desses cultos;

    e) Que durante o perodo destinado aoculto no sero cumpridas quaisquer obri-gaes de natureza contratual, como: assi-natura de presena, assinatura de contra-cheques, cartes de ponto, entrega de docu-mentos, ou outro qualquer ato decorrente docontrato de trabalho;

    f) A compromissria pagar a multa deR$ 5.000,00 (cinco mil reais) por ato discri-

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    minatrio reversvel para o FAT e devida-mente atualizado.

    Rio de Janeiro, 09 de abril de 2002.Marcelo Jos Fernandes da Silva

    Procurador do TrabalhoNever Indstria e Comrcio Ltda

    Luiz Carlos de S Scio da compromissriaDiana Teresa Furtado Castro

    AdvogadaMcia Costa Xavier

    8. Concluso

    Ainda que a questo religiosa tenha per-durado na Frana at meados do sculoXVII, correto afirmar que a tolerncia di-versidade de opo religiosa somente foiguindada ao plano de liberdade pblica coma Declarao dos Direitos do Homem e doCidado, de 1789;

    Sem dvida, a opo religiosa est toincorporada ao substrato de ser humano,que o seu desrespeito provoca idntico de-sacato dignidade da pessoa;

    Se o pluralismo poltico aparece comofundamento a autorizar a existncia de di-versos rgos forjados no altiplano de idi-as e posies as mais variadas, termina porreforar a liberdade de organizao religio-sa;

    No Prembulo, o recurso personifica-o (Ns, os representantes do povo brasi-leiro) d a exata idia de que o nome deDeus fora mencionado para ressaltar a pos-tura crente da maioria dos parlamentaresque atuaram na elaborao do vigente Tex-to Constitucional. So os legisladores cons-tituintes de competncia originria que re-solveram rogar proteo divina, no sen-do correto promover-se contingente vincu-lao do Estado brasileiro crena religio-sa, porquanto se recorre ao uso do pronomepessoal da primeira pessoa do plural parareforar a antedita personificao;

    A referncia ao nome de Deus em notasde curso forado cumpre simplesmente opropsito de identificar os indivduos aoPlano Real, creditando-o como norma pla-

    nejadora apta e eficaz para a melhoria davida das pessoas;

    Sendo certo que a liberdade de culto seencontra materializada em norma constitu-cional com eficcia relativa restringvel, po-dendo, portanto, ter a sua amplitude encur-tada por atuao do legislador ordinrio,conclui-se que o sacrifcio de animais no ri-tual de Candombl e Umbanda no temamparo no sistema normativo em virtudedo tipo legal consubstanciado no art. 64 daLei das Contravenes Penais;

    Embora represente um custo maior parao rgo que disponibiliza as vagas a serempreenchidas por via de concurso pblico, odireito individual liberdade religiosa doadventista no caso, no se submetendo prova em dia de sbado no deve cederespao comodidade da Administrao P-blica;

    Na hiptese de exibio de imagens pro-duzidas por artista plstico, o que se v nocorresponde tentativa do Estado quanto aprivilegiar ou fomentar a consolidao deum segmento religioso, mas, to-somente, adifuso do patrimnio cultural;

    A heterogeneidade latente no corpo detrabalhadores abre srio precedente ao sepossibilitar a empregado faa proselitismode uma religio dentro da empresa, j quemuitos colegas podem eventualmente terfeito a opo ou mesmo no ter consu-mado escolha qualquer , criando-se, as-sim, constrangimentos com imprevisveisconseqncias, quer em virtude de a defe-sa de concepo religiosa perante quemj abraou outro segmento significar gra-ve ofensa liberdade de crena, quer por-que o trabalhador agnstico pode noaceitar de modo passivo a investida docrente;

    O convite endereado aos trabalhado-res a fim de que participem de culto por oca-sio do Natal flagrante desrespeito liber-dade de religio;

    A existncia, na empresa, de templo re-presentativo de um dado segmento religio-so torna imperiosa a sua converso em es-

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    pao ecumnico, abrigando, assim, todas astendncias religiosas;

    As entidades religiosas, malgrado talcondio, no podem restringir o universodos trabalhadores contratveis queles queprofessam a f religiosa abraada pela or-ganizao.

    Notas1 Fixao de horrio-limite para cultos religio-

    sos assunto referente a interesse local, com o queincide a regra de competncia do art. 30, I, da Cons-tituio.

    2 tambm expresso do princpio da impes-

    soalidade a existncia de Administrao Pblicano vinculada ao rosto do governante.

    3 Disponvel em: .4 Fonte: Jornal A Tarde, Salvador, 3 jul. 2002.

    5 A classificao utilizada a proposta por

    Maria Helena DINIZ (1992).

    Bibliografia

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    SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positi-vo. [S. l.: s. n., 19- -?].TOLEDO, R. P. de. No convocar o santo nome...Veja, So Paulo, n. 1759, p. 114, 10 jul. 2002.