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Junho 2008 148 PRÍ ON A mesma molécula que provoca o mal da vaca louca protege o cérebro A proteína am bivalente ENT REV IST A NEWTON DA COSTA >> ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA III POR QUE OS CIENTISTAS SAO APAIXONADOS PELO QUE FAZEM Celulas-tronco e m b r i o n a r i a s STF da aval a primeira linhagem ´ ´ ´ ` EXEMPLAR DE ASSINANTE V ENDA P ROIB IDA

A proteína ambivalente

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Pesquisa FAPESP - Ed. 148

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Page 1: A proteína ambivalente

Junho 2008 ■ Nº 148

PRÍ ON

A mesma molécula que provoca o mal da vaca louca protege o cérebro

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>> ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA III

POR QUE OS CIENTISTASSAO APAIXONADOSPELO QUE FAZEM

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A revista Pesquisa Fapesp convida para as palestras:

CIÊNCIA DO SISTEMA TERRESTRE E A SUSTENTABILIDADE DA VIDA NO PLANETA

Carlos NobrePESQUISADOR DO INPE E INTEGRANTE DO PAINEL INTER-GOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS (IPCC)

> dia 14 de junho, sábado, às 15h

GENÔMICA NO MUSEU

Rob DeSalleCURADOR DA SEÇÃO DE ZOOLOGIA DE INVERTEBRADOS DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE NOVA YORK E CURADOR DA EXPOSIÇÃO REVOLUÇÃO GENÔMICA

> dia 15 de junho, domingo, às 11h

EXPANSÃO INTERNACIONAL DA ANTROPOLOGIA AMBIENTAL: EXPERIÊNCIAS NA AMAZÔNIA

Emilio MoranPROFESSOR DE ANTROPOLOGIA E DIRETOR DO CENTRO ANTROPOLÓGICO PARA TREINAMENTO E PESQUISA EM MUDANÇAS AMBIENTAIS GLOBAIS DA UNIVERSIDADE DE INDIANA, NOS ESTADOS UNIDOS

> dia 21 de junho, sábado, às 15h

ARROZ: UM EXEMPLO DE COMO A GENÔMICA PODE MUDAR AS ABORDAGENS DA CIÊNCIA

Robin BuellPESQUISADORA DO DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA VEGETAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN

> dia 22 de junho, domingo, às 11h

GENÔMICA, SAÚDE E REPARAÇÃO CARDÍACA UTILIZANDO CÉLULAS-TRONCO

José Eduardo KriegerESPECIALISTA EM HIPERTENSÃO, É MÉDICO E PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP E DIRETOR DO LABORATÓRIO DE GENÉTICA E CARDIOLOGIA MOLECULAR DO INSTITUTO DO CORAÇÃO, INCOR

> dia 29 de junho, domingo, às 11h

DEBATE

CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E MÍDIA

Mayana Zatz [segundo nome a confi rmar]GENETICISTA, É PROFESSORA DO INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS DA USP, PRÓ-REITORA DE PESQUISAS DA UNIVERSIDADE E COORDENADORA DO CENTRO DE ESTUDOS DO GENOMA HUMANO

> 06 de julho, domingo, às 15h

UMA VISÃO GENÔMICA DA EVOLUÇÃO HUMANA

Wen-Hsiung LiPESQUISADOR DO DEPARTAMENTO DE ECOLOGIA E EVOLUÇÃO DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO. ESTUDA MECANISMOS DE EVOLUÇÃO MOLECULAR E GENÔMICA

> 12 de julho, sábado, às 15h

GENOMAS E EVOLUÇÃO

Michael LynchBIÓLOGO DA UNIVERSIDADE DE INDIANA. ESTUDA OS MECANISMOS DA EVOLUÇÃO EM DIVERSOS NÍVEIS — GENE, GENOMA E ORGANISMO

> 13 de julho, domingo, às 11h

ORGANIZAÇÃO

Parque do Ibirapuera, portão 10pavilhão Engenheiro Armando de Arruda Pereira

> entrada franca

veja a programação completa de palestras e debates no site www.revistapesquisa.fapesp.br

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 3

IMAGEM DO MÊS*

A Amazônia Legal ainda esconde 68 grupos indígenas vivendo em completo isolamento, sem nenhum contato com o Brasil que bate recordes na produção de automóveis e comemora a conquista do grau de investimento. Um desses grupos foi fotografado pela primeira vez por uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai), próximo à fronteira do Acre com o Peru. De acordo com o sertanista José Carlos Meirelles, que monitora os índios há quase 20 anos, eles vivem em malocas e plantam mandioca e banana, mas não se sabe a que etnia pertencem. O grupo recebeu a flechadas o rasante do avião da Funai.

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Saudades do Brasil

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148 JUNHO 2008

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16 CAPA

> CAPA

16 Equipe brasileira explica o funcionamento da forma saudável do príon, essencial para a proteção das células nervosas

> ENTREVISTA

10 Newton da Costa, matemático criador da lógica paraconsistente, tem três livros reeditados

> ESPECIAL III

61 REVOLUÇÃO GENÔMICA

Debates e embates da ciência

> POLÍTICA CIENTÍFICA

E TECNOLÓGICA

28 JUSTIÇA

Decisão histórica do STF abre caminho para a primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias

30 SOCIOLOGIA Por que a satisfação dos cientistas com seu trabalho é tão grande

34 DIFUSÃO

Exposição em Berlim mostra a riqueza da biodiversidade brasileira

38 UNIVERSIDADES

O emirado árabe de Dubai investe US$ 10 bilhões para virar um pólo internacional de ensino superior

> AMBIENTE

40 FISIOLOGIA

Avidez das plantas por gás carbônico abre perspectivas de produzir mais alimento em menos espaço e de amenizar o aquecimento global

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 50 LABORATÓRIO 83 SCIELO NOTÍCIAS ...........................

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> EDITORIAS > POLÍTICA C&T > AMBIENTE > CIÊNCIA > TECNOLOGIA > HUMANIDADES WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

46 AGRICULTURA

Bactérias substituem fertilizantes nitrogenados como promotores do crescimento da cana-de-açúcar

48 MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Ar mais limpo no hemisfério Norte poderá intensificar secas na Amazônia a partir de 2025

> CIÊNCIA

54 FÍSICA

As palavras de ordem da e-Science são as mesmas dos heróis de Alexandre Dumas: um por todos, todos por um

58 ZOOLOGIA

Comportamento do tangará-dançarino determina sua variabilidade genética

60 NEUROLOGIA

Ritmo de funcionamento cerebral pode indicar maior capacidade de aprendizagem

............................ 84 LINHA DE PRODUÇÃO 108 RESENHA 110 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO SPL/LATINSTOCK

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> TECNOLOGIA

88 ESPAÇO

Câmera para fotografar superfície terrestre, feita por empresa brasileira, vai equipar o satélite sino-brasileiro Cbers-3

92 INFORMÁTICA

Softwares livres atraem cada vez mais empresas e pesquisadores

94 ENGENHARIA Equipamento de raios X desenvolvido por empresa paulistana revela impurezas em alimentos

> HUMANIDADES

98 RELAÇÕES

INTERNACIONAIS Pesquisa mostra as dificuldades das relações entre o Brasil e os Estados Unidos

104 HISTÓRIA

Biografia do general Osório resgata a importância do militar no Segundo Reinado

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6 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

Ações afi rmativas

Cumprimento Pesquisa FAPESP por abordar as ações afi rmativas (“Limites desafi ados”, edição 146) sem precon-ceitos e baseada em pesquisas na área. No entanto, uma das pesquisas citadas, a da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não trazia o nome dos autores nem referência para que fosse buscada. Foi a única em que não houve citação nominal dos autores (e eu sou um deles), nem do fato de ter sido publicada nos Cadernos de Pesquisa de maio-agosto de 2006, periódico Qualis A internacional da área de edu-cação. Isso prejudica o contato do lei-tor com a fonte primária, o artigo, que aliás contém conclusões mais profun-das, como o fato de cotas para escolas públicas não mudarem o perfi l étnico-racial da UFSC, ao contrário do senso comum que diz que a questão racial se resolve automaticamente com a inclusão socioeconômica.

Marcelo H. R. TragtenbergUFSCFlorianópolis, SC

Parabéns pela reportagem “Limites desafi ados”. Tenho um comentário a fazer: refere-se ao estudo desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina, citado no texto. Tive acesso a esse estudo e recomendo à revista pu-blicar uma referência para quem tiver interesse em conhecê-lo, pois vale a pena! Trata-se de uma proposta que, a meu ver, deveria ser realizada por todas as universidades que pretendem implantar algum programa de inclusão.

Ana InoueCentro de Estudar Acaia SagaranaSão Paulo, SP

Mais verde

Parabéns pela reportagem “Mais ver-de do que imaginávamos” (edição 145). É de extrema importância abrir a discussão no meio acadêmico sobre a subs tituição dos ecossistemas natu-

[email protected]

■ Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

■ Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: [email protected] ou ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418

■ Assinaturas de pesquisadores e bolsistas Envie e-mail para [email protected] ou ligue (11) 3838-4304

■ Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para [email protected] ou ligue (11) 3838-4304

■ Site da revistaNo endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.

■ Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]

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As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

rais por culturas agrícolas e pastagens, ritmo que vem se intensifi cando dada a atual corrida por biocombustíveis, com destaque para o etanol. Não se questiona que o desenvolvimento de novas tecnologias do agronegócio se-ja essencial para o desenvolvimento do país e a qualidade de vida da po-pulação, mas não dá para aceitar que remanescentes de florestas nativas ainda sejam eliminados para o avanço da agricultura, uma vez que já existem extensas áreas desmatadas, muitas abandonadas ou subutilizadas, que somadas são maiores que alguns paí-ses europeus. Em Minas Gerais a situ-ação não é diferente do restante do país: grandes áreas das regiões mais planas de Cerrado no Triângulo e no norte cederam espaço para culturas como a soja e para a pecuária de corte, e nas regiões montanhosas como o sul e a Zona da Mata a cultura do ca fé e a pecuária leitei ra reduziram as fl orestas nativas a fragmentos degradados e isolados em encostas e topos de morro de difícil acesso. Contudo, em Minas, iniciativas vêm sendo tomadas no sen-tido de frear o processo de conversão dos ecossistemas naturais em áreas antropizadas, entre elas cabe destacar a criação recente na Universidade Federal de Viçosa do Pólo de Excelên-cia em Florestas pelo governo esta-dual. Através do Pólo de Florestas da UFV/governo de Minas será possível realizar treinamentos de técnicos li-gados às instituições estaduais e fede-rais sobre restauração florestal das áreas de preservação permanente já desmatadas e conservação de áreas protegidas, bem como monitorar e direcionar a atividade florestal do estado, visando à adequação ambien-tal das empresas agropecuárias, fl o-restais e mineradoras.

Sebastião Venâncio MartinsUniversidade Federal de ViçosaViçosa, MG

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Conhecimento, medo e paixão

Mariluce Moura - Diretora de Redação

Se o prazer, a euforia, a excitação extrema são as emoções mais constantes de um pesquisador criativo no limiar do que ele,

pelo menos, julga ser uma grande descober-ta, um achado extraordinário, tenho a im-pressão de que o medo é o sentimento mais comum e banal, o mais freqüente, ante as descrições dos cientistas sobre algo novo e potencialmente ameaçador à vida que, de súbito e por acaso ou depois de um longo e calculado esforço, fi nalmente, encontraram. Pode ser a hipotética identificação de um meteorito cuja rota bem calculada indica seu choque dramático com a Terra dentro de alguns meses ou a previsão de um gigantes-co e incontrolável tsunami em águas antes calmas do oceano Pacífi co. Mas, na verdade, nada originário da seara dos cientistas é mais repetidamente aterrador do que suas descri-ções de novas e insuspeitadas doenças que se abatem sobre a espécie humana. Para fi car apenas em alguns exemplos das últimas dé-cadas do século XX, podemos lembrar da Aids, de uma infecção mortal causada pelo vírus Ebola na África ou a forma humana do mal da vaca louca na Europa desde os últimos anos da década de 90, avançando pela pri-meira década do século XXI.

Os saberes dos cientistas, julga o senso comum, se produzem medo quando nos co necta com a consciência individual de nos sa indesejada fi nitude, também devem provocar imenso alívio quando informam sobre o achado dos antídotos para os males anunciados. Ou, ao menos, quando relati-vizam e situam em novo contexto aquilo que de início parecia apenas a encarnação do mal absoluto na natureza. É sempre gra-tifi cante, afi nal, a notícia de que segui mos sobreviventes. E é disso, em certa medida, desse alívio face à relatividade do mal, que trata a reportagem de capa desta edição.

Em termos mais concretos, ela relata co-mo um grupo de pesquisadores brasileiros conseguiu explicar o funcionamento da for-ma saudável do príon, o chamado príon ce-lular, espécie de contraface da proteína per-

versa que provoca o mal da vaca louca. Me-lhor que isso, a equipe mostrou que o príon saudável é essencial para o crescimento das células nervosas, a formação da memória e a regulação do sistema imunológico. Mais ainda, como explica nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a partir da página 16, esses pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, coorde-nados pelo oncologista Ricardo Renzo Bren-tani (diretor presidente da FAPESP, registre-se), apresentaram em artigo publicado em abril último na Physiological Reviews a mais ampla revisão sobre os agentes infecciosos da doença de Creutzfeldt-Jakob, “com informa-ções que podem infl uenciar a terapia dessa enfermidade que se instala sorrateiramente ao longo de 2 ou 3 décadas e evolui a uma velocidade assustadora, levando a uma mor-te trágica”. Esclareçamos que essa doença tem quatro formas, uma das quais é a versão hu-mana do mal da vaca louca. Mas há vários outros detalhes no texto de Zorzetto que tornam indispensável sua leitura.

Gostaria de aproveitar para recomendar aqui insistentemente a leitura da entrevista de Newton da Costa a partir da página 10, feita por nosso editor-chefe, Neldson Mar-colin, da reportagem sobre a revisão da vida e do papel do general Osório na Guerra do Paraguai, elaborada pelo editor de huma-nidades, Carlos Haag (página 104), e da reportagem sobre o maior combustível que move os cientistas dos anos 1970, de hoje e talvez de sempre, preparada pelo editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques: a paixão de entender, saber, com-preender (página 30). E sugiro que façam uma viagem pelos textos das palestras liga-das à exposição Revolução genômica – o terceiro de uma série de cinco.

Para concluir, resta o regozijo pela derru-bada da ação de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, no tocante ao uso das células-tronco embrionárias (página 28). Venceu o direito ao conhecimento que be-nefi cia a vida.INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

CELSO LAFERPRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELAVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTESDINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

EDITORA DE ARTEMAYUMI OKUYAMA

ARTEJÚLIA CHEREM, MARIA CECILIA FELLI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃOANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201

COLABORADORESANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANIELLE MACIEL, DÉBORA PINHEIRO, GEISON MUNHOZ, HÉLIO DE ALMEIDA, LAURABEATRIZ, LAURA DAVIÑA, LEANDRO RODRIGUES E YURI VASCONCELOS.

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

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GERÊNCIA DE OPERAÇÕESPAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008e-mail: [email protected]

GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3038-4304 FAX: (11) 3038-1418e-mail: [email protected]

IMPRESSÃOPLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃODINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVAINSTITUTO UNIEMP

FAPESPRUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR

ISSN 1519-8774

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CARTA DA EDITORA

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M E M Ó RIA( )

Ajuda do passadoQ uatro pequenas

centrais hidrelétricas que se tornaram museus voltam a

gerar eletricidade

Neldson Marcolin

Serviço de aterramento da Usina de Salesópolis, em 1939

Apartir de 1999 a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recebeu quatro pedidos de concessão para geração de eletricidade. Ao contrário de outras solicitações rotineiras, daquela vez os executivos da agência não souberam, de imediato, como agir.

Pela primeira vez, a solicitação partiu de uma instituição sem fi ns lucrativos. Mais: tratava-se de reativar pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) históricas, consideradas obsoletas e desativadas havia muitos anos.

As PCHs para as quais foram pedidas a concessão a partir de 1999 eram as usinas Corumbataí, de Rio Claro, São Valentim, de Santa Rita do Passa Quatro, Jacaré, de Brotas, e Salesópolis, da cidade do mesmo nome, todas do interior de São Paulo. Desde 1998 as quatro pertencem à Fundação Energia e Saneamento,

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Usina de Corumbataí

na década de 1890,

cercada pela população do

município de Rio Claro

Construção da barragem da Usina de Jacaré, na década de 1940

instituição paulista criada na mesma época em razão da privatização das empresas de energia. “Havia uma preocupação do governo em evitar que o vasto acervo acumulado desde o século XIX pelas companhias se perdesse quando elas mudassem de dono”, diz Márcia Pazin, supervisora de Serviços e Projetos Especiais da fundação, para quem as PCHs foram doadas. As hidrelétricas passaram a ser administradas como usinas-parque, onde os visitantes aprendem a história da energia da região e participam de atividades de educação ambiental.

Dois fatores levaram à reativação das usinas, aprovadas pela Aneel. Como instituição privada, sem fi ns lucrativos e sem mantenedores fi xos, os recursos com a venda da energia ajudariam na sustentabilidade dos projetos culturais e educativos da fundação. A demanda cada vez maior por energia em São Paulo também incentivou a retomada da geração. Foi então aberta uma concorrência pública. Dos 25 interessados, a Herber Participações, do grupo Bertin, foi a que atendeu a todos os requisitos e ofertou o melhor retorno. O investimento nas quatro PCHs é de R$ 14 milhões.

Em março deste ano a hidrelétrica do Museu da Energia Usina-Parque de Salesópolis voltou à vida. Nos próximos meses será a vez das outras três. A mais

antiga é de Corumbataí, inaugurada em 1895 e reformada e reinaugurada em 1900. A São Valentim é de 1910, a Salesópolis, de 1913, e a mais nova, Jacaré, de 1944. Todas foram desativadas entre os anos 1970 e 1980. Com a reativação, as usinas

deverão gerar 36 mil megawatts hora por ano (MWh/ano) sufi cientes para atender 15 mil residências de padrão médio com um consumo mensal de 200 quilowatts hora por mês (kWh/mês). A energia das PCHs complementará a que é

fornecida por outras concessionárias.

Em paralelo à reativação, especialistas da fundação, junto com historiadores da Universidade de São Paulo e Universidade Estadual Paulista, trabalham em projeto apoiado pela FAPESP para catalogar e divulgar o acervo histórico da energia elétrica de São Paulo. No site www.museudaenergia.org.br estão disponíveis algumas séries de fotos. Deverão ser publicados on-line, ainda, plantas, mapas, projetos técnicos, documentos de relações com o poder público e o patrimônio arquitetônico e industrial do setor. “Tudo estará disponível para pesquisadores e interessados na memória paulista da eletricidade”, revela Isabel Felix, historiadora da fundação.

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N ew ton da CostaP a i x ã o e c o n t r a d i ç ã o

Neldson Marcolin

E N T RE VIST A

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Matemático criador da lógica paraconsistente tem três livros reeditados

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Omatemático e lógico Newton da Costa compartilha com outros pesquisadores a mesma paixão pelo que fazem. Com freqüência, se emociona ao falar de assuntos que parecem estranhos àqueles alheios a sua paixão. Alguns geólogos sentem ternura por pedras que contam histó-rias de outras eras e entomólogos têm grande carinho por insetos repugnantes. Costa vê beleza em cálculos

intrincados, problemas sem solução e teorias que, de tão abstratas, só são entendidas por um número pequeno de pessoas.

Newton Carneiro Affonso da Costa, paranaense nascido em Curitiba há 78 anos, casado, pai de uma filha e dois filhos e avô de duas netas, talvez tenha mais motivos que os demais pesquisadores para se entusiasmar ao falar do próprio trabalho. Ele é reconhecido no Brasil e exterior – provavelmente mais no exterior – como autor de uma teoria original criada a partir de 1958, mas muito citada e aplicada de 1976 para frente, quando finalmente ganhou o nome pelo qual ficou conhecida, a lógica paraconsistente. Trata-se de uma teoria que permite trabalhar com situações e opiniões contraditórias. Não à toa, é chamado pelos discípulos e colaboradores de “pensador da contradição”.

Costa formou-se engenheiro na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1952 e chegou a trabalhar por 1 ano no ra-mo, na empreiteira do pai de sua mulher. Mas parou de resistir à própria vocação e cursou matemática, fez licenciatura na mesma área e virou professor e pesquisador em tempo integral na UFPR, ganhando menos da metade do que ganhava na empreiteira. Lá fez seu doutorado e virou catedrático. Nos anos 1960 migrou para o Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP) e ficou 2 anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos dois lugares foi professor titular.

Passou por instituições da Austrália, França, Estados Unidos, Polônia, Itália, Argentina, México e Peru como professor visitante ou pesquisador. Tem mais de 200 trabalhos publicados entre ar-tigos, capítulos e livros. Entre outros prêmios, ganhou o Moinho Santista e o Jabuti em Ciências Exatas. Na segunda quinzena deste mês, a editora Hucitec vai relançar três de seus livros esgotados há muitos anos. São eles: Introdução aos fundamentos da matemática, de 1961, Ensaio sobre os fundamentos da lógica, de 1979, e Lógica indutiva e probabilidade, de 1990.

Quando se aposentou do IME/USP, Newton da Costa tornou-se professor titular da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP e passou a estudar e ensinar filosofia da ciência. Há 4 anos decidiu morar perto dos dois filhos em Florianópolis e lecionar filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Sua paixão pela pesquisa e ensino continua intacta. Quando fui entrevistá-lo em seu apartamento no centro de Florianópolis, ele entregou um artigo sobre lógica, escrito especialmente para a revista.

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lugar, a convivência com meu tio Milton Carneiro, professor da Universidade Federal do Paraná. Nós discutíamos muito sobre filosofia e ciência. Ele me deu dois livros que nunca mais saíram da minha cabeça, O sentido da nova ló-gica, de W.O. Quine, de 1944, publicado naquela época no Brasil, e Logique, de L. Liard, um livro de lógica absolutamente clássico, embora tenha uma parte sobre metodologia científica.

■ Pode-se dizer então que seu maior trabalho, sobre a lógica paraconsistente, começou a brotar naqueles momentos? — Acho que custou um pouco ainda. As conversas com o meu tio e ler Descartes obviamente ajudaram. Meu problema central sempre foi pensar sistematica-mente o que é o conhecimento. Espe-cialmente o que é o conhecimento cien-tífico. Até hoje penso nisso. Então per-cebi perfeitamente que teria que estudar lógica, matemática e alguma ciência, como física. Pouco tempo depois come-cei a ler Bertrand Russell por sugestão da minha mãe. Russell motiva qualquer um a estudar questões desse tipo. Foi quando notei que precisava conhecer também as aplicações da matemática, não só matemática. Por isso, estudar engenharia seria interessante. Mas pre-cisava, especialmente, conhecer mate-mática melhor. E cursei matemática. Finalmente percebi que tudo isso, no fundo, tem a ver com filosofia – que, aliás, é o que eu mais gostava mesmo.

■ Mais do que a matemática? — Ah, muito mais. A matemática e a lógica são para mim instrumentos para entender o que é o conhecimento científico. O que vai levar, depois, ao que é o conhecimento em geral e se há conhecimento metafísico. Daí a necessidade de me embrenhar na filosofia. Ainda não cheguei à metafísica porque preciso compreender direito o conhecimento científico.

■ Eu gostaria de entrar na lógica paracon-sistente. Como o senhor a explicaria para alguém que não entende nem de lógica nem de matemática?— Em 1874, um matemático russo cha-mado Georg Cantor criou a teoria dos conjuntos. Em pouco tempo se viu que toda a matemática padrão poderia ser construída sobre a teoria dos conjuntos e ela se tornou essencialmente a ba-

se da matemática. Convém observar, no entanto, que a noção de conjunto é algo extremamente abstrato e não se confunde com o sistema de objetos ou totalidades da vida cotidiana. Mas cerca de 30 anos depois começaram a surgir paradoxos nessa teoria. O paradoxo de Russell, o paradoxo de Burali-Forti e vários outros, que não convém explicar aqui porque levaria muito tempo. Es-sas questões se tornaram um problema filosoficamente incrível: como eram possíveis paradoxos na matemática e na lógica tradicionais, até então o exemplo mais perfeito de conhecimento? Aquilo era aterrador, completamente estranho, ninguém conseguia explicar, causou um rebuliço. Essa foi considerada a terceira grande crise da história da matemática. A primeira foi com os pitagóricos, quan-do descobriram os números irracionais. A segunda foi com o cálculo diferencial e integral, que era uma área completamente sem fundamento lógico, mas também foi superada. E, finalmente, a terceira grande crise foi a cantoriana, quando se descobriu que a teoria dos conjuntos era inconsistente e contraditória, não se sustentava. Tentou-se então resolver a questão mantendo a lógica clássica e imaginando quais as modificações que poderíamos fazer na teoria dos conjuntos para superar os paradoxos. A lógica clás-sica é essencialmente a lógica que nasceu com Aristóteles e teve sua formulação atual por Gottlob Frege e Russell por volta de 1870 e 1914, respectivamente. O problema da contradição é absoluta-mente fundamental para a lógica clássica, que não a admite.

■ A idéia era corrigir a teoria dos conjuntos sem destruí-la ou abandoná-la?— Era isso. Em meio a esses estudos e análises surgiu algo interessantíssimo. Ficou claro que havia caminhos alterna-tivos para superar essas dificuldades, que não eram equivalentes entre si. Ou seja, havia várias teorias de conjuntos possíveis baseadas na lógica clássica. A idéia bási-ca quando se começou a estudar essas questões era manter a lógica clássica nas soluções usuais desses paradoxos e mu-dar os princípios da teoria ingênua dos conjuntos. Baseado numa frase do próprio Cantor – “A essência da matemática ra-dica na sua completa liberdade” –, pen-sei, “Por que não fazer o contrário?”. Eu quero manter o máximo possível dos

Logo abaixo, nesta página, publicamos a parte referente à lógica paraconsistente. No site da revista www.revistapesquisa.fapesp.br o leitor poderá ler o artigo completo.

Newton da Costa prefere escrever à mão e admite ter grande aversão em lidar com computadores. O que torna ainda mais curioso um dos seus últimos trabalhos, ainda não publicado. O título é How to build a hypercomputer (Como construir um supercomputador) e trata de uma investigação sobre os limites da teoria da computação. Abaixo, os prin-cipais trechos da entrevista.

■ O senhor se formou em engenharia, fez carreira na matemática e terminou na filosofia. Como foi isso? — Quando eu tinha uns 15 anos, mais ou menos, dois acontecimentos foram fundamentais para mim. Primeiro, ler o Discurso do método, de Descartes, que se tornou minha bíblia. Em segundo

Sobre a lógica paraconsistente

A lógica clássica, bem como várias outras lógicas, não é apropriada para a manipulação de sistemas de premissas ou de teorias que encerram contradições (nas quais sem a proposição e sua negação são ambas teoremas da teoria ou conseqüências dos sistemas de premissas). Porém, nas ciências figuram contradições que são difíceis ou impossíveis de ser eliminadas (o que ocorre, por exemplo, em física, onde a teoria da relatividade geral e a mecânica quântica são logicamente incompatíveis, em direito, onde os códices jurídicos sempre apresentam inconsistências etc.). Por isso, tornou-se imperativo que se criassem lógicas que pudessem “suportar” contradições: tal é essa essência da paraconsistência. Em geral, uma lógica paraconsistente não implica que a clássica está errada, mas a generaliza. A lógica paraconsistente engloba a lógica fuzzy e tem encontrado as mais variadas aplicações, tanto teórica como prática. Em especial, ela inspirou uma nova filosofia da ciência e estendeu o campo da razão.

Newton da Costa

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princípios da teoria dos conjuntos, mas mudar a lógica subjacente clássica.

■ O que isso quer dizer? — Significa que essa lógica tem de supor-tar contradição. Na lógica clássica, a razão básica de ela não aceitar a contradição, do ponto de vista técnico, é que a mais simples contradição numa teoria a destrói, porque tudo vira teorema. Era preciso mudar e eu comecei a construir várias lógicas. Demonstrei que existem infinitas lógicas que satisfazem essas condições e que existem infinitas teorias dos conjuntos correspondentes. Comecei a desenvolver e aplicar a lógica em outras coisas. Mas, na verdade, a saída, o pontapé inicial, foi um ponto puramente matemático relativo aos fundamentos da teoria dos conjuntos da obra cantoriana.

■ Não o acusaram de destruir a lógica clássica? — Todo mundo já disse isso, especialmente no começo, quando apresentava minha teoria por aqui. É uma das coisas que mais me deixam amolado.

■ Por quê? — Eu seria um idiota se achasse que a lógica clássica está errada. O que acredito é que ela tem um domínio de aplicações, mas, em certas circunstâncias, não se aplica. Vou dar só um exemplo: a teoria geral da relatividade e a mecânica quântica são duas das teorias mais assombrosas que apareceram na história da cultura até hoje – pelas aplicações, pela precisão das medidas, por tudo enfim. É uma loucura o que elas explicam. Por exem-plo, mecânica quântica explica o laser, o maser, a estrutura química... No entanto, essas duas teorias, se você olhar bem de perto, são logicamente incompatíveis. Só tem uma maneira de juntar as duas e os físicos fazem isso com freqüência, embora não saibam como isso se faz, do ponto de vista lógico.

■ Quer dizer, eles juntam as duas teorias naturalmente para resolver problemas que surgem, sem saber que estão usando uma lógica diferente? — Exatamente. Essa lógica é a lógica paraconsistente. No momento estou trabalhando nisso, esclarecendo que a lógica da física tem de ser uma lógica paraconsistente. Ela é localmente clássica, mas globalmente paraconsistente. A física

atual, que trabalha com uma combinação de teorias incompatíveis, só é possível porque existe a lógica paraconsistente. Por exemplo, a teoria do plasma tem muitas aplicações e envolve três outras teorias: a mecânica clássica, o eletromagnetismo e a quantização. Duas a duas, elas são con-traditórias. No entanto, são usadas. Todo o estudo que faço no momento utiliza a teoria quântica de campo, a mecânica quântica, a relatividade e outras, para sistematizar a ciência. Essa é uma das tarefas do filósofo da ciência, sistematizar diversas ciências e compará-las. Não há solução se não fizermos isso com uma lógica diferente da lógica tradicional. Não nos dias de hoje.

■ E quanto às aplicações da lógica para-consistente? — Durante uns 30 anos desenvolvi a lógica paraconsistente do ponto de vista puramente abstrato. Interessado apenas na beleza matemática que ela implica. Qual não foi minha surpresa quando comecei a receber do exterior, princi-palmente dos Estados Unidos, informa-ções sobre aplicações em economia, na computação, em robótica, nos sistemas especialistas... No Brasil, o grupo de Jair Abe, da Universidade Paulista (Unip), tem obtido resultados muito interes san-tes em inteligência artificial. Recente-mente um amigo japonês, Kazumi Na-ka matsu, esteve comigo e mostrou as aplicações de certo tipo de lógica para-consistente para o controle de tráfego de trens, no Japão.

■ Nada mais prático do que isso. — Já se sabe que se pode usar a lógica paraconsistente no controle do tráfego aéreo também. Quando se tem muitos aviões que não podem aterrissar, por exemplo, por mau tempo, o controlador de vôo recebe e manda informações. Elas nunca são exatas porque não se sabe exatamente a qual altura o avião está. A altura sempre tem um pequeno erro. Logo, deve ser corretamente interpretada pelo computador do controlador para evitar acidentes. A lógica paraconsisten-te é uma das maneiras pensadas para resolver o problema.

■ A lógica paraconsistente é, então, uma teoria que aceita e acomoda situações contraditórias? — Situações e opiniões contraditórias. Hoje há centenas de pessoas que se dedi-cam à lógica paraconsistente no mundo inteiro. Alguns são fundamentalistas. Acham que é a única lógica verdadeira e a lógica clássica não passa de besteira. Um dos meus melhores amigos, que foi professor na Universidade Nacional da Austrália e esteve várias vezes no Brasil, professor Richard Routley, todos os dias pela manhã quando me encontrava lá em Canberra ou mesmo em São Paulo, me saudava dizendo, “A lógica clássica está acabada”. Eu dizia sempre que não, as duas têm seu campo. A lógica clássica é a mãe da lógica paraconsistente.

■ Poderia ser usada também em outros campos, como na psicanálise?

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— Segundo vários psicanalistas, espe-cialmente os lacanianos, ela tem uma aplicação enorme nessa área. Já existe uma literatura grande na psicanálise sobre isso.

■ A repercussão da lógica paraconsis tente pa-rece não ter arrefecido após tantos anos.— Isso é algo inacreditável para mim até hoje. Pensava nisso quando era muito jovem, em 1949, 1950, meus primeiros trabalhos começaram em 1958, mas só comecei a publicar na França em 1963. Até que, lá por meados dos anos 1970, escrevi uma carta para um grande ami-go, o filósofo da ciência Francisco Miró Quesada, ex-ministro da Educação no Peru. Pedi a ele, “Preciso de um nome para essa minha lógica”. Quesada foi um dos primeiros a defender a teoria pelo mundo afora, quando era embaixador. Ele me sugeriu “paraconsistente”, “ultra-consistente” ou “metaconsistente”. Escolhi paraconsistente. Depois que comecei a escrever com esse nome, não se passou 1 ano e todo o mundo da lógica começou a falar de lógica paraconsistente. Da França à ex-União Soviética, dos Estados Unidos

ao Japão surgiram artigos citando de alguma forma a lógica paraconsistente. Essa é uma daquelas coisas muito difíceis de acontecer outra vez. Quesada passou a brincar dizendo, “Newton, na verdade o criador da lógica paraconsistente fui eu, porque uma coisa só existe depois que tem nome. Está na Bíblia, ‘No começo foi o verbo...’”.

■ O que o atraiu exatamente na palavra paraconsistente? — “Para” quer dizer “ao lado”. Eu nunca quis destruir a lógica clássica. É “ao lado de”, “complemento de”. Assim co-mo a relatividade geral não destruiu a mecânica newtoniana. Nem a mecâ-nica quântica acabou com a mecânica newtoniana. E elas não existem sem a mecânica newtoniana.

■ Qual era o nome da lógica antes de ser batizada pelo Quesada? — Teoria dos sistemas formais incon-sistentes. Comprido demais.

■ As muitas aplicações de sua teoria fez o senhor ganhar algum dinheiro com ela?— Viajei muito, conheci o mundo intei-ro e nunca despendi um tostão. Agora ganhar dinheiro mesmo não. Teoria não tem patente. Mas quando chegava à ex-União Soviética, por exemplo, eu tinha um automóvel com motorista à disposição, um intérprete, um quebra-galho para tudo.

■ Aos 78 anos o senhor parece seguir mantendo suas atividades de pesquisa com vigor.— Fazer o que faço é um prazer tão grande que sou capaz de pagar para continuar fazendo. O dia em que não puder estudar o que gosto, dar minhas aulas, é melhor morrer mesmo. Aliás, contam que para Einstein parecia que a diferença entre estar vivo e estar morto era que enquanto ele estava vivo tinha certeza de que podia fazer física. Depois de morto não sabia se dava para fazer.

■ Por que saiu da UFPR?— Jamais quis sair do Paraná. Minha família toda é de lá e eu estava bem na UFPR. Mas gostaria de montar um grupo de lógica e fundamentos da ciência. Aos poucos, porém, cheguei à conclusão de que isso era inexeqüível lá, nos anos 1950 e 1960, por mais que eu me esforçasse.

■ Qual a razão? — Acho que, com exceção da USP, ne-nhuma outra universidade dava condi-ções para se fazer um trabalho de nível internacional em lógica e matemática no Brasil. Convidar professores estrangeiros, passar temporadas no exterior, mandar jovens para estudar em outros países. Eu me tornei catedrático na UFPR, mas, por mais boa vontade que tivessem comigo, eu me sentia patinando, sem sair do lugar.

■ Foi para a USP, mas passou primeiro pela Unicamp, não é? — Rapidamente. Tenho uma relação muito grande com a Unicamp. Quan-do fui professor do IME era permitido acumular por 2 anos tempo integral na USP e tempo parcial na Unicamp, desde que fosse bem justificado. Fiquei nos dois lugares e, surpreendentemente, consegui formar um grupo muito maior de pesquisa na Unicamp. Posteriormente doei minha biblioteca e arquivos para o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp.

■ O senhor é um daqueles cientistas que consideram matemática e física mais difíceis de entender do que as demais ciências?— Não sei se são mais difíceis. Sei que para alguns trabalhos nessas duas áreas é preciso ter um grande senso de abstração, principalmente em física-matemática e física teórica. É preciso dizer que há um sentido de beleza nessas teorias. Edgar Allan Poe dizia, “A beleza é aquilo que resiste à familiaridade”. Quanto mais voltamos a ela, mais somos atraídos a voltar. E sempre que voltamos perce-bemos coisas novas. A música de Bach é eterna porque se pode ouvir milhões de vezes sem cansar. Sempre veremos um aspecto novo nela. Se ouvirmos uma música comum qualquer ela não desperta novas idéias, basta repetir três ou quatro vezes e ela não oferece nada a mais. Já Bach, Beethoven, Brahms ja-mais cansam. Um artigo de matemática trivial você lê e não se interessa mais. Agora, a um bom artigo podemos voltar dezenas, centenas de vezes. Sempre tem mais uma coisinha, mais uma idéia, mais um aspecto que não percebemos antes. Sempre digo aos meus alunos que a matemática tem uma suprema beleza exatamente por isso. Mesmo em obras como a de Isaac Newton, em que nin-guém mais vai estudar mecânica, nem

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astronomia pelos princípios já muito conhecidos e, algumas vezes, supera-dos, isso ocorre. Mas se voltarmos lá e entrarmos nos detalhes da obra vai ver que lá não tem fim. É uma sinfonia à la Bach. E, veja, não importa o tamanho da obra. O doutorado do matemático americano John Nash, Prêmio Nobel de Economia, tinha cinco páginas. É genial. Eu andava com cópias na minha pasta para distribuir aos alunos e mostrar que tamanho não significa nada. Se Nash tivesse escrito essa tese na USP, não teria sido aprovado porque hoje parece que exigem pelo menos cem páginas.

■ Como vê o baixo nível do ensino e apren-dizagem de matemática no Brasil? — É uma barbaridade. Convivi com o ensino secundário dos Estados Unidos, na escola pública de Berkeley. Lá existe o que eles chamam de honour courses, cursos de honra. Os alunos que querem fazer cursos técnicos, como mecânica de automóveis, têm um mínimo de aulas de inglês, história etc. Depois, se quiserem, podem completar os créditos com os outros cursos. Mas os honour courses só fazem aqueles que querem ir para a universidade. São turmas pequenas, de 10, 12 alunos, com professores em tempo integral. O ensino envolve cálculo diferencial, cálculo integral, computação, geometria analítica... A pessoa entra de livre e espontânea vontade e se compro-mete a não ter nota baixa. Se não acom-panhar, sai. Depois que acaba o curso, bastam duas cartas de recomendação dos professores para entrar na universidade. Se o aluno for bom nesses cursos, já está na universidade. Por várias vezes sugeri fazer algo semelhante aqui, mas sempre me dizem que não é democrático, que é elitista...

■ O senhor é contra essa espécie de co-brança social que há no Brasil para todos cursarem universidade, mesmo os que não têm nenhuma vontade ou vocação? — Nivelar todos é impossível. Não dá. Os honour courses e os demais cursos disponíveis são um jeito de contemplar todos os interessados. Faz quem quer. Vi lá, também em Berkeley, um ótimo curso de mecânica de automóveis. Os alunos pegavam um automóvel e o desmontavam inteiro, parafuso por parafuso, para depois reconstruí-lo sem deixar nenhuma peça sobrando. O estudante sai entendendo

para isso o conceito de quase verdade ou verdade parcial. Mas acho que minha concepção de verdade, rigorosamente, que é matemática, reflete mais ou me-nos as idéias de Charles Sanders Peirce [1839-1914], um dos maiores filósofos de todos os tempos. E acho que as gran-des teorias, como a teoria quântica de campo, a mecânica quântica, a mecânica clássica de Newton, todas elas são quase verdadeiras, por exemplo. É comum dizerem que a relatividade desbancou a mecânica newtoniana. Isso é falso. Um avião ou uma ponte, por exemplo, são calculados pela mecânica newtoniana. E a mecânica quântica e a relatividade precisam da mecânica newtoniana. Se-não, não funcionam. Como algo falso é usado em ciência? Exatamente porque, embora seja falso, é quase verdadeiro entre certos limites.

■ Porque ela funciona para algumas coisas em algumas situações.— Exatamente, tudo se passa em certas circunstâncias como se ela fosse verda-deira. É o “como se”.

■ E isso é expresso matematicamente.— Matematicamente. Sistematizei a teoria da ciência atual na quase verdade. Todas as grandes teorias físicas não são verda-deiras ipsis litteris, são quase verdadeiras. Se compararmos exatamente a relativi-dade com a realidade, há divergências. E, mesmo que ela refletisse exatamente a realidade, como é que saberíamos que ela reflete? Não dá para comparar teoria com realidade, estritamente falando.

■ De quando é essa sua teoria? — Da década de 1980, já faz algum tem- po. E, note o seguinte, para a mesma teo-ria quase verdadeira há infinitas outras teorias quase verdadeiras, posso provar isso. E essas infinitas teorias quase ver-dadeiras são incompatíveis entre si. Então, a lógica da quase verdade é uma lógica paraconsistente.

■ Para terminar, o que é o conhecimento científico? — Penso que conhecimento científico é uma crença quase verdadeira e justificada. Essa é minha versão da concepção clássica de conhecimento que remonta a Platão. Nesta, o conhecimento deveria ser verdade estritamente falando; o que fiz foi subs-tituir verdade por quase verdade. ■

de carro, vira um excelente mecânico e pode ser tão feliz no trabalho quanto alguém que passa a vida estudando al-go muito teórico e abstrato. Havia um encanador no campus da Universidade da Califórnia, quando trabalhei lá, tão competente e eficiente que ganhava mais do que um dos meus colegas mais bri-lhantes, o professor polonês Alfred Tarski, um grande lógico e o melhor salário do departamento.

■ Gostaria que falasse sobre filosofia da ciência. Como é o conceito quase verdade ou verdade parcial?— Acho que a ciência hoje não é algo que procura retratar o real. Quando uma proposição quer refletir o real como ele é, isso se chama teoria da correspondência da verdade. Quer dizer, o pensamento corresponde à verdade. Eu acho que a ciência não é assim, ela reflete apenas em parte o real. Ela é uma quase verdade. A mecânica quântica funciona por quê? Porque ela diz que, em certas circunstân-cias, se eu apertar um parafuso, obtenho certo resultado. As grandes proposições, as grandes teorias, tudo se passa no Universo como se isso fosse verdade. Formalizei essa noção de verdade – é uma generalização da noção clássica de verdade. Ela é uma generalização da definição clássica de verdade de Tarski. Esse lógico deu uma definição notável para se poder tratar da noção de verdade em matemática, que é onde funciona. Quando se trata de física, é preciso de algo mais elástico. Propus

N unca quis destruir a lógica clássica. Assim como a relatividade geral não destruiu a mecânica new toniana

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U ma proteí na f u n d a m e n t a l

Equipe brasileira explica o funcionamento da forma saudável do príon, essencial para a proteção das células nervosas

Ricardo Zorzet to

Em maio de 1990 o minis-tro da Agricultura da In-glaterra, John Gummer, fez uma aparição pública desastrosa. Posou para fotógrafos e cinegrafistas saboreando um suculen-

to hambúrguer ao lado de sua filha de 4 anos. Tinha a intenção de mostrar aos ingleses e ao resto do mundo que o consumo de car-ne bovina continuava seguro mesmo em meio à mais grave cri-se que a pecuária de seu país atra-vessava nos últimos tempos: a contaminação de parte do reba-nho com a doença da vaca louca, a encefalopatia espongiforme bo-vina, que se espalhou pela Euro-pa, pelos Estados Unidos e pelo Canadá e de 1987 até agora já obrigou a eliminação de 180 mil bois e vacas infectados.

Seis anos depois daquele ham-búrguer os ingleses se lembrariam de Gummer e se sentiriam traídos quando começaram a surgir os primeiros casos da doença em seres humanos, provavelmente contraída pelo consumo de carne contaminada. A versão humana do mal da vaca louca era uma nova forma – a quarta conheci-da – de uma enfermidade bas-tante rara e sem cura: a doença de Creutzfeldt-Jakob, que mata as células do sistema nervoso (neu-rônios) e deixa o cérebro cheio de buracos como uma esponja.

Descrita na Alemanha nos anos 1920 pelos neurologistas Hans Ger hard Creutzfeldt e Al-fons Maria Jakob, essa enfer-midade, que reduz o cérebro à metade de seu tamanho original, ganha nova explicação a partir de estudos recentes conduzidos no Brasil e no exterior. Em artigo publicado em abril na Physiolo-gical Reviews, o grupo de pesqui-sadores de São Paulo, Rio de Ja-neiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul coordenado pelo oncolo-gista Ricardo Renzo Brentani, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo, apresenta a mais ampla re-visão sobre os agentes infecciosos des sa doença, com informações

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Príon celular, em verde:

abundante no neurônio

(esquerda) e no astrócito

(acima)

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que podem influenciar a terapia dessa enfermidade, que se instala sorratei-ramente ao longo de 2 ou 3 décadas e evolui a uma velocidade assustadora, levando a uma morte trágica.

Os primeiros sinais surgem de for-ma sutil, como cansaço ou depressão. Em seguida, a falta de equilíbrio para caminhar ou manipular objetos au-menta progressivamente, os movimen-tos se tornam lentos e a visão embara-lhada. Perde-se a fala, a memória para fatos recentes e fica cada vez mais difícil encontrar o caminho pelas ruas ou os objetos dentro de casa. “Em menos de 1 ano nove de cada dez pessoas infec-tadas se tornam debilitadas a ponto de não sair da cama e morrem”, afir-ma o neurologista Ricardo Nitrini, da Universidade de São Paulo (USP), que há 11 anos identificou o primeiro ca-so brasileiro de uma forma da doença causada por alteração genética.

Além da forma contraída pelo con-sumo de carne contaminada – a chamada nova variante de Creut-

zfeldt-Jakob – e da versão genética, pas-sada de pais para filhos, há ainda outros dois tipos dessa doença que corrói o sistema nervoso central. O mais co-mum, dito espontâneo, surge ao acaso por razões desconhecidas e atinge uma pessoa em cada 1 milhão. O quarto tipo é transmitido pelo uso de equipamen-tos infectados em cirurgias, por trans-fusão sangüínea e até anos atrás tam-bém pela aplicação de hormônio do crescimento produzido a partir de cé-rebros de cadáver, hoje substituído pe-lo hormônio sintético para tratar dis-túrbios de crescimento.

O avanço da vaca louca nos pastos da Europa e da América do Norte e o surgimento da nova forma da doen-ça em humanos – desde 1996 a nova variante de Creutzfeldt-Jakob matou na Inglaterra e nos países vizinhos 160 pessoas, entre elas a filha de um amigo do ex-ministro John Gummer – in-tensificaram a busca pela causa da enfermidade. O principal suspeito de provocar esse grupo de doenças desa-fiou por décadas os médicos e biólogos. Diferentemente do que acontece com outras doenças infecciosas, o causador da Creutzfeldt-Jakob não é, como se pensou por muito tempo, um vírus. Muito menos bactéria ou protozoário,

tia espongiforme chamada scrapie e a explicação de como ele deformaria as proteínas normais renderam ao pesqui-sador norte-americano Stanley Prusiner o Nobel de Medicina de 1997 e levaram cientistas do mundo todo a investigar a proteína defeituosa e seus efeitos sobre o organismo. Enquanto só se tinham olhos para o príon, outra questão básica – e talvez mais importante – ecoava bai-xinho. O que fazia a proteína normal, a proteína príon celular, encontrada na superfície de todas as células do cor-po e em maior quantidade no sistema nervoso central? Ninguém sabia, nem parecia se importar muito.

Até havia motivo para não se dar atenção ao príon celular. Por volta

microorganismos que se multiplicam por conta própria e são facilmente pas-sados adiante. Hoje se acredita que uma proteína defeituosa conhecida como príon (sigla de partícula infecciosa pro-teinácea) provoque a doença. O simples contato do príon com uma proteína saudável encontrada em abundância na superfície dos neurônios a induziria a assumir a forma alterada, como uma pedra de dominó que tomba e derru-ba as demais da fileira sem que nada as possa deter. Mais estáveis que a proteí-na saudável, as moléculas deformadas aderem umas às outras, gerando longas fibras tóxicas para os neurônios.

A identificação do príon no cérebro de ovelhas com um tipo de encefalopa-

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de 1990 o biólogo molecular Charles Weissmann criou uma linhagem de camundongos que não produziam essa proteína. Os animais não desenvolviam a doença espongiforme e aparentemente sobreviviam sem prejuízo à saúde. Por isso, acreditou-se que ela não desempe-nhasse papel importante no organismo. “Era uma visão limitada”, diz Brentani.

S uspeitando de que a natureza não desperdiçaria tempo nem energia para gerar uma proteína sem ativi-

dade biológica, Brentani apostou em sua intuição e seguiu contra a corrente. “Era a oportunidade de entrar em uma área de estudos quente pela qual nin-guém havia se interessado”, conta. Uma carta publicada em 1991 na Nature es-timulou-o a ir adiante. Três anos antes Brentani havia proposto uma teoria se-gundo a qual as duas fitas da molécula de ácido desoxirribonucléico (DNA) conteriam a receita para a produção de proteínas – e não apenas uma delas, co-mo se imaginava. Também afirmava que as proteínas codificadas por tre-chos complementares das fitas de DNA teriam papéis complementares: seriam capazes de interagir quimicamente e se encaixar uma na outra como uma cha-ve na fechadura. Do ponto de vista evo-lutivo, fazia sentido que os trechos de DNA que codificam uma proteína e a que se liga a ela estivessem próximos, já que é maior a probabilidade de migra-rem juntos para outra região do mate-rial genético caso ocorra seu reposicio-namento. Mas essa era uma hipótese em que, segundo Brentani, ninguém acreditava – exceto ele, claro.

Até que surgiu a carta da Nature. Nela o pesquisador Dmitry Goldgaber, da Universidade Estadual de Nova York, Estados Unidos, descrevia como o príon celular deveria interagir com a água – uma das características químicas das

proteínas – e afirmava que, se Brentani estivesse certo, o trecho do DNA com-plementar ao do gene do príon celular conteria informação sobre a proteína que possivelmente o acionaria. Era uma pista a não se desperdiçar.

Então estudioso de proteínas as-sociadas ao câncer, Brentani resolveu analisar o príon e a molécula que fun-cionava como seu interruptor. Ele, a bioquímica Vilma Martins, do Institu-to Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer (LICR), e o bioquímico Vivaldo Moura Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), deduziram a estru-tura dessa outra proteína e a descreve-ram em 1997 na Nature Medicine.

A proteína por eles apresentada – mais tarde identificada como STI-1, sigla de stress inducible protein 1 – era composta por 543 aminoácidos (os blo-cos formadores das proteínas) e quase duas vezes maior do que o príon ce-lular. Faltava descobrir o que ambas faziam. “Tínhamos duas hipóteses: ou não serviam para nada ou eram funda-mentais para fenômenos importantes para os neurônios, como o processo de neuritogênese [formação das ramifica-ções que conectam os neurônios entre si]”, comenta Brentani.

Como neurônios não era a espe-cialidade do grupo, ele e Vilma con-vidaram o neurocientista Rafael Lin-den, do Instituto de Biofísica da UFRJ, para colaborar nos testes seguintes. O complexo formado pelo príon celular e a STI-1 se mostrou essencial tanto para o amadurecimento e a formação dos prolongamentos dos neurônios

como para protegê-los da morte celular programada, a apoptose (ver Pesquisa FAPESP nº 94).

Mas essas não eram as únicas fun-ções da dupla. Experimentos com ca-mundongos feitos em parceria com Iván Izquierdo, um dos mais respeita-dos estudiosos de memória no mundo e atualmente pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), revelaram que o príon celular e a STI-1 são fundamentais para a formação da memória. Sem eles, os animais têm dificuldade de lembrar algo que aprenderam horas antes (me-mória de curto prazo) e também dias atrás (memória de longo prazo). Testes com camundongos geneticamente alterados para não produzir o príon celular, como os criados por Charles Weissmann, comprovaram que esses animais só eram aparentemente nor-mais. Quando envelheciam, apresenta-vam mais dificuldades de memória do que os camundongos que fabricavam o príon celular.

O grupo brasileiro também viu que a forma saudável do príon gera efei-tos distintos em tecidos diferentes.

Na UFRJ a equipe de Linden constatou que essa proteína modula a resposta do sistema imunológico às inflamações, ora aumentando, ora reduzindo a ativi-dade das células de defesa. O príon ce-lular estimula a ação dos neutrófilos, as células de defesa mais abundantes no organismo. Produzidas a uma quanti-dade de 100 bilhões por dia no interior dos ossos longos, são as primeiras a che-gar ao local da inflamação, onde rapi-damente englobam e destroem microor-ganismos invasores como bactérias. Quando Linden provocava uma infla-mação em camundongos, observou que os animais geneticamente alterados pa-ra não produzir o príon celular apresen-tavam um número menor de neutrófi-los, que também eram mais lentos do que os roedores normais. Um efeito na-da desejável no caso de uma infecção.

Verificou-se o efeito oposto com os macrófagos, células do sistema de defesa que atuam como uma espécie de lixeiro, eliminando células mortas. Camundongos sem o príon celular ti-nham macrófagos mais ativos do que os animais que fabricavam a proteína, um resultado que nem sempre favorece os

Uma proteína, duas formas: o príon celular (no alto) e sua forma infecciosa

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2 0 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

preliminares sugerem que os portado-res da forma variante do príon celular eram mais suscetíveis aos efeitos tóxi-cos do composto do que aqueles com a versão normal da proteína.

À medida que os resultados brota-vam no laboratório, tornava-se eviden-te que o príon celular era fundamental para manter o organismo saudável, nada mau para uma molécula que até poucos anos atrás era considerada sem importância biológica. Mas ainda não se compreendia por que, em determi-nadas situações, ela protegia e em ou-tras danificava os tecidos. Um passo importante era saber como essa proteí-na em forma de balão de festa com um barbante pendurado, que fica na super-fície externa das células, se comunicava com o interior.

V ilma, Brentani e Linden recorre-ram então à ajuda do biólogo celu-lar Marco Antonio Prado, da Uni-

versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que investiga o transporte de moléculas no interior das células. Em parceria com Vilma e Kil Sun Lee, do Ludwig, Prado e Ana Maria Magalhães marcaram o príon celular de neurônios com um corante verde fluorescente pa-ra acompanhar o caminho que percor-ria e levaram as células ao microscópio confocal, que permite observá-las vivas. Em seguida, com o auxílio de Byron Cau-ghey, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, marcaram o príon infeccioso e viram sua entrada nos neu-rônios (ver Pesquisa FAPESP nº 115).

Ancorado em regiões mais espes-sas da superfície celular por uma longa molécula de açúcar e lipídios em forma de barbante, o príon celular desliza para

P a p e l d a p r o t e í n a p r í o n c e l u l a r e m p r o c e s s o s f i s i o l ó g i c o s e p a t o l ó g i c o s II

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Projeto Temático

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VILMA REGINA MARTINS – INSTITUTO LUDW IG

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áreas mais delgadas da membrana dos neurônios. Ali é tragado para o interior de vesículas contendo ácidos, onde se conecta a outras proteínas e envia co-mandos para o núcleo ou outras regiões. Do início do mergulho até a emersão na superfície, o príon celular não gasta mais do que 1 hora e meia.

Não é um deslocamento ao acaso, como constatou o grupo brasileiro. O príon celular só se move na su-

perfície dos neurônios depois que pro-teínas específicas se acoplam a ele, ati-vando-o. Como um anfitrião que re cebe os convidados em uma festa, o príon saudável conduz outras proteínas para o interior dos neurônios. Uma vez no in-terior da célula, o complexo formado pelo príon e sua proteína ativadora envia sinais químicos que ordenam a emissão de prolongamentos ou a produção de compostos que protegem o neu rônio da morte, detalham os pesquisadores em um artigo a ser publi cado nos próximos meses no Journal of Neuroscience. “Sem esse mergulho no interior da célula a comunicação mediada pelo príon celu-lar fica truncada”, diz Linden.

Quanto mais se descobria sobre o príon celular, mais dúvidas surgiam. No final de 2006 Linden, Vilma, Prado, Izquierdo e Brentani começaram a re-ver tudo o que havia sido publicado sobre o príon saudável e o defeituoso com o objetivo de chegar a um quadro geral mais claro. Da análise de 597 arti-gos, emergiu a mais ampla revisão so-bre o tema, publicada em abril na revis-ta Physiological Reviews, com uma visão unificada sobre o funcionamento do príon celular e uma nova interpretação de como surgem enfermidades como a doença de Creutzfeldt-Jakob e o mal da vaca louca.

No trabalho intitulado “Physiology of the prion protein”, as equipes de São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul propõem que o príon celular funcione como um ímã seletivo ao qual só ade-rem certas moléculas encontradas no organismo. A STI-1, claro, não é a úni-ca. Estudos feitos no Brasil e no exterior identificaram outras 30 proteí nas que se ligam ao príon celular, acionando diferentes cascatas de reações químicas que representam comandos celulares distintos. “Acreditamos que o príon ce-lular ajude a organizar os sinais do ex-

animais geneticamente alterados, pois a ação exagerada dos macrófagos pode causar lesões nos tecidos saudáveis. “A resposta à inflamação e à presença de células mortas depende de um ajuste fino”, explica Linden. “Não é desejável que sejam ausentes nem exacerbadas. Sem resposta inflamatória o corpo não resiste a infecções, mas inflamação em excesso também pode matar.”

Também há evidências de que o príon celular protege as células do co-ração contra a agressão química. No Hospital A.C. Camargo, Vilma e a mé-dica Beatriz de Camargo analisaram a presença de uma forma ligeiramente alterada (variante) das proteínas príon celular em 160 pacientes tratados na in-fância com adriamicina, medicamento que pode causar lesões cardíacas. Dados

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 2 1

terior antes de serem enviados para o interior das células”, diz Prado.

Segundo Linden, esse papel de ímã seletivo ou plataforma de montagem de complexos de sinalização permite explicar resultados experimentais até então contraditórios, como a proteção contra a morte celular em determina-das situações e ou a ação tóxica em ou-tras. “Essa atividade de plataforma de montagem de sinais químicos é tão es-sencial para a vida que possivelmente outras proteínas desempenhem o mes-mo papel no organismo”, diz Brentani. “Por essa razão os camundongos gene-ticamente alterados para não produzir o príon celular sobrevivem aparente-mente sem prejuízo”, explica.

Esse novo papel altera a compreen-são de como se instalam as doenças cau-

sadas por príons. De acordo com a nova interpretação, na doença de Creutzfel-dt-Jakob os neurônios não morreriam apenas porque a adesão dos príons infec-ciosos gera aglomerados tóxicos. O gru-po brasileiro aposta que a morte celular ocorra também pela perda de molécu-las saudáveis de príon, que deixaria os neurônios desprotegidos contra agres-sões químicas. Segundo Prado, é possí-vel que o efeito tóxico do príon infec-cioso se intensifique com a perda do príon celular. “Só saberemos se estamos certos à medida que as idéias apresen-tadas nesse trabalho começarem a ser testadas”, diz Linden.

A expectativa é que a compreen-são de como funciona o príon celular leve a alternativas de tratamento para doen ças causadas por príons e enfermi-

dades neurodegenerativas como o mal de Alzheimer, associado à aglomeração de uma proteína cuja produção é con-trolada pelo príon saudável. “As abor-dagens terapêuticas que se basearam exclusivamente no que se conhece sobre a forma defeituosa do príon não produ-ziram bons resultados”, conta Linden. Um medicamento usado na década de 1930 contra a malária, a quinacrina, havia se mostrado capaz de impedir a agregação do príon infeccioso nos expe-rimentos com neurônios in vitro. Mas não impediu o avanço da enfermidade quando testado em seres humanos. “Até o momento, não há tratamento eficaz”, afirma Ricardo Nitrini, da USP.

Com Hélio Gomes e Sérgio Rosem-berg, da USP, e Leila Chimelli, da UFRJ, Nitrini e Vilma integram a

equipe responsável no país pelo diag-nóstico de doenças causadas por príon, cuja notificação é obrigatória desde 2005. É uma medida fundamental para conhecer as regiões mais afetadas e as populações mais suscetíveis às quatro formas da doença de Creutzfeldt-Jakob. De 2005 a 2007, o grupo analisou 35 casos suspeitos, dos quais 26 foram considerados prováveis – a confirma-ção é feita pela análise do tecido cere-bral após a morte. Eram pessoas que haviam desenvolvido a doença espon-taneamente. Nenhum caso surgiu pelo consumo de carne infectada. “Certa-mente há subnotificação da doença no país, onde se espera que surjam até 200 casos por ano”, diz Vilma.

Em paralelo, a equipe de Vilma no Ludwig segue com os estudos sobre a ação da STI-1. Nos últimos anos, o gru-po constatou que um fragmento dessa molécula, um peptídeo de 16 aminoáci-dos, desempenha a mesma função que a proteína inteira e favorece a formação da memória em camundongos. Testes iniciais com células em uma placa de vidro também sugerem que o peptídeo impeça o desenvolvimento de um tu-mor cerebral agressivo, o glioblastoma, que mata em 6 meses, razão por que esse trecho da molécula foi patenteado pelo Ludwig em 2007 nos Estados Uni-dos. “São dados promissores”, afirma Vilma. Por enquanto, não se pode dizer mais do que isso até que sejam feitos testes com animais de laboratório e, se tudo der certo, em seres humanos. ■

Rede de neurônios: príon celular (verde) favorece a conexão entre as células

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2 2 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

1.000 atuais para 2.500 em 2009 e 6.500 em 2012.Também haverá um aumento expressivo das bolsas de aperfeiçoamento no exterior para técnicos que desempenham atividades em áreas consideradas prioritárias.

> Mais bolsas no exterior

A presidente do Chile, Michelle Bachelet, anunciou a criação de um fundo de US$ 6 bilhões para fi nanciar um ambicioso programa de bolsas de pós-graduação

Um g r u p o d e d e s t a c a d o s c i e n t i s t a s

c h i neses mandou uma carta às autori-

dades educacionais do país alertando

para a necessidade de aperfeiçoar a

formação científi ca nas escolas primárias. “Na contramão da

mobilização para formar novos pesquisadores, a educação em

ciências nas escolas primárias está em franco declínio”, disse

um dos signatários da carta, o ex-vice-ministro da Educação W ei

Yu, segundo a agência de notícias SciD ev.N et. Enquanto países

europeus já avaliam a viabilidade de antecipar as primeiras noções

sobre ciências já para alunos de 5 anos de idade, a China desde

2001 retirou a disciplina do currículo do início da formação fun-

damental. Só a partir dos 10 anos é que os chineses têm contato

com conceitos científi cos. Li Daguang, da Academia Chinesa de

Ciências, explica que, na China, a ciência é vista sob uma lógica

utilitária, não como um meio de expandir o raciocínio, razão pela

qual não se vê motivo para ensiná-la a crianças pequenas. KA

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Thomson, Provonost e Venter (acima), Susan Salomon e Griffi n

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Ciência para os chineses: quanto mais cedo melhor

A r e l a ç ã o d e c i e n t i s t a s c i t a d o s e n t r e a s c e m p e r s o n a -

lidades mais infl uentes do planeta, divulgada pela revista

Time, traz rostos conhecidos e outros nem tanto. No rol dos

famosos, o destaque foi Craig Venter, que liderou esforços

para decodifi car o genoma humano em 2001. Ele entrou

na lista de 2008 por ter anunciado a criação do genoma

sintético de uma bactéria. O utra personalidade conhecida

é Michael Griffi n, 58 anos, chefe da agência espacial norte-

americana, a Nasa, lembrado por oxigenar a estrutura do

órgão. Susan Solomon, 52 anos, pesquisadora que nos anos

1980 alertara para a destruição da camada de ozônio, voltou

agora à berlinda ao fazer parte do Painel Intergovernamental

das Mudanças Climáticas (IPCC). A relação também traz

rostos jovens, como Peter Pronovost, 43 anos, criador de

um método que derrubou índices de infecção hospitalar nos

Estados Unidos; Shinya Yamanaka, 45, e James Thomson,

49, que obtiveram avanços na pesquisa de células-tronco; o neuro-

cirurgião Nicholas Schiff, 42, que aperfeiçoou uma técnica capaz

de recuperar lesões cerebrais; Jeff Han, 32, inovador da ciência

da computação; e Jill Bolte Taylor, 48, neuroanatomista.

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e de formação de pessoal tecnológico altamente especializado tanto no país quanto no exterior. O fundo permitirá que o número de bolsas para pós-graduandos chilenos em universidades estrangeiras cresça das

E ST RA T É G I A S M U N D O>>

22-24_Estrat Mundo_148.indd 22 31.05.08 16:31:12

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 2 3

Pe s q u i s a d o r e s i t a l i a n o s d e d i -

versos campos, da astronomia

à oncologia, assinaram uma

petição que exige do governo

do país mais transparência na

destinação de verbas para a

pesquisa. “Na Itália, apenas

uma pequena proporção de fun-

dos para a pesquisa científi ca

é distribuída de acordo com o

sistema de avaliação por pares”,

diz a petição, segundo a revista

N ature. O desconforto dos cien-

tistas começou no ano passado,

quando se soube que € 3 milhões

prometidos no orçamento para

a pesquisa com células-tronco

haviam sido gastos em outras

fi nalidades. Parte da preocupação

resulta do fato de que o governo

ainda não apresentou ofi cialmente as regras para alocação de

verbas de um fundo para pesquisa estratégica que irá distribuir

€ 300 milhões em 2008 e 360 milhões em 2009. Um documento

atribuído ao governo diz que 70% desse dinheiro será destinado

a tópicos escolhidos pelas autoridades e só o restante caberá

a projetos chancelados por especialistas. O s cientistas também

estão preocupados com uma nova lei, criada para centralizar a

distribuição de verbas para as universidades, que deve entrar em

vigor neste ano. Teme, mais uma vez, favorecimento.

> Vagas para astronautas

A Agência Espacial Européia (ESA) está recrutando novos astronautas, na primeira seleção do gênero desde

Hoje há 150 bolsas. Em 2010 chegarão a 2 mil. Jorge Allende, vice-reitor de pesquisa da Universidade do Chile, disse ao jornal El Mercurio que é preciso estudar com profundidade a questão das bolsas no exterior. “É recomendável que as bolsas se concentrem em áreas nas quais o Chile tenha defi ciência e em temas de importância estratégica para o país”, afi rmou Allende.

> Cerco à pesquisa

Duas universidades da Alemanha sucumbiram a pressões políticas e decidiram interromper experiências com plantas geneticamente modifi cadas. “A decisão também não me agrada”, disse à revista Nature Stefan Hormuth, presidente da Universidade Justus Liebig, da cidade de Giessen. “Mas a oposição dospolíticos e da população local se tornou insuportável.” No mês passado, ativistas

ocuparam a área de 1.500 metros quadrados onde a universidade faria experimentos com um tipo de milho resistente a insetos. Em abril, o economista e reitor Werner Ziegler, da Universidade Nürtingen-Geislingen, em Baden-Württemberg, também determinou a interrupção de experimentos com milho transgênico resistente a insetos e a fungos. “As coisas fugiram do controle. São ataques por e-mail, vandalismo, intimidação e ameaças pessoais”, disse ele. Em ambos os casos, a segurança das pesquisas havia sido assegurada por órgãos técnicos.

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NA 1992. Podem concorrer

cidadãos de algum dos 17 estados membros da agência: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça. Os escolhidos passarão por avaliações profi ssionais e psicológicas (como testes comportamentais e cognitivos), baterias de exames médicos e entrevistas. O resultado sairá em 2009. Serão escolhidos quatro candidatos, que iniciarão treinamento no Centro de Astronautas Europeu, em Colônia, na Alemanha. “Trata-se de uma oportunidade rara de estar à frente dos programas de vôo espacial tripulados, o que inclui futuras missões à Estação Espacial Internacional (ISS), à Lua e além”, informou um comunicado da ESA. Os aspirantes precisam exibir competência em disciplinas como ciências da vida, física, química e medicina, ou experiência como piloto de testes. Fluência em inglês é obrigatória e conhecimento em russo, desejável.

O astronauta alemão Hans Schlegel, em fevereiro

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24 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

los da prancheta. Faz mais de 4 anos que a NSF tenta viabilizar a construção de um navio para a região do Alasca a fi m de substituir uma embarcação obsoleta. Até hoje a agência não conseguiu convencer o Congresso a patrocinar o projeto, avaliado em US$ 123 milhões.

> Suécia apóia pesquisa boliviana

Um convênio fi rmado entre os governos da Suécia e da Bolívia permitirá que a comunidade acadêmica boliviana tenha acesso

de dias por ano dedicados pelo conjunto da frota à pesquisa caiu de 5 mil nos anos 1990 para 4 mil atualmente. A frota é supervisionada por um consórcio de 61 institutos de pesquisa e é mantida por recursos da ordem de US$ 80 milhões por ano, vindos do orçamento federal. Esse montante não contempla as verbas para os projetos individuais de pesquisadores, patrocinados por agências como a National Science Foundation (NSF). Não faltam projetos para substituir a frota atual. O que há é uma enorme difi culdade de tirá-

> Fase de calmaria

O fl uxo de investimentos na frota norte-americana de navios de pesquisa enfrenta uma fase de calmaria que ameaça projetos em vários cantos do planeta, de acordo com reportagem publicada na revista Nature. O número de embarcações está diminuindo. Há 23 navios em operação. Em 2002 eram 27. Projeta-se que haverá apenas 15 em 2017 e 11 em 2025. Os custos são elevados: cada dia de pesquisa no mar custa cerca de US$ 50 mil. Para economizar, o número

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a periódicos científi cos de várias áreas do conhecimento nos próximos 3 anos. O investimento sueco será de US$ 460 mil, segundo documento assinado pela ministra do Planejamento do desenvolvimento da Bolívia, Graciela Toro Ibáñez, e a conselheira-chefe de cooperação da Embaixada da Suécia em La Paz, Ulla Brito Hedvall. O vice-ministro de Ciência e Tecnologia, Camilo Morales, explicou à Agência Boliviana de Notícias que universidades, centros e institutos de pesquisa públicos e privados se benefi ciarão do convênio.

Navio de pesquisa L. M. Gould, na Antártida: US$ 50 mil por dia

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 2 5

E ST RA T É G I A S B RA SIL>>

Hisako Gondo Higashi, diretora da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e de Produção do Instituto Butantan. O cirurgião plástico Ivo Pitanguy foi o ganhador em Medicina e o poeta mineiro Affonso Ávila na categoria Literatura. Cada um dos homenageados receberá R$ 200 mil. A fundação é uma instituição criada por Ubaldo Conrado Wessel (1891-1993), fotógrafo e químico, inventor na década de 1920 do primeiro papel fotográfico brasileiro.

> O s vencedores do Prêmio FCW

A Fundação Conrado Wessel anunciou os vencedores do Prêmio FCW de Ciência e Cultura 2007. O neurocientista Iván Izquierdo, que dirige o Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, foi o escolhido pela comissão julgadora na categoria Ciência Geral. Em Ciência Aplicada, a ganhadora foi

Ap ó s 12 a n o s d e t r a m i t a ç ã o , u m p r o j e -

to de lei que regulamenta a experimen-

tação com animais no Brasil foi aprova-

do na Câmara Federal no dia 20 de maio

e seguiu para a apreciação do Senado.

Conhecido como Lei Arouca, referência

ao seu autor, o sanitarista e deputado

federal Sérgio Arouca (1941-2003), o

projeto estabelece regras para o uso de

animais em pesquisas no Brasil e propõe

a criação do Conselho Nacional de Con-

trole de Experimentação Animal (Con-

cea), cuja tarefa seria a criação de nor-

mas específi cas para funcionamento de

centros de criação, de viveiros de co-

baias e de laboratórios de experimen-

tação. Caso seja aprovada, a lei pouco

mudará a rotina das principais univer-

sidades e centros de pesquisa do país,

cujos projetos que envolvem o uso de

animais já são submetidos ao crivo de

comissões de ética. O projeto foi reabilitado graças à mobili-

zação de entidades científi cas como a Sociedade Brasileira

para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira

de Ciências e a Federação das Sociedades de Biologia Expe-

rimental (Fesbe). Elas defendem a criação de um marco na

legislação federal sobre o assunto, capaz de se sobrepor a leis

municipais aprovadas em cidades como o Rio de Janeiro e

Florianópolis que tentam banir localmente o uso de animais

em pesquisa (ver Pesquisa FAPESP nº 14 4 ).

e biotecnologias; desenvolvimento sustentável, relação agricultura-meio ambiente-sociedade; bioenergia e química verde; nanotecnologias aplicadas à agricultura; modelagem fundamentada em ciências sociais, ciência política, estudos demográficos e outros; e economia rural. “Queremos aumentar a colaboração entre dois países que já têm uma boa base científica”, disse Marion Guillou, diretora presidente do Inra, que comandou a visita de uma delegação do instituto francês à FAPESP. Pesquisadores de instituições públicas e privadas de ensino superior e pesquisa do estado de São Paulo e de unidades do Inra podem submeter projetos até o dia 5 de agosto. O resultado do edital será divulgado em 5 de dezembro.

> Chamada bilíngüe

A FAPESP e o Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), da França, lançaram em 28 de maio uma chamada de propostas bilíngüe (português e francês) para seleção de projetos cooperativos de pesquisa científica e tecnológica no campo das ciências agronômicas e da vida. As duas instituições, que firmaram convênio de cooperação em abril passado, vão dividir de forma igualitária o financiamento dos projetos aprovados. Apesar de o edital não excluir propostas de nenhuma área das ciências agronômica e da vida, será dada prioridade a projetos que se insiram num dos seis grandes temas de interesse da FAPESP e do Inra: biologia avançada

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Animal de laboratório: regras

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2 6 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

E ST RA T É G I A S B RA SIL>>

> A expansão da Unicamp

O Conselho Universitário da Unicamp aprovou a implantação, em 2009, dos oito primeiros cursos de graduação que serão ministrados no novo campus da instituição em construção no município de Limeira. As 480 vagas distribuídas por oito cursos elevam de 2.830 para 3.310 o número de vagas oferecidas no vestibular

da Unicamp, representando um acréscimo de 17%. O projeto do novo campus prevê um total de mil vagas na graduação para os próximos anos. Com a implantação total do campus e a inclusão futura de outros cursos previstos, a Unicamp terá aumentado em um terço o número de vagas em seus cursos de graduação. Os cursos que entrarão em funcionamento em 2009 são: engenharia de produção, engenharia de manufatura, nutrição, ciência do esporte, gestão de agronegócio, gestão de comércio internacional, gestão de políticas públicas e gestão de empresas. As vagas iniciais serão distribuídas eqüitativamente

Qu a t r o i n s t i t u i ç õ e s b r a s i l e i r a s f o r m a l i z a r a m u m a p a r -

ceria com a Global Lambda Integrated Facility (Glif),

colaboração que reúne gestores de redes de diversos

países voltadas para o compartilhamento do tráfego de

redes ópticas para a pesquisa. São elas a Rede Nacional

de Ensino e Pesquisa (RNP), o Centro de Pesquisa e

Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), a Rede

ANSP (Academic Network at São Paulo) e o projeto Kya-

Tera – os dois últimos ligados à FAPESP. No Glif, o trá-

fego é encaminhado através de circuitos virtuais fi m a

fi m, usados para aplicações que necessitam de grande

capacidade de transporte – como as de vídeo de alta

defi nição. Esses circuitos são implementados através

de um encadeamento de lambdas (um lambda é um en-

tre vários feixes de luz de cores diferentes em uma úni-

ca fi bra óptica) ou de redes locais virtuais (VLANs).

O envolvimento das redes brasileiras torna

a iniciativa acessível a instituições loca-

lizadas em 23 cidades dos estados de São

Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Ca-

tarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais,

Ceará, Bahia e Pernambuco, além do

Distrito Federal, servidas pelo núcleo

multigigabit da rede Ipê, pela rede

experimental do projeto Giga – coor-

denado pela RNP e pelo CPqD – e pe-

la rede KyaTera, que mobiliza 400

pesquisadores paulistas.

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A rede Glif (acima)e seu braço brasileiro

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Page 27: A proteína ambivalente

PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 2 7

> Recursos para a Rede-Clima

A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) aprovou o financiamento de R$ 10 milhões para a implantação

nos períodos diurno e noturno. Para abrigar os oito novos cursos, a Unicamp já realizou 10 mil metros quadrados de obras físicas no novo campus. De acordo com o reitor José Tadeu Jorge, a formação do corpo docente é um capítulo importante do projeto. “O novo campus terá o mesmo perfi l de excelência conquistado pela Unicamp ao longo dos anos”, disse.

> Patamar mínimo

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou uma proposta de emenda constitucional que estabelece recursos mínimos às atividades de pesquisa e desenvolvimento. O texto estabelece que o investimento anual em atividades de pesquisa básica e aplicada e de desenvolvimento tecnológico deverá ser gradualmente elevado ao patamar mínimo de 2% do PIB. A proposta será levada ao plenário. De acordo

com a Agência Senado, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) já anunciou que apresentará uma emenda estabelecendo que parte dos recursos seja aplicada na região Amazônica.

da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas (Rede-Clima), coordenada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os recursos, que serão repassados ainda em 2008, devem viabilizar a criação de uma estrutura básica da rede, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A Rede-Clima envolve diversas instituições brasileiras voltadas para estudos na área de mudanças climáticas ligados a diversos setores e sistemas, como biodiversidade, agricultura, energias renováveis, zonas costeiras, recursos hídricos, saúde humana, desastres naturais e políticas públicas. O projeto, além de produzir conhecimento e tecnologia, terá a missão de gerar os dados para apoiar a diplomacia brasileira nas negociações sobre o regime internacional de mudanças do clima. A rede deverá atuar ainda na realização de estudos sobre as vulnerabilidades do país às mudanças climáticas, além de estudar alternativas de adaptação. A secretaria executiva da Rede-Clima caberá ao Inpe.

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RPe s q u i s a d o r e s d a Em b r a p a e d a

Universidade do Mississippi, nos

Estados Unidos, negociam uma par-

ceria que envolverá estudos sobre

plantas medicinais do Cerrado e da Caatinga. Entre os temas prio-

ritários estão o desenvolvimento de medicamentos, fungicidas,

repelentes de insetos e pesquisas em nutracêutica, ciência que

estuda os componentes presentes em frutas, legumes, vegetais,

entre outros. O utro destaque será a coleta e conservação de

recursos genéticos de plantas aromáticas e medicinais. Uma das

possibilidades cogitadas é a criação de um sistema de informação

que associe referências obtidas das espécies dos dois biomas

com outras de famílias próximas que possam ser substituídas. A

cooperação está sendo articulada pelo Laboratório da Embrapa

no Exterior (Labex), nos Estados Unidos, sediado em Beltsville,

Maryland, e prevê intercâmbio científi co e execução de atividades

relacionadas à pesquisa e transferência de tecnologia.

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Cerrado: em busca de plantas aromáticas e medicinais

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JUST IÇ A

Li b e r d a d e p a r a a v a n ç a rDecisão histórica do STF dá aval à busca da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias

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Foi o mais importante julgamento em mais de cem anos de história do Supremo Tribunal Federal (STF), na avaliação de Celso de Mello, um de seus ministros. Na tarde do dia 29 de maio, os 11 juízes da Corte autorizaram o pros-seguimento das pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos no Brasil ao rejeitarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo

ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles contra um dos artigos da Lei de Biossegurança (nº 11.105). Seis dos votos declararam a improcedência da Adin. Os outros cinco ministros, embora não tenham considerado inconstitucional a lei, fizeram ressalvas que, em maior ou menor grau, poderiam impor limites à atividade científica. Mas foram votos vencidos.

Com a decisão histórica, o Supremo deu aval para a retomada das pesquisas brasileiras com células-tronco embrionárias, que permaneciam em banho-maria devido à incerteza causada pela Adin. “Esse julgamento tirou uma espada de nossas cabeças”,

afirma a geneticista Lygia da Veiga Perei-ra, que espera obter em seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) a primeira linhagem brasileira de um tipo especial de célula. Capazes de originar diferentes tecidos do corpo – como pele, ossos ou neurônios –, as células-tronco embrionárias despertam há tempos o interesse de pesquisadores e da população no mundo todo por representarem uma esperança de tratamento para problemas graves contra os quais medicamentos não surtem o efeito desejado. A pro-dução de uma linhagem nacional de células-tronco embrionárias humanas é um passo importante para a ciência brasileira. “Ela deve garantir autonomia ao país, que pode deixar de depender da importação de linhagens produzidas no exterior”, diz Lygia, que trabalha nessa missão desde 2005 com Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Segui em frente acreditando no bom senso do STF”, conta Lygia.

Não é uma tarefa simples. Desenvolver uma linhagem significa extrair células de um embrião em estágio inicial de desen-volvimento e fazê-las se reproduzir em laboratório sem que percam sua caracte-rística mais interessante: a pluripotência, capacidade de originar outras células do corpo. Usando uma técnica inovadora – em que se cultivam células de embriões humanos sobre fibroblastos humanos –, Lygia e Rehen já conseguiram gerar uma linhagem brasileira, mas os resultados ainda não foram plenamente satisfatórios. Agora pretendem repetir o experimento adotando o método clássico usado no mundo todo, em que essas células são cultivadas sobre fibroblastos de camun-dongos. “Elas serão adequadas para uso em pesquisa, mas não para tratamentos”, explica Lygia, que pretende repassar a técnica para outros laboratórios do país tão logo ela seja dominada.

>P OLÍ T IC A C I E N T Í F I C A E T E C N OLÓ G I C A

Cadeirantes celebram a liberação das pesquisas em frente ao STF

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permitirão tratar uma gama mais ampla de doenças”, afirmou.

O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, lembrou que as pesqui-sas com células-tronco apoiadas pelo governo federal desde 2004 poderão ter os primeiros resultados em 2009. Até agora esses projetos receberam cerca de R$ 24 milhões. “É certo que, para os pri-meiros resultados concretos, temos uma longa estrada pela frente. Mas é preciso destacar que essas pesquisas buscam trazer respostas para agravos como as lesões raquimedulares, diabetes e doenças genéticas”, explicou o ministro.

C l o n a g e m p r o i b i d a - As pesquisas com células-tronco embrionárias estão previstas na Lei Nacional de Biossegu-rança, sancionada em março de 2005 (ver reportagem de capa de Pesquisa FAPESP nº 110). O uso de embriões foi liberado em condições restritas: só é permitido o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro – mesmo assim caso se mostrem inviáveis para reprodução ou se estiverem congelados há pelo menos três anos. Ficou proibida a clonagem de embriões que, na teoria, poderia gerar células e tecidos feitos sob medida para tratar um indivíduo.

Mas logo que a lei entrou em vigor surgiu o impasse jurídico. Em maio de 2005 o então procurador-geral da Re-pública, Cláudio Fonteles, propôs a Adin ao STF. Ele contestou o artigo 5º da lei, justamente o que dispõe sobre a utilização

de embriões armazenados em clínicas de reprodução (ver Pesquisa FAPESP nº 113). Na avaliação de Fonteles, tais dispositivos chocavam-se com a proteção que a Constituição confere à vida huma-na. A ação suscitou a primeira audiência pública feita na história do Supremo (ver Pesquisa FAPESP nº 135). Por iniciativa do ministro relator, Carlos Ayres Britto, o STF reuniu 22 cientistas em Brasília para debater a seguinte questão: quando começa a vida? O julgamento só teria início no dia 5 de março, com a leitura do voto de Ayres Britto, que refutou a tese de Fon-teles. “Deixar de contribuir para devolver pessoas à plenitude da vida não soaria como desumana omissão de socorro?”, indagou Britto. A então presidente da corte, a ministra Ellen Gracie, acompa-nhou o voto do relator, mas a sessão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, e só retomada em 28 de maio.

Direito, que pertence à União dos Ju ristas Católicos do Rio de Janeiro, pro pôs em seu voto que a extração de células-tronco estaria condicionada à não destruição do embrião congelado. Além dele, os ministros Ricardo Lewan-dowski, Eros Grau, Gilmar Mendes e Cezar Peluso fizeram ressalvas que pre-viam limites à pesquisa. Mas prevaleceu a tese do relator, apoiada também pelos ministros Marco Aurélio Mello, Ellen Gracie, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa, que votaram pela liberação das pesquisas nos termos da Lei de Biossegurança, sem restrições. ■

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ÃO“Esse é um aprendizado novo”, diz o

médico Antonio Carlos Campos de Car-valho, pesquisador do Instituto Nacional de Cardiologia e da UFRJ, onde também trabalha com linhagens de células-tronco embrionárias humanas importadas. Car-valho e outros quatro grupos da UFRJ tentam desde 2005 aumentar a obtenção de determinados tipos de células maduras, que poderiam ser usadas no reparo de algum tecido danificado. “Com a decisão do STF, ganhamos tranqüilidade para colocar estudantes de mestrado e dou-torado para trabalhar nesses projetos”, afirma Carvalho.

A geneticista Mayana Zatz, líder da mobilização em favor da liberação das pesquisas, diz que o potencial terapêutico das células-tronco embrionárias é imenso. “Mas é preciso ter paciência: não se sabe quando e nem quais doenças poderão realmente ser tratadas”, adverte. “Os pesquisadores já estavam trabalhando com células-tronco embrionárias, tanto importadas como brasileiras – porque não era proibido. Mas ninguém estava investindo muito nisso porque não se sabia se elas seriam interrompidas. Agora os pesquisadores vão se lançar nesse caminho: submeter projetos, conseguir financiamento, fazer pesquisa”, diz Mayana. A pesquisadora ressaltou que o aval do STF não significará uma redução da pesquisa com as células-tronco adultas, que podem ser extraídas de vários órgãos, mas não têm a versatilidade das embrionárias. “A pesquisa com células adultas trará resul-tados a curto prazo, mas as em brionárias

Imagens de uma seqüência de célula se dividindo: pesquisas com células-tronco têm um longo caminho a percorrer

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A e m b r i a g u e z

O que leva uma pessoa a escolher a carreira de cientista se a ocupação exige um enorme esfor-ço intelectual mas não rende um status econô-mico à altura de seus desafios? Como os cien-tistas conseguem se manter estimulados apesar das incertezas que permeiam a missão de fazer avançar o conhecimento? Costuma-se atribuir

essa motivação a um chamado vocacional quase religioso, como escreveu Max Weber em Ciência e política: duas vocações: “Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantêm afastados da ciência, sem essa paixão, sem essa certeza de que milhares de anos se escoa-ram antes de você ter acesso à vida e milhares se escoarão em silêncio se você não for capaz de formular aquela con-jetura; sem isso, você jamais possuirá a vocação de cien-tista e melhor será que se dedique a outra atividade”.

Investigações mais recentes da sociologia mostram que, se o senso comum não está propriamente equivo-cado, também existe uma dinâmica a explicar as singu-laridades da profissão de cientista para além da idéia de que eles são gênios excêntricos, absortos na resolução de problemas às vezes intangíveis e avessos às misérias cotidianas. A profissão garante uma elevada satisfação pessoal, derivada da liberdade de poder organizar o próprio trabalho e do gosto de colher os frutos. “Enquan-to o trabalho industrial tornou-se alienante, por fracio-nar etapas e impor tarefas monótonas e fatigantes, a ocupação do cientista, assim como outras de caráter intelectual, é essencialmente criativa e conseguiu pre-servar o controle sobre todo o seu processo produtivo”, diz a socióloga Neide Hahn, autora de um estudo de referência sobre o tema.Um dos principais motores da profissão, mais do que os cifrões no contracheque, é o prestígio – auferido na forma de reconhecimento dos pares e da sociedade e na capacidade de obter recursos para prosseguir suas pesquisas.

Em 1975, Neide Hahn defendeu uma dissertação de mestrado intitulada Cientista: o indivíduo e a ocupação, que pela primeira vez no Brasil caracterizou o trabalho de cientistas e avaliou as motivações desse grupo social. Orientada pelo sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a pesquisa foi baseada em entrevistas com 120 cientistas de diversas A

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áreas do conhecimento, liga-dos a universidades e centros de pesquisa do estado de São Paulo, que haviam recebido nos anos anteriores auxílios da FAPESP.

Um dos dados mais eloqüen-tes diz respeito às vantagens da carreira apontadas pelos entre-vistados. A sa tisfação intelec-tual, traduzida na habilidade de contribuir para o avanço do conhecimento e na solução de problemas, foi a motivação cen-tral citada por 57,5% dos pes-quisadores. Em segundo lugar, com um índice de 13,3%, vinha a possibilidade de resolver pro-blemas sociais, seguida pela li-berdade no trabalho (11,7%) e a chance de receber recompen-sas sociais ou materiais (6,7%). “Os pesquisadores se sentem realizados no que diz respeito ao alvo principal de sua ativida-de: a busca do conhecimento, a solução de problemas, a satisfa-ção da curiosidade intelectual, enfim”, escreveu Neide Hahn.

A auto-imagem expressada pelos pesquisadores também merece menção. Eles disseram que as condições essenciais pa-ra o desempenho da ocupação são, em primeiro lugar, uma personalidade adequada, cal-cada no conceito de honestida-de intelectual, além de inteligên-cia e esforço individual. A dis-sertação sugere que o trabalho científico se aproxima do mo-delo descrito pelo sociólogo americano Charles Wright Mills (1918-1962) como “artesanal”:

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Por que a satisfação dos cientistas com seu trabalho é tão grande

Inauguração de laboratório da Faculdade de Engenharia Industrial (1977)

Fabrício Marques

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ao mesmo tempo que é uma necessi-dade de ganhar a vida também se trata de um ato artístico capaz de trazer a tranqüilidade interior. As características da profissão mais valorizadas foram a oportunidade de exercer a própria vo-cação e o prazer intelectual de solucio-nar problemas teóricos.

Tr a b a l h o e l a z e r - A caracterização feita dos cientistas entrevistados traz algumas informações curiosas. De modo geral eram moderados no consumo, faziam poupança e investiam sobretudo em imóveis. Num sinal de que as frontei-ras entre trabalho e lazer são tênues, 42,5% declararam que seus melhores amigos são os colegas de profissão e 18,3% informaram que usam o tempo livre para leituras e outras atividades ligadas à profissão. Apenas 3 dos 120 pesquisadores eram solteiros. Dois eram viúvos e outros 2, desquitados. Como se vê, muitos eram casados, em geral com mulheres com nível de instrução superior à média das mulheres brasilei-ras da época – 62% delas tinham curso superior, freqüentemente na mesma área de formação dos maridos.

Ainda que a recompensa em dinhei-ro despontasse como uma vantagem central apenas secundária, não se pode

dizer que fossem mal remunerados. “Embora se constituam num grupo ocupacional razoavelmente bem pago, em cotejo com algumas outras ocupa-ções liberais, os cientistas recebem me-nor remuneração. Outra hipótese é de que tenham aspirações salariais altas, o que faz supor uma autovalorização da atividade que exercem”, escreveu Neide. Mais de dois terços (72%) se declararam insatisfeitos com sua renda (entre 15 e 37 salários mínimos da épo-ca). Mas o fato é que a profissão repre-sentara, para eles, um meio de ascensão social. “De modo geral, a amostra as-cendera da classe média média para a camada média alta”, disse na época Neide Hahn. É certo que, naquela épo-

ca, vários setores beneficiaram-se de mecanismos da mobilidade social. Mas 64% dos entrevistados declararam que se consideravam em condições melho-res que as vividas por seus pais.

A pesquisa de Neide Hahn foi feita há mais de 3 décadas, mas se pode afir-mar que vários de seus resultados per-manecem atuais. Segundo Elizabeth Balbachevsky, professora do Departa-mento de Ciência Política da FFLCH/USP, a satisfação do cientista com sua profissão é um fenômeno mundial e não sofreu abalos com a evolução do papel dos pesquisadores, cuja autonomia vem sendo desafiada por uma pressão para que tenham uma interface maior com o setor produtivo e, com freqüência, são avaliados pelo volume de recursos que conseguem atrair. Em janeiro passado, a professora participou de uma confe-rência internacional em Hiroshima, no Japão, em que foram apresentados re-sultados de um projeto internacional que acompanha a evolução da profissão acadêmica em vários países – Elizabeth e o professor Simon Schwartzman são os representantes brasileiros dessa rede.

“Ficamos surpresos com os resul-tados obtidos mesmo em países que sofreram reformas profundas em seu sistema de educação superior. Ainda assim, a satisfação profissional perma-nece elevada”, diz, referindo-se, por exemplo, à Austrália, cujo sistema de financiamento passou a exigir que os pesquisadores busquem parte do di-nheiro para seu custeio no setor priva-do. “Na Holanda, a tenure, que é a con-tratação definitiva do professor, não faz mais parte das regras das universidades e os pesquisadores têm de mostrar pro-dutividade continuamente. As pressões vêm de todos os lados e algumas delas não são controladas pela academia. Hoje muitos pesquisadores são obriga-dos a negociar com interlocutores que, até bem pouco tempo atrás, não seriam aceitáveis, como, por exemplo, as orga-nizações mais radicais de defesa dos animais, que impõem restrições ao uso de animais em pesquisa”, afirma. Dian-te do quadro que se apresenta em mui-tos países desenvolvidos, a situação do Brasil pode ser considerada bastante satisfatória em muitos sentidos. “As pressões de índole produtivista são me nores. No caso das universidades es taduais paulistas, que recebem um

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porcentual fixo de verbas e gozam de autonomia para usar esses recursos, a liberdade de trabalho dos pesquisado-res não sofreu reveses. Os recursos da FAPESP também contribuem para es-se diferencial”, afirma a professora.

É provável que o prazer proporcio-nado pelo trabalho científico não este-ja vinculado apenas à liberdade e à proteção do ambiente acadêmico. Um levantamento divulgado em 2005 pela revista norte-americana The Scientist avaliou a satisfação de cientistas con-tratados para fazer pesquisa em grandes corporações dos Estados Unidos, do Ca-nadá e de países europeus. Os dados mostraram que eles pensam como os colegas que militam na academia: tiram elevada satisfação de seu trabalho por considerá-lo muito importante. A sa-tisfação aumenta se outros fatores es-tiverem presentes, como o fato de tra-balhar com colegas íntegros e os padrões éticos demonstrados pela companhia.

Pr e s s ã o p a r a p u b l i c a r - Na opinião de Shozo Motoyama, professor titular da FFLCH/USP e diretor do Centro Interunidades de História da Ciência da universidade, a profissão de pesqui-sador está em transformação, mas isso não mudou o prazer obtido pela ocu-pação. “O número de cientistas aumen-tou muito e, em função da importância que as novas tecnologias ganharam, vários deles desenvolveram habilidades que os tornaram capazes, por exemplo, de abrir empresas e ganhar dinheiro fora do ambiente acadêmico”, afirma o professor. “Eles já não são mais aquele tipo de elite intelectual que vivia em seus laboratórios alheios à vida comu-nitária. Mas eles continuam sendo eli-te intelectual e ainda se beneficiam da máxima do geneticista Crodowaldo Pavan sobre seu trabalho. Ele sempre diz: ‘Eu me divirto e alguém paga para eu me divertir’”, afirma Motoyama.

Muitos pesquisadores se queixam de uma mudança no perfil de seu trabalho, que é a crescente pressão por publicar artigos acadêmicos em grande quanti-dade, resumida no slogan “Publique ou pereça”. Embora de fato a pressão para publicar fosse menor na década de 1970, os dados levantados por Neide Hahn em sua dissertação de 1975 mostram que a preocupação em divulgar seus traba-lhos era forte. Em média, os cientistas

entrevistados que eram professores titulares haviam publicado na carreira um número médio de 76 trabalhos. Esse índice caía para 48,2 entre os professores adjuntos, 42 para os livres-docentes, 16,9 para os doutores e 23 para os mestres. “Principalmente os professores titulares tinham uma produtividade elevada, num momento em que a pressão por publicar era muito menor que a de hoje”, elogia o professor Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil.

A performance não surpreende a cientista política Elizabeth Balbachevsky, da USP. Em primeiro lugar, ela lembra que se trata de uma amostra peculiar. “A FAPESP sempre foi rigorosa na con-cessão de recursos e bolsas e o fato de terem recebido auxílio da Fundação é um indicador de um profissional com perfil diferenciado”, afirma. De outro lado, a professora lembra que dar publi-cidade aos achados é uma preocupação muito antiga, parte do ethos da ciên-cia. “Já naquela época, principalmente nas áreas de ciência pura, quem não publicava em revistas especializadas

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Pesquisa de campo na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1960)

simplesmente não era reconhecido por seus pares como cientista”, afirma. “O que é novo não é a necessidade de publicar, mas o advento dos indicadores que mensuram o impacto das revistas especializadas e de seus artigos e que dão precisão à avaliação da importância da produção acadêmica”, diz Elizabeth Balbachevsky. O sociólogo americano Robert Merton (1910-2003), que foi um pioneiro da sociologia da ciência, ao estudar o modo como os cientistas se comportam e suas motivações, já havia apontado a necessidade de submeter os achados aos pares como caracterís-tica essencial da ocupação do cientista. Segundo Merton, entre as principais normas culturais internalizadas pelos pesquisadores estão a submissão a crité-rios impessoais de julgamento e a idéia de que as descobertas são produto de colaboração social, devendo, portanto, ser divulgadas e submetidas ao julga-mento de seus pares. Publicar, como se vê, está na essência do trabalho do cientista. E perecer está fora de cogitação para indivíduos tão motivados com a profissão que escolheram. ■

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O Museu do Jardim Botânico de Berlim recebe até o dia 14 de setembro uma inédita mostra sobre a biodiversidade brasileira que se baseia em imagens e dados oriundos de três projetos financiados pela FAPESP: a Flora brasiliensis on-line, a Flora fanerogâ-

mica do estado de São Paulo e o Biota-FAPESP. A exposição, cujo título é Brazilian nature mystery and destiny (Natureza brasileira: mistério e destino), dispõe de painéis com reproduções de imagens, ilustrações e textos explicativos. “Um significado especial da exposição é mostrar que o Brasil está atento à sua biodiversidade e que faz isso por meio de programas de pesquisa bem organizados e bem preparados”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científi co da FAPESP.

Os 37 painéis da exposição, programada para ter início no dia 4 de junho, espalham-se pelo terceiro andar do museu alemão e também pelos quatro lances de escada que dão acesso ao pavimento. Os textos explicativos são todos em inglês, pois há a intenção de que a mostra viaje por outros países, mas foi preparado um catálogo da exposição em alemão. O conteúdo foi compilado com a ajuda de representantes dos três projetos. O Flora brasiliensis on-line,

Exposição em Berlim mostra a riqueza da biodiversidade brasileira registrada por projetos da FAPESP

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Q uesnelia humilis (esq.) e Ep iphyllum phyllanthus, da fl ora fanerogâmica de São Paulo

que há 2 anos disponibilizou no endereço da internet fl ora-brasiliensis.cria.org.br a versão integral do mais completo e abrangente levantamento da fl ora nacional já realizado, é representado na exposição por uma seleção de imagens de espécies e de cenários produzidos, na maioria, no século XIX. O acervo de 3.840 pranchas e 10.207 páginas com os textos das descrições das quase 23 mil espécies foi feito sob a liderança do botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Além das imagens históricas, o projeto Flora brasiliensis on-line contempla a atualização dos nomes das espécies e o acréscimo de informações mais recentes.

Cada desenho levado à exposição tem a companhia de uma fotografi a atual das espécies ou ecossistemas retratados, num esforço para mostrar que boa parte do que Von Martius viu em sua viagem de 10 mil quilômetros pela Mata Atlân-tica, a Caatinga, o Cerrado e a Floresta Amazônica, ainda pode ser vislumbrada. A produção ou pesquisa das novas imagens fi cou a cargo da equipe de Maria do Carmo Ama-ral, do projeto Flora brasiliensis on-line. Além da FAPESP, o projeto teve o patrocínio da Fundação Vitae e da empresa de cosméticos Natura.

O projeto Flora fanerogâmica teve início em 1993 e contou com a participação de mais de 200 pesquisadores, que descreveram cerca de 2 mil espécies fanerógamas – que produzem fl ores – na vegetação nativa paulista. Dessas, pelo menos 20 jamais haviam sido identifi cadas antes. Estima-se que os ecossistemas paulistas guardem 7,5 mil espécies de plantas desse tipo. O levantamento já resultou na publicação de cinco volumes com ilustrações e informações sobre plantas de todo tipo presentes no estado de São Paulo. Outros dez volumes serão publicados nos próximos anos. As dezenas de imagens apresentadas na exposição foram compiladas sob a coordenação de George Shepherd, do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador adjunto do programa Flora fa-nerogâmica do estado de São Paulo.

Já o programa Biota-FAPESP permitiu, desde sua criação em 1999, a descrição de mais de 500 espécies de plantas e animais espalhados pelos 250 mil quilômetros quadrados do território paulista. Também produziu 75 projetos de pesquisa, 150 mestrados e 90 doutorados, além de gerar 500 artigos em 170 periódicos, 16 livros e dois atlas. Recentemente, os dados científi cos foram transformados em mapas, que passaram a

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orientar os critérios de preservação da vegetação nativa paulista. O trabalho de seleção de imagens esteve a cargo do botânico Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas, que por vários anos foi o coordena-dor do Biota-FAPESP. “O Museu de Berlim tem várias espécies brasileiras e é uma referência para nós”, diz Joly. “Quando vamos fazer alguma revisão taxonômica, é comum termos de ir a Berlim para avaliar esse acervo. Por isso é especialmente importante podermos levar a exposição até lá e mostrarmos aos pesquisadores alemães que fazemos pesquisa de primeira linha”, afi rma.

A escolha do nome da exposição se explica. “Mistério, porque ainda há muito a ser descoberto na biodiversida-de brasileira, bem ao contrário do que acontece na Europa, que há muito tempo deixou de identifi car novas espécies”, diz a jornalista Maria da Graça Mascarenhas, gerente de comunicação da FAPESP e curadora da mostra. “E destino, porque cuidar desse patrimônio, afi nal, depende de nós”, complementa.

B i o c o m b u s t í v e i s - O embaixador do Brasil em Berlim, Luiz Felipe de Sei-xas Corrêa, destaca a importância da exposição. “Num momento em que cresce na Europa o debate sobre os bio-combustíveis e os riscos que impõem às

fronteiras agrícolas, a FAPESP nos dá a oportunidade valiosíssima de mostrar a nossa seriedade em torno da preservação do meio ambiente, trazendo exemplos claros do passado e do presente e do que será o futuro”, disse o diplomata, que visitou a sede da FAPESP no dia 16 de maio. “Além de ter impacto do ponto de vista de nos sa imagem na Alemanha, a exposição ocorre num momento especial, em que o tema da biodiversidade estará

à frente das atenções da comunidade internacional”, disse Seixas Corrêa, re-ferindo-se à 9ª Conferência dos Esta-dos Signatários da Convenção sobre a Diversidade Biológica (COP 9), que se realizou em Bonn entre os dias 19 e 30 de maio. O encontro anterior, a COP 8, foi realizado em Curitiba em 2006.

A trajetória da exposição, por sinal, remonta à conferência de Curitiba, quan-do um evento realizado pela FAPESP

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apresentou os resultados da digitalização do acervo da Flora brasiliensis aos pes-quisadores de todo o mundo pre sentes ao encontro. No ano passado, Wanderley Canhos, diretor presidente do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), entidade responsável pela orga-nização do banco de dados do projeto, foi procurado por pesquisadores alemães interessados em levar para a Alemanha uma exposição com as pranchas de Von Martius. A FAPESP sugeriu ampliar o escopo da exposição e incluir, além do acervo da Flora brasiliensis, imagens de outros importantes projetos no campo da biodiversidade, como a fl ora fanerogâmica do estado de São Paulo e o Biota. Em se-guida, uma equipe da Fundação passou a trabalhar no roteiro da exposição.

Para compor os painéis, os organizado-res tiveram de vencer algumas difi culdades. Foi preciso, por exemplo, obter autorizações de uso da imagem assinadas pelos autores de todas as fotografi as exibidas, sem o que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não permitiria o envio dos painéis para a Alemanha. “Tivemos problema, por exemplo, na hora de apro-veitar imagens exibidas em exposições anteriores. Algumas fotos haviam sido cedidas por nossas equipes, mas já não se sabia exatamente quem era o autor”, lembra o botânico Carlos Joly. “O jeito era substituir por outra”, afi rma. ■

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UNIVERSIDADES

Z ON A F RA N C A N O D E SE RTOO emirado árabe de Dubai investe US$ 10 bilhões para tornar-se um pólo internacional de ensino superior

Um enclave de 2,3 quilômetros quadrados na periferia de Du-bai, um dos sete Emirados Árabes Unidos, tornou-se uma espécie de zona franca da edu-cação de qualidade interna-cional numa região onde, até

poucas décadas atrás, havia apenas o deserto. Nos últimos 3 anos, pelo menos duas dezenas de universidades de países como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Bélgica e Índia abriram su-cursais de seus campi na área, batizada de Cidade Acadêmica Internacional de Dubai. A partir do segundo semestre dois novos participantes abrirão suas portas em Dubai: a Universidade do Estado de Michigan e o Rochester Ins-titute of Technology, do estado de Nova York, cujas sedes estão quase prontas. Eles se somarão a instituições como a

Formatura no campus da Universidade Middlesex em Dubai, aberto em 2005

australiana Murdoch University Inter-national, conhecida por seus programas na área de mídia e comunicações; a Hult International Business School, que ofe-rece cursos de MBA em negócios e fi -nanças em Boston; ou ainda a londrina Universidade Middlesex. Harvard tam-bém está presente no emirado. Sua es-cola de medicina estabeleceu um hos-

pital e uma fundação de pesquisa numa zona criada em 2002 para abrigar hos-pitais e clínicas de alta qualidade.

Na cidade acadêmica, cerca de 10 mil estudantes freqüentam cursos de 1 a 4 anos de duração, em áreas como engenharia, ciência da computação, moda e design, biotecnologia, meio ambiente e negócios. A intenção é chegar a 30 mil nos próximos 5 anos. “A lista cada vez maior de instituições mostra que seremos uma base regional para educação superior de alta qualidade”, comemora Ayoub Kazim, diretor exe-cutivo da cidade.

O que acontece em Dubai simbo-liza uma nova tendência vivida pelas universidades de classe mundial. Suas estratégias de internacionalização, que se justifi cam pela necessidade de preparar alunos para o mundo globalizado e atrair talentos internacionais, já não se baseiam apenas em programas de intercâmbio, formação de redes de pesquisa ou cur-sos a distância como antigamente. Está crescendo o número de instituições que criam sucursais no exterior, sobretudo no Oriente Médio. Em Doha, capital do Qatar, é possível estudar medicina num campus avançado de Cornell ou ciência da computação na sucursal de outra instituição americana, a Universidade Carnegie Mellon. A Universidade de Nova York vai abrir em 2010 um campus dedicado a artes e humanidades em Abu Dhabi, o maior dos emirados árabes, depois de receber uma dotação de US$ 50 milhões do xeque local.

A tendência é estimulada pelas gran-des dotações oferecidas às instituições. No caso de Dubai, as universidades

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ratórios farmacêuticos. Para o projeto da cidade acadêmica foram destinados US$ 10 bilhões. Dubai tem 1,5 milhão de habitantes espalhados por uma área de menos de 3,8 mil quilômetros qua-drados – o equivalente a pouco mais do que duas cidades de São Paulo.

At i v o d i p l o m á t i c o - Embora as universi-dades com campus no exterior insistam na tese de que oferecem a mesma qualidade de ensino da matriz, muitos funcionários e professores são contratados localmente, com contratos de curto prazo. “Muitos desses gestores de universidades estão tentando se apresentar como benevo-lentes e altruístas quando, na verdade, querem é arrecadar dinheiro”, disse ao jornal The New York Times a deputada Dana Rohrabacher, republicana da Cali-fórnia, crítica dessa onda internaciona-lista. David Skorton, reitor da Universi-dade Cornell, defende a estratégia e diz que ela traz benefícios para os Estados Unidos. “A educação superior é o ativo diplomático mais importante que nós

temos. Eu acredito que esses programas podem reduzir a fricção entre países e culturas”, afi rmou Skorton.

Não é novidade que a educação de classe internacional tenha virado uma mercadoria disputada – e que os Estados Unidos talvez sejam o país mais habilitado para vendê-la. Alunos estrangeiros admi-tidos em universidades norte-americanas injetaram US$ 14,5 bilhões no país no ano passado em anuidades escolares, despesas com moradia e compra de livros, US$ 1 bilhão a mais que no ano anterior. Esse valor poderia ser maior não fosse o aumento das restrições ao ingresso de estudantes estrangeiros após os atentados de 11 de setembro de 2001. O principal embaraço atingiu estudantes do Oriente Médio, cujo contingente caiu 10% em 2002 e outros 9% em 2003 e só voltou aos níveis pré-atentados no ano passado. Abrir campus no exterior não deixa de ser uma forma de atender a essa demanda sem fomentar a imigração. ■

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internacionais são seduzidas por um pacote de vantagens que inclui isenção total de impostos, garantia de repatriação integral dos lucros obtidos e facilidades burocráticas para estudantes, professores e funcionários vindos de fora. Sem falar na infra-estrutura da cidade acadêmica, dotada de restaurantes, cinemas, ginásios esportivos e áreas de lazer. A intenção do xeque de Dubai, Mohammed Al-Maktoum, é transformar o país num pólo de atração de estudantes estran-geiros. O emirado tem pouco petróleo, ao contrário dos vizinhos, e a ambição de seu mandatário é convertê-lo num grande centro de turismo e tecnologia. Além da construção de hotéis de arqui-tetura exótica e do aterramento de um pedaço do seu litoral com a sugestiva forma de uma palmeira, o governo criou a Cidade da Internet, inaugurada em 2000, que conta com instalações de empresas como Microsoft, Siemens e IBM, e planeja lançar um pólo de labo-

Fabrício Marques

Ob ras dos prédios da Universidade de Michigan (alto) e do Rochester Institute of Technology

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A atual safra de estudos sobre a cana-de-açúcar confere uma tarefa a mais para a planta usada para produzir o açúcar indispensável à maioria dos brasileiros e o álcool que atrai o olhar do mundo e move quase metade dos automóveis no país. A cana emerge agora como uma possibilidade de deter o aqueci-mento global: o contínuo acúmulo de gás carbônico

(CO2) na atmosfera, que tende a elevar a temperatura do planeta, é inquietante para a humanidade, mas ótimo para as plantas, entre elas a cana. O mesmo CO2 que vemos como poluição é uma forma de adubo para as plantas. Portanto, a cana, outras culturas agrícolas e muitas espécies de árvores poderiam se benefi ciar e crescer mais rapidamente em um ar mais poluído.

A bióloga Amanda Pereira de Souza trabalhou com cana durante 5 anos no Instituto de Botânica, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP). Fez uma série de experimentos e, por fi m, demonstrou que a cana mantida em um ambiente com o dobro da concentração atual de CO2 realiza 30% a mais de fotossíntese e produz 30% mais de açúcar do que a que cresce sob a concentração normal de CO2. Das câmaras que mantinham esse ar rico em gás carbônico saíram plantas também mais altas e mais encorpadas, com 40% a mais de biomassa. A soja e a batata apresentaram resultados próximos, em experimentos semelhantes. A conclusão que ganha força é que a maioria das outras plantas, incluindo as árvores, deve se benefi ciar do provável excesso de gás carbônico, um dos ingredientes essenciais para ocorrer a fotossíntese, embora algumas mais do que outras (ver tabela na próxima página).

Os resultados poderiam representar uma vantagem para o Brasil, a Índia e a China, os maiores produtores de cana-de-açúcar, em um cenário de maior concentração de gás carbônico. Essa conclusão merece, porém, ser examinada com cautela para evitar que a expansão de canaviais como forma de limpar o ar e ao mesmo tempo de produzir riquezas. O papel dos canaviais para retirar gás carbônico do ar seria muito modesto, se comparado ao das fl orestas tropicais, alerta Marcos Buckeridge, botânico da USP e coordenador desse D

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experimento. Suas estimativas indicam que os canaviais de todo o país absor-veriam apenas 1 milésimo dos 3 bilhões de toneladas de CO2 liberados todo ano nas queimadas da Amazônia.

A soja, que ocupa uma área três vezes maior que a da cana, faz ainda mais fotossíntese e aproveita a água de modo ainda mais efi ciente, quando submetida à mesma concentração de

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Avidez das plantas por gás carbônico abre perspectivas de produzir mais alimento em menos espaço e de amenizar o aquecimento global

CO2, de acordo com os experimentos coordenados por Carlos Martinez na USP de Ribeirão Preto. Segundo ele, as plantas com estruturas de armaze-namento de açúcares – como a cana, a batata, o tomateiro, a soja e o milho – podem crescer até 40% com mais CO2. “No entanto”, ressalta, “só o excesso de CO2 não elevará a produtividade das plantas. As outras condições, como água,

nutrientes, luz e temperatura, também têm de ser favoráveis”. Dois especialistas em fisiologia de plantas, Jon Lloyd, da Inglaterra, e Graham Farquhar, da Austrália, alertam em um estudo re-cente para a possibilidade de a taxa de fotossíntese cair quando a temperatura ultrapassar 30° Celsius.

Até agora os experimentos foram feitos em laboratório: as plantas crescem

em vasos cercados por câmaras trans-parentes cilíndricas e de topo aberto, com bastante gás carbônico, água, luz e nutrientes. Falta testar em condições reais – em campo, quando as plantas se submetem a variações diárias de água e temperatura. Desde já parece certo, porém, que o excesso de CO2 atmos-férico deve alterar a biodiversidade e a composição das fl orestas. Espécies de

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árvores pioneiras como o feijão-do-mato e a embaúba, as primeiras a ocuparem os novos espaços, tendem a crescer ainda mais rápido que as espécies defi nitivas e de vida mais longa como o jacarandá-da-baía e o jatobá. Por sinal, foi com o jatobá, em um estudo pioneiro, que Buckeridge demonstrou em 2001 que uma planta pode crescer mais e mais rapidamente sob concentrações mais elevadas de gás carbônico.

Esses e outros estudos feitos no Brasil e em outros países valorizam a cana-de-açúcar como fonte de etanol, um com-bustível verde e renovável, diferentemente dos de origem fóssil como o petróleo. O milho, a matéria-prima para o etanol nos Estados Unidos, até agora não se mostrou tão ávido por CO2 quanto a cana. Além disso, saber que a cana cresce mais com mais gás carbônico tornaria possível obter o mesmo rendimento em metade da área plantada, aproveitando a outra metade para plantar feijão, arroz ou milho, por exemplo. “Podemos produzir mais e de modo sustentável”, acredita Buckerid-ge. Ele defende a idéia de um canavial com fl oresta: a área que deixaria de ser ocupada por cana poderia ser aprovei-tada com matas de uso sustentável, que ajudariam a gerar renda, a reter CO2 e a deter os impactos ambientais da cana. “Por que não pensar também em como

usar o gás carbônico liberado nas dornas de fermentação da cana nas usinas para irrigar o canavial e aumentar a produti-vidade e o teor de açúcar?”

Os biólogos da USP, em conjunto com colegas da Unicamp, do Instituto de Botânica e de uma instituição priva-da, o Centro de Tecnologia Canavieira, verificaram que a cana capta não só mais CO2, mas também mais luz, outro ingrediente essencial à fotossíntese. Em seguida, identificaram quatro genes associados à maior absorção da luz e dois que expandem a parede celular, que guarda quase metade do carbono obtido com a incorporação do CO2.

Encontrar genes como esses não é nada trivial: a cana-de-açúcar, geneticamente, é bastante complexa. As variedades de cana hoje mais utilizadas para produzir açúcar, álcool, aguardente, caldo de cana e rapadura têm um número variável de cromossomos – de 100 a 130. Cada célula mantém pelo menos parte da herança genética das espécies originais, a Sacharum spontaneum, cujo número de cromos-somos varia de 36 a 128, e a Sacharum offi cinarum, com 70 a 140 cromossomos. E cada cromossomo tem de seis a dez cópias – nem sempre iguais.

Não há mais por que se perder nesse labirinto. De 1999 a 2003, quase 250 pesquisadores de instituições paulistas,

pernambucanas e fl uminenses traba-lharam no Genoma Cana ou Sucest e identifi caram 90% dos estimados 80 mil genes da cana, representados por 43 mil seqüências ativas de genes. “Con-seguimos acompanhar passo a passo o desenvolvimento internacional em genética molecular de plantas”, observa Marie-Anne Van Sluys, pesquisadora da USP que participou do Sucest.

G e n e s ú t e i s - Tanta informação sobre a genética da cana tem ajudado a validar e a orientar o melhoramento genético clássico, que começou no início do século em instituições como o Instituto Agro-nômico de Campinas (IAC) e hoje corre também em universidades de todo o país. Em um artigo recente a equipe do Sucest apresenta os genes que podem ajudar a apurar características agronômicas desejáveis, como teor de açúcar ou re-sistência a pragas ou a doenças, ou como potenciais identifi cadores moleculares para as características mais procuradas da cana; outro trabalho descreve os genes e os mecanismos bioquímicos por meio dos quais uma das variedades atuais de cana acumula sacarose. “Pela primeira vez”, diz Marie-Anne, “há um esforço conjunto de geneticistas, bioquímicos e agrônomos para identificar genes que possam acelerar a identifi cação de

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Eficiência de uso na água +60% +80% +150% + 89% +90% +84% + 94 % + 117%

B iomassa total +40% +36% +25% + 63% +30% +20% + 20 % + 24 %

Altura +17% +30% +25% + 3,2% +10% +15% +0,6% + 9,1%

P rodução de caules/tubérculos ou sementes

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Respiração -32% +22% ND +9,5% -10% -30% -3,6% -31%

ND= Não determinado Fontes: Marcos B uckeridge e Carlos Martinez/USP

C r e s c e r e m u l t i p l i c a r -s eCultivos agrícolas e espécies de árvores nativas sob concentração de CO

2 de 720 partes por milhão

e condições ótimas de água e nutrientes

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novas variedades e facilitar a seleção das plantas mais promissoras”.

Desse caminho de mão dupla entre geneticistas e melhoristas saem também as canas transgênicas ou modificadas geneticamente, com mais açúcar ou mais resistentes à seca, que poderiam aumen-tar a produtividade e conter a expansão sobre o Cerrado, uma das vegetações naturais que mais tem sido substituída pela agropecuária. Algumas dessas va-riedades experimentais já passaram pelo primeiro vestibular: os testes realizados em casas de vegetação de universidades ou de empresas de biotecnologia nacio-nais. Em um dos experimentos só pas-saram duas das 40 plantas que poderiam fornecer mais sacarose que as variedades em uso. Essas novas plantas vão agora

para a prova de fogo: os testes em campo, sob as variações de sol, chuva e umidade, além das pragas, a que as plantas se sub-metem normalmente. Mesmo os mais otimistas não apostam que esses experi-mentos em campo vão dar certo: até agora a maioria das plantas modifi cadas geneticamente decepciona quando che-ga às condições reais de plantio. Uma série de artigos e reportagens sobre ge-nomas de plantas publicados na Science de 25 de abril (www.sciencemag.org/plantgenomes/) demonstra que nem sempre o otimismo é recompensado. O arroz geneticamente modifi cado para evitar cegueira e morte por falta de vita-mina A em milhões de crianças continua uma promessa, quase 8 anos depois de ter aparecido na capa da Time.

Mesmo assim, o engenheiro agrícola e professor da Unicamp Luís Augusto Cortez não desanima fácil. Há 15 anos ele cultiva a idéia de extrair da cana muito mais do que açúcar e álcool. Insistiu e, com sua equipe, construiu uma planta piloto que transforma 200 quilos de bagaço em 80 quilos de óleo que poderia substituir o diesel em turbinas e caldeiras, entre outras aplicações, e 50 quilos de carvão que poderia servir como combustível ou aditivo de solo. Tanto a matéria-prima quanto os produtos fi nais são versáteis, já que o engenheiro químico Juan Pérez assegura que outros resíduos agrícolas, como o bagaço de laranja e serragem, poderiam ser usados no lugar da cana, com os mesmos resultados.

Jatobá: uma das plantas benefi ciadas com o possível excesso de gás carbônico na atmosfera

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Erosã o e poluiç ã o

A cana também produz controvérsias. Enquan-to uma parte dos pesquisadores enfatiza os benefícios da cana-de-açúcar, outra alerta

para um lado amargo: os impactos ambientais e sociais provocados por métodos de produção que pouco mudaram em quase 5 séculos, quando essa planta começou a ser cultivada no país. O interesse do mundo pelo etanol da cana motiva esse debate – sem questionar o fato de esse com-bustível ser hoje uma alternativa mais adequada que o petróleo – e pode acelerar a implantação de propostas e leis já à mão, que reduziriam os impactos da produção de açúcar e álcool.

“Do jeito como é produzido hoje, o etanol não é verde, mas cinza”, observa o agrônomo Luiz Antonio Martinelli, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP e autor de um estudo de revisão sobre os impactos ambientais e sociais do cultivo da cana-de-açúcar no país. “Não podemos mais fazer usinas derru-bando matas”, diz José Goldemberg, físico da USP que coordenou outro estudo de revisão, assim chamado por avaliar as tendências indicadas por dezenas de estudos anteriores. Goldemberg lem-bra que as primeiras usinas que se instalaram em pólos como Ribeirão Preto não estavam sujeitas a limitações ambientais. “Os proprietários atuais ainda reclamam, alegando que os avós deles não tinham essas restrições.”

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Martinelli e Goldemberg mostram que os efeitos negativos do atual modo de produção de açúcar e

álcool não se limitam à época da co-lheita, quando a fumaça das queimadas que antecedem o corte da cana agrava doen ças respiratórias como a asma, princi palmen te em crianças e idosos. Outras repercussões são mais sutis e persistem por todo o ano: a erosão e compactação de solos, a poluição dos rios com fertilizantes e resíduos da pro-dução de açúcar e álcool e a eliminação das fl o restas nativas que ajudam a esta-bilizar a temperatura e o abastecimento de água nas cidades.

Atenta às possibilidades de mudan-ças, a bioquímica da USP Gláucia de Souza diz que o Programa Bioenergia FAPESP (Bioen), que ela coordena e de-ve ser anunciado publicamente, deverá apoiar pesquisas sobre novas formas de reduzir os impactos do cultivo e do processamento industrial da cana. Segun-do ela, os projetos de pesquisa em bio-massa tentarão aumentar a produti vidade da cana por hectare plantado e assim produzir mais sem ocupar mais terras.

“Temos de mudar de um modelo de produção que nos trouxe até aqui para um modelo ambientalmente sustentável, que utilize menos água e menos fertili-zante, com mais cérebro do que força”, afi rma Cortez, que coordena um projeto de políticas públicas em parceria com a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta) e a colaboração de universidades, empresas e institutos de pesquisa públicos e privados (os resumos de debates e estudos dessas e outras equipes podem ser encontrados em www.apta.sp.gov.br/cana). “Nosso objetivo é mostrar o que precisa ser estudado e feito.”

Enquanto corre o debate sobre o que fazer, empresários estrangeiros se aproxi-mam dos canaviais: em abril, depois de norte-americanos e franceses, foi a vez de os ingleses anunciarem a compra de usinas produtoras de etanol no Brasil. Não são movimentos isolados porque

a produção de açúcar e álcool vive uma crescente desnacionalização: de 2006 para 2007 a participação estrangeira passou de 5,7% para 12% e somente no ano passado o Banco Central registrou investimentos de US$ 6,5 bilhões nessa área, de acordo com um dossiê sobre o agronegócio sucroalcooleiro assinado pe la socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Chegam também mais pressões por mudanças. Em maio, representantes da Comunidade Européia anunciaram que pretendem condicionar a compra de etanol brasileiro ao cumprimento de critérios ambientais e sociais acei-táveis. Fábio Feldmann, um dos coor-denadores do Fórum Paulista de Mu-danças Climáticas, acredita que o mer-cado internacional, em especial o eu-ropeu, deve motivar os produtores a batalharem pela certifi cação ambiental e social, hoje voluntária.

Não seria preciso criar muito para pôr mais ordem no canavial, porque já existem propostas, leis e soluções à mão. “Temos de fazer como o Mato Grosso do Sul, que é zonear (delimitar as áreas a serem cultivadas)”, diz Goldemberg. Cortez concorda, embora note resistên-cias: “Os próprios órgãos públicos que deveriam estar zelando pelo ambiente é que autorizam a instalação de novas usinas”. Defi nir onde pode e onde não pode plantar talvez ajudasse a conter a expansão dos canaviais sobre outros espaços. De acordo com um estudo do Cena e do Instituto Florestal, canaviais e pastagens ocupam 75% da área que margeia os rios das sete maiores bacias hidrográfi cas no estado de São Paulo. De acordo com a lei, a área que bordeja os cursos d’água deveria ser mantida com a vegetação natural.

“A produção pode se adequar às exi-gências ambientais por meio de medidas simples e do cumprimento de leis que já existem”, diz Martinelli. Quem quiser cumprir a lei restaurando a vegetação

original conta com abordagens diversas, algumas de efi cácia já demonstrada (ver Pesquisa FAPESP nº 144, de fevereiro de 2008). E, relativamente aos ganhos gerados pela terra, não seria caro. Uma equipe da Escola Superior de Agricul-tura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP desenvolveu uma dessas metodologias e estimou em R$ 3.500 por hectare o custo de restauração da vegetação original. Esse valor equivale a menos de 10% da receita obtida com a agricultura e a indústria nas regiões drenadas pelas bacias dos rios Piracicaba e Mogi, dois extremos de ocupação agrícola, com menos de 20% das matas originais.

Em março o governo federal anunciou a intenção de investir R$ 9 bilhões para ampliar a produção atual de

etanol de 17,7 bilhões de litros para 23,3 bilhões de litros até 2010. “Se mantiver-mos o mesmo modelo de produção, os danos ambientais e sociais serão ainda maiores”, alerta Martinelli. Para cada litro de etanol, lembra ele, as usinas produzem de 10 a 12 litros de vinhaça, um resíduo marrom, de cheiro forte, corrosivo e rico em matéria orgânica. Portanto, quem enche o tanque com 50 litros de álcool consome o resultado de 40 minutos do trabalho de um cortador de cana e a produção de pelo menos 500 litros de um resíduo de destino incerto. “Poucas usinas têm capacidade para usar como fertilizante nos próprios canaviais toda vinhaça que produzem”, diz ele. “Quando os tanques de armazenamento se rompem e a vinhaça chega aos rios, o oxigênio cai a zero e os peixes morrem. É o mesmo efeito do esgoto.”

Na época das queimadas – entre novembro e abril – as internações nos hospitais das cidades próximas aos canaviais, motivadas por problemas respiratórios, triplicam, de acordo com Eduardo Cançado, da Faculdade de Medicina da USP. As partículas empur-radas pelo vento e pela chuva podem transportar pesticidas. Um deles são os organoclorados, proibidos em 1985, M

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Preocupação com a redução dos impactos ambientais e sociais gerados

pelas formas tradicionais do cultivo da cana volta à tona

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C o r t a d o r d e c a n a d o i n t e r i o r p a u l i s t a : 10 t o n e l a d a s p o r d i a

mas encontrados em 1997 em peixes da bacia do Piracicaba, segundo Martinelli e Fernando Lanças, da USP em São Carlos. Os organoclorados reapare-ceram em 2003 em riachos próximos a canaviais na região central do estado.

O s resultados dos levantamentos de Martinelli e de Goldemberg nem sempre coincidem: o primeiro concluiu que a cana utiliza de 80 a 100 quilos de

nitrogênio como fertilizante por hectare por ano, enquanto o segundo sustenta que são 50. Ambos, porém, reconhecem que seria sensato aproveitar esse momento histórico de uma indústria já madura e de produtividade crescente para promover ajustes nos métodos de produção. De 1960 a 2007 a produtividade saltou de 45 para 75 toneladas de cana por hectare, em conseqüência do uso de melhores técnicas de cultivo e do melhoramento genético das variedades plantadas. O cortador de cana também está rendendo mais: em 1950 cortava em média 3 toneladas de cana por dia, chegou a 6 toneladas em 1980 e hoje passa o facão em 10 toneladas por dia. “Temos de encontrar alternativas mais dignas, que paguem mais e não prejudiquem a saúde”, propõe Cortez.

Ele sugere um olhar abrangente: o açúcar e o álcool como resultados de uma cadeia produtiva, merecendo mais, portanto, do que estudos focados em aspectos isolados do plantio ou da produção. Maria Moraes propõe uma abordagem ainda mais ampla. “Se não entendermos a situação do país, sempre fi caremos com conhecimento muito parcelado da realidade.” Em abril do ano passado ela passou muitas horas ouvindo os moradores dos bairros periféricos de Timbiras e Codó, duas cidades do Maranhão cercadas por fl orestas de babaçu. Seu objetivo era descobrir por que centenas de homens deixavam as famílias e viajavam três dias e três noites para cortar e puxar cana no interior paulista.

Maria Moraes descobriu que os homens migravam para São Paulo porque haviam sido expulsos de terras que cultivavam em municípios ainda mais distantes. Representantes de empresas que criam gado quei-maram as roças de arroz, feijão e milho, as matas de babaçu, os animais de criação e as casas das famílias que moravam por lá. Depois os ameaçaram de morte caso não deixassem as terras de que não eram donos. Os 85 processos judiciais que ela consultou descre-vem o que aconteceu, questionam a legitimidade das escrituras de posse da terra usadas como argumento para essas atitudes e relatam o esforço das famílias para voltar às terras que cultivavam. ■

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AGRICULT URA

A d u b o b i o l ó g i c oBactérias substituem fertilizantes nitrogenados como promotores de crescimento da cana-de-açúcar

Cinco espécies de bactérias fi xadoras de nitrogênio são a base de um novo produto, um fertilizante biológico que substitui o uso de adubos nitrogenados na cana-de-açúcar, utilizados como promotores de crescimento da planta. A aplicação do inoculante biológico desenvolvido por pes-quisadores da Embrapa Agrobiologia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Seropédica, no Rio

de Janeiro, vai propiciar substancial redução de gastos com adubos nitrogenados no país. Inicialmente, as pesquisas concentraram-se na substituição de nitrogênio na cana do primeiro plantio, também chamada de cana-planta. Com mais de 6 milhões de hectares de área plantada e uma produção que chega a 426 milhões de toneladas por ano, o Brasil é o maior produtor mundial de cana. Em função da queda de produtividade da planta após quatro cortes, cerca de 20% da área plantada é renovada anualmente, o que corresponde a 1,2 milhão de hectares com potencial para receber o fertilizante biológico. “Se a dose aplicada for de 30 quilos de nitrogênio por hectare, que é a quantidade mínima utilizada, poderemos ter uma economia de 50 mil toneladas de fertilizante nitrogenado por ano, sem queda de produtividade”, diz a pesquisadora Veronica Massena Reis, coordenadora do grupo da Embrapa Agrobiologia que estuda o inoculante à base de bactérias.

A economia estimada considera apenas a cana de primeiro ano, que necessita de nitrogênio em quantidades bem menores do que os 80 quilos por hectare demandados pela cana-soca – rebrota da cana do primeiro plantio que pode ser cortada até quatro ve-zes. Essa signifi cativa diferença se explica porque, quando a terra

Dinorah Ereno

Resultado no campo: cana com fertilizante biológico (à esquerda) e sem o inoculante

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própria Johanna. A difi culdade para uti-lizar inoculantes em gramíneas é que nelas as bactérias se distribuem por toda a planta, sendo encontradas principal-mente nos espaços intercelulares e tecidos do sistema vascular, enquanto nas legu-minosas, como soja e feijão, se localizam em uma região específi ca da raiz.

Ab s o r ç ã o d e n i t r o g ê n i o - “Hoje temos uma coleção com mais de 8 mil bactérias”, conta Veronica. Para chegar à mistura ideal, os pesquisadores escolheram inicialmente as mais promissoras bactérias fi xadoras de nitrogênio isoladas de cana-de-açúcar. “Começamos testando individualmente cada uma delas e em seguida fizemos uma mistura com três e outra com cinco bactérias. A contribuição do processo biológico foi avaliada em um aparelho que mede quanto o microorganismo absorve de nitrogênio do ar”, explica. A mistura composta de estirpes de cinco bactérias – Gluconacetobacter diazotrophicus, Her-baspirillum seropedicae, Herbaspirillum rubrisubalbicans, Azospirillum amazonense e Burkholderia tropica – foi a que mais contribuiu para a fi xação biológica do nitrogênio. Essas bactérias foram isoladas de tecidos de cana plantada na região da Mata Atlântica.

Para a obtenção do produto inocu-lante é preciso primeiro providenciar o crescimento de todas as bactérias sepa-radamente, porque cada uma tem uma fi siologia diferente, em meio de cultivo apropriado. Transposta essa etapa, as bactérias são inoculadas em turfa estéril,

resultante da decomposição de matéria orgânica em regiões alagadas, e distri-buídas em sacos plásticos de 250 gramas. A turfa serve como um meio de transporte do produto para o campo. A mistura dos cinco pacotes do inoculante microbiano de cor preta e consistência pastosa é feita em 100 litros de água. Para utilizar o produto basta mergulhar os caules usados para plantio – normalmente os produtores utilizam hastes com três gemas – nesse caldo de bactérias por uma hora. Feito isso, eles já podem ser plantados.

A estimativa é que cada dose do ino-culante custará entre R$ 15,00 e R$ 20,00. Como para o plantio de primeiro ano serão necessárias entre uma e duas doses por hectare, o gasto com o fertilizante biológico fi cará em torno de R$ 30,00 a R$ 40,00, no máximo, por hectare. Uma significativa economia em relação aos custos dos adubos nitrogenados. “Os 30 quilos de uréia necessários por hectare na realidade correspondem a 60 quilos, já que metade se perde”, explica Veronica. O quilo de uréia, um dos fertilizantes nitro-ge na dos mais baratos, custa entre R$ 0,80 e R$ 1,00, o que representa um gasto total por hectare entre R$ 48,00 e R$ 60,00, sem os custos de aplicação do adubo.

Os estudos de campo abrangem atualmente 11 experimentos, feitos em parceria com usinas de São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Piauí. A estimativa é de que em 2 anos o fertilizante biológico estará no mercado. Para isso, a próxima etapa é a transferên-cia da tecnologia para o setor industrial, já que como o produto tem em sua com-posição microorganismos não pode ser patenteado. Um dos desafi os industriais desses inoculantes é a falta de legislação específi ca para o controle de qualidade desses produtos.

Os pesquisadores também querem estender essa tecnologia para que o efeito obtido com a cana de primeiro plantio continue por todo o ciclo produtivo, até a cana-soca. “Temos ainda um produto para o milho e outro para o arroz e esta-mos aperfeiçoando um inoculante para o sorgo”, diz Veronica. No caso do milho, como a pesquisa está bastante adiantada, já foi feito o repasse da tecnologia para duas empresas, que por enquanto preferem não ter os nomes revelados. ■

Antes do plantio, caules fi cam mergulhados no inoculante por 1 hora

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é aberta com a aragem e a gradagem (nivelamento da área para plantio), o solo é revolvido e há a liberação desse elemento químico, que fi ca disponível para a cultura do primeiro ano. Quan-do a cana fi ca no solo e é cortada para rebrotar, todo o nitrogênio disponível é deslocado para a parte aérea da planta. Ao contrário do carbono e do oxigênio, o nitrogênio é pouco reativo do ponto de vista químico, e somente algumas bactérias e algas-azuis possuem a ca-pacidade de assimilá-lo da atmosfera e transformá-lo para que possa ser usado pelas células das plantas.

A defi ciência de nitrogênio consiste, em muitos casos, no principal fator limi-tante do crescimento vegetal. Para gra-míneas como cana-de-açúcar, milho e sorgo, que são plantas de crescimento rápido, o nitrogênio é o mais necessário de todos os elementos requisitados. No entanto, calcula-se que em torno de 50% do nitrogênio aplicado no solo se perde. Isso porque, como é um elemento de gran-de mobilidade, quando não é absorvido pela planta pode ser carregado pela chu-va até os córregos e rios, causando con-taminação, ou voltar para o ar em forma de amônia. Como o processo de produ-ção desses fertilizantes necessita de alto consumo energético de combustíveis fósseis derivados de petróleo, produto que tem batido sucessivos recordes de preço no mercado internacional, sua subs-tituição pelo inoculante composto pelas bactérias fi xadoras de nitrogênio repre-sentará signifi cativa redução de custos na produção da cana-de-açúcar.

Esse foi o caminho percorrido pela so ja brasileira, que só se tornou compe-titiva após pesquisadores da Embrapa desenvolverem linhagens da bactéria do gênero Rhizobium, que retira o nitrogênio do ar e transfere para as raízes da soja (ver Pesquisa FAPESP nº 85). Os estudos que deram origem a essa técnica foram iniciados na década de 1950 pela pesqui-sadora Johanna Dobereiner (1924-2000), no antigo Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas, do Ministério da Agricultura, que deu origem à Em-brapa Agrobiologia. Veronica Reis iniciou as pesquisas nessa área em 1982, quando entrou na instituição para trabalhar com gramíneas e aprendeu a técnica com a

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4 8 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

MUDANÇ AS CLIMç T ICAS

A fl orestan o s u f o c o

Ar mais limpo no hemisfério Norte poderá intensifi car secas na Amazônia a partir de 2025

Entre maio e setembro de 2005 a parte ocidental da Amazônia enfrentou a maior seca dos úl-timos 103 anos. Rios esvaziaram, peixes morreram, incêndios fl o-restais se disseminaram e pelo menos 250 mil pessoas fi caram

isoladas e sem trabalho nos estados do Amazonas e do Pará. Numa região fa-mosa mundialmente por abrigar a maior porção remanescente de “floresta da chuva” da Terra – rainforest é a expressão comumente utilizada em inglês para designar fl orestas tropicais como a ama-zônica – não choveu por 3 meses segui-dos em certas localidades. Até agora esse cenário desolador decorrente de uma estiagem extrema representa even-tos raros, de exceção, na história do cli-ma recente da Região Norte. Mas, se-gundo um estudo feito por meteorolo-gistas brasileiros e ingleses publicado na edição de 8 de maio da revista científi ca britânica Nature, o que era exceção po-derá se tornar bem mais freqüente daqui a 20 anos e simplesmente virará regra na segunda metade deste século.

A partir de 2025 secas semelhantes à de 2005, que costumavam ocorrer uma vez a cada 2 décadas, deverão assolar a paisagem local ano sim, ano não. Em 2060, se as projeções do trabalho científi co se concretizarem, haverá uma redução acentuada das chuvas na re-gião em 9 de cada 10 anos. “Pode haver uma diminuição entre 25% e 50% na quantidade de chuva que cairá sobre a Amazônia”, estima o meteorologista José Marengo, do Centro de Ciência do

Marcos Pivetta

Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos autores do estudo, feito em parceria com ingleses da Universidade de Exeter e do Centro Hadley de Meteorologia. Como chove entre 2.500 milímetros por ano, às vezes até mais, em vastas porções da Região Norte, falar em desertifi cação ali é rematado exagero. No entanto, com menos águas à disposição, partes da Amazônia poderão passar a abrigar uma vegetação semelhante à savana onde antes havia uma exuberante fl oresta. Com perdão do trocadilho, é possível

especular que a estiagem profunda de 3 anos atrás talvez tenha sido um divisor de águas entre o clima do passado e o do futuro na Região Norte.

Não são só as projeções dos cientis-tas que parecem chocantes para quem associa automaticamente a Floresta Amazônica com chuvas abundantes. Os pesquisadores identifi caram o “maior culpado” de toda essa bagunça que poderá se instalar no regime pluviométrico da Região Norte: a melhora da qualidade do ar no hemisfério Norte. Mais espe-cificamente a redução crescente nos Estados Unidos e na Europa da emissão de um tipo de poluente atmosférico, as partículas de aerossóis de sulfato. Essa forma de aerossol pode ser produzida de maneira espontânea na natureza, por vulcões, por exemplo, e também pelo homem, em decorrência de processos industriais que envolvem a queima de enxofre e da fumaça emitida pelos automóveis. “A relação dos aerossóis do hemisfério Norte com a diminuição de chuvas na Amazônia é indireta”, explica o climatologista Carlos Nobre, do Inpe, outro autor do estudo.

Entre todos os tipos de aerossóis, que podem ser defi nidos como um conjun-to de diminutas partículas sólidas ou líquidas em suspensão num gás, os de

Aerossóis sobre o leste dos EUA: poluente resfria o clima

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sulfato são os que mais refl etem a luz solar. Eles exercem um leve efeito de resfriamento sobre o clima, atuando, na prática, como um contrapeso capaz de mitigar parcialmente, mas não totalmente, a elevação de temperatura decorrente do aumento do efeito estufa. Portanto, a diminuição crescente da quantidade desses aerossóis sobre o Atlântico Tro-pical Norte, numa zona logo acima da linha do equador, torna esse ponto do oceano mais quente do que o normal. A anomalia parece desviar para essa zona marítima boa parte da chuva que cairia na Amazônia Ocidental. Ou seja, num ambiente de aquecimento global dos oceanos devido ao aumento do efeito estufa, secas na Região Norte do Brasil como a de 2005 são um efeito colateral do avanço no combate à poluição causada pelos aerossóis, emitida em grande parte no hemisfério Norte.

Pr e v i s õ e s d e s u p e r c o m p u t a d o r - Os prognósticos de estiagens mais freqüen-tes na Amazônia Ocidental saíram do supercomputador do Centro Hadley de Meteorologia. Os ingleses têm um dos modelos climáticos mais complexos e respeitados pela comunidade científi ca, capaz de fazer estimativas de longo prazo sobre os efeitos do aquecimento global e de qualquer anomalia atmosférica em várias partes do planeta. “Nosso super-computador também teria condições de rodar o modelo, mas não tínhamos tempo de uso de máquina disponível para essa tarefa”, explica Marengo. Essa limitação será superada em 2009 com a chegada do novo supercomputador do Inpe, 30 vezes mais potente que o atual. Mas um dado crucial para que as previsões de longo prazo do estudo pudessem ser feitas foi fornecido pelos brasileiros. Foi a equipe de Marengo e Nobre que con-seguiu relacionar a grande seca de 2005 na Amazônia ao aquecimento das águas superfi ciais no Atlântico Tropical Norte. Normalmente, costuma se associar a falta de chuva na Região Norte ao fenômeno conhecido como El Niño, caracterizado pelo aumento de temperatura nas águas do Pacífi co Equatorial. No caso do evento extremo de 3 anos atrás, os pesquisadores do Inpe demonstraram que a causa da anomalia estava em outro oceano, no Atlântico, e não no Pacífi co.

Com esse pressuposto em mente, os meteorologistas rodaram o modelo climático, que se utiliza de uma série de variáveis, como os níveis cada vez maiores de gases de efeito estufa e as ta xas declinantes de emissão de aeros-sóis, para criar cenários futuros. O re-sultado foi preocupante: devido à di-minuição progressiva dos níveis de partículas de sulfato na atmosfera do hemisfério Norte, o Atlântico Tropical Norte vai aquecer com maior assidui-dade. E, quando isso ocorre, dizem os cientistas, chove menos na Amazônia. Como ninguém em sã consciência po-

de ser a favor do aumento na produção de aerossóis, um poluente terrível que rouba alguns anos de vida dos habitan-tes de grandes cidades, apenas para, em tese, não alterar o balanço das águas na Região Norte, resta uma única saída: combater o aumento dos gases de efei-to estufa. “Não há nenhuma justifi ca-tiva moral para a manutenção dos ae-rossóis porque eles momentaneamen-te estão represando o efeito máximo do aquecimento global”, afi rma Nobre. “O que temos de fazer é acelerar ainda mais o cronograma de redução da emissão dos gases do efeito estufa.” ■

Seca de 2005 no Baixo Solimões: estiagens deverão ser mais freqüentes

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mamíferos e répteis. Entre as curiosidades estão cinco pares de cromossomos com seqüências de DNA semelhantes às das aves que determinam o sexo – nos outros grupos animais um par de cromossomos determina o sexo. As proteínas do veneno produzido pelos machos são semelhantes às do veneno de serpentes.

> Danos aos pulmões

Os nanotubos, cilindros de poucos nanômetros de diâmetro formados exclusivamente por átomos de carbono, são a aposta da indústria tecnológica para o

futuro. Mas é preciso ir devagar com o andor, sugere estudo publicado na Nature Nanotechnology. Certos tipos de nanotubos de carbono podem estar na origem do mesmo tipo de câncer

causado pelas fi bras de amianto, usadas na produção de telhas e caixas-d’água. O grupo de pesquisadores britânicos injetou nanotubos longos de parede múltipla na cavidade torácica de camundongos e observou efeitos semelhantes aos causados pela exposição ao amianto: uma reação infl amatória nas células que revestem os pulmões que pode evoluir para um tipo letal de câncer (mesotelioma). Segundo os autores, o resultado da descoberta é um alerta para que se investiguem possíveis efeitos danosos dos nanotubos antes que ganhem uso tecnológico. Nanotubos curtos ou emaranhados não parecem ter efeitos nocivos à saúde.

Em 2 001 o s t a l i b ã s c h o c a -

ram o mundo ao explodir

duas gigantescas estátuas

de Buda na região de Bamian,

no Afeganistão. Em meio à destruição, recentemente pesquisado-

res europeus, japoneses e norte-americanos identifi caram verda-

deiros tesouros pictóricos. Por trás das estátuas havia cavernas

com imagens de seres mitológicos e de Buda sentado sobre folhas

de palmeiras, usando um manto vermelho-vivo, pintadas entre os

séculos V e IX. Mais importante: várias imagens do século VII foram

pintadas com tinta a óleo, muito antes de esta técnica ser conhe-

cida no O cidente – acredita-se que as tintas possam ter sido pro-

duzidas a partir de nozes ou sementes de plantas da família das

papoulas (Journal of A nalytical A tomic Spectrometry). Vários livros

de história da arte registravam o surgimento dessa técnica de

pintura na Europa no século XV. A análise das tintas foi realizada

no Laboratório Europeu de Radiação Síncrotron, usando raios X e

radiação infravermelha. Além de camadas de tinta a óleo, os pes-

quisadores identifi caram resinas naturais, proteínas, gomas e ca-

madas de um material semelhante ao verniz. “Estas são as pintu-

ras a óleo mais antigas do mundo, embora óleos secantes já fossem

usados pelos romanos e egípcios do mundo antigo em cosméticos

e medicamentos”, disse Yoko Taniguchi, líder da equipe.

A O R IG EM D AS PIN TUR AS A Ó LEO

LA B ORA T Ó RIO M U N D O>>

Estátua de Buda destruída por talibãs

Nanotubos: risco de infl amação

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> Pato, porco ou urso

Eles têm bico, pés como nadadeiras e seus fi lhotes nascem de ovos, mas não são patos. Também são peludos e usam o bico para chafurdar na lama dos rios em busca de comida. E não são ursos nem porcos. São os ornitorrincos: mamíferos primitivos (os fi lhotes lambem leite que escorre na pele da mãe) da Austrália, distantes evolutivamente dos seres humanos. Quase cem pesquisadores analisaram o genoma desse estranho mamífero e concluíram que sua constituição genética é uma colcha de retalhos (Nature). Seu genoma guarda características de aves,

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 5 1

N a d a a p a v o r o u m a i s a

humanidade na Idade Mé-

dia do que a peste negra

ou bubônica, infecção

causada por uma bactéria

que surgiu na ç sia e no

século XIII se disseminou

pelo norte da ç frica e pe-

la Europa, matando, entre

reis e plebeus, milhões de

pessoas. Transmitida pela

picada de uma pulga de

roedores, a bactéria Yer-

sinia pestis se aloja nos

vasos do sistema linfático,

onde se multiplica e debi-

lita o sistema de defesa.

A infecção causa inchaço

dos gânglios, febre alta,

dor e vômitos. Também

pode atingir os pulmões

ou se espalhar pelo san-

gue. Agora a equipe de Robert Brubaker, da Universidade de

Chicago, Estados Unidos, acredita ter descoberto por que a

Yersinia pestis é tão mais agressiva do que a espécie que a

originou há 20 mil anos, a Yersinia pseudotuberculosis. Com-

parando o material genético delas, o grupo constatou que a Y.

pestis tem uma alteração genética que a impede de produzir

a enzima aspartase, ausente em outras bactérias patológicas

(M icrobiology). Sem aspartase, a bactéria não digere o ami-

noácido ácido aspártico, que é liberado no organismo humano

provocando um desequilíbrio químico. “Se isso de fato acon-

tece, talvez sejamos capazes de diminuir a mortalidade dessas

infecções com uma terapia que remova o excesso de ácido

aspártico”, disse Brubaker.

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> Câncer de útero nas Américas

Em uma conferência no México, pesquisadores exaltaram a necessidade de reduzir o preço da vacina contra o papilomavírus humano (HPV), cuja dose custa US$ 360 nos Estados Unidos. Um estudo feito em 16 países da América Latina mostrou que 33 mil

mulheres morrem por ano com câncer de colo do útero, causado pelo HPV. O preço das vacinas, que protegem contra as cepas mais comuns do vírus, ainda é proibitivo para a vacinação em massa. Calcula-se que, se em 1 década, 70% das meninas com 12 anos fossem vacinadas, meio milhão de mortes seria evitado.

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To d o m u n d o a c r e d i t a v a q u e a p r e -

guiça fosse, de fato, um animal,

digamos, preguiçoso. Havia uma

razão para a suspeita. O bserva-

ções na natureza e em cativeiro indicavam que dormiam 16 horas

por dia. Agora o grupo de Niels Rattenborg, do Instituto Max

Planck, na Alemanha, mostra que a fama é injusta. No Panamá,

os pesquisadores instalaram capacetes com aparelhos de eletro-

encefalografi a em três preguiças-de-garganta-marrom (B radypus

variegatus) e, em seguida, as devolveram à natureza. Cinco dias

depois, eles as recapturaram e analisaram os registros dos apa-

relhos. Surpresa: os animais dormiam apenas 9 horas e meia por

dia, segundo resultados publicados on-line na B iology Letters. É

possível que em cativeiro elas durmam mais porque não precisam

fi car alertas para detectar predadores nem para encontrar folhas

suculentas. O u que, diante do tédio, não lhes reste alternativa a

não ser tirar longas sonecas. O trabalho também comprova que

realmente elas se movem muito devagar — as observações em

campo anteriores eram imprecisas.

V ID A EM C Â M ER A LEN TA

Napoleão visita soldados com a peste na Síria

Preguiça: só 9 horas de sono por dia

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52 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

49 mulheres com o peso acima do ideal. Um grupo consumiu uma maçã em cada um dos três lanches do dia, além das refeições habituais. Outro comeu uma pêra para matar a fome e o terceiro grupo, em vez das frutas, três biscoitos de aveia. Tanto as frutas como os biscoitos continham a mesma quantidade de energia, 200 quilocalorias. Ao fi nal do experimento, as mulheres que comeram frutas (pêra ou maçã) haviam emagrecido em média 1 quilograma,

enquanto as que degustaram os biscoitos engordaram 200 gramas (Appetite). A razão da diferença não é a quantidade total de energia dos alimentos, mas a densidade: cada grama de biscoito é mais energético que a mesma quantidade de fruta. Quem come fruta ingere volume maior de alimento menos energético, mas que parece saciar mais.

> Nitrogênio em excesso

Em outubro de 2007 pesquisadores de diversos países se reuniram na Costa do Sauípe, na Bahia, para discutir os efeitos do aumento da produção de nitrogênio sobre a saúde do planeta. De 1860 a 1995, a produção de nitrogênio cresceu dez vezes e chegou a 156 milhões de toneladas por ano. Parte desse

> O preço do combate à dor

Agora se tem uma idéia mais precisa de quanto custa para a sociedade o tratar um portador de artrite reumatóide, infl amação progressiva das articulações que provoca dor intensa e atinge 2 milhões de brasileiros. Gustavo Chermont, Rozana Ciconelli, Sérgio Kowalski e Marcos Bosi Ferraz, da Universidade Federal de São Paulo, contabilizaram os gastos de cem portadores de artrite atendidos no ambulatório de reumatologia da universidade, a grande maioria (80%) de baixa renda. Somadas as despesas com medicamentos, visitas aos médicos, exames laboratoriais, sessões de fi sioterapia e transporte, cada pessoa consumiu em média em 1 ano US$ 400 ou R$ 700 – os remédios

Ac o r d a r d e r e s s a c a e n ã o t e r i d é i a d o q u e

aconteceu na véspera não é a pior conseqüên-

cia do consumo de bebidas alcoólicas. Vários

estudos mostraram que o álcool é um fator

de risco importante para vários tipos de câncer dos tratos respiratório e diges-

tivo superior, como os tumores de boca, faringe, laringe e esôfago. Um grupo

internacional que incluiu pesquisadores do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia,

da Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, da Universidade de São

Paulo e da Universidade Federal de Pelotas avaliou o efeito sobre o desenvolvi-

mento desses tumores de sete genes ligados à produção da enzima álcool desi-

drogenase (ADH), que digere o álcool e reduz seu efeito danoso ao organismo.

A comparação do perfi l genético de 3.876 pessoas com câncer e 5.278 sem a

doença revelou que dois dos sete genes ligados à produção da enzima estão

fortemente associados ao surgimento desses tumores (N ature G enetics). Algu-

mas formas desses genes protegeram contra o álcool e esse efeito protetor

aumentou com o crescimento do consumo – em abstêmios essas variantes não

infl uenciaram o risco de câncer. Segundo os autores, essas variantes combatem

o efeito carcinogênico das bebidas alcoólicas.

LA B ORA T Ó RIO B RA SIL>>

Enzimas favorecem degradação alcoólica

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Frutas: volume maior, masmenos calorias

responderam por 60% dos gastos. É um valor baixo, comparado ao que se gasta nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas elevado demais para o Brasil, onde os gastos anuais de saúde por cidadão são de US$ 255 (Clinical and Experimental Rheumatology).

> Matar a fome sem engordar

Para manter a linha ou recuperá-la, o melhor é trocar os biscoitos da hora do lanche por frutas, constatou a nutricionista Maria Conceição de Oliveira, da Universidade Federal do Amazonas. Durante 10 semanas,ela ofereceu três dietas distintas para

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nitrogênio – gerado pelo consumo de combustíveis fósseis e pelo uso de fertilizantes químicos na agricultura – contamina a terra, a água e o ar e contribui para o surgimento de problemas respiratórios e desequilíbrios ecológicos, como a acidifi cação dos oceanos. Não são os únicos problemas que os pesquisadores – entre eles, Luiz Martinelli, da USP – apontam no alerta publicado em maio na Science. O consumo de nitrogênio no mundo é bastante desigual. Enquanto algumas nações lançam toneladas do gás ao ar, outras não dispõem da quantidade mínima de nitrogênio necessária para suas parcas lavouras.

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Faro fi no: cão ajuda a detectar vestígios de onças e tamanduás

> Amigo farejador O cão fareja campo afora e de repente pára satisfeito. Encontrou fezes de lobo-guará, onça-pintada, suçuarana ou tamanduá-bandeira e ganhará um afago e uma bola de tênis como recompensa. No Parque Nacional das Emas, reserva de Cerrado entre Goiás e Mato Grosso do Sul que abriga a maior concentração de espécies ameaçadas de extinção no país, a bióloga Carly Vynne usa cães para

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N o s m o r r o s d a c o m u n i d a d e b a i a n a d e Pa u d a L i m a , n a

periferia de Salvador, vivem 2,5 milhões de pessoas api-

nhadas nas condições típicas das favelas brasileiras. Ali o

grupo liderado pelo pesquisador Albert K o, da Fundação

O swaldo Cruz de Salvador e da Universidade Cornell, nos

Estados Unidos, investigou como varia o risco de contrair

leptospirose, infecção provocada por uma bactéria encon-

trada na urina de roedores que atinge 10 mil pessoas por

ano no Brasil – e mata quase 1 mil. O s pesquisadores no-

taram que a probabilidade de contrair leptospirose é maior

entre as pessoas mais idosas, as de nível socioeconômico

mais baixo e aquelas que trabalham em ambientes conta-

minados. O s homens correm mais risco do que as mulhe-

res. A probabilidade de contrair a doença também foi maior

entre aqueles que vivem a menos de 20 metros de esgoto

a céu aberto ou de depósitos de lixo, ou ainda que relata-

ram ter visto dois ou mais ratos em casa (P LoS N eglected

Tropical D iseases).

> Para comemorar e pensar

A área de Mata Atlântica derrubada entre 2000 e 2005 foi 69% menor do que entre 1995 e 2000, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da Fundação SOS Mata Atlântica, divulgado em maio. Restam 17.875 trechos dessa vegetação com área superior a 1 quilômetro quadrado. Somados, totalizam 97,6 mil quilômetros quadrados de Mata Atlântica ou 7,26% da área original dessa vegetação – se somadas áreas menores, a proporção chega a 10,6%. O ritmo de derrubada diminuiu em oito dos dez estados analisados em 1995-2000 e em 2000-2005. Aumentou em Goiás e Santa Catarina. Segundo Márcia Hirota, da SOS Mata Atlântica e coordenadora da pesquisa, parte da redução se explica pela mobilização da sociedade ou adoção de políticas públicas. Muito do que restou da fl oresta continua de pé por estar em lugares de difícil acesso.

encontrar pistas que difi cilmente acharia. A partir das fezes, ela descobre a espécie do animal e a dieta. Também identifi ca o indivíduo, nível de estresse e estágio reprodutivo. Parte do doutorado de Carly na Universidade de Washington, em colaboração com a Conservação Internacional do Brasil e o Fundo para a Conservação da Onça-Pintada, os dados devem ajudar a estimar a população de espécies ameaçadas do parque e delimitar áreas de proteção.

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Lixo: atrai roedores e eleva risco de leptospirose

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FÍSICA

O s mosqueteiros

do mundo atô mico

As palavras de ordem da crescente e -S c i e n c e são as

mesmas dos heróis do livro de Alexandre Dumas:

um por todos, todos por um

Os físicos que estudam a formação e a organização das partículas atômicas saíram na frente dos es-pecialistas de outras áreas e adotaram uma forma nova de fazer ciência: trabalhar em problemas grandes e comuns por meio de computadores poderosos espalhados em muitas cidades do mundo e conectados entre si de modo que

funcionem como se fossem um só, em uma escala mais ampla, integrada e autônoma que a realizada até agora para estudos de genomas e proteínas. O pioneirismo pode não ter sido proposital. “Não foi porque queremos, mas porque precisamos”, diz Sergio Ferraz Novaes, professor do Instituto de Física da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não podemos demorar 50 anos para analisar os dados produzidos em apenas 1 ano de trabalho.”

Novaes coordena o braço paulista de uma rede inter-nacional de computadores que fi ltram e organizam os resultados das colisões atômicas geradas em aceleradores de partículas em uma escala tão grande que nenhum computador sozinho daria conta da tarefa. Por meio do São Paulo Regional Analysis Center (Sprace), construído com R$ 710 mil da FAPESP e dotado de uma capacidade de processamento equivalente a quase cem computado-

Carlos Fioravanti

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res de última geração, físicos de São Paulo participam desde 2004 da análise das propriedades dos milhões de partículas que nascem ou morrem quando se chocam em altíssima velocidade nos túneis do Fermilab, nos Es-tados Unidos. Agora dois grupos de físicos – um de São Paulo e outro do Rio de Janeiro, sob a coordenação de Alberto Santoro – afi nam as máquinas e tomam fôlego para entrar em uma aventura ainda maior: garimpar as informações que a partir do próximo ano devem chegar, em um volume ainda maior, do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, que absorve o trabalho de 10 mil físicos e engenheiros de cerca de 50 países (ver Pesquisa FAPESP nº147, de maio de 2008).

Além de gerar uma produção científi ca intensa, que em um ano ou outro pode chegar a dezenas de artigos publicados em revistas especializadas, sem contar as noites sem dormir à frente do computador, a experiência de trabalhar com colegas de todo o mundo em máqui-nas que funcionam dia e noite inspirou a implantação de uma estrutura ainda maior, da própria Unesp, com 368 computadores capazes de realizar o impressionante volume de 33,3 trilhões de cálculos por segundo. As

Produção simulada do bóson de Higgs no

detector CMS: esforço mundial para elucidar o

quebra-cabeça de partículas atômicas

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máquinas dessa rede de R$ 4,4 milhões, fi nanciados pelo governo federal, devem ser instaladas a partir de julho, tão logo comecem a chegar, e ocupar um andar inteiro da nova sede da Unesp, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, que abrigará também a equipe de operações e um centro de treinamento. Aos poucos devem tomar forma as possíveis conexões com os computadores de dezenas de universidades nos Estados Unidos, na Europa, na China ou na Austrália que já adotaram estratégias semelhantes de trabalho. Assim, a rigor nada impedirá que uma equipe do campus da Unesp em Ilha Solteira pergunte aos colegas de Harvard se eles têm espaço extra no computador para ajudar a resolver um problema que sobrecarregou os computadores daqui. “Se quisermos acompanhar o que o mundo está fazen-do”, diz Novaes, “não dá mais para ser bairrista nem pensar pequeno”.

Assim é a e-Science: não importa mais onde você está nem que computadores estão depurando e examinando os dados de seu valioso experimento. Criado em 1999 para descrever um projeto que

começaria a tomar forma no ano se-guinte na Inglaterra, o termo e-Science designa as atividades científicas que dependem de uma elevada capacidade de armazenamento e de processamento de informações como a física de partículas, embora outras áreas também possam se benefi ciar. No livro Da internet ao grid – A globalização do processamento, Novaes e Eduardo Gregores apostam nessa expansão: “Podemos esperar que, da mesma forma como ocorreu com a internet, aplicações do grid irão mui-to além do que podemos supor nesse momento”. A rede de computadores da Unesp, por sinal, deve explorar outros universos – da formação de tumores à supercondutividade em cerâmicas. Nos Estados Unidos, os grids (grades) de computadores embasam projetos ambiciosos, que não tratam apenas de problemas urgentes como a busca de novos tratamentos contra o câncer. A meta de um deles, o National Virtual Observatory, é simplesmente pôr no computador toda informação já coletada sobre os milhões de estrelas e galáxias que formam o fi rmamento. A e-Science poderia ir além e ajudar a resolver proble-mas mundiais, de acordo com o editorial de 15 de março da revista Nature, que propõe que os governos trabalhem juntos para construir os supercomputadores que possam fazer previsões do tempo mais apuradas e descubram assim como agir para evitar as prováveis catástrofes causadas pelas mudanças climáticas.

Talvez mais do que os especialistas de outras áreas, os físicos de partículas hoje dependem de computadores pode-rosos em rede tanto quanto os ta xis tas não passam mais sem o GPS, sigla de Global Positioning System. De outro modo, não haveria como analisar tanta informação que têm à mão – nem como localizar rapidamente endereços em uma cidade estranha. Nos próximos 5 anos os quatro detectores do LHC devem gerar um volume de informações equivalente a 1,4 bilhão de CD’s que, se empilhados “sem a caixinha”, diz Novaes, formariam uma torre 4,7 mil vezes mais alta que o Pão de Açúcar, o famoso cartão-postal do Rio. “O grande volume de informações é um problema em si que impõe a necessidade de novos conceitos de trabalho”, diz Novaes. Por sorte, nos últimos anos a velocidade de transmissão de dados cresceu em ritmo

maior que a velocidade de processamento, levando a uma nova forma de organi-zação de computadores, o grid, em que máquinas distantes funcionam como se fossem uma só. Além do software e do hardware, apareceu então o middleware, os recursos que distribuem as tarefas localizando as máquinas livres.

T ambém entre as máquinas há uma hierarquia. As informações sobre as partículas a serem desfeitas ou

formadas nas colisões devem sair dos detectores que cercam o túnel circular de 27 quilômetros de extensão do LHC, a 100 metros abaixo do solo, e chegar primeiramente aos computadores do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) em Genebra, na Suíça. Os dados do Compact Muon Solenoid (CMS), o detector do LHC de que essas equipes do Rio e de São Paulo participam, seguirão então para centrais de computadores chamadas Tiers-1, espalhadas em 8 países, e depois para outros 23 grupos de computadores ao redor do mundo – do Brasil ao Paquistão – que formam as Tiers-2. “Não estamos mal”, observou Novaes, ao comparar o desempenho do grid brasileiro com o das máquinas dos colegas da China, Itália, Inglaterra e Estados Unidos. Todo o grupo participa de simulações de transmissão de dados, com progressos visíveis: a capacidade de operação das máquinas passou de 20% em 2006 para 50% em 2007 e tenta-se hoje atingir 100% do que será exigido quando o LHC entrar em operação. As difi culdades também são maiores. Novaes conheceu os problemas novos que podem interromper a transmissão de dados ao ler rapidamente os 350 e-mails que chegaram na véspera do feriado de fi nal de maio em mais um teste de transmissão de dados ainda simulados que partiram do LHC. “Todos se comunicam com todos”, diz ele. “A colaboração agora é essencial porque, se um falhar, todos falham.”

Os físicos construíram esse ambien-te mundial de pesquisa e as cavernas monumentais do LHC para encontrar experimentalmente uma partícula atô-mica que até agora só existe na teoria: o bóson de Higgs (bósons são partículas que transmitem forças ou mantêm as outras partículas unidas, e Higgs é o sobrenome do físico escocês que pre-viu essa partícula em 1964). Se de fato

O grande volume

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up, down e strange. Nos anos seguintes mais três quarks – charm, bottom e top – foram descobertos. Esses seis quarks, combinados em pares quark-antiquark, ou em trios, compõem todas as partículas sujeitas a uma das forças fundamentais da natureza, a interação forte, que mantém o núcleo atômico coeso. Apareceram partículas de nomes estranhos e pouco conhecidas para a maioria das pessoas, como káon, eta, chi, lambda, sigma ou J-psi, mas não eram mais centenas, apenas rearrumações dos mesmos elementos básicos. Mais do que partículas isola-das, agora existem categorias: prótons e nêutrons, que formam o núcleo atômico, são chamados de hádrons (hadrós em grego signifi ca maciço, forte). O próprio núcleo perdeu o hipotético bucolismo e se revelou um ambiente tempestuoso, com nuvens de partículas que surgem e desaparecem a todo momento cercando prótons e nêutrons.

O LHC pode eventualmente lançar luz também sobre dimensões extras, além das quatro conhecidas (três espaciais, comprimento, largura e altura, e uma temporal); ninguém provou ainda que elas realmente não existam e uma parte

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A forma da e-Science: computadores em São Paulo desvendando colisões atômicas

dos físicos precisa delas para manter suas teorias em pé. Mesmo assim, Novaes acha pouco. “Espero que do LHC surjam coisas diferentes, que nos levem a outros desafi os”, diz ele. “Pode ser que o novo seja totalmente novo, sem nenhuma vin-culação com as propostas teóricas atuais.” Como os resultados são imprevisíveis, podem surgir até mesmo outras coisas importantes além de novas explicações sobre o Universo. Em 1990 o físico suíço Tim-Bernes Lee criou uma linguagem de computador para facilitar a vida de quem trabalhava no Cern, sem imaginar que sua invenção, o hipertexto, seria essencial para a expansão da internet.

Faz tempo que os físicos perseguem o bóson de Higgs. O próprio Novaes, em 1979, ainda no mestrado, estudou um dos mecanismos de produção dessa partícula por meio de colisões entre prótons. “O que era um problema naquela época continua na agenda, mostrando a difi culdade da física de partículas em avançar nas últi-mas 3 décadas.” Espera-se que e-Science ajude a resolver. “A e-Science é aberta e veloz e representa outro modo de fazer ciência”, diz Novaes. “Temos que pensar de outra forma e ser ousados.” ■

identifi cado, o bóson de Higgs poderia explicar por que as partículas elemen-tares da matéria apresentam massas tão diferentes entre si (a massa de um nêutron, que forma o núcleo atômico, é 1.800 vezes maior que a de um elétron, que orbita ao redor do núcleo).

T anta gente e tanto trabalho se explica porque o bóson de Higgs pode ser a peça que faltava para completar o

quebra-cabeça das partículas atômicas. No início do século passado só havia uma partícula, o elétron. Logo surgiram evidências do núcleo atômico, formado por partículas bem maiores, e lá por 1950 os físicos já haviam identifi cado dezenas delas. “Era o caos”, conta Novaes. “Ainda não havia nenhuma organização entre as partículas.” Aos poucos os físicos desven-daram as forças que mantêm as partículas e os átomos unidos, mas ainda não era o bastante. Quando os aceleradores de partículas começaram a funcionar e exibiram dimensões ainda mais pro-fundas da matéria, os físicos verifi caram que todo o zoológico de partículas dos anos 1950 poderia ser organizado por meio de apenas três partículas, os quarks

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Z O O LO GIA

Comportamento do tangará-dançarino determina sua variabilidade genética

Da ponta de um galho, a pequena tangará verde-oliva observa a fi la de machos que se preparam para o ritual de cortejo. O primeiro levanta

vôo, paira no ar por alguns segundos e mostra à donzela as penas vermelhas do topo da cabeça antes de pousar no fi nal da fi la. Em alta ve-locidade, um macho sucede ao outro nessa manobra de conquista que parece uma disputa entre rivais, mas é na verdade um balé organi-zado (ver vídeo no site www.revistapesquisa.fapesp.br). A dança coordenada conti-nua até que um deles solta um agudo ti-ti-ti-ti-ti! É o líder do bando – ou macho alfa, para os biólogos – que anuncia o fi m da festa. Se for bem-sucedido, ele voará para a privacidade da fl oresta em companhia da pretendida.

No palco de exibição, que os especialistas chamam de lek, quem manda é sempre o mesmo macho. Mas sem um corpo de baile formado por mais um a sete machos subordinados, ele não tem chance de atrair a atenção de uma fêmea. A tarefa é árdua: durante o período de reprodução, eles dançam todos os dias o dia todo. Já no frio do inverno, quando não é época de fi lhotes, li-mitam a exibição a uma ou duas vezes a cada manhã. “As fêmeas avaliam a capacidade dos machos de manter um grupo organizado”, explica o biólogo Mercival Francisco, do campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Mas o que os figuran-tes ganham com isso? Essa

Maria Guimarães

é uma das perguntas que têm ocupado Mercival, que tam-bém busca identifi car como a composição genética dos tangarás-dançarinos (Chi-roxiphia caudata), pássaro símbolo de Ubatuba, varia ao longo da sua distribuição. Ele investigou esses pássaros – 13 centímetros de corpo azul, asas e cabeça pretas com o boné vermelho que exibem com tanto orgulho – no mais longo trecho que resta da Mata Atlântica, fl oresta que já acompanhou a costa brasilei-ra praticamente inteira.

Essa faixa contínua está quase toda no estado de São Paulo, onde Mercival esco-lheu cinco áreas em zonas de preservação para amostrar a diversidade genética dos tangarás: o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), quase na fronteira com o Paraná, o Parque Es-tadual Carlos Botelho, pró-ximo a Sorocaba, e os nú-cleos Cubatão, Caraguata-tuba e Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar – todos administrados pelo Instituto Florestal. Os ani-mais afortunados que vivem nos 415 quilômetros que separam o Petar e o Núcleo Picinguaba têm à sua dis-posição mais de 17.300 qui-lômetros quadrados de fl o-resta. Para o pesquisador, uma oportunidade única de estudar o comportamento das aves dançarinas quando não estão restritas a ilhas de fl oresta cercadas por cana-viais ou áreas urbanas.

Nas cinco áreas selecio-nadas, Mercival coletou sangue de machos que par-ticipavam de grupos dança-rinos e analisou dez trechos de DNA selecionados para

medir parentesco. A idéia era testar se laços de família, que explicam muito da solidarie-dade animal, estão por trás dessa dança – ajudar irmãos é visto por biólogos como uma forma indireta de perpetuar os próprios genes, estratégia que seria favorecida pela evo-lução. Contudo, os resultados mostram que não é o que acontece com os tangarás. Grupos de dançarinos podem incluir machos aparentados, mas não é isso que os reúne. “Eles fi cam onde nasceram, e por acaso às vezes acabam num lek onde há parentes”, conta o biólogo.

To d o s p o r u m - A descoberta não é de todo surpreenden-te. O mesmo padrão já foi visto em outros tangarás, como os da espécie Chiro-xiphia lanceolata, habitantes da Amazônia e da América Central parecidos com os tangarás da Mata Atlântica, mas neles a cor azul se limita às costas, como uma capa. Estudados desde 1999 no Panamá pela bióloga norte-americana Emily DuVal, da Universidade Estadual da Flórida, esses pássaros dan-çam em pares, que também não se formam por laços de parentesco. Observando os pas de deux emplumados ano após ano, Emily desvendou o estímulo mais forte do que a solidariedade fraterna: os machos subordinados têm maior chance de ascenderem ao posto de alfa do que um macho qualquer que não te-nha entrado na dança.

Mercival acredita que as regras do jogo sejam as mes-mas entre os seus tangarás. “A chance de se reproduzir é zero para machos que não

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integram um lek. Para os que participam as oportunidades são raras, mas existem.” O pesquisador pretende continuar em estudos detalhados para entender como funciona a sucessão dentro dos corpos de baile dos tangarás-dançarinos.

Mas ele se preocupa com o desfl o-restamento da Mata Atlântica, que isola animais e plantas em ilhas de fl oresta. Em artigo publicado no fi nal de 2007 na revista Molecular Ecology em parce-ria com Pedro Galetti Junior, do campus de São Carlos da UFSCar, e com o norte-americano Lisle Gibbs, da Uni-versidade Estadual de Ohio, Mercival

comparou a diversidade genética em suas cinco áreas de estudo e mostrou que, quanto mais geograficamente distantes, mais diferentes as populações são do ponto de vista genético – indi-cação de que os tangarás fi cam perto de onde nasceram em vez de migrar longas distâncias e disseminar seu ma-terial genético. “Em todos os locais que estudamos havia alelos únicos”, conta

Cores vistosas não bastam: tangarás têm que rebolar para atrair parceiras

o biólogo se referindo às diferentes for-mas que cada gene pode assumir. Isso signifi ca que toda fl oresta perdida leva consigo parte da diversidade genética do tangará-dançarino. Em áreas onde a variabilidade genética já não é grande perder essa pouca diversidade pode dar origem a populações altamente susce-tíveis a deformidades e doenças causa-das por genes defeituosos – pelo mesmo motivo que se evitam casamentos con-sangüíneos em seres humanos. Com mais desmatamento, o termo “dançar” corre o risco de assumir seu sentido fi gurado para os tangarás. ■

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NEURO LO GIA

A s o n d a s da inteligê nciaRitmo de funcionamento cerebral pode indicar maior capacidade de aprendizagem

Depois de quase 5 anos de tra-balho o neurocientista Lucas Santos acredita, por fi m, ter obtido as primeiras evidências de que a atividade elétrica do cérebro permite estimar a ca-pacidade de aprender.

Não foi fácil. Durante 3 anos ele teve de freqüentar a Universidade de São Paulo (USP) em horários nada convencionais. Chegava pela manhã e só ia embora por volta das 3 da ma-drugada, bem depois de os professores e os alunos terem deixado a Cidade Universitária. No laboratório de Maria Teresa Silva, no Instituto de Psicologia da USP, Santos passava horas treinando ratos-brancos – animais que dormem de dia e gostam de passear à noite – a apertar uma alavanca para receber gotas de uma mistura de água com açúcar como recompensa.

Ele submeteu os ratos a testes para verifi car se descobriam como e quando pressionar a alavanca para ganhar a recompensa. Em seguida, registrou com um aparelho de eletroencefalografi a a atividade elétrica das células nervosas (neurônios) de uma região cerebral chamada hipocampo, que coor dena a aquisição da memória e o grau de aten-ção, essenciais para a aprendizagem.

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Santos constatou que as células do hipocampo dos roedores que aprende-ram mais ou mais facilmente dispara-vam a cada segundo um número maior de sinais elétricos de comunicação com outras áreas cerebrais do que as dos ratos que demoravam a descobrir como se alimentar durante os experimentos. Em média a atividade elétrica do hipo-campo dos animais mais espertos foi quase 30% superior à dos roedores com pior desempenho nos testes.

R e d e e l a b o r a d a - No registro eletro-encefalográfi co, os sinais elétricos do hipocampo apareceram na forma de ondas teta, identifi cadas pela primeira vez em 1938 pelos fi siologistas alemães Richard Jung e Alois Kornmüller e um dos quatro tipos de ondas elétricas ce-rebrais conhecidas. No caso dos ratos com melhor desempenho nos testes de aprendizagem, as ondas teta alcan-çaram em média a freqüência de 9 hertz, o equivalente a nove disparos por se-gundo. Já a dos outros animais foi de aproximadamente 7 hertz, ou sete des-cargas elétricas por segundo, como descreveram Santos e seus colaborado-res em artigo publicado eletronicamen-te em fevereiro na revista Behavioural and Brain Research. Ricardo Zorzetto

Para Santos, o ritmo de funciona-mento acelerado do hipocampo pode ser refl exo de uma rede de células nervosas mais bem desenvolvida. “Os animais mais espertos devem ter circuitos mais elaborados, base neurológica que pode permitir maior nível de atenção e faci-lidade de aprender nessas e em outras situações”, comenta o neurocientista brasileiro, hoje pesquisador na Univer-sidade Brown, nos Estados Unidos.

Numa próxima etapa, Santos preten-de repetir os testes com animais maio-res e evolutivamente mais próximos do ser humano, como gatos, cães e macacos – e, quem sabe, desenvolver experimen-tos até com pessoas. Se novos testes confi r marem esses resultados, ele terá comprovado uma hipótese lançada há quase 5 décadas pelo professor César Timo-Iaria, um dos mais importantes e respeitados neurocientistas brasileiros, morto em 2005, com quem Santos tra-balhou de 1997 a 2004. “O professor César gostava de usar a palavra ‘inteli-gência’, um termo polêmico, para des-crever o aprendizado adquirido”, recor-da Santos. “Se ele estiver correto, as on das teta seriam uma medida do nível de inteligência.” ■

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Ciência, embates e debates

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62 Apresentação

63 Jan HoeijmakersEnvelhecimento e longevidade: quanto duram os seus genes?

66 Luiz Hildebrando Pereira da Silva

Revolução genômica e saúde pública

70 Walter Colli e Herton Escobar

Trânsgênicos e mídia

73 Niède GuidonPrimeiros habitantes do Brasil: as descobertas de São Raimundo Nonato

76 Carlos JolyO programa Biota-Fapesp: uma referência para estudos de biodiversidade

79 Mario Eduardo Costa Pereira e Sidarta Ribeiro

Freud e neurociência

especial: revolução genômica iii

Ciência, embates e debates

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Os vastos tempos da ciência

Apresentação

Contra o tempo apertado, amesquinhado, esse tempo tão dolorosamente compri-mido de nosso cotidiano, vi-mos algumas vezes – deveria dizer, talvez, sentimos? – o tempo se expandir desmesu-radamente ante nossos olhos nas últimas semanas. Vimo-lo perder-se em fronteiras ime-moriais, ora ganhar sólida densidade histórica, ora es-pantosa largueza e profundi-dade arqueológicas. Pudemos olhá-lo como invenção, re-criação da memória, para adiante vê-lo dividir-se sem aflição entre Kronos, esse deus que parece, e apenas parece, tornar o tempo tangível em sua cronologia, e Kairós, a di-vindade do acontecimento que subverte, corta a cronolo-gia, refaz o próprio tempo, reinventa mundos.

Essa extraordinária via-gem entre tempos se deu no percurso das palestras da pro-gramação cultural da exposi-ção Revolução genômica de fins de abril e boa parte de maio que estão apresentadas nas próximas páginas desse encarte especial de Pesquisa FAPESP. Enquanto o seguia, pensei às vezes que não have-ria trilha sonora mais adequa-da a tal caminho do que a intensa poesia da Oração ao tempo de Caetano Veloso (“... e quando eu tiver saído para fora do teu círculo, tempo, tempo, tempo, não serei nem terás sido...”). Em outros mo-mentos imaginei que melhor pano de fundo para o que es-távamos a vislumbrar seria a espessa linguagem filosófica de Heidegger em Ser e Tempo

atingindo os nossos ouvidos como uma hipnótica litania. Só se é no tempo? Que seja.

Embrenhar-se por horas em digressões sobre o tempo parecia apenas natural depois de acom-panharmos a brilhante exposição da arqueóloga Niède Guidon sobre os trabalhos de pesquisa e conservação das criações pictóricas e esculturas em São Raimundo Nonato, no Piauí, que propi-ciam um recuo de até 100 mil anos atrás, quem sabe, para lá encontrar os primeiros grupos de Homo sapiens na América do Sul. E nada mais es-timulante do que saltar daí para o tempo históri-co do duro combate contra as doenças infecciosas, tornado tão claro pela aula magistral do parasito-logista Luiz Hildebrando Pereira, capaz de ilumi-nar, em 1 hora, do gênio de Louis Pasteur, que pavimentou todo o caminho das vacinas ainda hoje mais eficazes, aos desafios que agora estão propostos em termos de conhecimento básico pa-ra que as promessas da revolução genômica se realizem, de fato, em relação a essas doenças.

Um salto vertiginoso para trás, de nada menos que 200 milhões de anos, nos propôs, então, numa ensolarada manhã de domingo o biólogo Carlos Joly, antes de nos mostrar as consistentes produ-ções do Programa Biota-FAPESP. Todos os conti-nentes unidos em tempos geológicos imemoriais serviam ao propósito de que melhor compreen-dêssemos os fundamentos e a riqueza dos biomas abrigados no vasto território do Brasil. E um tem-po muito diferente, um tanto arbitrário e ficcio-nal, tecido com a mais fascinante matéria dos sonhos, foi trazido à cena no pavilhão Armando Arruda Pereira pelas mãos do neurocientista Si-darta Ribeiro e do psicanalista e psiquiatra Mario Eduardo Pereira. Por fim, fomos ejetados de cho-fre ao futuro na palestra do geneticista holandês Jan Hoeijmakers, que, via reparos do DNA, ousa acenar com a possibilidade de termos muito mais vida plena em nossos anos de longa velhice. Na verdade, todos os pesquisadores que aparecem nas próximas páginas, a par de familiarizarem o pú-blico que os ouviu com as fronteiras históricas e atuais dos campos de conhecimento em que estão mergulhados, a par de lhe mostrar suas antevisões do futuro, em conjunto lhe ofereceram uma aula magistral sobre a plasticidade do tempo, algo que tem a ver com a ciência, mas também com a arte e a filosofia. É tempo de lhes agradecer.

Mariluce Moura

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Page 63: A proteína ambivalente

Jan HoeijmakersGeneticista holandês apresenta as bases moleculares do envelhecimento e os camundongos mutantes que criou para entender melhor a senilidade prematura

Carlos Fioravanti

por dentro e por fora do corpo, se esse mecanismo de conserto das moléculas de DNA se mantivesse afinado. Seu grupo de trabalho inaugurou uma linha de pesquisa nessa área ao desenvolver camun-dongos mutantes, incapazes de pro-duzir uma ou mais de uma das pro-teínas de reparo. De acordo com as imagens que mostrou, os efeitos são notáveis: os animais com essas defi-ciências genéticas crescem menos e apresentam sinais de envelhecimen-to precoce, como a cifose, uma cur-vatura acentuada da coluna verte-bral, a osteoporose e degenerações neurológicas, além de viverem me-nos que os animais normais.

Os animais mutantes torna-ram-se um modelo de estudo para entender melhor o que se passa nos seres humanos, às vezes abatidos desde o nascimento por uma pro-dução insuficiente das enzimas de reparo do DNA. Hoeijmakers já verificou que o organismo dos ca-mundongos com deficiências na produção das enzimas de reparo do DNA prioriza, tanto quanto possível, a defesa da integridade do DNA em vez de gastar energia no crescimento e desenvolvimento corporal. “É melhor permanecer pequeno e viver mais, porque, se investir em crescimento, viverá menos.” Dessas pesquisas não sai só mais ciência, mas também al-

Hoeijmakers: objetivo é viver mais, com mais qualidade de vida

O geneticista holandês Jan Hoeij-makers não se contenta com o fato de a longevidade da espécie huma-na, nos últimos mil anos, ter au-mentado o equivalente a 15 minu-tos a mais a cada hora vivida. “Mais importante do que acrescentar mais anos à vida é acrescentar mais vida aos nossos anos”, comentou ele durante a palestra “Envelhecimen-to e longevidade: quanto duram nossos genes?”, apresentada no dia 18 de maio no Parque do Ibirapue-ra, em São Paulo, dentro da progra-mação cultural da exposição Revo-lução genômica. Envelhecer, lem-brou ele, ainda implica a sujeição a doenças de controle árduo, quando não impossível, como osteoporose, diabetes ou Alzheimer.

Hoeijmakers persegue o ideal de um envelhecimento mais saudá-

vel aprofundando-se com sua equi-pe de biólogos da Universidade Erasmus, em Roterdã, na Holanda, na área em que ele é uma das maio-res autoridades mundiais: o reparo da molécula de DNA, realizado por um orquestrado conjunto de pro-teínas incumbidas de um sanea-mento contínuo, já que todo dia o DNA de cada célula sofre em média 50 mil lesões, causadas por radiação solar, por compostos químicos ou pela simples colisão com outras moléculas. Quando os guardiões do DNA não conseguem mais segurar as pontas, o organismo perde o pas-so habitual e instaura-se um caos que poderá tanto permitir o desen-volvimento de um câncer quanto acelerar o envelhecimento.

Hoeijmakers acredita que o en-velhecimento correria mais devagar, FO

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dupla, feita de apenas quatro blocos de construção representados pelas letras G, T, C e A.

“Sempre temos um C oposto a um G, considerando cada um dos lados da hélice. Se houver um T em uma das fitas, teremos um A na fita oposta. Então, se tivermos a seqüên-cia dos blocos em uma das fitas, podemos deduzir a seqüência dos blocos na fita oposta”, disse, mos-trando em seguida a imagem de uma molécula de DNA. Para ilus-trar a grandiosidade dessa molécu-la, fez a seguinte comparação: “Se imprimíssemos as seqüências dos blocos de construção de um único núcleo, essa impressão se estende-ria de São Paulo a Johanesburgo. Se ini ciássemos sua leitura, letra por le tra, levaríamos 11 anos para com-pletá-la. É uma quantidade de in-formação enorme”.

Hoeijmakers contou que o DNA guarda informações sobre qualquer ser humano por meio dos blocos A, C, T e G, cuja ordem forma “a lín-gua de nossos genes”, disse ele, sem hesitar em recorrer a outras metá-foras. “Essa ordem forma letras, que formam palavras, que repre-sentam instruções. Cada instrução equivale a um gene.” O DNA huma-no, por exemplo, contém 25 mil genes. Ao usar um gene, a célula faz uma cópia por meio de uma molé-cula de RNA mensageiro. O RNA vai ao citoplasma e é traduzido em

proteína. Cada gene, assim, carrega instruções para proteínas específi-cas; algumas delas, as enzimas, po-dem acelerar uma reação química, convertendo glicose em energia, por exemplo. Outras proteínas es-tão relacionadas à divisão celular e outras reparam danos do DNA.

“Todas as funções celulares ocorrem através das proteínas codificadas no DNA. É dessa forma que a vida funciona”, sintetizou.

Hoeijmakers apresentou dois filmes curtos mostrando como uma célula se divide e em seguida concluiu: “O câncer nada mais é que a divisão descontrolada das cé-lulas, devido a erros nas instruções contidas nos genes”. Esses erros aparecem quando falham os meca-nismos de reparo das moléculas de DNA, igualmente regidos por gru-pos específicos de proteínas.

Em um trecho mais denso de sua apresentação, o geneticista expôs os mecanismos básicos pelos quais a molécula de DNA é danificada, até mesmo perdendo pedaços, abdican-do assim de instruções para o fun-cionamento normal do organismo. Algumas proteínas específicas pro-duzidas no citoplasma agem o tem-po todo como guardiãs do DNA, para consertar esses estragos. Às ve-zes, porém, essa vigilância falha: é quando surgem doenças genéticas, algumas delas inatas. Hoeijmakers apresentou três delas. A primeira é a xeroderma pigmentosum (XP), cujos portadores apresentam uma extrema sensibilidade à luz solar.

“Bastam 5 minutos sob o sol para ficarem com a pele completamente queimada”, contou. Defeitos em ge-nes de reparo de DNA como o XPA e o XPG aumentam em mais de 2 mil vezes o risco de câncer de pele em portadores de XP.

Falha no reparoOutra doença causada por falhas em outros genes de reparo de DNA, conhecidos pelas siglas XPB, XPD, CSA e CSB, é a síndrome de Co-ckayne, caracterizada por uma ex-trema sensibilidade à luz, embora sem maior incidência de câncer de pele, e por sintomas específicos, como problemas neurológicos e musculares e deficiências no cres-cimento: as crianças com essa sín-drome vivem em média até os 12

guns sonhos que tomam forma pouco a pouco. “No futuro”, co-mentou, “esperamos promover o envelhecimento saudável”.

As pesquisas de Hoeijmakers o levaram a criar em 2004 a empresa DNAge, adquirida 2 anos depois pela Pharming Group NV, com o propósito de desenvolver medica-mentos capazes de deter o envelhe-cimento precoce principalmente em portadores de síndromes de ori-gem genética. O primeiro deles de-ve entrar este ano na primeira etapa de testes em seres humanos, para avaliar a segurança de uso, depois de apresentar resultados satisfató-rios em camundongos portadores da síndrome de Cockayne, uma das formas mais comuns de envelheci-mento prematuro, contra a qual ainda não há remédios.

FecundaçãoHoeijmakers começou a palestra falando do início da vida – a fecun-dação, quando uma célula reprodu-tiva feminina, o óvulo, funde-se com uma célula reprodutiva masculina, o espermatozóide. Segue-se a multi-plicação e diferenciação das células que vão formar os músculos, o cére-bro e todas as outras partes do cor-po. Em seguida, ele mostrou que cada célula contém um núcleo – lá estão os 46 cromossomos, estrutu-ras formadas por proteínas e a mo-lécula do DNA, em forma de hélice

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anos de idade. A terceira doença é conhecida pela sigla TTD, de trico-tiodistrofia, marcada igualmente por sensibilidade à luz solar, por problemas neurológicos, por baixa estatura e por um traço peculiar, as unhas e cabelos quebradiços. A TTD resulta de falhas em outro grupo de genes de reparo, os XPB, XPD e TTDA.

Depois de estudar bastante os genes que causavam essas doenças, Hoeijmakers e seu grupo em Roter-dã provocaram o mesmo defeito em camundongos, criando animais geneticamente modificados, inca-pazes de produzir uma ou outra dessas proteínas que consertam o DNA, que se tornaram um modelo de estudo para entender melhor não só o desenvolvimento dessas doenças genéticas em seres huma-nos como também o envelhecimen-to. Ele mostrou algumas imagens desses animais e impressionou ao ressaltar o pêlo acinzentado de um camundongo geneticamente defi-ciente, um sinal de senilidade au-sente no animal normal. “Provoca-mos nos camundongos a mesma mutação presente no paciente com TTD – no ponto R722W da proteína XPD.” Hoeijmakers contou que ele e sua equipe ficaram desapontados no início, porque os animais ti-nham pelagem normal, diferente-mente dos cabelos quebradiços dos seres humanos com TTD. Duas se-manas mais tarde, a pelagem dos animais começou a ficar rala e, em mais 2 semanas, desapareceu com-pletamente. “Vimos que o mesmo defeito no gene XPD também faz com que a pelagem dos camundon-gos fique quebradiça, assim como suas unhas.”

Os animais com TTD morriam precocemente, após viverem em média 1 ano e meio, enquanto os animais normais podem viver 2 anos ou mais. Nos seres humanos, ele lembrou, a doença é ainda mais severa e as pessoas morrem com cerca de 5 anos. Os animais apre-sentaram também uma caracterís-tica inesperada: tornavam-se grisa-lhos. “Considerando-se os pacientes humanos, nunca se pensou que eles estivessem sofrendo de envelheci-mento acelerado”, contou o geneti-cista. Ele e sua equipe analisaram todos os órgãos dos animais e con-

em comparação com os normais, direcionam a energia que seria gas-ta com o crescimento e desenvolvi-mento para manutenção e reparo de DNA – por essa razão é que per-manecem pequenos, como as pes-soas acometidas por essas síndro-mes. “A mesma estratégia de inves-timento na manutenção e no repa-ro está relacionada com a longevi-dade”, disse Hoeijmakers. “Se um camundongo tiver um defeito no hormônio do crescimento, ele fica-rá bem pequeno, mas viverá muito mais, por até 4 anos, enquanto os normais vivem apenas 2,5 anos”, afirmou o cientista holandês. Ani-mais submetidos a dietas limitadas a 70% das calorias habituais tam-bém permanecem pequenos e vi-vem por até 4 anos. O oposto tam-bém é verdadeiro: animais dotados de uma cópia extra do gene do hor-mônio do crescimento crescem mais, mas vivem menos. “O fenô-meno, então, se dá em ambas as direções: se houver muito investi-mento em crescimento, vive-se me-nos; se, por outro lado, houver in-vestimento em manutenção e repa-ração, vive-se mais e com mais saúde.” Ele acredita que esse mecanismo, chamado de resposta de sobrevi-vência, pode ser importante para promover um envelhecimento sau-dável. “É exatamente isso que gos-taríamos de fazer.”

Para Hoeijmakers, a lógica do envelhecimento começa a se tornar mais clara. Fontes externas como elementos químicos e radiação fa-zem o organismo produzir espécies reativas de oxigênio que danificam o DNA e as células. Se não detidos pelas defesas do organismo, esses danos podem causar mutações e anomalias cromossômicas, além de iniciar a morte das células, que pro-vocará o envelhecimento. “Os da-nos ao DNA impõem uma escolha entre o envelhecimento e o câncer. Felizmente podemos encontrar agentes que reduzem os danos ao DNA”, comentou. “Se tivermos su-cesso, não envelheceremos demais nem teremos câncer. No futuro, es-peramos promover um envelhe-cimento saudável através da com-preensão do processo de envelheci-mento normal permitindo que as pessoas atinjam uma idade mais avançada.” ■

“Se um camundongo tiver um defeito no hormônio do crescimento, ele fi cará bem pequeno, mas viverá muito mais, por até 4 anos, enquanto os normais vivem apenas 2,5 anos”

cluíram que eles estavam, de fato, envelhecendo: apresentaram cifose e osteoporose, tornaram-se caqué ticos e perderam massa muscular.

Qualidade de vidaHoeijmakers lembrou que da Idade Média para cá, porém, a longevida-de aumentou o equiva-lente a 15 minutos extras para cada hora vivida.

“Muitas vezes, porém, envelhecer implica per-da da qualidade de vida”, concluiu. “Temos mais anos de vida, mas não necessariamente mais vida em nossos anos. Na verdade, gostaríamos de permanecer jovens, mas ao envelhecermos desen-volvemos várias doen-ças.” O envelhecimento pode também ser o re-sultado de uma progra-mação biológica, que determinaria o momen-to de um organismo pa-rar de funcionar, ou de uma catástrofe causada pelo acúmulo de erros de todo tipo.

Hoeijmakers comen-tou a possibilidade, já colocada em prática, de cruzar animais com dife-rentes tipos de deficiên-cias nos genes de reparo de DNA e ver o que acon-tece. Dos estudos em la-boratório, somados ao conhecimento acumu-lado sobre o envelheci-mento humano, ofere-cem algumas respostas e, melhor ainda, levantam muitas dúvidas. O gene-ticista holandês expôs algumas delas: “Quais as conexões entre as falhas nos mecanismos de repa-ro de DNA e o envelheci-mento acelerado? Em que medida essas falhas refletem o envelhecimen-to natural?”.

Os pesquisadores já verificaram que os ca-mundongos mutantes,

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A genômica vem proporcionando grandes progressos e vantagens na pesquisa em doenças infecciosas, em particular na identificação de genes de vírus e bactérias responsá-veis pela ação patogênica, mas hoje há certa decepção no ar. A análise dos genomas dos agentes patogêni-cos pode permitir a identificação de fatores responsáveis pelas doen-ças e sugerir as melhores armas pa-ra atacá-las. Ocorre que a expecta-tiva de que as ferramentas da gené-tica pudessem resolver boa parte dos problemas das doenças infec-ciosas ainda não se confirmou. “A culpa por isso não é da genômica, mas dos pesquisadores, que não entenderam tudo dessa área para poder intervir com sucesso”, afir-mou o parasitologista Luiz Hilde-brando Pereira da Silva. “Temos de ser suficientemente humildes para assumir que ainda nos falta conhe-cimento básico.” Criador e diretor do Instituto de Pesquisa em Patolo-gias Tropicais (Ipepatro), de Ron-dônia, e ex-diretor do Departamen-to de Imunologia do Instituto Pas-teur de Paris, ele falou sobre o tema

“Revolução genômica e saúde públi-ca”, dia 26 de abril.

Hildebrando lembrou que para entender o valor da genômica é im-portante saber o que havia antes dela: as eficientes vacinas já desen-volvidas que, aplicadas extensiva-mente nas populações, diminuíram drasticamente o número de doentes de moléstias infecciosas em todo o mundo. No caso dos Estados Uni-dos, por exemplo, a difteria afetou 207 mil pessoas em 1921 e apenas 1 em 2003; o sarampo derrubou 894 mil em 1941 e 42 em 2003; a coque-luche atingiu 265 mil em 1934 e

resposta eficiente contra as infec-ções transmissíveis”, alertou. “Ainda é preciso aprofundar os conheci-mentos científicos de base da imu-nologia e dos mecanismos patogê-nicos para encontrarmos soluções tão boas quanto as oferecidas pelas vacinas tradicionais.”

Luiz Hildebrando chamou a atenção para o fato de sermos todos sobreviventes ao que aconteceu an-tes de nós. Com isso, quis dizer que os progressos que a genômica pôde trazer para o estudo das doenças infecciosas aconteceram recente-mente e se sucederam a outros avanços que a humanidade incor-porou da fase pasteuriana do de-senvolvimento da ciência na área da saúde. Ele explicou que há 200 anos o mundo estava submetido à pressão seletiva das grandes epide-mias e doenças endêmicas que ma-tavam milhões de pessoas em todos os continentes. Entre elas, as mais devastadoras eram a cólera, a varío-la, a febre amarela e a gripe. Em No-va York, por exemplo, morreram de cólera 3.600 pessoas em 1831 quan-do a população da cidade era de 200 mil habitantes. Se fosse hoje, como a cidade tem 8 milhões de pessoas, teriam morrido 100 mil.

Outra epidemia a transitar li-vremente pelo planeta durante vá-rias períodos da história foi a varío-la, que atingiu personalidades como Ramsés V, no Egito, o imperador Shunzhi, do Japão, Luís XV, na França, Pedro II, da Rússia, dom José, o verdadeiro sucessor de dom João XI, herdeiro do trono de Por-tugal, e Abrahão Lincoln, em 1863, entre outros tantos.

A peste – outra doença – estava ativa há 200 anos, embora em fase menos virulenta. A peste bubônica caracterizou a Idade Média e ocor-reu em razão do progresso da agri-cultura e da formação de estoques de alimentos. O ambiente era pro-pício para o rato, que nunca teve tanta comida disponível. O proble-ma é que ele carregava a pulga ve-tora da bactéria Yersinia pestis, cau-sadora da doença no homem e responsável por mais de 25 milhões de mortes, em especial na Europa.

“A febre amarela, que voltou a crescer no país nos últimos anos, mas apenas sob a forma silvestre, foi responsável por grandes epide-

Luiz Hildebrando Pereira da SilvaParasitologista diz que ainda falta conhecimento para tornara genômica mais efi caz contra as doenças infecciosas

Neldson Marcolin

8.483 em 2003; a rubéola atacou 58 mil em 1969 e 8 em 2008; a polio-mielite deixou seqüelas em 21 mil pessoas em 1952 e em 2003 não houve casos nos Estados Unidos nem em outros países – a doença foi erradicada. Todas essas vacinas apre-sentam eficácia de 96,8% a 100%. Entretanto, elas foram elaboradas antes da era genômica ou, se depois disso, com metodologias anteriores a ela. Em comum, todas foram feitas pelo tradicional método pasteuria-no. Nenhuma delas – com exceção da hepatite B, com 75% de eficácia,

– é gênica, ou seja, produzida com os conhecimentos obtidos a partir da genômica.

Epidemias “Depois da descoberta da estrutu- ra do DNA e do código genético criou-se um dogma, o princípio que vem norteando a atividade dos biólogos moleculares desde os anos 1960, que levou a certos problemas”, disse Hildebrando. O dogma, neste caso, é que a informação genética se reduz à contida no DNA pelas seqüências específicas dadas pelas purinas e pirimidinas, que identifi-cam pelo código genético a presen-ça de aminoácidos correspondentes na proteína que se forma a partir dessa informação. Esses dados vêm por meio de uma mensagem – o RNA mensageiro – feita através da transcrição da informação de uma das cadeias de DNA, na qual essa informação genética está contida. Toda a informação genética do DNA seria transcrita em termos de RNA e traduzida em proteínas a partir do código genético. “Mas es-sas informações ainda são insufi-cientes, até agora, para termos uma

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mias urbanas até o início do século XX. Em 1898, 3% da população de Campinas morreu vítima da febre.

A gripe, hoje sob melhor contro-le, matou milhões. A primeira pan-demia começou na África em 1510 e se espalhou pela Europa. Poste-riormente houve a gripe asiática, em 1889 e 1890, e a mais conhecida e virulenta de todas, a gripe espanho-la, de 1918-1919. Com ela, 17 mi -lhões morreram na Índia, 500 mil nos Estados Unidos, 200 mil na In-glaterra e 35 mil no Brasil.

Pasteur, um gênioO século XIX teve todas essas pan-demias, mas teve também Louis Pasteur (1822-1895), “um grande gênio da humanidade”, no dizer de Hildebrando. “Pasteur não era nem médico, nem biólogo, mas um físi-co-químico, cujas contribuições fundamentais começaram pela quí-mica.” A primeira descoberta foi a isomeria ótica do tartarato, algo muito específico e com importân-cia para a química. A segunda con-tribuição foi provar que a geração espontânea não existe. “Até a época do Pasteur se acreditava que basta-va colocar pedaços de carne mistu-rados com raízes numa panela fe-chada e esperar alguns meses para brotar várias espécies de vermes e de insetos, às vezes, até de ratos”, explicou. Essa hipótese era admiti-da entre os médicos e biólogos. Pas-teur demonstrou a inexistência da geração espontânea por meio de

microor ganismos que davam resul-tados indesejáveis, se deveria usar a inativação térmica. Essa técnica os eliminava e permitia usar apenas a levedura apropriada para obter o processo de maturação correto. A téc nica ficou conhecida como pas-teurização e passou a ser usada imediatamente para a produção de laticínios como um método de es-terilização preliminar.

A experiência com microorga-nismos convenceu Pasteur de que eles provocavam “doenças” não apenas no vinho e na cerveja, mas também nos homens e animais e passou a estudar o bicho-da-seda, cuja doença estava acabando com a produção de seda na França. Logo percebeu que as larvas dos insetos tinham um mal transmissível e iso-lou as linhagens saudáveis das in-fectadas. Foi o suficiente para resol-ver o problema dos produtores de seda. Em seguida, em 1881, tratou da cólera das galinhas, causada por uma bactéria. E fez mais uma des-coberta importante. Pasteur verifi-cou que se cultivasse a bactéria no meio de cultura no laboratório por várias gerações obteria bactérias fracas que, uma vez injetadas na galinha, a protegiam contra a cóle-ra em vez de provocar a doença.

Depois de resolver o problema das galinhas, ele se voltou para a rai-va. “Embora não tenha sido uma epidemia, a raiva era sempre mortal quando alguém era atacado por um cachorro infectado”, disse Hilde-

experiências de labora-tório, utilizando frascos pescoço-de-ganso que permitiam a passagem do ar, mas impediam a penetração das poeiras e germes. Resultado: os meios de cultura se con-servavam inteiramente límpidos, sem cresci-mento de germes no seu interior.

A terceira grande des- coberta de Pasteur foi a fermentação, base da produção de bebidas al-coólicas, como vinho e cerveja. Os vinicultores e cervejeiros tinham problemas com esse pro-cesso porque, não raro, resultava em uma bebi-da ácida ou completa-mente amarga. O cien-tista francês verificou que o processo da matu-ração era causado por grupos de microorga-nismos, observados ao microscópio. Para o vi-nho e a cerveja ter quali-dade era necessário usar um microorganismo par t icular, o levedo. Com isso, ele resolveu o problema das doenças que ocorriam nas vinhas e plantações de cevada. E que, para evitar as con-taminações com outros FOT

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brando. Dessa vez, o químico não encontrou micróbios visíveis que pudesse ser relacionado com a doen-ça – nenhuma bactéria, levedura ou estrutura que pudesse ser visível no microscópio. Mas ele sabia que exis-tia um processo, um agente invisível que provocava a doença, porque era possível notar que quando se injeta-va a saliva de um cão doente em ou-tro saudável, este último passava a ter os mesmos sintomas.

Postulados de Pasteur-KochJunto com Koch, Pasteur então for-mulou os princípios básicos da for-mação e da identificação de um agente responsável por uma doença, chamados de postulados de Pasteur- Koch (Roberto Koch, 1843-1910, bac teriologista alemão). O primei-ro postulado reza que se deve isolar da pessoa, do animal ou do vegetal doente um microorganismo ou um agente que seja sempre o mesmo quando isolado de diferentes indi-víduos com a mesma doença. Se-gundo postulado: manter em labo-ratório e produzir sucessivas gera-ções desse microorganismo fora do indivíduo doente. Terceiro: provo-car a doença experimental inocu-lando o agente patogênico num animal-testemunha sadio da mes-ma espécie, de modo a provocar a mesma patologia.

No caso da raiva, ele não conse-guia ver nada no material isolado. Mas o pesquisador era capaz de manter a substância isolada, passan-do de um tecido para outro e depois

provocar a doença em um cão sadio injetando esse agente nele. Ocorre que Pasteur não conseguia cultivar o que não via, como fazia com as bactérias. “Os vírus da febre amarela e da varíola só foram visualizados depois da invenção do microscópio eletrônico em 1932”, contou.

O que Pasteur conseguia fazer era preparar um extrato da medula de cães raivosos e injetar em outros cães. Experimentou injetar em coe-lho e conseguiu produzir um coelho doente. Transmitindo a doença de coelho em coelho, obteve finalmen-te um extrato de medula que, inje-tada no coelho, produzia uma infec-ção com ausência de sintomas.

Pasteur injetou nos cães essa preparação e não produziu nenhu-ma doença neles, mas verificou que ela os protegia da raiva. “Quando injetava saliva de cão raivoso, ele descobriu duas coisas formidáveis: primeiro, a demonstração dos seus postulados com Koch; segundo, o princípio da atenuação”, relatou Hildebrando. Todas as experiências bem-sucedidas o levaram a testar o extrato de medula no homem, com o agente patológico atenuado, para ver se podia provocar uma reação positiva de resistência, em 1885. O candidato foi o jovem alsaciano Jo-seph Meister, mordido por um cão raivoso. Deu certo. A isso se seguiu um sucesso internacional enorme. Chegaram a levar da Rússia para a França um jovem que tinha tam-bém sido infectado. Vacinado, foi salvo. Pouco depois, em 1888, nas-

cia o Instituto Pasteur. “O instituto tornou-se num centro mundial de estudos pela procura de vacinas contra doenças transmissíveis.”

O interesse pelo saneamento como medida profilática contra doenças interessou dom Pedro II. O imperador se correspondia com o cientista francês e pediu-lhe que se ocupasse da febre amarela, então um dos graves problemas de saúde brasileiros. Pasteur tinha consegui-do fazer a vacina contra a raiva por meio de um processo gradativo de adaptação e diminuição da viru-lência do agente infeccioso. Com a febre amarela não foi possível.

A grande contribuição contra a doença foi dada inicialmente pelo médico cubano Carlos Finley (1833-1915), em 1894, que formu-lou a hipótese da transmissão por mosquitos. Ele fez essa dedução por causa da relação entre a epidemia crescente e o aumento da população de mosquitos. A hipótese de Finley não tinha como ser demonstrada porque não se conseguia isolar o agente. O italiano Giuseppe Sana-relli (1864-1940) contestou o cuba-no, acreditando que o agente etioló-gico era o bacilo icteróide.

Em 1900, o setor de saúde do Exército norte-americano no meou o médico Walter Reed (1851-1902), que foi a Cuba e ao Panamá para estudar a transmissão da febre ama-rela. Reed e voluntários se deixaram picar pelo Aedes aegypti, que se in-fectava picando pacientes com a fe-bre, e conseguiram demonstrar a

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Ilustração do New York Times de 1831 mostra cidade sob a epidemia de cólera

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relação entre a doença e o mosquito. “Naquele tempo os cientistas eram um pouquinho mais dispostos a provar suas hipóteses se oferecendo como voluntários”, observou. “Hoje o código de ética impede isso, mas nem precisava proibir porque não se encontra mais esse tipo de voluntá-rio entre nós.”

No Brasil existiram cientistas com espírito semelhante. Adolpho Lutz (1855-1940) e Emílio Ribas (1862-1925) também foram vo-luntários com outras pessoas para experiências de transmissão da febre amarela pelo Aedes aegypti em 1902, quase na mesma época em que Reed. De um grupo de vo-luntários, três se infectaram. Tam-bém os brasileiros confirmaram a hipótese de Finley. Foram essas experiências que possibilitaram a erradicação da febre nos Estados Unidos e a abertura do canal do Panamá, em 1906. Elas encoraja-ram Oswaldo Cruz (1872-1917) a realizar a grande campanha de fe-bre amarela no Rio de Janeiro, que levou praticamente à eliminação da doença na cidade no começo do século XX. O vírus da família Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus, só foi descoberto em 1930 por Max Theiler (1899-1972), um sul-africano que trabalhava nos Esta-dos Unidos. Ele o cultivou em embrião de galinha e produziu a vacina com o vírus atenuado.

Além de Pasteur, outros cientis-tas tiveram papel importante nas descobertas que precederam a era genômica. O alemão Paul Ehrlich (1854-1915), por exemplo, foi o pre-

mo sendo determinado por trinca de bases.

Os pesquisadores do Instituto Pasteur André Lwoff (1902-1994), Jacques Monod (1910-1976) e François Jaboc (1920-), ganhadores do Nobel de 1965, formularam a teoria pela qual se entende a trans-crição e a regulação da informação genética. Essa informação não é ex-pressa e transmitida para o cito-plasma e por organismos de uma maneira explosiva, tudo ao mesmo tempo – ela é transmitida ordena-damente por meio de um progra-ma sucessivo de expressão e repres-são das informações, de maneira a constituir um ciclo progressivo de acumulação de informações que vai formando o organismo, seja o de uma bactéria ou de um mamífe-ro superior, como os primatas. A ciência evoluiu nesses períodos com uma vasta colaboração entre os institutos de vários países.

“Eram umas 20 ou 30 pessoas conversando constantemente e si-multaneamente desenvolvendo a biologia molecular”, contou Hilde-brando. Até que, em 1975-76, surgi-ram os trabalhos de Frederick San-ger, que desenvolveu a técnica de seqüenciamento com Walter Gilbert e Paul Berg. O método permite ana-lisar a informação genética existente em uma seqüência de DNA. Sanger ganhou o Nobel de Química duas vezes. Em 1958, por ter determinado a estrutura molecular da insulina, e em 1980, pelos trabalhos com Gil-bert e Berg. Pode-se dizer que a téc-nica criada por eles permitiu o nas-cimento da genômica.

“Enquanto não entendermos melhor o sistema imunológico e as mutações adaptativas talvez não consigamos vencer o grande desafi o da patologia infecciosa”

decessor da descoberta dos grandes compostos químicos e é tido como o pai da quimioterapia. Já o polonês Rudolf Vir-chow (1821-1895) de-senvolveu as bases da patologia celular. Além disso, a criação de algu-mas tecnologias, em par-ticular a espectrometria de massa (1919), a crista-lografia de raios X (1920) e a microscopia eletrôni-ca (1932) contribuíram significativamente para o desenvolvimento dessa área científica. “A criação dessas três estruturas permitiram o nascimen-to da genômica, da era da biologia molecular”, afir-mou Hildebrando, ele próprio um pesquisador da genética de microor-ganismos desde o início dos anos 1960.

A descoberta da es-trutura molecular do DNA em 1953 por Fran-cis Crick (1916-2004) e James Watson (1928) le-vou à possibilidade de compreender a natureza da informação genética. Com ela houve o desen-volvimento, a partir de 1960, do código genéti-co, fruto das descobertas de Sydney Brenner, co-autor de estudo junto com Crick, que levou à descrição do código co-

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Louis Pasteur, Fred Sanger e Paul Ehrlich: contribuições essenciais para a ciência

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tes que acompanha a exposição Revolução genômica.

Colli expôs as dificuldades da imprensa para compreender o fun-cionamento e as deliberações do órgão, que é vinculado ao Ministé-rio da Ciência e Tecnologia. Em 2006, quando assumiu a presidên-cia da comissão, ele se surpreendeu com os equívocos que permeavam a cobertura, escassa, por sinal, so-bre as atividades do órgão. Uma nota publicada por um colunista sugeria que os membros do órgão usufruíam de mordomias, como viagens ao exterior e hospedagem em hotéis cinco estrelas. Tudo falso.Na avaliação do pesquisador, a co-bertura era o resultado do racha que havia – e ainda persiste – den-tro do governo em relação aos transgênicos, que se transpôs para o plenário da comissão. De um lado estão representantes de ministérios e secretarias contrários, por princí-pio, aos organismos geneticamente modificados. De outro perfilam-se representantes da comunidade científica e os indicados pelos mi-nistérios da Agricultura, da Ciência

Parte da imprensa brasileira assu-miu de forma acrítica a visão de alguns ambientalistas, abrigados em ONGs, na cobertura sobre os polêmicos alimentos transgênicos. Mas a transparência nas reuniões da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão colegiado incumbido de avaliar so-licitações para realização de pes-quisas e comercialização dos orga-nismos geneticamente modificados, além do esforço de pesquisadores para disseminar informações cien-tíficas sobre o tema, ajudou os jor-nalistas a produzir uma abordagem um pouco mais equilibrada. “Nós fizemos um plano para chamar a mídia toda vez que houvesse uma reunião da CTNBio. E a mídia, de certa forma, começou a responder”, disse Walter Colli, presidente da comissão e professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em debate reali-zado no dia 10 de maio com o jor-nalista Herton Escobar, especialista em assuntos científicos do jornal O Estado de S. Paulo. O encontro fez parte do ciclo de palestras e deba-

Com técnicas automatizadas foi possível fazer o primeiro seqüencia-mento do genoma humano, concluí-do em 2003 ao custo de US$ 3 bi-lhões. “Hoje a previsão é de chegar-mos a um seqüenciamento do ge-noma de um homem, com várias outras técnicas, por US$ 1 mil em 24 horas.” Também é possível se-qüenciar os agentes patogênicos com rapidez. Já foi feito o seqüen-ciamento completo, por exemplo, do vírus Hemofilus influenzae, res-ponsável pelas pneumonias que ocorrem na gripe.

“É neste momento que sinto cer-ta decepção”, admitiu o cientista brasileiro. “Ainda falta muita coisa para entender.” Hildebrando chama de dogma a crença em vigor até há pouco tempo de que a genômica tudo explica pelo trio DNA-RNA-proteína e com isso é possível enten-der e proteger a humanidade contra as doenças atuais e as que ainda aparecerão. “Quando trabalhava no Pasteur convivendo com vários ga-nhadores do Nobel, estava conven-cido de que tinha a verdade na mão e iria resolver o problema da malá-ria”, contou. “Eu dizia, nas entrevis-tas, que teria a vacina pronta em 5 anos, no máximo em 10 anos.” Essa crença no poder da genômica sim-plificada era partilhada por chefes de laboratórios importantes, do mundo inteiro, afirmou. “Ocorre que ainda estamos esperando por essa vacina realmente eficaz feita a partir das pesquisas genômicas.” Existem hoje vacinas contra a malá-ria, que provocam alguma imunida-de em alguns grupos de pessoas – mas são imunizantes produzidos pelo velho método pasteuriano.

A expectativa nos anos 1980 e 1990 era de que bastava definir os alvos moleculares e com isso a ma-neira pela qual tinha que desenvol-ver a droga eficiente, como se toda a informação científica necessária para resolver o problema estivesse dada. “A realidade parece mostrar que ainda falta conhecimento.” Os cientistas tentam, por exemplo, compreen der o real significado do chamado DNA não codificante, que constitui mais de 80% do genoma, já foi considerado lixo ou DNA de re-serva, mas hoje, sabe-se, é bastante conservado em suas seqüências. “Se ele é conservado, diria papai Darwin,

Walter Colli e Herton EscobarProfessor e jornalista discutem acertos e deslizes da imprensa na cobertura dos alimentos transgênicos

Fabrício Marques

deve servir para muita coisa que ainda não sabemos”, afirmou. Para Hildebrando, existe certa ilusão no Brasil de que a ciência brasileira evoluiu muito na parte fundamen-tal, mas não na de aplicações. “En-tão se estimula a todos a correr pa-ra fazer ciência aplicada.”

A síntese do recado passado pe-lo veterano cientista é um pedido especial de atenção com a ciência fundamental e com o desenvolvi-mento de informações básicas de conhecimento científico. “São os

futuros pesquisadores que terão de resolver essas questões e fazer a ge-nômica funcionar melhor nas ques-tões de saúde”, afirmou. “Enquanto não entendermos melhor o sistema imunológico e as mutações adapta-tivas talvez não consigamos vencer o grande desafio da patologia infec-ciosa, que é de nos livrar de uma maneira definitiva dos agentes pa-togênicos.” O parasitologista espera que as gerações futuras tenham um projeto um pouco mais seguro de sobrevivência da espécie. ■

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e Tecnologia, da Defesa e das Rela-ções Exteriores, que preferem ava-liar caso a caso os benefícios e peri-gos embutidos em cada pedido de pesquisa e em cada solicitação de uso comercial.

“Um jornal diário começou a dar destaque às divergências inter-nas da CTNBio, pautado por um membro da comissão notoriamen-te contra qualquer transgênico e com grande capacidade de articu-lação”, lembra Colli. Uma das re-portagens criticava o quórum baixo de uma reunião que tomou deci-sões importantes – na verdade, o autor da reportagem somou erra-damente o número de membros titulares (27) e suplentes (27) para concluir que “menos da metade” havia votado, quando na verdade são apenas 27 os votos válidos.

“Resolvi, juntamente com uma assessora de imprensa do Ministé-rio da Ciência e Tecnologia, convo-car a mídia a cada reunião mensal. Principalmente um jornal de São Paulo começou a dar cobertura igual ou maior que este jornal an-terior, mas relatando de forma ab-solutamente isenta o que acontecia”, diz o professor. Até mesmo algu-mas redes de TV passaram a se in-teressar, como o Canal Rural, emis-sora de TV a cabo voltada para agri cultores. “Mas as grandes redes abertas, em geral, ignoram as ativi-dades da comissão. Recentemente, quando duas variedades de milho transgênico foram aprovadas, as redes abertas deram a notícia. Apa-receu o ministro da Ciência e Tec-

nologia, Sérgio Rezende, falando: “Nós concluímos que esses produ-tos não fazem mal...”. Saiu o minis-tro e entrou em seguida um am-bientalista falando por muito mais tempo que o milho poderia fazer mal à saúde”, diz Walter Colli. “Hou- ve um processo submetido à comis-são, cujos pareceres encomendados a especialistas fizeram restrições. Nós só não votamos contra porque a empresa retirou de pauta. Não quis ser derrotada. A imprensa não deu isso. O que dá notícia é o se-guinte: a CTNBio aprovou mais um milho transgênico e dizem que vai fazer mal para o estômago, e coisa e tal, o que é inteiramente ine-xato e não verdadeiro”, afirma.

AnticiênciaO pesquisador identifica uma arti-culação anticiência no combate aos transgênicos. “Se o médico diz que você precisa operar, é possível per-guntar a opinião de outros quatro médicos, mas ninguém é louco de pedir a opinião de um não-médico. E, no fim, se você tiver que operar, vai operar com quem? Com um médico, é claro, pois no fundo se acredita no conhecimento específi-co dessa pessoa”, disse Colli. “Mas

em outras áreas não funciona assim. O Ministério da Ciência e Tecnolo-gia pediu para a Academia Brasilei-ra de Ciências, que reúne os melho-res cientistas do país, a indicação de nomes para as posições da comis-são. Mas se eles consideram razoá-vel liberar a comercialização de um transgênico, tem gente que não acredita e ainda surgem insinua-ções tentando nos desqualificar.

Mas a principal dificuldade da imprensa, afirmou Colli, é a mesma da sociedade: distinguir o real sig-nificado dos transgênicos da versão demonizada apresentada por al-guns movimentos ambientalistas.

“A transgenia é um método. Pode-se com esse método, que é poderoso, fazer coisas úteis para o homem, para os animais, para o ambiente. Também se podem fazer coisas de-letérias”, explica o pesquisador. “A transgenia consiste simplesmente em pegar um gene de um ser vivo e pôr no outro, pegar de uma planta e pôr na outra. E depois verificar se haverá problemas. Apenas isso.”

O jornalista Herton Escobar ini ciou sua apresentação fazendo um passeio pela internet. Digitou no site de buscas Google a expres-são “transgênicos”. A platéia pôde

Escobar e Colli: o desafi o de enfrentar a guerra de informação que envolve os transgênicosFO

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observar que boa parte das páginas dedicadas ao assunto apresenta in-formações sem respaldo científico

– como a suposta ligação dos trans-gênicos com câncer ou a hipotética interferência na ação de medica-mentos. “Eu abri todos os links que aparecem na primeira página do Google. Dos dez, apenas um ou dois tinham alguma coisa, vamos dizer, imparcial. Todas as outras eram páginas de organizações ou de blogs claramente contra os trans-gênicos”, observou Escobar. “Dá para perceber que quem quiser se informar pela internet vai receber mais dados contra os transgênicos do que a favor. E muitas dessas in-formações não são verdadeiras. Eu, como profissional de um meio de comunicação sério, tenho que estar atento e tentar focar no que é fato, que tem dado científico”, disse.

DesconhecimentoPara Escobar, uma das principais dificuldades para escrever sobre transgênicos é o desconhecimento das pessoas sobre assuntos científi-cos. “Você fala que tirou um gene daqui e botou um gene ali, mas isso não significa nada para 99% da po-pulação”, afirmou. Ele citou uma pesquisa de opinião feita na Itália, em que se perguntava se tomate tinha DNA. “A maioria respondeu que não, que tomate não tem DNA. Já o tomate transgênico, disseram, esse sim tinha DNA. E as pessoas não queriam comer o tomate trans-gênico, com medo de comer DNA. Isso mostra a ignorância das pes-soas com relação aos princípios mais básicos da biologia molecular.

E aí vêm pesquisas de opinião di-zendo que tantos por cento dos brasileiros não querem transgêni-cos e usam isso como uma justifi-cativa para não se aprovar.”

Outra dificuldade, segundo o jornalista, é situar-se em meio à selva de informações e contra-in-formações sobre o assunto. “Qual é o principal argumento dos movi-mentos que são contra os transgê-nicos? Que não foram feitos estu-dos suficientes, não há provas de que eles sejam benéficos, há uma série de indícios de que eles pos-sam ser maléficos, tem o risco de monopólio das empresas. Mas, quando você pergunta mais a fun-do, a discussão empaca. Se forem feitos mais estudos e os resultados forem positivos, aí pode liberar? Aí, eles dizem: “Não, veja bem, nós achamos que os transgênicos não são uma boa opção”. Então não é que sejam necessários mais estudos, você é contra e ponto final. E a pes-soa nunca diz isso”, disse Herton Escobar. “E o mesmo vale para as empresas. Elas fazem muita propa-ganda enganosa, dizem que os transgênicos vão ajudar a acabar com a fome no mundo, vão tirar os pequenos agricultores da pobreza. O fato é que a empresa desenvolveu uma tecnologia e quer lançá-la pa-ra ganhar dinheiro.”

Em sua experiência cobrindo o assunto, Escobar surpreendeu-se com a reação que enfrentou por exercitar um princípio do jornalis-mo, que é ouvir os dois lados da história. “Na maioria das reporta-gens sobre transgênicos apenas os ambientalistas eram ouvidos. Nin-

guém ouvia as empresas criticadas. Como eu resolvi ouvir as empresas, enfrentei insinuações em blogs e e-mails de jornalistas da área ambien-tal sobre a isenção do jornal em que trabalho. Acho isso um absurdo, porque parece que um lado é o do-no da verdade e o outro lado está sempre mentindo”, afirmou.

Da platéia surgiram perguntas sobre a existência de estudos que apontam problemas nos trans gê-nicos.O jornalista Herton Escobar fez uma comparação com as pes-quisas sobre o aquecimento global.

“Uma vasta maioria dos cientistas acredita que o aquecimento global está sendo causado pela ação do homem, mas também tem os cha-mados céticos, que formam um grupo pequeno. Eles acham que o fenômeno é natural. O que eu faço como jornalista? Bom, existe o Pai-nel Intergovernamental de Mudan-ças Climáticas, que fez revisões gi-gantescas da literatura científica e concluiu ser muito provável que o aquecimento seja causado pela ação do homem”, disse Escobar. “O jor-nalista não deve deixar de reportar-se ao que dizem os céticos, mas deve esclarecer que a maioria não concorda com eles. Nos transgêni-cos é a mesma coisa. A grande maioria da literatura científica aprova os transgênicos, a ONU aprova, a Organização Mundial da Saúde aprova. Mas, se um cientista apresentar um estudo bem emba-sado mostrando problemas com os transgênicos, não tenho nenhum problema em reportar isso.”

O professor Colli respondeu a indagações sobre a viabilidade de ampliar a quantidade de estudos, como os de impacto ambiental, a fim de reduzir os temores sobre o surgimento de eventuais efeitos co-laterais dos transgênicos não capta-dos pelas pesquisas experimentais.

“Se você vai construir uma represa, sabe exatamente qual será a área alagada, os bichos e as árvores atin-gidos. Então é possível fazer uma avaliação do que vai ocorrer. Mas com planta não tem isso. Para fazer um estudo de impacto ambiental, seria preciso plantar uma grande extensão e ver o que acontece – mas aí você já plantou. Por isso, o que se faz são experimentos controlados em terrenos menores.” ■

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Niède GuidonArqueóloga diz que o Homo sapiens já estava no Piauí há 100 mil anos

Marcos Pivetta

Em 1973, a brasileira Niède Gui-don, então pesquisadora do Centre National de La Recherche Scientifi-que (CNRS) em Paris, era assisten-te da grande arqueóloga francesa Annete Emperaire, que procurava vestígios do homem mais antigo das Américas. Annete já havia esta-do na Patagônia e, em solo brasilei-ro, seu maior interesse era a região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, onde se acreditava estarem os resquícios mais antigos de ocupação humana em terras nacionais. “Detesto essa pesquisa para ver quem é o mais antigo. Gosto do Piauí por causa das pin-turas (rupestres), que são muito bonitas”, disse então Niède a Anne-te. “Preparo tudo para você ir a Lagoa Santa, mas vou para o Piauí.” Foi e nunca mais saiu da região de São Raimundo Nonato, no sudeste do estado. Para sua surpresa, além de incontáveis manifestações de arte pré-histórica em mais de mil sítios arqueológicos descobertos, deparou – que ironia – justamente com o que dizia tanto odiar: indí-cios de presença humana no Nor-deste muito mais antigos do que jamais alguém esperaria achar.

Segundo Niède, o material ar-queológico resgatado até agora no Piauí – alvo de controvérsias entre os estudiosos – indica que o homem chegou à região há cerca de 100 mil anos. A pesquisadora acredita que o Homo sapiens deve ter vindo da África por via oceânica, atravessan-do o Atlântico. Houve uma grande seca na África e o homem teria ido para o mar procurar comida. Tem-pestades o empurraram oceano adentro. “O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América

era muito menor e havia muito mais ilhas”, disse Niède, hoje com 75 anos, na palestra que fez no dia 11 de maio no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para a programação cultural da exposição científica Re-volução genômica. As teses de Niède se chocam com a arqueologia mais tradicional, dominada pela visão dos norte-americanos, que situam a chegada do homem nas Américas há cerca de 13 mil anos, vindo da Ásia via estreito de Bering.

Niède Guidon: homem saiu da África e chegou ao Piauí por via marítima, atravessando o Atlântico de ilha em ilha

Em sua apresentação, Niède fez um resumo dos 36 anos dos traba-lhos científicos e de preservação cultural e ambiental desenvolvidos no Parque Nacional Serra da Capi-vara, criado em 1979 e considerado patrimônio cultural da humanida-de pela Unesco. Começou falando da localização geográfica do parque, que compreende uma área de 129 mil hectares administrada pela Fundação Museu do Homem Ame-ricano (Fundham), entidade criada (em 1986) e presidida até hoje por Niède. O parque é vizinho de outro, de nome auto-explicativo, que fica à sua direita, o Parque Nacional da Serra das Confusões, com área de 516 mil hectares. “Na realidade, sempre quisemos que a serra da Capivara e a serra das Confusões formassem um só parque”, afirmou. A idéia não vingou devido à cobiça de políticos e grandes empresários que conseguiram doações, desma-taram uma parte da região e sepa-raram os dois parques, segundo a arqueóloga.

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Antes de assentamentos de sem-terra terem tomado o entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, havia um corredor natural que per-mitia a passagem de animais de um parque a outro. Mais úmida do que a serra da Capivara, a serra das Confusões atraía os bichos na épo-ca de seca. Os animais migravam e, com a volta da estação das águas, retornavam à serra da Capivara.

“Até brincávamos que os animais recebiam um telegrama avisando que choveu na Capivara”, comen-tou Niède. Com o desmembramen-to total dos dois parques, as movi-mentações da fauna local se torna-ram complicadas e perigosas. “Se saem do parque (serra da Capiva-ra), os animais morrem”, senten-ciou. Para matar a sede dos bichos na estiagem, a Fundham fez uma série de reservatórios para captar água da chuva. Até comida foi ne-cessário dar aos bichos nos 2 últi-mos anos de seca mais acentuada.

“Estamos em negociação com o go-verno federal para ver a possibilida-de de estabelecer um corredor entre os dois parques”, disse.

Entre dois biomasA chuva, que faz o verde brotar nu-ma paisagem normalmente associa-da a tons de marrom, é de suma importância para o equilíbrio da serra da Capivara, dominada por vegetação de caatinga. “Já passei até 6 anos sem ver chuva”, contou a ar-queóloga. “Acho temerário fazer assentamento de sem-terra, que quer plantar comida, num local on-de pode ficar tanto tempo sem cho-ver.” Niède não é contra os sem-terra, que vivem em casas minúscu-las, sem reboque, rodeadas de lixo,

“favelas na zona rural” nas palavras da arqueóloga. Apenas acha que eles deveriam se dedicar a plantar flores ornamentais e certos tipos de cactos, que têm alto valor comercial no mercado, em vez de desmatar para cultivar alimentos. A arqueóloga explicou que a região, dona de belos cânions, é uma fronteira entre duas formações geológicas brasileiras, um planalto do permiano-devonia-no e a planície do São Francisco, que é do pré-cambriano. “Nossas pesquisas demonstraram que, há 10 ou 9 mil anos, nessa região se dava

o contato entre dois biomas: a Flo-resta Amazônica e a Mata Atlântica”, explicou. “Até hoje, nas regiões mais protegidas do parque, mais úmidas, temos espécies animais e vegetais desses dois biomas.”

A fauna da serra da Capivara, que voltou a ser alvo de caçadores devido à redução no número de funcionários do parque (de 270 empregados em 2004 para os atuais 84), costuma ser ofuscada pelas es-petaculares pinturas rupestres e sítios arqueológicos da região. Mas não lhe faltam encantos. “A Caatin-ga, ao contrário do que se diz, tem uma biodiversidade muito grande”, afirmou Niède. Há muitos anfíbios, cobras e, segundo um estudo da Universidade de Brasília (UnB), a densidade de felinos na unidade de conservação é maior do que na Ma-ta Atlântica. “Descobriram 60 on-ças no parque”, disse. Os macacos-pregos rendem uma história à par-te. A arqueóloga contou que eles são tão habilidosos que, em alguns sítios pré-históricos, os arqueólo-gos encontram ferramentas feitas pelos símios e pensam que esses

Pinturas rupestres da serra da Capivara: região tem mais de mil sítios arqueológicos

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artefatos foram talhados por mãos humanas. “Nossos macaquinhos são muito inteligentes e enganam até os arqueólogos”, comentou.

Os cortes nas verbas federais, que obrigaram à demissão de mui-tos funcionários, deixam todo o patrimônio natural do parque à mercê de uma exploração sem limi-tes. “Algumas espécies desaparece-ram totalmente e os caçadores ulti-mamente estão ganhando a parada”, comentou Niède, que precisa de meros R$ 400 mil reais por mês pa-ra tocar o parque com o número adequado de funcionários. “Quan-do comecei a trabalhar na região, não andava 10 minutos sem ver um tamanduá-bandeira. Hoje, em toda a área do parque, temos somente três.” Também faltam especialistas para estudar alguns animais da ser-ra da Capivara, como os insetos. No caso dos fungos, que muita gente julgava inexistentes na Caatinga, uma pesquisadora está se dedican-do ao seu estudo. Fungos exuberan-tes, com até 80 centímetros de diâ-metro, já foram encontrados na região. Na área de botânica, várias espécies novas foram descobertas, inclusive de árvores com mais de 8 metros de altura.

Os sítios arqueológicosA essa altura da palestra, Niède se pôs a falar do que tornou a serra da Capivara conhecida internacional-mente: seus sítios arqueológicos, com possíveis implicações para a história da colonização das Améri-cas. Em 1973, durante a primeira missão franco-brasileira, da qual também fazia parte a pesquisadora Silvia Maranca, da Universidade de São Paulo (USP), não havia estra-

das ou coisa alguma no que hoje é o parque. “Tínhamos de andar, às vezes, 50 quilômetros carregando tudo”, disse a arqueóloga. Até urnas funerárias. A população local aju-dava os pesquisadores e indicava onde estavam as pinturas rupestres, como as do sítio da Pedra Furada, o mais antigo do parque e um de seus cartões-postais. “Na primeira vez que fui ao Piauí descobri 55 sítios com pinturas”, lembrou. Naquela época, Niède ainda trabalhava em tempo integral na França e só ia ao Piauí nas férias.

Naquele tempo, todos os pes-quisadores diziam que não havia material arqueológico muito antigo no Nordeste, uma região seca e des-favorável à presença humana. Niè-de teve uma grande surpresa quan-do saiu o resultado de uma datação feita na França que estimou em 18 mil anos a idade de um carvão (res-quício possivelmente de uma fo-gueira humana) encontrado em Pedra Furada. “Chamei o laborató-rio e disse: ‘Vocês misturaram os carvões. Nessa região não tem nada antigo’. Aí a chefe do laboratório me respondeu: ‘A datação é do seu carvão. Volte lá e amplie sua pes-quisa porque tem alguma coisa di-ferente ali’’’, relembrou Niède. Nos 10 anos seguintes, a equipe da ar-queóloga escavou 750 m² até bater na rocha de base, a quase 8 metros de profundidade.

Niède mostrou à platéia imagens ampliadas até 500 vezes por micros-copia eletrônica de um artefato em pedra lascada que teria sido feito pe-lo homem há 100 mil anos. A peça tem marcas que indicam seu uso em dois sentidos, um na transversal e outro na vertical. Alguns estudiosos,

no entanto, não atribuem essas di-minutas ranhuras ao manuseio hu-mano, crítica que a arqueóloga bra-sileira considera descabida. Niède disse que o aparecimento de mate-rial feito em pedra polida e da cerâ-mica na serra da Capivara se deu há cerca de 9 mil anos. “A cerâmica apa-rece lá no mesmo momento em que é criada no Oriente Próximo e na África”, explicou. Nesse ponto da pa-lestra, Niède fez uma revelação, ain-da não publicada em trabalhos cien-tíficos: uma das pinturas do parque pode ser a mais antiga do mundo, com 34 mil anos, segundo datações preliminares feitas no Brasil e na França. Ela mostrou uma das pintu-ras que faz parte do lote das mais antigas. “Esses buracos nas figuras são de tiros de espingarda de caça-dores”, comentou.

Grande parte das pinturas da serra da Capivara contém represen-tações de animais em movimento, sobretudo de capivaras (animal que dá nome ao parque, embora não exista na região desde antes da che-gada de Niède) e de veados. Dese-nhos de figuras humanas também não são raridades. “Vemos huma-nos muito expressivos, em atos do dia-a-dia”, exemplificou. “Temos muitas representações sexuais, de parto, de danças. É uma verdadeira história em quadrinhos gravada na pedra.” Às vezes, sinais geométricos ou mãos usadas como carimbo aparecem nas pinturas.

Niède está convencida de que o homem pré-histórico se espalhava por uma região muito maior do que a serra da Capivara. Há 2 anos, pes-quisadores da Fundham passaram 15 dias na serra das Confusões e en-contraram 120 sítios arqueológicos.

Paisagens, fauna, fl ora e habitantes da serra da Capivara: cenários turísticos

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Carlos Alfredo JolyLevantamento da biodiversidade paulista transcende universidades e chega à prática

Maria Guimarães

“Uma quantidade absurdamente fantástica”, comentou Niède. “No total (somando Capivara e Confu-sões) temos hoje mais de 1.300 sí-tios.” Segundo a arqueóloga, as an-tigas populações de caçadores e coletores tinham poucos membros e não teriam como ter ocupado uma área tão grande se tivessem chegado ali há apenas 15 mil anos.

“Já descobrimos o que chamamos de oficina lítica, um lugar onde eles buscavam matéria-prima e traba-lhavam”, contou. No local os cientis-tas encontraram 80 mil peças.

Visitar a serra da Capivara re-quer paciência e determinação. A cidade mais próxima do parque servida por aeroporto é a pernam-bucana Petrolina, distante 300 qui-lômetros. Há mais de 1 década, foi feito um estudo internacional mos-trando que a grande vocação eco-nômica da serra da Capivara é o turismo. “Em 1996, o governo fe-deral criou por lei um aeroporto internacional e, em 1998, foram liberados US$ 15 milhões para a construção da obra. Como em Te-resina faz muito calor, o dinheiro chegou de Brasília e derreteu todi-nho”, disse Niède. “O aeroporto começou a ser construído no ano passado. Essa corrupção terrível parece ser a regra.”

Dentro do parque há uma boa estrutura para fazer pesquisa ou tu-rismo. A unidade de conservação conta com 400 quilômetros de es-tradas e dispõe de passarelas que facilitam o trabalho de preservação e o acesso dos turistas a pinturas situadas em locais elevados. Ali a Fundham, que também promove atividades de cunho social para os moradores da região, mantém um museu. Sua coleção de fósseis paleon tológicos e arqueológicos so-ma mais de 1 milhão de peças, como um cristal de quartzo de 9.800 anos e uma flauta de madeira de 1.300 anos, a única da arqueologia nacio-nal. A fundação mantém centros de geoprocessamento e de documenta-ção e laboratórios para análise de material lítico, de cerâmica, de vestí-gios paleontológicos e biológicos.

As pesquisas nos sítios pré-his-tóricos do Piauí levaram a arqueó-loga a defender idéias polêmicas, mas instigantes sobre a evolução humana. “Estamos demonstrando

que o homem, em um determinado momento, começa a inventar as mesmas tecnologias, seja aqui, seja na Europa, na Ásia ou na África”, comentou. “Não podemos esquecer que o Homo sapiens apareceu na África por volta de 130 mil anos, período em que esse continente passou por uma seca muito grande, que quase dizimou integralmente nossa espécie. Foi aí que eles come-çaram a migrar.” Por mar, onde fo-ram buscar alimento, diz Niède.

Empurrados por tempestades, parando de ilha em ilha, numa épo-ca em que África e América esta-vam mais próximas, os primeiros humanos se espalharam pelo globo. Essa é a hipótese de Niède. A desco-berta de vestígios muito antigos do

Homo erectus – hominídeo extinto que é um dos antepassados do Ho-mo sapiens – no México e na Ilha das Flores, na Indonésia, indica que a navegação é mais antiga do que se pensa, segundo a arqueóloga. Uma das dificuldades dos pesquisadores é datar as ossadas humanas encon-tradas na serra da Capivara. Quase não há matéria orgânica nos esque-letos, um entrave para a datação por carbono 14. Novos métodos de aná-lise, no entanto, podem em breve contornar esse obstáculo. “Paleon-tólogos que trabalham no Acre des-cobriram macacos que passaram da África para o Brasil há 20 milhões de anos”, disse. “Se os macacos pas-saram, será que o Homo sapiens não foi capaz de passar?” ■

Com a maturidade conquistada em 8 anos de atividade, um levan-tamento de biodiversidade hoje informa políticas de conservação e busca compostos biológicos para a indústria farmacêutica. “Um dia seremos auto-sustentáveis com os recursos que ganharemos comer-cializando fármacos”, apostou Car-los Joly no dia 27 de abril, durante balanço das realizações do progra-ma Biota-FAPESP.

Principal nome por trás do Bio-ta e chefe do Departamento de Bo-tânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Joly ideali-zou e até 2004 coordenou o progra-ma que aproximou pesquisadores de todo o estado de São Paulo para produzir inventários da fauna e flo-ra dos ambientes aquáticos e terres-tres – levantamentos cada vez mais urgentes diante das extinções que vêm dizimando uma biodiversida-

de preciosa também por motivos práticos – como fonte de novos fár-macos, cosméticos, defensivos agrí-colas e alimentos. “Acho fundamen-tal voltarmos no tempo e entender-mos por que a biodiversidade é tão importante e exuberante no Brasil e, particularmente, no estado de São Paulo”, afirmou o botânico.

A volta no tempo não foi modes-ta: 200 milhões de anos, quando América do Sul, África, Índia, Aus-trália e Antártida eram um único continente. Há 65 milhões de anos os dinossauros já encontraram uma América do Sul isolada, e surgiram os mamíferos que acabaram por do-minar a fauna de vertebrados. No estado de São Paulo, “há mais ou menos 15 mil anos teríamos flores-tas ao longo da serra do Mar, depois teríamos florestas ao longo das cues-tas [relevo semelhante a chapadas encontrado em Botucatu], por cau-

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sa da umidade dessas regiões. No resto do estado teríamos áreas de caatinga em boa parte do litoral e savana no interior”, descreveu.

Mas segundo Joly ainda não se sabe como esses ecossistemas se al-teraram ao longo do tempo. “De qualquer forma, os limites dos ecos-sistemas já foram muito diferentes e isso, certamente, afetou o proces-so de formação de espécies.”

O desaparecimento das espécies – não só sua formação – sofreu in-fluência desses processos de expan-são e redução dos ecossistemas. Quando temperaturas e umidade subiram e as florestas voltaram a se estender por áreas de cerrado, ani-mais como a preguiça-gigante e o tatu-gigante, que dependiam de ve-getação de savana típica do Cerra-do, acabaram extintos. Esse proces-so sofreu também com a influência do homem, que nessa época se ins-talava no continente americano com lanças e técnicas de caça.

Riqueza paulista O projeto Biota se concentrou no estado de São Paulo, mas não só o financiamento da FAPESP justifica esse foco. “É uma região particular-mente rica em biodiversidade por-que, além de toda essa história, ela é o limite sul das áreas de cerrado, o limite norte da floresta de araucá-ria, tem uma extensa floresta densa ao longo do litoral e uma floresta estacional semidecídua no interior. Há muitas áreas de contato entre essas formações”, explicou Joly. “Em cima disso, a geomorfologia – a pla-nície costeira, o planalto atlântico, a depressão periférica, a zona de cuestas e o planalto ocidental – cria diferentes tipos de hábitat, de con-dições para o aparecimento e a ma-nutenção de espécies.”

Na história mais recente, a mu-dança na cobertura natural do es-tado foi drástica, não mais devido a processos naturais. “Se juntarmos toda a história evolutiva com a his-tória da ocupação de São Paulo, veremos que o estado tinha 85% da sua área cobertos por florestas e en-tre 13% e 14% cobertos por cerra-do.” A floresta começou a ser corta-da mais intensamente a partir do início do século XIX, com a entrada do café que gradativamente ocupou as áreas florestais.

“Com o plantio de cana entre 1970 e 2000, destruímos 98% do Cerrado paulista.” O ecossistema já quase não existia quando, em 1995, a Secretaria do Meio Ambiente do estado criou o Probio, para conser-vação da biodiversidade, e o Procli-ma, voltado para mudanças climá-ticas. Nesse ano, um workshop reu-niu pesquisadores, técnicos da Se-cretaria do Meio Ambiente, repre-sentantes da indústria, das Coope-rativas de Cana e do Movimento dos Sem Terra – atores da ocupação do Cerrado. O produto final foi um mapa definindo áreas que deveriam ser preservadas.

“Em 1996 também foi produzi-da a lista oficial das espécies amea-çadas do estado de São Paulo, mas chegamos a um impasse, pois con-seguimos transformar informação

“Um dia seremos auto-sustentáveis com os recursos que ganharemos com fármacos”

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científica em legislação, mas não conseguimos envolver os pesquisa-dores na geração de mais conheci-mento”, contou. “Não se coloca sua linha de pesquisa ou alunos que fa-zem mestrado e doutorado em algo que depende de vontade política, pois o secretário muda, mudam as políticas e não se consegue termi-nar o que foi iniciado.” Veio daí a idéia de criar um programa de pes-quisa em conservação da biodiver-sidade – proposta de Joly que não foi de imediato acatada pela FA-PESP. Era preciso provar que a idéia representava mais do que a mania de grandeza de poucos.

José Fernando Perez, então dire-tor científico da FAPESP, convocou uma reunião com cerca de cem pes-quisadores em biodiversidade. “O grupo foi unânime em dizer que aquilo era importante e que valeria a pena investir num programa espe-cial de pesquisa.”

Desde o início, Joly e sua equipe definiram que os dados levantados pelos grupos associados estariam disponíveis para a comunidade cien-tífica e a sociedade na internet. “Em 1997 fizemos um workshop com 120 pessoas em Serra Negra. Todos que participaram ainda pensam em en-trar com ação contra o organizador porque eu tranquei todos no hotel, confisquei a chave dos carros e disse, ‘Não se sai daqui enquanto o pro-grama não estiver definido’”, relem-brou divertido.

Logo de início, ao reunir o co-nhecimento que existia mas estava disperso em publicações menores e em arquivos pessoais de pesquisa-dores, a iniciativa resultou em sete livros publicados que cobriam todo o espectro da diversidade biológica e sobre as Unidades de Conserva-ção do estado.

Assim, o Biota foi concebido, estruturado e planejado pela comu-nidade científica que depois elabo-rou projetos de levantamento da fauna e flora de São Paulo. Tudo isso com o cuidado de definir bio-diversidade de maneira a acomodar pesquisadores que se embrenham no mato em busca de plantas ou bichos, que passam seus dias em laboratórios e diante do computa-dor para classificar a diversidade biológica, que estudem ecologia da paisagem, que delimitam áreas de

conservação e os que procuram in-cluir populações humanas que fa-zem uso tradicional do ambiente. “Não estamos interessados apenas em catalogar as espécies, mas nos processos e na manutenção desses processos, em sistematizar as infor-mações para que elas também pos-sam ser usadas por aqueles que to-mam decisões políticas.”

Mão na massaAprovado o programa, a primeira dificuldade foi padronizar as coletas e o armazenamento dos dados – fa-zer com que alguém que trabalhe com microorganismos adote o mes-mo protocolo de coleta usado para aves ou com plantas. Com esse intui-to, pesquisadores das diversas espe-cialidades elaboraram um formulá-rio único para todos.

Outro problema: os mapas deta-lhados mais recentes eram de 1972. “Em 1972, o Tietê era um rio, hoje ele é uma seqüência de barragens; Campinas, que hoje tem 1,2 milhão habitantes, tinha 450 mil habitantes; não existia a Bandeirantes nem a Imigrantes. Tudo mudou de lá para cá, inclusive, logicamente, o que so-brou de vegetação nativa.” Em par-ceria com a equipe de Francisco Kronka, do Instituto Florestal, o grupo do Biota partiu de mapas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que atualizaram com fotografias do satélite Landsat. O mapa que resultou foi inserido na internet, com todos os 696 municí-pios de São Paulo – que até 1904 eram 13 – demarcados.

No site www.biota.org.br hoje é possível buscar informações no Atlas de espécies, consultar a revis-ta Biota Neotropica ou o banco de dados. “Temos um sistema que não exige máquinas de grande porte, com alimentação on-line, acesso público e, principalmente, monta-do para ser conectado com outras iniciativas no Brasil e no exterior”, comemora o pai do programa.

Com isso, a situação periclitan-te do Cerrado, por exemplo, agora é conhecida: sobraram 8.500 frag-mentos, mas apenas 10 com mais de 1.000 hectares. “Mil hectares é o tamanho mínimo para manter um casal de lobos-guará. Então, não temos mais área de Cerrado que comporte fauna de grande porte.”

O programa ultrapassou as fron-teiras iniciais. Um filhote é o projeto Species Link, que integra coleções biológicas de diferentes instituições de ensino e pesquisa. “Ele começou integrando 35 coleções no estado de São Paulo, depois se conectou ao Rio de Janeiro e ganhou vida própria. Hoje ele é financiado por agências nacionais e internacionais e reúne 135 coleções com 2,4 milhões de re-gistros.” Outro é a revista científica Biota Neotropica, indexada interna-cionalmente. “Publicamos artigos, inventários, revisões temáticas, cha-ves de identificação, revisões taxonô-micas e notas; os trabalhos são pu-blicados em português, espanhol e inglês. Ela deixou de ser uma revista do programa, é nacional.”

O programa Biota deu também origem ao Bioprospecta, uma rede para identificação de plantas e ani-mais que possam gerar novos pro-dutos como fármacos, cosméticos ou defensivos agrícolas. Joly defen-de que o Brasil detenha a patente desses princípios ativos e faça par-cerias com multinacionais para de-senvolver os produtos. “A diferença é garantirmos que o uso comercial retorne em recursos para o Brasil.” Outro objetivo é que uma parte dos rendimentos seja revertida para conservação do ecossistema onde a espécie ocorre e para programas de pesquisa como o Biota.

E o objetivo principal do pro-grama parece próximo de se reali-zar. Uma parceria com a Secretaria do Meio Ambiente, o Instituto Flo-restal, a Fundação Florestal e a Conservation International definiu áreas prioritárias para conservação. “Na região noroeste do estado de São Paulo, por exemplo, se tivermos um projeto de recuperação de ma-tas ao longo dos rios, conseguire-mos reconectar fragmentos de flo-restas e de cerrado que sobraram. Ali usaremos os modelos que já existem para replantar vegetação nativa.” Em março deste ano o ma-pa produzido pelo Biota foi adota-do pela Secretaria do Meio Am-biente para guiar políticas de con-servação. “De fato, a informação científica trabalhada ao longo des-ses 8 anos se transformou em polí-tica do estado de São Paulo para conservação e restauração da bio-diversidade”, comemorou. ■

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Mario Eduardo Pereira e Sidarta RibeiroPsicanalista e neurocientista debatem sobre o diálogo hoje possível entre os seus campos de conhecimento

Mariluce Moura

Se a medicina, a neurologia e a psi-quiatria do século XIX constituíram o solo original da teoria freudiana, Sigmund Freud teve que, serena e incisivamente, operar uma ruptura radical em relação a essa origem – a esse pai, poderíamos dizer – para desenvolver, de fato, a psicanálise, seus princípios fundamentais, pos-tulados e propostas terapêuticas e, nesse movimento, inventar um campo próprio de conhecimento. Tão fecundo, aliás, que aos poucos sua produção extravasou completa-mente o âmbito clínico, se difundiu de forma espantosa e penetrou a cultura ocidental com tamanha for-ça que a linguagem cotidiana e até a noção de sujeito, para certa exaspe-ração dos filósofos, viram-se cada vez mais carregadas das visões freu-dianas do inconsciente ao longo do século XX.

Em paralelo, medicina, psiquia-tria e neurologia seguiram seus pró-prios cursos, ignorando essa espécie de filha espúria que não cabia no

sonhos na vida do indivíduo – basi-lares em seu pensamento. E, por fim, avançar até a interrogação sobre as possibilidades de um encontro pro-dutivo entre neurociência e psicaná-lise em benefício de mais uma visão nova e rica a respeito do que é espe-cificamente ser humano – essa ques-tão jamais esgotada – na confluência incontornável entre o biológico e o cultural. E em benefício também, pa-ra ficar no terreno da prática, de tra-tamentos mais eficazes das tantas neuroses, desordens, síndromes, transtornos e – por que não? – doen-ças mentais, enfim, que afligem ho-mens e mulheres do século XXI.

Impossível não é. Mas a julgar pelo debate dos “Novos fundamen-tos neurológicos para a teoria freu-diana”, comandado pelo neurocien-tista Sidarta Ribeiro, 37 anos, e pelo psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, 48 anos, na tarde do sábado, 17 de maio, no Pa-vilhão Armando de Arruda Pereira, Parque do Ibirapuera, dentro da programação cultural da exposição Revolução genômica, as possibilida-des efetivas de um tal encontro não parecem exatamente fáceis no curto prazo. Até porque psicanálise e neu-rociência são ambas campos de co-nhecimento autônomos, com obje-tos, métodos e linguagens bem di-versos, um aparentemente mais confortável hoje entre as humanida-des e o outro solidamente plantado na área das ciências biomédicas, e não há nenhum desejo manifesto

campo científico tradicional. Nada é tão simples, entretanto, na história real da evolução do conhecimento – não se trata de algo comparável à decisão de duas pessoas que cortam relações pessoais porque simples-mente não se bicam. E tanto é assim que com os enormes avanços da neu-rociência nas últimas décadas, a par de um aparente cansaço de alguns postulados originais de Freud, segui-damente reinterpretados por novos pensadores da psicanálise, muitas vezes em sério confronto teórico, al-guns contatos timidamente começa-ram a se insinuar entre os dois lados.

Não foi difícil caminhar daí até a indagação, por exemplo, quanto à possibilidade real de imagens do fun-cionamento do cérebro de uma pes-soa no momento em que sonha, fla-gradas com precisão crescente graças às tecnologias que fazem parte do arsenal da neurociência contempo-rânea, darem fundamento biológico e suporte científico stricto sensu às noções de Freud sobre o papel dos

Sidarta Ribeiro e Mario

Eduardo Costa Pereira: diálogo em vez

de confronto

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dos seus especialistas de ver um ab-sorvido pelo outro.

Na verdade, Sidarta Ribeiro, dire-tor científico do Instituto Internacio-nal de Neurociência de Natal Ed-mond e Lily Safra, detalhou durante o debate determinadas experiências recentes no campo da neurociência que, em sua visão, dão suporte a cin-co proposições centrais de A inter-pretação dos sonhos, a bela pedra fundamental do edifício freudiano. E Mario Eduardo Costa Pereira, li-vre-docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Servi-ço de Psicanálise do Hospital das Clínicas da mesma universidade, de-pois de resumir as idéias de Freud sobre a questão da hereditariedade, procurou mostrar em que dimensão o criador da psicanálise faz um de-bate com os temas da genética psi-quiátrica contemporânea. Em seu entendimento, Freud em nenhum momento da construção de sua teo-ria e de sua proposta terapêutica descartou os elementos biológicos, de tal modo que situou mesmo a hereditariedade entre as precondi-ções da neurose. Entretanto, obser-vou, questão crucial em Freud, que é a tomada de posição do sujeito, ja-mais se resolveria no campo do ex-

perimento genético, mas só no cam-po da clínica e da escuta.

Sidarta, na defesa de que propo-sições essenciais de Freud são passí-veis de demonstração neurofisioló-gica, referiu-se, por exemplo, a um experimento publicado em 2003, controlado por ressonância magné-tica funcional, em que se submetiam imagens embaralhadas ao olho do-minante de um paciente e imagens claras de um objeto ao olho não do-minante durante frações de segundo, e em seguida fundiam-se as imagens, obtendo algo embaralhado com um objeto no meio, e o resultado era que o paciente não tomava consciência de que vira o objeto. “O experimen-to se vale de um fenômeno chamado rivalidade binocular. É uma manei-ra de você fazer uma estimulação sensorial invisível. O objeto está lá, mas a pessoa não tem consciência dele”, explicou enquanto exibia as imagens.

Em seguida ele mostrou imagens de ativação de duas regiões cerebrais visuais com funções diferentes, uma chamada via dorsal e a outra via ventral. “A dorsal é uma via mais ativada por movimentos e quando se apresenta a alguém objetos fixos, por exemplo, faces e ferramentas, ela tem uma preferência pelas últimas. Acreditamos que é porque ferra-

mentas têm implícito nelas o movi-mento, o uso. Já a via ventral é mais ativada por faces.” O experimento a que ele se referia incluiu, assim, es-tímulos por frações mínimas de se-gundo, em que a imagem do objeto apresentada dentro da imagem em-baralhada era uma ferramenta, pri-meiro, e depois uma face. “Do pon-to de vista da consciência, a pessoa está sempre vendo uma imagem embaralhada, não tem consciência de que está vendo faces ou ferra-mentas. Mas qual é o resultado da ressonância?”, ele indaga e mostra um novo slide com barras pretas e cinzas ao público: “Na via dorsal, as barras cinzentas são para a situação visível e as barras negras para a invi-sível, quando o olho dominante está com a imagem embaralhada. O que vocês estão vendo é o seguinte: para faces, tem muito pouca ativação quando se utiliza a condição invisí-vel, que são as barras pretas bem baixinhas. E tem bastante ativação para faces quando você utiliza a condição visível. Quando se utili-zam as ferramentas, o que acontece? A visível cresce um tanto, mas tam-bém tem muita ativação na condi-ção invisível”.

A pergunta é então: “Isso signifi-ca o quê? Que embora a pessoa não tenha a menor consciência do que está vendo, o córtex visual dorsal dela sabe que aquilo é uma ferra-menta e não uma face”. Para Sidarta Ribeiro, esse é “um exemplo concre-to, mensurável, quantitativo, de um processamento inconsciente. No ca-so, um processamento sensorial in-consciente. Você pode perceber que o cérebro tem a informação, mas o ego consciente não tem a informa-ção”. O pesquisador acrescenta para a platéia atenta: “Imagino que é o tipo de experimento que Freud faria se tivesse acesso à ressonância mag-nética funcional em sua época”.

A posição do sujeitoEm sua fala, que intitulou “Freud e a genética psiquiátrica”, Pereira co-meçou por situar o médico Freud, formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena, e que es-tudou “na maior parte do tempo junto com o grupo de Ernest Bruck, ou seja, um dos representantes da escola fisicalista da fisiologia em Viena”. Era um pesquisador de ban-

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Afresco de Rafael: Escola de Atenas, no palácio do Vaticano

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cada que depois se dedicou à pes-quisa neuropatológica. Lembrou que num texto de 1896, “A heredita-riedade na etiologia das neuroses”, Freud afirmava que “a opinião sobre o papel etiológico da hereditarieda-de das doenças nervosas deve deci-didamente basear-se num exame estatístico imparcial e não em peti-ções de princípio”. Ou seja, nem no início nem em momento algum de sua obra, disse Pereira, “Freud des-cartou a participação dos elementos biológicos na necessidade da descri-ção dos fatos anímicos que preten-dia descrever”.

Falava evidentemente não de uma hereditariedade genética tal como é pensada hoje, mas dentro de uma tradição francesa segundo a qual “aquilo que, num certo grupo humano, se inscrevesse como desvio, como tara, como algo maléfico, in-clusive do ponto de vista moral, se transmitiria de geração para geração. Freud também não pensava na he-rança num contexto darwinista, “ti-nha da transmissão uma concepção lamarckista, ou seja, a idéia de que certos elementos importantes para a espécie que pudessem ser assimi-lados em dado momento histórico se transmitiriam de geração a gera-ção”. E Jean-Martin Charcot, o gran-de nome nos estudos da histeria, com quem Freud foi estudar em Paris, queria demonstrar que essa era uma doença neurológica como as outras, cujo elemento principal seriam “as famílias neuropáticas”, enquanto os demais fatores etiológicos não passa-riam de causas incidentais.

Era mais ou menos esse o pano-rama dominante na virada do sécu-lo quando Freud entrou no debate e o retomou propondo que a heredi-tariedade era precondição na pato-gênese das grandes neuroses. “Não poderia prescindir da colaboração de causas específicas, mas a impor-tância da predisposição hereditária estava comprovada, conforme sua visão, pelo fato de que as mesmas causas específicas agindo num indi-víduo saudável não produziam efei-to patológico manifesto, ao passo que numa pessoa predisposta pro-vocavam a emergência da neurose.” Assim, “é necessário compreender a inscrição dessa herança num certo contexto, que é ao mesmo tempo simbólico, histórico e cultural”. Ma-

rio Eduardo Pereira ressaltou que Freud comparou a ação da heredita-riedade “ao multiplicador num cir-cuito elétrico, que exagera o desvio visível da agulha, mas não pode de-terminar a sua direção”. E observou então que um dos pontos centrais do debate entre genética e psicaná-lise, muitas décadas depois, será a questão da posição do sujeito. “A questão é se ele é o responsável por suas ações ou se utilizará a genética como uma espécie de grande álibi biológico em que o sujeito padece de uma herança.”

Nesse ponto Pereira deixou Freud um pouco à margem, para abordar a crise em que se abismou a psiquiatria dos anos 1950 aos 1980. Foram quatro, segundo ele, os fato-res principais dessa crise profunda. Primeiro, dado que a psicanálise passara a ocupar um papel cada vez mais importante na psiquiatria, as concepções sociológicas, comunitá-rias, o papel central da figura do mé-dico começaram a perder poder. Em segundo lugar, a psiquiatria não ti-nha uma boa eficácia terapêutica: os primeiros medicamentos funciona-vam com muitos efeitos colaterais e o tratamento mirava só os sintomas, ainda que tenham permitido uma revolução no campo do tratamento das psicoses e a redução drástica das internações. Também os diagnósti-cos psiquiátricos não eram confiá-

veis, “e vários estudos mostraram que diferentes países e culturas atri-buíam a mesma nomenclatura para fenômenos muito diversos”. E, por fim, a própria definição de doença mental entrou em crise.

Pereira lembrou aí a figura de Kurt Schneider, que na década de 1950 propõe que doença mental é uma contradição em termos, porque se algo é doença, não é mental, idéia que Thomas Szasz, hoje vivo ainda, leva às últimas conseqüências ao ar-gumentar que os critérios de defini-ção de doenças mentais são éticos e sociais e não médicos. “Ou seja, pa-ra ele trata-se de uma má metáfora, mas com conseqüências práticas e políticas muito intensas. Não pode-mos utilizar a noção de doença men-tal impunemente.” É a partir de en-tão que entra em cena a expressão mental disorder. “O termo mental disorder passará a designar um ins-trumental de natureza pragmática, prática. Nós, sociedade civil organi-zada, vamos deliberar que fenôme-nos desejamos ou não que a psiquia-tria aborde com uma visão médica, vamos estabelecer critérios objetivá-veis para identificar esses fenômenos, vamos colocar um rótulo nesse gru-po de critérios e isso vai ser uma di-sorder. Ou seja, não tem qualquer caráter ontológico, não tem qualquer caráter substancial, é um instrumen-to prático para intervir psiquiatrica-

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mente em questões humanas con-cretas”, resume o pesquisador.

Inumeráveis problemas vão marcar essa opção que se fortalece nos anos 1970 e Pereira lembra, a propósito, que o comportamento homossexual foi excluído da lista de transtornos psiquiátricos pelo voto, por pressão da sociedade civil, no famoso Congresso da Associação Psiquiátrica Americana em 1974. Não que a exclusão lhe pareça mal, o exemplo serve para demonstrar a crescente perda de autoridade ou de legitimidade científica do psiquiatra. A palavra desordem também abre espaço para a noção de ordem men-tal que jamais é explicitada. O que se consolida, na visão do pesquisa-dor, é a vitória de Szasz, com as de-sordens mentais ocupando o lugar de uma categoria pragmática, ope-racional e intencionalmente aberta. E se assim é, se não remete a ne-nhum elemento propriamente on-tológico substancial de doença, por que o médico se ocuparia disso? Por que se ocuparia de categorias ético-morais? “Então, nesse sentido a psi-quiatria não seria uma especialidade médica e biológica, mas seria sim-plesmente uma instrumentalização biológica de intervenção de práticas políticas.” Ora, uma vez constatada essa contradição, “ela causa um in-cômodo no campo psiquiátrico que muitos psiquiatras respondem de uma maneira muito apropriada: is-so que se descobre na psiquiatria simplesmente é a causa secreta de toda a medicina. Só que na psiquia-tria aparece antes e mais claro”.

Em meio ao enfraquecimento da psiquiatria, a genética psiquiátrica é vista como “uma espécie do farol que promete o repatriamento daquelas instâncias que foram delegadas ao conceito de disorder, ao campo da medicina dura fundada em entida-des autônomas de natureza biológi-ca”. Entretanto, por mais promessas que venham dessa fundamentação genética, o problema retorna ao ponto de partida, diz Pereira, depois de relatar uma série de histórias hi-potéticas em que está sempre em jogo a tomada de posição de uma pessoa frente às circunstâncias que a desafiam, para o qual o experimento genético em nada contribui.

Sidarta Ribeiro em sua fala reto-mou novos aspectos da vida de

Freud, sua infância, sua relação com a família, antes de observar que o estado-da-arte em neurociência quando Freud se formou médico, para quem estava interessado no cé-rebro e no comportamento, era a anatomia. A fisiologia estava em seus primórdios, “o que já existia bastante no século XIX era a prática de matar um animal, retirar o seu cérebro, fixar aquele tecido, cortar bem fino e olhar no microscópio. E foi o que Freud fez por muitos anos E nesse sentido ele passou muito perto de grandes descobertas da anatomia que outros cientistas fize-ram, da descoberta do neurônio, por exemplo, em 1878, mas ele estava mais interessado no tecido vivo, não no tecido morto, daí por que se orienta para estudos de fisiologia”.

Expulsão e reabsorçãoSidarta Ribeiro se refere também ao estágio em Paris como o grande ponto de virada de Freud, de seu retorno a Viena, quando ela já cons-tata que “existem de fato disfunções psicológicas que são de origem or-gânica”, mas mira outras enfermi-dades que, embora tenham sinto-mas muito graves, ele crê que pode-rá resolver pela palavra ou pelo comportamento. Faz referência às várias fases da evolução da obra teó rica e clínica de Freud, ao gran-de marco que é A interpretação dos sonhos. “O que acontece nesse mo-mento”, diz,“ é que ele de fato se des-cola da neurociência de seu tempo, da neuroanatomia, da fisiologia, e cria uma série de conceitos novos, uma teoria nova, que lhe permite falar de fenômenos que a neurociên-cia de seu tempo não permitia”.

Ribeiro detalhou para o público, com farta citação de autores, muitas passagens da vida de Freud, até sua morte no começo da guerra em 1939, para em seguida falar de duas descobertas que no pós-guerra fo-ram vistas como fatos científicos que contribuíam para fragilizar a teoria freudiana, mas que, em sua visão, décadas depois, na verdade contribuíram para lhe dar mais su-porte científico: a descoberta em 1953 do sono REM em bebês (da sigla rapid eyes movements), acom-panhada da constatação de que nes-sa fase do sono os adultos sonhavam, e a descoberta, em 1958, das drogas

antipsicóticas, a partir do haloperi-dol, um antagonista do receptor do-paminérgico do tipo 2. Vários ou-tros exemplos ligados à evolução do conhecimento neurocientífico que investem contra Freud foram exa-minados pelo pesquisador, até che-gar aos experimentos que já nos fi-nal dos anos 1990 e neste começo de século XXI, em seu entendimento, revertem esse quadro.

Além do experimento já citado que serviria de apoio à idéia de que grande parte do processamento mental é inconsciente, Sidarta Ri-beiro detalhou várias outras expe-riências que se relacionam a quatro outras assertivas da teoria freudia-na. E resumiu no final a relação entre psicanálise e neurociência nestas palavras:

“A primeira frase: ‘Grande parte do processamento mental é incons-ciente’. Não preciso nem reformular essa frase, é um fato que pode ser verificado empiricamente, com ex-perimentos, separando sujeito de objeto. Próxima: ‘Pensamentos in-desejados podem ser reprimidos e se tornar inconscientes’. Vamos dizer que o córtex pré-frontal controla a supressão intencional de memórias por meio da desativação do hipo-campo e da amídala. Próxima: ‘So-nhos contêm restos diurnos’. Pode-mos dizer que os sonhos reverberam memórias em nível eletrofisiológico e molecular. Mais uma: ‘Alucinações psicóticas são semelhantes a sonhos’. Vamos dizer que a vigília, em um modelo animal de psicose, é eletro-fisiologicamente similar ao sono REM por causa de um aumento de dopamina. Mais uma: ‘Sonhos satis-fazem desejos e antidesejos’. Que tal ‘os sonhos concatenam fragmentos de memórias de forma a simular ex-pectativas futuras de recompensa e punição mediadas por dopamina’? Mais uma: ‘Sonhos são conglomera-dos de formações psíquicas’. Isso é muito belle-époque. Que tal ‘os so-nhos são conglomerados de memó-rias’? E mais uma: ‘Sonhos são o caminho real para o inconsciente’. Que tal ‘os sonhos permitem acessar o banco de memórias’?”. Nessa con-cepção, ele concluiu, “o inconscien-te tem uma definição biológica clara, ele é a coleção de todas as memórias que temos e de todas as suas combi-nações possíveis”. ■

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internetwww.scielo.org

Notícias

divulgação científica para o público leigo. Consideram essa transformação como recodifi cação, reformulação, formulação de um novo discurso ou, no caso específi co do jornalismo cien-tífi co, textualização jornalística do discurso científi co. Com o apoio da linha francesa da Análise do Discurso, o trabalho “Do científi co ao jornalístico: análise comparativa de discursos sobre saúde”, de Rodrigo Bastos Cunha, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), faz uma análise comparativa de dois discursos jornalísticos envolvendo questões de saúde pública, da seção de notícias da revista eletrônica ComCiência, em relação aos respectivos discursos científi cos que serviram de fonte para elaboração das notícias.

Interface (Botucatu) – v. 12 – nº 24 – Botucatu – jan./mar. 2008

■ Sa ú d e m e n t a l

Lima Barreto Escritor fervoroso, suburbano, negro, aguerrido, irônico, com-bativo, maldito e incompreendido por seus contemporâneos, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) desceu ao infer-no, conhecendo o desprezo de críticos, o fracasso como escritor e a indiferença familiar por sua vocação literária. Inquieto na dor, ríspido com os hipócritas, teve diante de si a tragédia da loucura, do alcoolismo e do preconceito. Autor de Recordações do escrivão Isaías Cami-nha e o Triste fi m de Policarpo Quares-ma, afogou-se em bebedeiras e em profunda depressão numa época em que assumir a condição de negro era um ato de coragem. A sua expressão consciente acerca dos médicos, dos loucos e da loucura constitui o ponto inicial deste artigo, baseado na experiên-cia de vida do escritor no Hospício Na-cional e no levantamento de trechos expressivos de sua produção literária. Tais temas orientam-se pela construção de uma estética da existência, cuja vida em questão é analisada como obra de arte, de acordo com o artigo “Hospício de douto-res”, de Marco Antonio Arantes, do Centro Universitário Moura La cerda, Ribeirão Preto.

História, Ciência, Saúde-Manguinhos –v. 15 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./mar. 2008

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■ Ps i c o b i o l o g i a

Dependência de droga e religião

O estudo “Intervenção religiosa na recuperação de dependentes de drogas”, de Zila van der Meer Sanchez e Solange Aparecida Nappo, da Universidade Federal de São Paulo, analisa interven-ções religiosas para recuperação de dependentes de drogas. Foi

feita pesquisa qualitativa em São Paulo (2004 e 2005), com 85 entrevistados ex-usuários de drogas que haviam utilizado recursos religiosos não-médicos para tratar a dependência e abstinentes há pelo me nos 6 meses. Os grupos analisados eram católicos, evangélicos e espíritas. As entrevistas continham questões sobre dados sociodemográfi cos, religiosidade do entrevistado, história do consumo de drogas, tratamentos médicos para dependência, tratamento religioso e

prevenção ao consumo pela religião. Os evangélicos foram os que mais utilizaram a religião como forma exclusiva de trata-mento, apresentando repulsa ao papel do médico e ao tratamento farmacológico. Os espíritas buscaram mais apoio terapêutico à dependência de álcool, simultaneamente ao tratamento conven-cional, justifi cado pelo maior poder aquisitivo. E os católicos utilizaram mais a terapêutica religiosa exclusiva, mas relataram menos repulsa ao tratamento médico. A importância dada à oração como método ansiolítico era comum entre os três tratamentos. A confi ssão e o perdão – por meio da conversão ou das penitências, respectivamente para evangélicos e católicos – exercem apelo à reestruturação da vida e aumento da auto-estima. Segundo os entrevistados, o que os manteve na abstinência do consumo de drogas foi mais do que a fé religiosa. Contribuíram para isso o suporte, a pressão positiva e o acolhimento recebido no grupo, e a oferta de reestruturação da vida com o apoio dos líderes religiosos.

Revista de Saúde Pública – v. 42 – nº 2 – São Paulo – abr. 2008

■ C o m u n i c a ç ã o

Transformação da linguagem

Jornalistas, cientistas e analistas do discurso concordam que há uma transformação da linguagem especializada do discurso científi co para a linguagem não especializada no processo de

> O l i n k para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no s i t e da P e s q u i s a FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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84 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

Um a r o u p a r o b ó t i c a c a p a z d e a u m e n t a r e m

20 vezes a força de quem a veste foi mostra-

da recentemente pela norte-americana

R aytheon, empresa com atuação no setor de

defesa e de radares. D esenhada para militares do Exército dos Estados

U nidos, a armadura batizada de Exoskeleton, como os esqueletos ex-

ternos existentes nos invertebrados, “amplifi ca”, quase instantanea-

mente, os movimentos e a resistência de seu usuário, permitindo que

ele carregue um homem nas costas ou levante um objeto de 90 quilos

várias vezes sem fi car cansado. E o que é melhor: sem perda de agili-

dade. O traje futurístico começou a ser projetado no ano 2000 e foi

desenvolvido com uma combinação de sensores, controladores e atua-

dores. E le tem ainda uma série de sensores que são responsáveis pelos

movimentos de cada uma das articulações do corpo humano. Para o

cientista Stephen Jacobsen, que lidera o projeto, a armadura é uma

combinação de arte, ciência, engenharia e design. N em a R aytheon nem

o Exército norte-americano anunciaram quando o traje estará pronto

para ser usado em combate.

AR M AD UR A IM B AT Í V EL

formada por fi lmes poliméricos fi nos que funcionam melhor como cobertura ou na substituição do náfi on, membrana polimérica criada pela empresa DuPont, para permitir a passagem de prótons de hidrogênio no interior da célula. Segundo os pesquisadores liderados por Paula Hammond, em comunicado do MIT, o novo material será útil para equipamentos do tipo célula a combustível de metanol direto (DMFC na sigla em inglês) em que o hidrogênio é absorvido pela célula diretamente desse tipo

de álcool, alternativa prevista para abastecer baterias de equipamentos eletrônicos num futuro próximo. O problema é que o metanol é líquido e o náfi on torna-se permeável, provocando perda de combustível e baixo rendimento energético. Com a cobertura do náfi on pelo novo produto, o rendimento de energia elétrica cresce. As pesquisas foram fi nanciadas pela DuPont e pela Fundação Nacional de Ciência (NSF).

> Investimento em farmácia

Colocar a Europa na vanguarda da inovação farmacêutica é o objetivo da Iniciativa de Medicamentos Inovadores (IMI), coordenada pela Comissão Européia e pela Federação Européia de Indústrias e Associações Farmacêuticas. Foram estabelecidas como prioridades científi cas na primeira chamada de propostas o reforço

> M embrana energética

Engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) desenvolveram um novo tipo de dispositivo para células a combustível capaz de melhorar o rendimento desses equipamentos em 50%. Semelhantes a baterias, as células transformam hidrogênio em energia elétrica com ampla vantagem ambiental sobre outras alternativas porque apenas emitem vapor d’água. O novo material é um tipo de membrana

Esqueletoexterno permite

erguer objetos

pesadoscom

agilidade

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L IN H A D E P R OD U ÇÃO M U N D O>>

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 8 5

funcionais permanecem como um grande desafi o a ser superado. Para criar a nova tecnologia, os pesquisadores de Harvard recorreram a uma técnica conhecida como spin-on glass (SOG), já empregada na fabricação de chips, e à fotolitografi a, método que consiste na gravação de informações em um determinado substrato com

do acompanhamento dos benefícios e riscos dos medicamentos, investigação sobre células pancreáticas, ferramentas novas para o desenvolvimento de tratamentos para transtornos psiquiátricos e outros temas. Durante os próximos 5 anos, cada uma das instituições coordenadoras destinará € 1 bilhão para a iniciativa. A indústria farmacêutica européia responde por 35% da produção mundial, mas apenas três de cada dez medicamentos novos são desenvolvidos no continente. A IMI é a quarta iniciativa tecnológica entre países europeus. As outras tratam de sistemas informáticos (Artemis), tecnologias nanoeletrônicas (Eniac) e aeronáutica e transporte aéreo (Clean Sky).

> Nanofi os em chips

Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em colaboração com colegas das universidades alemãs de Jena, Gottingen e Bremen desenvolveram uma técnica que poderá ser utilizada na fabricação de circuitos integrados eletrônicos e fotônicos com

nanofi os. Embora os pesquisadores consigam sintetizar nanofi os semicondutores – estruturas com o diâmetro aproximado de 1 milésimo da espessura de um fi o de cabelo – em grande quantidade recorrendo a métodos químicos economicamente viáveis, estratégias confi áveis para montá-los em circuitos integrados

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J á f a z a l g u m t e m p o

que os pesquisado-

res sabem como pro-

duzir nanofios, es-

truturas altamente

resistentes e fi nas,

medindo entre 3 e 5

nanômetros de diâ-

metro, que podem

ser usadas em dife-

rentes dispositivos.

Mas uma novidade,

divulgada no início

de maio pela Univer-

sidade de W iscon-

sin-Madison, nos Estados Unidos, causou surpresa: um

nanofi o espiralado com a forma de um pinheiro. O s autores

da invenção foram o professor Song Jin e seu aluno Matthew

Bierman. O s dois desenvolveram a “nanoárvore” fazendo

uma pequena modifi cação na síntese da técnica conhecida

como deposição química a vapor (ou CVD, sigla em inglês

de chemical vapor deposition). Hin e Bierman acreditam

que o novo método de crescimento de nanofi os inventado

por eles dará aos pesquisadores de vários setores meios

mais efi cazes de criar novos nanomateriais para aplicações

como circuitos integrados de alto desempenho, biossenso-

res, células solares, LEDs e lasers.

uso de luz. Para demonstrar que a nova tecnologia funciona em larga escala, os pesquisadores fabricaram nanoLEDs ultravioleta colocando nanofi os de óxido de zinco em uma placa de silício.

> Computador para crianças

O laptop XO da organização não-governamental One Laptop Per Child (OLPC, Um laptop por criança), criada pelo pesquisador Nicholas Negroponte, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), tem uma nova versão. É o XO-2, que deverá ser lançado em 2010 novamente para o sistema educacional de países em desenvolvimento. Ele terá metade do tamanho do XO, telas sensíveis ao toque e poderá ser usado no formato de laptop ou como um livro. Deverá custar US$ 75, menos que os anunciados US$ 100 da primeira versão que já atinge os US$ 188. O novo modelo terá o sistema operacional Windows depois que a OLPC teve difi culdades em distribuir para alguns governos o computador com o sistema Linux (SciDev).

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Nanoárvore: estruturas resistentes e fi nas

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Um t e l e f o n e p ú b l i c o c o m t e c -

nologia GSM (sistema global

para comunicações móveis),

para uso em veículos de trans-

porte coletivo, está pronto pa-

ra ser lançado comercialmente.

O Telo, sigla de Telefone Públi-

co Veicular, foi desenvolvido pe-

la PV Inova, empresa incu bada

no Instituto Gênesis, da Ponti-

fícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro. As ligações são

feitas com um cartão telefônico

comum. “Uma das vantagens

do aparelho em relação ao ce-

lular é que ele possui uma tec-

nologia de supressão de ruídos

que assegura a qualidade da

ligação”, diz Leonardo Sam-

paio, diretor de marketing e um

dos três sócios da empresa. Pa-

ra chegar ao produto fi nal, cer-

tifi cado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), foram 4 anos de pesquisas.

“Hoje no Brasil são cerca de 1 bilhão de passageiros transportados todos os meses, dos quais

900 milhões usam ônibus urbanos”, diz Sampaio. Muitos desses passageiros têm celular pré-

pago, mas a maioria usa os orelhões para fazer ligações, por causa do preço da tarifa. Para

testar a aprovação do Telo pelo público, desde fevereiro de 2007 o aparelho está instalado

em 20 ônibus urbanos da empresa Carris, de Porto Alegre, em parceria com a Brasil Telecom.

Agora a PV Inova espera colocar o produto no mercado até o fi nal deste ano.

> Guia prático para tratar águas

Diversos processos de tratamento de águas são abordados no livro Manual prático de tratamento de

> Capital semente na biotecnologia

Combater pragas agrícolas com a substituição de agrotóxicos por produtos biotecnológicos, que não causam danos ao ambiente e às pessoas, é a proposta de empresa Rizofl ora, criada a partir de pesquisas coordenadas pelo professor Leandro Freitas, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. A empresa acaba de receber R$ 1 milhão do Criatec, um fundo de capital semente, para empresas

Telefone públicoinstalado em ônibus da capital gaúcha

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iniciantes, apoiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com esse recurso, a empresa vai construir a biofábrica. A novidade elaborada no Laboratório de Controle de Fitonematóides da UFV é um bionematicida que contém um fungo mortal para alguns tipos de vermes chamados de nematóides. O produto será útil e poderá tornar mais barato o combate a essa praga em culturas como soja, banana, café e tomate. A Rizofl ora é a primeira empresa apoiada

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pelo fundo que possui em carteira R$ 100 milhões, sendo R$ 80 milhões do próprio banco e R$ 20 milhões dos fundos privados Antera Gestão de Recursos e Instituto de Inovação.

LIN H A D E P ROD U Ç Ã O B RA SIL>>

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> Polímeros efi cientes

Um material eletroluminescente com maior efi ciência de iluminação e economia de energia foi desenvolvido no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como resultado da tese de doutorado de Rafael Di Falco Cossiello. “Fizemos uma estratégia para sintetizar um polímero com algumas características bem defi nidas e misturá-lo a um material eletroluminescente, com ajustes na proporção dessa mistura”, relata a professora Teresa Dib Zambon Atvars, do Instituto de Química e pró-reitora de Pós-graduação da universidade, orientadora da tese. “Conseguimos aumentar em quatro vezes a efi ciência de emissão e diminuir em quatro vezes a tensão de energia necessária para o dispositivo acender”, completa. Com isso há uma redução no consumo energético sem perda de efi ciência de iluminação do dispositivo. As aplicações desse tipo de polímero já permitem a obtenção de telas mais fi nas, em alguns casos fl exíveis e com melhor qualidade de imagem e luminosidade, que poderão ser usadas na fabricação

A p r i m e i r a e t a p a d e f a -

bricação em escala pré-

industrial de módulos

fotovoltaicos com tec-

nologia nacional, para

transformação da ener-

gia solar em elétrica, foi

concluída na planta pi-

loto instalada no Parque

Científi co e Tecnológico

da Pontifícia Universida-

de Católica do Rio Gran-

de do Sul, em Porto Ale-

gre. No mês de maio, fi -

cou pronto o primeiro

módulo inteiramente

produzido no Núcleo Tecnológi-

co de Energia Solar, como resul-

tado do projeto iniciado em

2005, coordenado pelos profes-

sores Izete Zanesco e Adriano

Moehlecke (leia mais nas edi-

ções 85 e 110 da revista Pesqui-

sa FAPESP). “O alto valor de

radiação solar e as importantes

reservas de quartzo em territó-

rio brasileiro, usado para fabri-

car a lâmina de silício que com-

põe as células solares, são dois

fatores fundamentais para a

produção de módulos fotovol-

taicos no Brasil”, diz Izete.

águas residuárias, de Edson José de Arruda Leme, especialista em recursos hídricos pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, publicado pela Editora da Universidade Federal de São Carlos. Normas e procedimentos para o dimensionamento e a elaboração de projetos de unidades de tratamento estão contemplados no livro por meio de exercícios práticos. O manual é dividido em duas partes. A primeira, constituída por três capítulos, aborda conceitos sobre a água e o seu uso, um resumo da teoria e a situação atual do tratamento dos esgotos domésticos no Brasil. A segunda parte consiste de 12 capítulos, com 75 exercícios selecionados sobre tratamento de águas residuárias, com plantas, gráfi cos e outros instrumentos necessários para a realização de projetos.

de telas de televisão, computador, celulares e até para o papel eletrônico. Ele também poderá ser utilizado em sensores ambientais, que detectam, por exemplo, vapor de ácidos. “A emissão de luz se modifi ca pela presença de substâncias em determinados ambientes”, explica Teresa. O trabalho, publicado no mês de maio na revista Synthetic Metals, foi a capa da publicação.

> Empresa na lista mundial

Mais uma vez, a empresa de software CI&T, de Campinas, está entre as dez melhores prestadoras de serviços de outsourcing nas áreas de mídia e entretenimento do mundo, segundo a revista norte-americana Fortune. A empresa, também escolhida em 2007, é a única da América Latina contemplada na lista The 2008 Global Outsourcing 100 da revista que apresenta as cem melhores companhias mundiais em serviços de tecnologia da informação, setor que traduz a palavra outsourcing. A empresa com 10 anos de existência cresceu, em média, 40% ao ano e a participação atual nas exportações representa 30% dos negócios. Com escritórios nos Estados Unidos e na Inglaterra, ela mantém no Brasil parcerias com várias universidades e institutos de pesquisa. Em fevereiro deste ano, junto com a empresa DigitalAssets, assinou com a FAPESP um convênio de cooperação científi ca e tecnológica no total de R$ 3,6 milhões para fi nanciamento de projetos.

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Módulo com células solares em Porto Alegre

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Lentes em tratamento anti-refl exo na O pto Eletrônica

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PESQUISA FAPESP 148 ■ JUNHO DE 2008 ■ 8 9

ESPAÇ O

Uma câmera feita no Brasil para fotografar a Terra vai equipar o satélite sino-brasileiro Cbers-3

O lançamento do próximo Satélite Si-no-Brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers-3), previsto para abril de 2010, será um momento importante não apenas para o programa espacial brasileiro – já que este é o quarto artefato da série e boa parte dele está sendo desenvolvida

no país –, mas também para a Opto Eletrônica, empresa com sede em São Carlos, no interior paulista, responsável pelo projeto e fabricação de uma das câmeras do satélite capaz de fotografar a crosta terrestre. O aparelho, batizado de câmera multiespectral MUX, representa um importante salto tecnológico para a indústria nacional, porque é o primeiro do gênero a ser inteiramente feito no país. As imagens geradas dos territórios do Brasil e da China serão destinadas ao monitoramento ambiental e ao gerenciamento de recursos natu-rais. Para conseguir tal feito, a imagem terá uma resolução da superfície terrestre de 20 metros de lado, característica responsável pela nitidez, num parâmetro que não é pouca coisa, levando-se em conta que o Cbers-3 será colocado em órbita a 800 quilômetros de altitude. Isso equivale a enxergar um trem na superfície da Terra ou uma mosca a cerca de 400 metros. A faixa de largura imageada, que é a extensão do território visto em uma linha na imagem, é de120 quilômetros de largura.

“A fabricação da MUX pela Opto atende à diretriz do programa espacial brasileiro de fomen-tar o desenvolvimento de tecnologia de ponta dentro da indústria do país, capacitando nossas empresas para participar de forma competitiva no mercado espacial internacional”, ressalta o engenheiro Mario Selingardi, responsável técnico pelo projeto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Além disso, a fabricação desse subsistema do Cbers-3 por um parceiro nacional auxilia o país a obter independência tecnológica

T E C N OLOG IA>

Yuri Vasconcelos

em áreas altamente sensíveis do ponto de vista estratégico. A fa-se atual do desenvolvimento da câmera é a de realização de testes funcionais no modelo de enge-nharia da MUX. Esse modelo é um protótipo que vem antes do modelo de qualifi cação e do equi-pamento que efetivamente vai voar. O modelo de engenharia deve seguir até o mês de julho para a China, onde vai passar por testes elétricos na integração com outros sistemas. Nos expe-rimentos realizados aqui a câ-mera é submetida a ensaios destinados a confi rmar se supor-ta as cargas de lançamento e as condições de temperatura e vá-cuo no espaço, além de verifi car se ela atende aos requisitos de envelhecimento e compatibili-

Câmera MUX: 115 quilos e 1,10 metro de comprimentoFOT

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dade eletromagnética mantendo seu desempenho funcional. Se-gundo o Inpe, os ensaios, feitos no Laboratório de Integração e Testes do instituto, mostraram que não houve degradação do desempenho óptico do equipa-mento. “A câmera tem passado com sucesso pelos testes”, infor-ma Selingardi, do Inpe.

A realização desses experi-mentos é um importante passo na longa caminhada iniciada em dezembro de 2004, quando a Opto venceu a licitação in-ternacional para fabricação da câmera. A MUX começou a ser projetada já no mês seguinte e a primeira etapa do trabalho (a conclusão do projeto preliminar) fi cou pronta no fi nal daquele ano. Para ter idéia da complexidade

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90 ■ JUNHO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 148

do projeto preliminar, basta dizer que ele foi composto por mais de 450 docu-mentos e 16 mil páginas. “Uma grande difi culdade que enfrentamos foi trans-formar essa montanha de relatórios e análises em um projeto de equipamento que funcionasse”, conta o engenheiro Mário Stefani, diretor da Opto que coordena o projeto da MUX. “As aná-lises eram minuciosas, pois tinham que prever com exatidão o funcionamento da câmera e se ela suportaria o tempo de vida necessário no ambiente hostil do espaço”, diz ele.

Pr o j e t o r o b u s t o – A câmera lembra muito pouco as congêneres de uso pes-soal e mesmo profi ssional. Ela pesa na-da menos que 115 quilos e mede 1,10 metro de comprimento por 80 centíme-tros (cm) de largura e 55 cm de altura. É um artefato robusto e altamente so-fi sticado e está dividido em três módu-los. A câ mera propriamente dita, conhe-cida pela sigla RBNA, é composta pelas lentes, plano focal, sistema térmico, ra-diadores, aquecedores e blindagens, entre outras peças. O segmento RBNB responde pelo controle de temperatura e do sistema de ajuste focal, enquanto o RBNC processa e acondiciona as imagens para envio à Terra. Toda estrutura ópti-ca e mecânica da câmera assim como os equipamentos de teste estão sendo pro-jetados e desenvolvidos pela equipe de

engenheiros da Opto. O desenho eletrô-nico também foi feito pela empresa, embora os componentes sejam impor-tados. Já o sensor de imagem da câme-ra e os chips eletrônicos qualificados para uso espacial são fornecidos pelo Inpe. “No Cbers-2 (em órbita desde setembro de 2007) havia uma câmera, chamada WFI (sigla em inglês de ima-geador de amplo campo de visada), cuja eletrônica foi desenvolvida no país, mas seu módulo óptico, plano focal e ele-trônica de proximidade foram impor-tados dos Estados Unidos. Hoje a Opto também integra, junto com a Equatorial Sistemas, de São José dos Campos, o consórcio responsável por esta câmera na sua versão ampliada para o Cbers-3. Somos a empresa responsável pelo pro-jeto e construção do bloco optoeletrô-nico”, informa Stefani. Além da MUX e da WFI, outras duas câmeras farão par-te da carga útil do Cbers-3: a PAN, com banda pancromática, e a IRS, sigla em inglês de imageador de varredura de média resolução, que estão sendo feitas por empresas chinesas. A China também foi responsável pela fabricação da câ-mera MUX que integrou o Cbers-2B, lançado em setembro do ano passado. Há, no entanto, uma diferença entre esse equipamento e o que está sendo produzido agora na Opto. A câmera brasileira “enxerga” em quatro cores,

registrando imagens no azul, verde, ver-melho e infravermelho, enquanto a chinesa não possuía a banda espectral azul. “A inclusão da banda azul, simul-tânea às outras três originalmente pre-vistas, foi polêmica e custosa. Sem falar que a com plexidade do projeto óptico aumentou muito, exigindo maior pre-cisão e contro le de fabricação”, afi rma Stefani. Tamanho esforço tem justifi ca-tiva. A banda azul permite a captação de imagens mais bem defi nidas da cober-tura vegetal e dos recursos hídricos, colaborando para um melhor acompa-nhamento da produção agrícola. Quan-do estiver operando, a MUX irá gerar imagens que poderão ser usadas no controle e monitoramento hidrológico, fl orestal, agrícola, perimetral, urbano e mineral. Es ses da dos ajudarão na iden-tifi cação de queimadas, desmatamento ou ocupação ilegal do solo e no planeja-mento sustentável.

Em razão do ineditismo da empreitada e da complexidade da MUX, vários desa-fi os precisaram – e ainda precisam – ser vencidos para a fabricação do subsistema. Um dos principais diz respeito ao elevado grau de precisão óptica da câmera, que exige que as lentes sejam construídas com a exatidão de décimos de milésimos de milímetro. A montagem das lentes, além de obedecer a um rígido posicionamento, precisa ser confi ável o sufi ciente para

Conjuntos de lentes especiais produzidas em São Carlos

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suportar as cargas de lançamento pelo foguete, em que os níveis de vibração chegam a 56 G (ou 560 m/s2). O sensor de imagem, composto por cerca de 6 mil minúsculas placas quadradas com cerca de 13 milésimos de milímetro de cada lado, também exigiu muita perícia dos engenheiros da empresa. Um grão de poeira que se deposite sobre o sensor pode fazer “sombra” ou “cegar” este elemento de imagem. Por isso, a montagem e o teste da câmera precisam ser feitos em ambiente sem poeira. “A Opto construiu 450 metros quadrados de salas limpas, destinadas à manipulação dos sistemas ópticos de precisão. Nelas, a contagem de partículas é menor que mil por metro cúbico, e as medidas delas menores que 1 mícron”, diz Stefani.

L e i r í g i d a – Outra difi culdade superada foi o boicote de empresas norte-ame-ricanas a algumas peças e componentes usados na câmera, por conta da lei Itar (sigla de International Traffi c in Arms Regulation ou normas sobre o tráfego internacional de armas). Essa norma determina explicitamente, entre outras propostas, que satélites ou câmeras de sensoriamento remoto, mesmo que pa-ra emprego civil, atendam aos interesses estratégicos e de segurança dos Es tados Unidos. Caso um programa se ja consi-derado contrário a esses inte re s ses, so-luções ou componentes americanos são impedidos por lei de serem disponibi-lizados. A lei Itar é rígida, podendo levar a multas milionárias e prisão para os engenheiros envolvidos. “Uma série de componentes críticos, tidos como essen-ciais para uso no Cbers, foram subita-mente impedidos de serem comerciali-zados. No caso da MUX, tivemos vários casos de embargo. Um deles foi um con-versor de voltagem para uso espacial. Após o produto ser encomendado, pago e providenciado o embarque, ele não pôde ser enviado ao Brasil e o fornecedor acabou devolvendo o dinheiro. A parte afetada do projeto teve que ser inteira-mente refeita”, relata o físico Jarbas Caia-do de Castro Neto, presidente da Opto. “Na época, a decisão causou um grande problema, mas hoje entendemos que a lei Itar é uma oportunidade para desen-volvermos soluções próprias e novas abordagens do projeto.”

Uma equipe formada por 45 pes soas, entre físicos, engenheiros mecânicos,

eletrônicos, de materiais e de produção e técnicos ópticos, eletrônicos e mecâ-nicos, participa da construção da MUX. Ao final dos testes com o modelo de engenharia, construído com componen-tes similares e mais baratos, será inicia-da uma nova fase do projeto, que con-siste na fabricação do modelo de quali-fi cação. Trata-se do mesmo projeto, mas já com materiais e componentes próprios para uso espacial. Esse novo modelo, previsto para fi car pronto em julho de 2008, deve passar por uma bateria de ensaios e ser considerado apto a subir e operar no espaço. Após ser aprovado, o modelo de qualifi cação fi ca “condenado”, porque seus componentes terão sido submetidos a severas cargas mecânicas, térmicas e eletrônicas, não possuindo mais qualidade e confi abilidade para ir ao espaço. A Opto, por fi m, estará habi-litada para construir o modelo de vôo que será integrado ao satélite. “Ele de-verá ser fabricado exatamente com os mesmos processos, ferramental e seqüên-cia de operação utilizados na fabricação do modelo de qualifi cação”, explica Se-lingardi, do Inpe. Três modelos de vôo serão fabricados, um para o Cbers-3, outro para o Cbers-4, com lançamento previsto em 2013, e um terceiro de re-serva. O contrato do Inpe com a Opto é de R$ 75 milhões.

A fabricação da MUX é o principal projeto da Divisão Aeroespacial da Opto,

criada em 1994 com o objetivo de fazer pesquisa e desenvolvimento de produ-tos e prestar consultoria optoeletrôni-ca e sobre lasers na área aeroespacial. No total, a empresa faturou R$ 45 mi-lhões em 2007. “Nossa tecnologia se baseia no tripé óptica, mecânica fi na e eletrônica, o que nos permite desenvol-ver produtos para as áreas oftálmica, de fi lmes fi nos, aeroespacial e defesa”, destaca Castro. A empresa fabrica pro-dutos co mo retinógrafos, lasers cirúr-gicos para retina, fi lmes fi nos anti-re-fl exo para uso oftálmico e odontológi-co, microscópicos cirúrgicos, medidores de distância a laser, além de sistemas para a área de defesa. “Temos milhares de clientes nas áreas de fi lmes fi nos, em sua maioria fabricantes e lojas de ócu-los. Com o mesmo produto, dentro do segmento para refl etores para uso odon-tológico, chegamos a ter quase 50% do mercado mundial, porém, devido à concorrência chinesa, nossa participa-ção sofreu acentuada queda nos últimos anos”, diz o presidente da Opto. Na área de equipamentos médicos, a Opto es tá presente em 64 países, com fi liais ou por intermédio de distribuidores. A empresa, fundada por cinco amigos em 1985, se baseia na qualifi cação de seu corpo funcional. Dos 345 empregados, 42 possuem mestrado, doutorado ou título de MBA e os demais são gradua-dos ou com formação técnica. ■

Uma das lentes que compõem o protótipo da câmera MUX

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IN FO R M Á T IC A

So f t w a r e s l i v r e s g a n h a m f o r ç a n a s e m p r e s a s e t a m b é m e n t r e p e s q u i s a d o r e s

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Estudar e alterar o código-fonte de um software é um trabalho que seduz cada vez mais os usuários de sistemas informatizados, tanto no meio científi co como nas em-presas. Essa tendência acaba de ser confi rmada durante o Fórum Internacional do Software Livre (Fisl) 9.0, que aconteceu em abril em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Reunindo mais de 7,4 mil pessoas de 21 países, o

encontro atraiu empresários, profi ssionais da área, estudantes e professores. A atração dos softwares livres é mesmo o código-fonte, que traz as instruções para o funcionamento do progra-ma, aberto e passível de modifi cações e adaptações, enquanto os chamados programas proprietários têm o código fechado e prevêem cobrança de licença pelo uso. Já longe de fi car restrito a pequenos grupos, muitas empresas, como mostrou o evento, também revelaram grande interesse nesse sistema como Google, Telefônica, Intel, Sun Microsystems e Yahoo Brasil.

Não há contradição em usar o software livre para fazer dinheiro, dizem os empresários que circularam pelos stands do Fisl. Para o diretor sênior de estratégias para governo da Sun Microsystems nas Américas, Luiz Fernando Maluf, a opção pelos sistemas abertos é um modelo de negócio. “Posso provar matematicamente que funciona”, diz, dando como exemplo o programa aberto Java, criado pela Sun e que conta hoje com

cerca de 30 milhões de desenvolvedores espalhados pelo mundo. A seu ver, a Sun não atingiria o patamar atual – a companhia conquistou o terceiro lugar no mercado global de servidores – se tivesse optado por obter lucro em cima de registro de patentes. Ele explica que o envolvimento de tanta gente com o programa reduz o custo do desenvolvimento e acelera a chegada de um produto ao mercado.

O modelo em questão, baseado na venda de serviços e não mais em patentes, explica o trabalho de sedução feito por grandes empresas na busca por talentos principalmente no Brasil. A Google, por exemplo, criou o Google Summer of Code, um programa de estágio internacional que reúne cerca de 1.500 estudantes, de graduação e pós-graduação, e 2 mil orientadores de quase cem países para trabalhar em projetos envolvendo código livre e aberto. Os projetos selecionados pela Google são sugeridos por empresas ou entidades do mundo inteiro. Na última competição, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi a segunda universidade em inscrições do mundo, com uma das melhores taxas de aceitação. Dos 29 candidatos da universidade, 10 tiveram seus

C ó digo aberto

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InVesalius: programa livre para mostrar imagens médicas em formato tridimensional f

lineares quanto nas angulares, quando comparadas ao padrão e nem ao Vitrea 3.8.1.1”, conta Marcelo Sales, pesquisador do Labi3D da Radiologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP). Ambos permitem que cirurgiões realizem planejamentos mais detalhados, facilitando o diagnóstico de casos complexos. O InVesalius pode ser baixado no portal do Software Público Brasileiro (www.softwarepublico.gov.br). Além do uso na saúde humana, o código aberto dele permitiu que fosse adaptado para outras áreas, como ve-terinária, arqueologia e paleontologia. “A tendência é que, com o tempo, a qualidade do InVesalius, a exemplo de outros softwares livres, torne-se superior à dos softwares proprietários, porque a comunidade de colaboradores aumenta e constantemente aprimora o código”, diz a engenheira de compu-tação Tatiana Martins, programadora do InVesalius.

Os softwares livres não são desprovi-dos de problemas. “Alguns deles podem desanimar o usuário porque ainda têm interface gráfi ca pobre, o que difi culta a interação do usuário com o programa”, lembra Wellington Martins, professor do Departamento de Computação da Universidade Católica de Goiás, que falou sobre o projeto BioPerl, utiliza-do para a implementação das fases de processamento em projetos Genoma. Martins considera que os softwares livres se revelam estratégicos e que, no caso dos estudos genômicos, vários deles já são considerados padrões na área. ■

uma transação durava em média 8 a 10 segundos. Agora a média fi ca entre 3 e 4 segundos”, conta Schneiders Neto. “Só com licenças coorporativas, que deveriam ser pagas pelo uso de softwares proprietários, economizamos cerca de R$ 10 milhões desde 2006.”

C i ê n c i a b a r a t a - O Fórum de 2008 também se destacou pela presença de pesquisadores que optaram pelo sof-tware livre e levaram seu trabalho para o domínio público. Um dos exemplos bem-sucedidos é um software usado para fazer imagens médicas tridimensionais, o InVesalius. O programa foi criado em 2000, quando já existiam softwares pro-prietários comerciais que permitiam a reconstrução tridimensional de imagens de tomografi a computadorizada. “Em 2002, quando vi o programa, percebi que ele representava um avanço pela facilidade na obtenção de imagens em 3D, na evolução nos diagnósticos, nos planos de tratamento e na realização de cirurgias”, diz o cirurgião-dentista Francisco Roland, pesquisador associado ao Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), da cidade de Campinas, onde o software foi concebido.

No caso do InVesalius, a equipe do Cenpra rebateu as críticas feitas aos softwares livres de que ele sai barato por estar aquém da qualidade dos softwares proprietários. Ele foi comparado com o Vitrea, cuja licença de uso está na casa dos milhares de dólares. “Após análise estatística dos dados verifi camos que o desempenho do módulo de craniometria 3D do InVesalius 2.0 não apresentou diferenças estatísticas, tanto nas medidas

projetos aceitos. Para o professor Ricardo Anido, do Instituto de Computação da Unicamp, o Brasil tem a capacidade de se posicionar bem numa fatia de mercado mais nobre do que a simples geração de código. Mais do que programadores, os brasileiros têm qualificação para agregar mais conhecimento ao projeto, oferecendo soluções mais completas. “Competir em preço com Índia e China é difícil. Mas podemos oferecer melhor qualidade”, avalia.

A capacidade brasileira no desenvol-vimento e na disseminação dos softwares livres fi cou evidente na Fisl. “O papel de liderança do Brasil nessa área é fruto de uma parceria bem-sucedida entre o governo, a indústria e a comunidade de desenvolvedores”, disse o presidente da Linux International, Jon “Maddog” Hall, uma associação sem fi ns lucrativos que promove softwares livres. Para ele, a que-da dos preços dos computadores destoa do alto custo de softwares e o Brasil é exemplar ao desenvolver soluções em larga escala com programas de código aberto, diminuindo custos. Ele cita a Caixa Econômica Federal (CEF) como um dos exemplos mais emblemáticos. Quem paga contas ou vai fazer uma aposta usando terminais instalados nas Casas Lotéricas da CEF usa o sistema operacional Linux. “Saber isso não faz diferença”, diz o gerente de tecnologia da informação Júlio Schneiders Neto, da Caixa. Para ele, o importante para o usuário é perceber que o uso do código aberto deixou os terminais mais ágeis e aumentou a qualidade das transa-ções nos momentos de pico. “Antes de migrarmos para o código aberto

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Débora Pinheiro

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ENGENHARIA

e funcional. “Ele vai custar entre R$ 80 mil e R$ 100 mil com impostos, enquanto os equipamentos similares importados custam entre R$ 150 mil e R$ 200 mil ou mais com impostos”, diz o engenheiro eletrônico Martín Izarra, diretor-presidente da empresa.

Mas a importância do projeto ultra-passa os benefícios que o novo equipa-mento trará para a indústria do país ou para a própria empresa porque é um exemplo de sinergia entre institutos de pesquisa e empresas e o próprio la boratório de Pesquisa e Desenvol-vimento (P&D) da Brapenta. “Temos aliados tanto na área comercial como na tecnológica porque inovar é criar uma rede de parcerias”, diz Izarra, também diretor da Associação Nacional de Pes-quisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei).

Idealizado em 2003, o projeto come-çou a se tornar realidade no mesmo ano com a aprovação de viabilidade técnica no Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. “Ali vimos que a idéia era viável”, conta Izarra. “Depois começamos a tocar o projeto sozinhos trabalhando com uma tecnologia que não conhe-cíamos.” A mudança de patamar seria trocar para a tecnologia de raios X e dei xar a de campo eletromagnético até agora usada pela Brapenta, a mesma

presente nas portas de banco ou prisões para detectar metais, produto que a empresa também fabrica em menor escala. O desafi o em utilizar raios X envolve a própria geração dessa radiação e o seu controle. Somou-se a essas ne-cessidades a viabilidade de uma sé rie de agregados para que o equipamento funcionasse. O aparelho precisava ler o produto como um scanner traduzindo os raios X em sinais elétricos e depois converter o resultado em luz visível nu-ma tela, além de ser dotado de softwares e painéis de controle.

Entre os elementos agregados essen-ciais para a execução do projeto estão os cintiladores, sensores compostos de um cristal, no caso o iodeto de césio. Por enquanto, eles estão sendo importa dos do Japão e da França, com custo ainda alto, e depois de muita negociação por-que é um produto que pode ser usado, por exemplo, em aplicações nucleares para medir radiações. Com isso, países que detêm essa tecnologia difi cultam a exportação. Para ter o produto mais barato e feito no Brasil, a empresa fi r-mou um contrato de intercâmbio com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares ( Ipen) para a produção dos cintiladores. No currículo da Brapen ta já conta uma boa parceria tecnológi ca com o Instituto Tecnológico de Ae ro náutica (ITA) em 2004 para o desenvolvimento

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Empresa paulistana desenvolve equipamento de raios X para detectar metais, vidros e pedras em alimentos

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Provavelmente a maioria dos consumidores não sabe, mas a trajetória de grande parte dos produtos alimentícios existen-tes no supermercado passa por uma máquina que detecta metais no local onde são fabri-

cados. Isso acontece com o produto já pronto e embalado para verifi car se há pequenos peda ços de peças, parafusos ou outros con taminantes metálicos nas matérias-primas. Assim, um pacote de pão de fôrma, outro de biscoitos, uma sopa instantânea ou ainda uma caixa de sabão em pó, por exemplo, são averiguados quanto à presença de indesejáveis “ingredientes” metálicos. Grande parte dessas máquinas no Brasil é fabricada pela empresa paulistana Brapenta que está prestes a lançar um equipamento inovador para esse nicho do mercado industrial brasileiro. Ele utiliza raios X para identificar não apenas metais, mas também pedras, plásticos e vidros, ou tudo o que saia da densidade típica, como a de um pedacinho de osso num hambúrguer. Os materiais inconvenientes do tama-nho de até 1 milímetro poderão ser visualizados e o produto retirado de circulação antes de sair da fábrica. O novo modelo da Brapenta, chamado de Spectra, traz componentes elaborados para tornar o equipamento mais barato

Marcos de Oliveira

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Teste na Brapenta compara

densidade de um carretel de

plástico com fi os de cobre

de algoritmos, um conjunto de soluções matemáticas elaboradas para resolver determinado problema para outro tipo de máquina da empresa que mede o peso dos produtos ao passar por uma esteira numa velocidade de 2 metros por segundo. A função dela é verifi car produtos que estejam abaixo ou acima do peso estipulado na embalagem. Outro parceiro de longa data da Brapenta é o Instituto Nacional de Pesquisas Espa-ciais (Inpe), onde os equipamentos da empresa passam por testes de interfe-rência ele tromagnética no Laboratório de Integração e Testes (LIT).

“Em todas as parcerias nós apren-demos com eles, mas eles também aprendem com a gente”, diz Izarra. No caso dos cintiladores produzidos no Ipen, eles não eram usados para um equipamento industrial. “No Ipen nós temos a tecnologia de crescimento dos cristais para fi ns acadêmicos e para uso em detectores de radiação X ou gama”, conta Carlos Henrique de Mesquita, pesquisador aposentado do Ipen que está coordenando para a Brapenta um projeto do programa de Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) da FAPESP. “Esses sensores convertem a radiação dos raios X em fótons de luz que sensibilizam outros sensores chamados de fotodiodos que, por sua vez, convertem os fótons em B

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Raios X:pedaço de carne com contaminantes metálicos, pão com metal e vidro e um pacote de sopa com grampo e um parafuso

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sinal elétrico e depois nas imagens ela-boradas por um software”, explica. Para Mesquita, o desenvolvimento realizado no Ipen vai reduzir em 30% o preço dos cintiladores para a Brapenta.

Quando Mesquita fi nalizar o projeto no início do segundo semestre deste ano, a Brapenta vai poder comprar os cintiladores do próprio Ipen, da mesma forma que o instituto produz e fornece radiofármacos para uso em procedi-mentos de medicina nuclear. “Entre as alternativas estão a criação de uma empresa para produzir os cintiladores ou a própria Brapenta fabricá-los”, diz Mesquita. Quanto aos fotodiodos, eles são comprados no mercado normalmente.

Empresas parceiras - No processamen-to das imagens geradas dos cintiladores, a Brapenta tem como parceira a Kognitus, instalada na incubadora de empresas da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharias (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascida no Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática da universidade, a empre-sa desenvolve softwares de análise dos pro dutos e reconhecimento de padrões de imagem. Outra empresa também incubada na Coppe e que colabora no projeto da Brapenta é a Inovax, respon-sável pelo software que serve ao painel de controle do equipamento bem como empresas como a JR Informática, da cidade de São José dos Campos, em São Paulo, na área de processamento digital de sinais, e a Gauss, de Florianópolis, em Santa Catarina, que desenvolveu as resistências para alta-tensão com tec-nologia de fi lme espesso.

Com todas essas colaborações a área de P&D da empresa, composta por três engenheiros, fi ca com o desenvolvimento do gerador de raios X e a integração dos sistemas, além do software controlador de

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todo o equipamento. “Nossa estratégia para reduzir custos implica desenvolver todas as partes do sistema, com parcerias, porque os outros fabricantes simples-mente compram peças e integram e isso fi ca muito caro”, diz Izarra. Ele acredita que dentro de 2 anos poderá exportar o Spectra. Com previsão de lançamento até o fi nal do ano, o equipamento deverá fi car instalado gratuitamente por cerca de 3 meses em empresas parceiras, que já são clientes e pretendem comprar a nova máquina. No total, o investimento em P&D no produto vai atingir R$ 2,5 milhões até 2010. Desse total, cerca de 40% serão da própria empresa e o

restante de fi nanciamentos de órgãos de fomento como a FAPESP, no Pipe, e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do MCT, do Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com recursos não reembolsáveis, além de benefícios fi s cais ligados à Lei da Informática.

Izarra acredita que o equipamento também será destinado a outros seto-res, além da indústria alimentícia ou produtos de limpeza. O Spectra pode-rá ser usado na linha de produção de fármacos para detectar se um blister (a embalagem de alumínio que acondi-ciona comprimidos) contém todos os comprimidos e se há algum danifi cado. Na indústria de bebidas servirá para verifi car o nível das latinhas de cerveja e refrigerantes.

Outra possibilidade é o uso em aero -portos, com outra configuração, pa-ra verifi cação de bagagens. “Uma das primeiras consultas sobre esse tipo de máquina com raios X partiu da Infraero (Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária), porque as máquinas que eles têm são importadas e de ma-nutenção cara”, diz Izarra. Nesse caso, existe a necessidade de um operador para visualizar as bagagens enquanto na máquina industrial não é preciso, porque ao constatar um produto com problemas ela automaticamente faz a separação. A mesma confi guração para aeroporto poderá ser usada em prisões, também na forma de scanner, para ins-pecionar detentos e visitantes.

Com 65 funcionários e instalada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, a empresa tem produtos em 28 países como Estados Unidos, Espanha, Irã, Egito, Angola e África do Sul. São paí-ses que importam diretamente ou por meio de empresas integradoras, que instalam todo o conjunto de máqui-nas e equipamentos de uma fábrica,

por exemplo. A empresa também tem representantes em todos os países da América Latina. Além das máquinas detectoras de metal para a indústria alimentícia, a empresa vende no exterior equipamentos para inspeção na área de mineração, usadas na verificação das matérias-primas da produção do cimento, porque pequenos pedaços de metal podem pôr a perder o moinho onde se prepara esse produto.

Caminhos próprios - A história da Bra penta começa quando Martín Izarra du rante a graduação em engenharia ele-trônica na Argentina, país de nascimento, fez um projeto para sistemas de medição de gás carbônico (CO

2) em grandes tan-

ques por meios eletrônicos. “A empresa, subsidiária da General Dy namics, que produzia peças para reatores nucleares e produtos químicos, gostou, depositou a patente e me pagou uma quantia sufi -ciente para comprar um carro, e ainda me contratou. Comecei trabalhando na área de P&D deles inclusive nos Estados Unidos”, lembra Izarra. “Mas passei pelo Rio de Janeiro e resolvi fi car. Antes tirei férias e vim es tudar o Brasil. Adotei o país e me na turalizei.”

Em São Paulo Izarra foi gerente de projetos da AEG Sistemas, empresa alemã de automação industrial, e logo depois resolveu montar uma subsidiária da em presa Penta da Argentina no Brasil. Com um dos cinco sócios da empresa argentina, ele montou, em São Paulo, a Brapenta em 1979. O primeiro produto foi um detector de metais para área de mineração. “Mas, 3 anos depois, a tec-nologia já estava obsoleta. A velocidade das inovações é muito rápida e resolvi comprar a parte do sócio e trabalhar em cima de tecnologias próprias para acompanhar a velocidade do desenvolvi-mento tecnológico. Isso foi e está sendo um processo de aprendizagem.” ■

1. Desenvolvimento de cristal de CSL(TI) e plástico cintilador para fins de inspeção em tempo real com raios X em equipamento nacional2. Sistema de inspeção por raios X e inovação de equipamentos para alimentos seguros3. Sistema de inspeção por raios X

MODALIDADES

1. Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas e Micro Empresas (Pipe)2. Programa de Subvenção Econômica a Empresas 3. Programa de Capacitação de Recursos Humanos (Rhae Inovação)

CO OR DE NA DORES

1. CARLOS HENRIQUE DE MESQUITA – IPen/Brapenta2. MARTÍN IZARRA - Brapenta3. ALBERTO SUÁREZ VELASCO E MARTÍN IZARRA - Brapenta

INVESTIMENTOS

1. R$ 94.018,00 (FAPESP) 2. R$ 1.283.160,00 (FINEP)3. R$ 257.099,52 (CNPq)

OS PROJETOS>

O equipamento também será destinado às indústrias de medicamentos,

bebidas e para aeroportos na verifi cação de bagagens, além de servir

para inspecionar detentos e visitantes nas prisões

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Carlos Haag

>H U M A N ID A D E S

U MA ALIANÇ A S EM P R OGR ES S OS PESQUISA MOSTRA AS DIFICULDADES DAS RELAÇÍ ES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS

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R E LAÇ Õ E S IN T E R N AC IO N AIS

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Ki ssingerem visita ao B rasil: fazendo de tudo para conquistar diplomatas

Causou polêmica um discurso feito recentemente pelo presidente Lula em que ele afi rmava: “Eu liguei e disse: ‘Bush, o problema é o seguinte, meu filho, nós ficamos 26 anos sem crescer. Agora que a gente está crescendo vocês vêm atrapalhar, pô? Resolve a tua crise’”. Apesar do tom casual, a frase revela algumas das muitas

complexidades das relações entre Brasil e EUA. Somos, assim, tão próximos do “grande irmão”, como se dizia nos tempos da Guerra Fria? Os EUA tentam mesmo “atra-palhar” o Brasil ou nos vêem com relativa indiferença? “Os dois países são um casal estranho em suas relações bilaterais. Em Brasília ainda há uma enorme resistência a pensar um programa de engajamento cooperativo com Washington. Para grande parte da opinião pública brasileira, o governo Bush tem um projeto imperialista que terminará por limitar a autonomia daqueles países que expressam valores e interesses alternativos”, observa Matias Spektor, professor de relações internacionais da Escola Superior de Ciências Sociais/CPDOC e coorde-nador do MBA em relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

“Como não há uma visão comum em Brasília e em Washington sobre o valor estratégico do eixo bilateral, suas lideranças não têm um mapa para guiar o relacionamento. O Brasil fi ca preso à visão de que os EUA são sempre um obstáculo e nunca uma oportunidade e chegamos ao século XXI sem um fórmula satisfatória para conduzir os negócios com a maior potência do planeta”, avisa. Por que os dois maiores países do hemisfério Ocidental não conseguem estabelecer uma cooperação de alto nível no longo prazo?, pergunta-se o pesquisador. De uma coisa Spektor tem certeza: não concorda com a “tese da rivalidade emergente” (a visão de que o Brasil, ao industrializar-se, transformou-se em ameaça ao Norte), que pauta várias das respostas ao dilema do “casal” diplomático. O pes-quisador encontrou outra via ao trabalhar em sua tese de doutorado, “Equivocal engagement: Kissinger, Silveira and the politics of US-Brazil relations (1969-1983)”, defendida no ano passado na Universidade de Oxford, Inglaterra. “A relação entre as duas nações foi pautada pela barganha mais do que por uma relação séria e o projeto foi motivado por ambições políticas e sujeito a objetivos que variaram ao longo da interação bilateral”, afi rma. “O ponto crucial foi a assimetria entre os dois:

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se os EUA foram um elemento central na grande estratégia do Brasil, nós só aparecemos tangencialmente na grande narrativa das relações internacionais americanas do período.”

A narrativa a que Spektor se refere inicia-se com a indicação de Henry Kis-singer como conselheiro de segurança nacional da administração Nixon, em 1969, e termina com a saída, em 1983, do diplomata brasileiro Azeredo da Silveira do cargo de embaixador bra-sileiro em Washington, passando por 5 anos como ministro das Relações Exteriores do governo Geisel. O foco nas duas fi guras não é casual, pois, para o autor, o ponto “fraco” das tentativas de aproximação entre Brasil e EUA é sua quase total dependência do empe-nho pessoal desses dois personagens. Com suas saídas de cena, nos governos Carter/Reagan e Figueiredo, as relações bilaterais, observa, se estagnaram. “É verdade que são melhores do que nas décadas de 1970 e 1980, quando os dois países passaram da hostilidade à apatia mútua. Nos anos 1990 teve início um processo de sintonia fina que dura até hoje, mas parece que daí não passa.”

“O Brasil é a chave do futuro”, afi r-mou, em 1971, Nixon. Um dos primeiros presidentes americanos a “acreditar” nisso, ele, em verdade, seguia o novo ideal de visão global da Casa Branca pregado por Kissinger, que defendia a necessidade de os EUA manterem relações especiais com poderes-chave regionais. “Ele estava preocupado com o desenvolvimento potencial de ruptura do mundo pós-colonial, procurando uma fórmula para lidar com isso que não se baseasse apenas na coerção. Daí o conceito de ‘devolução’, visto como uma hegemonia benigna: devolver po-der e responsabilidade para um grupo de Estados regionais infl uentes, uma transferência de uns EUA fortemente engajados na periferia para um mundo em que a estabilidade não teria que ser mantida por uma intervenção ame-ricana direta.” Nações como Brasil, Irã, Turquia, África do Sul, Indonésia, entre outras, foram reconhecidas como parceiras potenciais, capazes de levar à frente essa nova forma de hegemonia em nome da América. Daí, nota Spektor, o interesse inusitado (e problemático, já que boa parte da diplomacia americana discordava da importância brasileira)

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NIXON FOI UM DOS PRIMEIROS PRESIDENTES AMERICANOS A “ ACREDITAR” NO NOVO IDEAL DE VISÃO GLOBAL DE KISSINGER

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da administração Nixon pelo Brasil, a ponto de lançar uma nova política para o país. A escolha, diz o pesquisador, também se ligava com a preocupação crescente americana pelo decréscimo de sua infl uência na América Latina e as prováveis conseqüências disso em tempos de Guerra Fria. Segundo a nova visão da Casa Branca, esse declínio não se explicava apenas em razão da rivalidade com a União Soviética, mas, acima de tudo, pela ascensão de um naciona-lismo, de um ativismo econômico em países como o Brasil, bem como pela infl uência que Europa e Japão passaram a exercer, em detrimento de interesses americanos.

P ara Kissinger, ganhar o apoio desses Estados era uma forma de legi-timar a hegemonia americana e

isso signifi cava fazer concessões, usar a linguagem da ‘igualdade’ e do ‘respeito’, em suma, abrir um canal direto entre Washington e essas nações periféricas para, em troca, consolidar a posição dos EUA no mundo. Daí a atenção dada ao Brasil”, afi rma Spektor. Tanto fazia se esses países, entre eles o Brasil, não eram governos democráticos. “Para Nixon e Kissinger, esses regimes eram aliados melhores, pois, pensavam, democracias estavam sujeitas às mudanças da opinião pública. Mas não era apenas o antico-munismo dos tais países-chave que os transformava em alvo de interesse da diplomacia americana; antes, era fun-damental sua capacidade em oferecer aos EUA um grau de estabilidade e previsibilidade na conduta cotidiana das relações bilaterais.” Aqui, porém, o tom era outro. “Quando se inicia a aproximação entre os dois países, pre-dominava, entre os brasileiros, a idéia de que era possível ao Brasil ganhar mais poder e infl uência global com essa relação e, ao mesmo tempo, reafi rmar sua autonomia: em troca de pouco, esperávamos conseguir muito.”

Segundo o pesquisador, para apoiar esses cálculos diplomáticos do Brasil havia o fato de que o engajamento com os EUA permitiria aos generais manter controle em casa sem alienar a opinião pública nacionalista. “Nesse sentido, para os brasileiros, essa ligação foi uma ferramenta para construir uma política nacionalista conservadora com apoio dessa suposta relação ‘especial’ entre

Brasil e EUA.” A reforçar esse pensa-mento estava a difi culdade americana em traduzir poder em influência na América Latina, o que levou as adminis-trações a prestar atenção no Brasil por sua geografi a, recursos, desenvolvimento industrial, postura anticomunista etc. Já para a liderança brasileira, observa o autor, o crescimento da economia trouxe novas ambições internacionais, o que deu à aproximação americana um interesse renovado. “Em Brasília, passou-se a ver os EUA como instru-mental mais do que detrimental para o desenvolvimento nacional e para o objetivo de maior inserção global.” O início foi pouco promissor, no entan-to. “A administração Médici aceitou a abertura americana com a intenção de

legitimar o acirramento do controle interno. Quando o general visitou a Casa Branca, estava mais interessado em aparecer numa foto com Nixon do que discutir política mundial.”

Apesar da melhoria no nível da in-terlocução entre os países, a chegada em cena de Geisel e Silveira, em 1974, marcou a consolidação de uma política internacional ativista por parte do Brasil, o que trouxe nova complexidade ao projeto bilateral. “Geisel via a melho-ria nas relações entre as duas nações como uma chance de abrir portas para o ativismo brasileiro no mundo”, nota Spektor. Ainda assim, era um momento histórico: “Nunca antes essa dupla ten-tou coordenar tão estreitamente suas respectivas políticas externas e nunca

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antes seus diplomatas observaram-se tão mutuamente para acertar o passo”. Tudo, porém, estava centralizado nas fi guras de Kissinger e Silveira, ou seja, a aproximação se dava a despeito da burocracia diplomática dos dois países, e não em função dela. “E relações pes-soais difi cilmente são sufi cientes para transformar relações entre Estados.” Para piorar, Azeredo, em sintonia com Geisel (que rejeitou vários convites para visitar os EUA), estava “obcecado com a soberania e autonomia nacionais”. Ele acreditava, nota Spektor, que a defesa do interesse nacional estava na entrada do Brasil no clube seleto dos Estados infl uentes do planeta. “O Brasil, segundo ele, merecia um status especial pelo que era e não pelo que poderia ser para os EUA. Para os brasileiros, o engajamento era também sobre controlar a política doméstica: relações com os EUA era palatável para o nacionalismo, força-motriz da transição lenta e negociada desejada por Geisel.”

Foram anos de protocolos, encon-tros, agendas, correspondências, negociações difíceis, sem que se

chegasse a um consenso de como se estabelecer essa relação bilateral. Não se pode negar o esforço de Kissinger para que ela funcionasse, aceitando muitas exigências brasileiras e “engolindo sapos” diplomáticos, que incluíram a expansão, por parte do Brasil, da agenda bilateral muito além dos seus limites previstos, com a inserção de tópicos espinhosos para a América como as revolucionárias Cuba e Portugal e a independente Angola; proliferação nuclear (com a compra de tecnologia nuclear alemã, apesar de pressões americanas para impedir o acordo entre os dois países); situação no Oriente Médio; direitos humanos etc. “O Brasil resistiu a qualquer discussão sobre questões sul-americanas, rejeitou qualquer comprometimento na luta anticomunista e enfatizou um status de prestígio nas relações internacionais.” Kissinger, em boa parte, observa o autor, aceitou essas novas orientações. O Brasil começava a se aventurar em áreas em que nenhum outro país latino-americano havia ousado, com exceção de Cuba. “Como previu um relatório da CIA: ‘Há uma sensação de que o Brasil ‘chegou’, o que vai levá-lo a diferir mais e mais com os EUA em mais e mais assuntos’.” Isso

não ajudou muito a situação já precária de Kissinger, fustigado pela burocracia americana que não concordava com seus esforços em conceder um status privilegiado ao Brasil.

Com o aumento da rejeição da opinião pública e do Congresso americanos a alianças com regimes ditatoriais,

continua o pesquisador, caíram as espe-ranças de consolidar efetivamente uma parceria entre as duas nações. O novo presidente, Jimmy Carter (que assume em 1977), já em sua campanha eleitoral, falou duramente contra um engajamento com o Brasil, quanto mais de dar a ele qualquer privilégio diplomático. Temas como poder nuclear e direitos humanos criaram tensão à incipiente ligação bila-teral, que levou as relações entre Brasil e EUA ao seu nível mais baixo. “Os brasi-leiros se sentiram alienados pela forma e pela substância da política exterior de Carter, transformando as instituições de engajamento em escudo para resistir a pressões americanas. Apenas nos 2 últimos anos da administração Carter é que se retomou o ideal da devolução e se tentou retomar um contato Brasília-Washington.” A chegada de Reagan ao poder colocou uma pá de cal nessa aproximação, já que as prioridades do novo presidente deslocaram-se da América do Sul para a América Central, onde o Brasil tinha pouco a dizer ou fazer.

“Passaram-se décadas desse projeto malfadado, mas muitos dos problemas que afl igem a ligação Brasil-EUA perma-necem análogos”, observa Spektor. Apesar dos elogios feitos pela administração de George W. Bush ao país, “o gap entre as manifestações ofi ciais e a realidade das relações bilaterais permanece grande e com muitas difi culdades”. Para Spektor, é possível mesmo se observar hoje nos EUA um tímido reavivar do “devo-lucionismo”. Mas o Brasil permanece aferrado ao espírito ativista dos tempos da dobradinha Geisel-Silveira, aliás, nota o autor, elogiada pelo atual governo. “É uma pena, pois a noção de autonomia, com sua ênfase no desenvolvimento doméstico mais do que na produção da ordem internacional, permanece hoje como há 30 anos. E apesar das ambições do Brasil de ter status especial, o argu-mento de que ele tem algo diferente a contribuir para a sociedade internacional nunca é decifrado com clareza.” ■

O BRASIL COMEÇAVA A SE AVENTURAR EM ÁREAS EM QUE NENHUM OUTRO PAÍS LATINO-AMERICANO HAVIA OUSADO, COM EXCEÇÃO DE CUBA

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H IS T Ó R IA

Osório nunca precisou ser um caxias

B i o g r a fi a d o m i l i t a r r e v e l a f a l á c i a s d a m e m ó r i a

Tolstoi estava tristemente correto ao escrever que um povo feliz não tem história. Daí lançar-se mão para lembrar as pessoas de que elas têm motivos para estarem infelizes e que é preciso “remediar” o passado. “O Brasil tem uma dívida histórica com o Paraguai, que se pode pagar com a concessão de um tratamento diferenciado nas

relações entre os dois países. No caso de Itaipu, o Brasil deveria pagar a preço de mercado – e não a preço de custo, como prevê a parceria – a energia excedente que o Paraguai não consome”, afirmou, em entrevista, o novo presidente paraguaio, Fernando Lugo, invocando, em nome de questões atualíssimas, a velhíssima Guerra do Paraguai (1865-1870). “O presidente Hugo Chávez recordou ao presidente Lugo sua admiração pela luta histórica do povo paraguaio, digno herdeiro da memó-ria do marechal Francisco Solano López, e coincidiram na necessidade de continuar construindo a União de Nações Sul-americanas sobre a base da reivindicação da história de luta de nossos povos”, reitera a nota emitida pela chancelaria venezuelana sobre o telefone dado por Chávez ao colega recém-eleito.

“López foi o grande patriota latino-americano, hu-milhado pela aliança da tríplice traição a América Latina, seus homens e suas mulheres”, declarou recentemente a presidente argentina, Cristina Kirchner, que batizou uma unidade do Exército argentino em homenagem a López. A tese da “dívida histórica” é dividida também por brasileiros, como o senador Cristovam Buarque, que defende mudanças no acordo sobre Itaipu: “Não pode-

mos simplesmente negar ao Paraguai o direito de pedir o reajuste. Nós não podemos esnobar o Paraguai. Até porque temos uma dívida com esse nosso país vizinho, já que há 138 anos matamos 300 mil de seus cidadãos na Guerra do Paraguai. Em proporção, seria como se matassem 9 milhões de brasileiros”. Não é de hoje que ditadores, como Stroessner, e militantes de esquerda se unem na condenação da Guerra do Paraguai como um “massacre imperialista” feito pelo Brasil, em suposto conluio com a Inglaterra, que teria dizimado as chances de grandeza paraguaia, ou nas palavras de Lugo: “Há um reconhecimento da dívida histórica com o Paraguai. Acreditamos na Justiça e o Paraguai deveria voltar a ocupar o lugar que ocupava: o país mais desenvolvido,

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da população masculina paraguaia, os ideais modernizantes de López e a vitimização do Paraguai. “Quem fala em traição ou está mal informado ou tem segundas intenções. López foi o agressor, que invadiu os vizinhos. Não houve a tal industrialização paraguaia e nunca existiu a tal idade de ouro do Paraguai. López não era um paradigma de progresso, de luta contra o imperia-lismo, nem um construtor de sociedades modernas”, explica. “O revisionismo argentino e uruguaio é de esquerda e o paraguaio era um nacionalismo de

direita que buscava legitimar um dita-dor como Stroessner usando a fi gura de outro ditador, López.” A história não foi bem servida em nenhum dos casos. “No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura; no Brasil, a satanização da guerra e do comando brasileiro serviu de arma de combate à ditadura”, observou, com sabedoria, José Murilo de Carvalho.

A confusão sobre a real dimensão do confl ito e de seus personagens, po-rém, não se restringe apenas a interesses comerciais ou oportunismo político.

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o mais unido, que tinha um projeto econômico diferenciado”.

Assim, por mais inusitado que possa parecer, o presente é um ótimo momen-to para voltar a falar de fi guras-chave de um conflito tão antigo. Como na nova biografi a do general Osório (Ge-neral Osório, Companhia das Letras, 262 páginas, R$ 35,50), lançada no bicentenário de seu nascimento, escrita pelo historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita guerra, uma história revisionista da Guerra do Paraguai, que põe abaixo mitos como o extermínio

V ista do interior de C uruzú, 20 de setembro de 186 6

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O comandante do Exército brasileiro no Paraguai, Osório, também sofreu com a reescrita interessada da história. “O Exército de Caxias, como se auto-denomina hoje a instituição, foi por um bom tempo o Exército de Osório e essa mudança só pode ser entendida se relacionadas as trajetórias política e militar dos dois generais com o contexto histórico em que foram adotados como personagens paradigmáticos”, avisa Do-ratioto. “Afi nal, embora nos dias atuais eles sejam lembrados como militares, também foram políticos e, em certas épocas, se dedicaram mais à política que ao Exército.” O Partido Conservador, pelo qual Caxias se elegeu senador, defendia o Estado centralizado e a manutenção da ordem social. Osório era do Partido Liberal, que priorizava a descentralização do poder e a maior participação dos cidadãos no processo político. Caxias era o Exército de elite, formado na Aca-demia, enquanto Osório era o Exército que vinha de baixo (e que, na velhice, confessou seu horror pela vida militar) e que relevava pequenas transgressões, formalismos e aparências. Daí a razão da jovem República, feita por golpe militar, nota Doratioto, sem ter símbolos, ter que descobrir em Osório o “pré-republicano”, a ponto de, em 1894, Floriano Peixoto dirigir uma manifestação popular para a inauguração da estátua do general no Rio de Janeiro, na atual Praça XV.

“Foi o primeiro general brasileiro a pisar no território paraguaio e enquanto Caxias e outros militares e políticos brasileiros desconfi avam do presidente argentino Mitre (o líder da Tríplice Aliança contra o Paraguai), afi rmando que ele agia para prolongar o confl ito, quer devido a ganhos fi nanceiros que proporcionava à Argentina, quer para enfraquecer o Império, Osório foi um dos poucos militares brasileiros que não partilhavam desse sentimento”, afi rma Doratioto. O aventureiro inglês Richard F. Burton, cônsul inglês em Santos e ob-servador britânico no cenário da guerra, relatou que os soldados admiravam Osório e acreditavam que “ele tinha o corpo fechado e, depois dos combates, sacudia o poncho para as balas caírem”. O general era visto, pelos colegas de hierarquia, como “irresponsável” pela maneira como colocava a vida em risco durante os combates. Na Batalha do Avaí, um tiro destruiu seu maxilar, mas, mais tarde, quando Caxias foi substituído pelo conde d’Eu no comando militar das tropas, não fugiu ao dever e voltou ao fronte para lutar.

No ataque à fortaleza de Humaitá, principal baluarte de defesa de López, Osório foi enviado por Caxias para ave-riguar o sucesso do bombardeio fl uvial feito pela esquadra aliada. Enfrentando resistência, afi rmou ter recebido ordens de Caxias (que nunca confi rmou ter dado

tal comando) para recuar, provocando pesadas perdas. “O episódio deixou feridas, exploradas por lideranças libe-rais, que passaram a apresentar Osório como vítima de Caxias, porque este o veria como rival”, observa o autor, que lembra como, ao fi m do confl ito, “Osório era, à exceção de Pedro II, o brasileiro mais popular, um fato desconfortável para o governo conservador”. Logo, é fácil compreender por que durante 4 décadas a principal comemoração militar brasileira ocorria no aniversário da Batalha de Tuiuti, onde Osório foi o herói do dia. Mais complexo é entender o “rebaixamento” do general a partir dos anos 1920 seguida pela elevação de Caxias, até então uma fi gura secundária, ao posto de Patrono do Exército.

R e i n v e n ç ã o - “Em contraponto ao ‘esquecimento’ de Caxias, havia uma ce-lebração de Osório como grande militar, um culto em boa medida espontâneo”, avalia o historiador Celso Castro, para quem as razões dessa mudança estão na preocupação do Exército com as agitações “tenentistas”, que levariam à Revolução de 1930. “Mais do que a reorganização de uma instituição fragmentada, ocor-reu uma reinvenção do Exército como instituição nacional, herdeira de uma tradição específi ca e com um papel a desempenhar na construção da nação brasileira”, afi rma Castro. Para tanto, foi

Exército brasileiro desembarcando no território paraguaio

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preciso “inventar” um Caxias adequado ao novo papel simbólico exigido. “Os predicados atribuídos a Caxias – de um general disciplinado e apolítico – são parte dessa imagem criada no século XX, atendiam a interesses de uma República nacional conservadora que se esforçava para conter a indisciplina militar. Esses predicados, porém, caracterizam um ‘ser militar’ que não existia no século XIX”, analisa a historiadora Adriana Barreto de Souza, autora da tese de doutorado O Duque de Caxias e a formação do Império brasileiro. “Entronizado nesse panteão, e após 21 anos de ditadura militar, o diálogo com Caxias se tornou mais difícil, pois ele era ou tratado com admiração irrestrita por militares, ou demonizado como patrono do Exército pela oposição que se fazia ao golpe de 1964. Ele virou o “duque-monumento”, observa Adriana.

Se de início a troca da guarda Osório por Caxias serviu como forma de valorizar a legalidade e o afastamento da política, a partir do Estado Novo varguista essa mu-dança, embora mantida, adquiriu novos

tons: “Passou-se a ressaltar as qualidades do duque como chefe militar a serviço do Estado forte e centralizado, tal qual o da ditadura de Vargas”, avalia Doratioto. Essa instrumentalização persistiu após 1964, quando os militares no poder colocaram em relevo as características de Caxias que interessavam à situação vigente, como a de ter sufocado movi-mentos revolucionários. “Essas foram de fato suas características e, à exceção do princípio da centralização, também as de Osório. Contudo os dois generais tinham ainda como características a subordinação ao poder civil, a aversão ao caudilhismo e a repulsa ao militarismo, mas estas os ideólogos do autoritaris-mo não tinham interesse em lembrar e os da democracia negligenciaram em recuperar.” Infelizmente, por vezes, é mais conveniente esquecer a frase de Tolstoi e trocá-la pelo pragmatismo de um Bismarck: “A história é um simples pedaço de papel impresso; o principal é fazer história, e não escrevê-la”. ■

Carlos Haag

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RESENHA

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M ais de 3 décadas de observação fina e engajada da política científica e tecnológica no Brasil, algumas

vezes a partir de postos francamente privilegiados ocupados pelo autor para examinar suas engrenagens endógenas, sem perder de vista influências interna-cionais que ajudavam a conformá-la, resultaram num livro indispensável para quem precisa ou simplesmente quer entender o atual campo institucional da ciência e tecnologia no país, como chegamos a ele e suas relações com algumas áreas-chaves das atividades humanas, a exemplo da educação. O livro é Ciência em tempo de crise: 1974-2007, de José Israel Vargas, organizado por Márcio Quintão Moreno e lançado no final do ano passado pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em suas 380 páginas estão reunidos textos de palestras, conferências e artigos para publicações especiali-zadas produzidos pelo ex-ministro da Ciência e Tecnologia no governo Itamar Franco que, a par de revelar muito das suas inquietações políticas e éticas ante os desafios propostos por diferentes projetos de desenvolvimento consistente para o país, repõem em termos factuais o desdobramento de programas e políticas de grande im-pacto das últimas décadas, para o bem ou para o mal, a exemplo do programa nuclear e do Proálcool.

Os 20 capítulos do livro se orga-nizam por quatro partes: Educação, Política científica e tecnológica, Energia e meio ambiente e Ética e cooperação internacional. São títulos que mostram a universalidade do pensamento de Vargas. O alcance tanto pode abranger Minas Gerais, o estado natal do autor, com seus bons cientistas e intelectuais, quanto o planeta com seus desafios energéticos e ambientais – mais freqüentemente, no entanto, circunscreve o país. E aí transita de remotas raízes históricas

que parecem estar na base da fragilidade da evolução do pensamento científico entre nós a inspiradas antecipações de questões que têm papel crucial nos debates contemporâneos sobre o desenvolvimento do país.

Na parte sobre Energia e meio ambiente, por exemplo, Vargas diz a certa altura que “a produção de etanol tem in-teresse estratégico óbvio” e argumenta que “é fundamental ocupar-se o país com melhorias na tecnologia de produção de álcool, desde a maior racionalização da exploração agrí-cola até o emprego de novos procedimentos técnicos que se encontram em desenvolvimento aqui e em vários países, com vistas à diminuição do custo desse produto, sob pena de se acumularem novos óbices ao nosso desenvolvimento econômico”. Inclui a seguir, entre os exemplos marcantes de melhoramentos possíveis, “a introdução de novas variedades mais produtivas de cana-de-açúcar na agricultura brasileira” e “a utilização de hidrólise ácida, microbiana e viral da celu-lose proveniente de várias fontes” (pp. 232-233). O que causa espanto é que essas palavras, tão atuais nas pesquisas sobre bioenergia, foram proferidas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) há quase 30 anos.

Em relação a mudanças climáticas globais, nota-se essa mesma capacidade de pensar para o futuro, e já em 1990, numa conferência realizada na Fundação Biominas, Vargas previa que seria exigido da comunidade internacional “maior cooperação multilateral” e um “estilo de desenvolvimento crescentemente condicionado ao respeito do meio ambiente, patrimônio de todos, e indispensável atenção aos interesses vitais das gerações futuras” (p. 244).

Licenciado em química pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1952, mas ligado posteriormente à física, campo em que sua formação se consolidou na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), com doutorado em ciências nucleares pela Universidade de Cambridge, Israel Vargas faz desfilar por seu livro nomes fundamentais da constituição da física no Brasil, rendendo-lhes homenagens. É entretanto extremamente crítico com políticos que em seu entendimento contribuíram de maneira dramática para os descaminhos da pesquisa científica no país. E entre reflexões e projeções socioeconômicas amparadas em tabelas, gráficos e fórmulas de prospecção, algumas que já hoje parecem padecer de excesso de determinismo mate-mático, o ex-presidente da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, entre muitos outros cargos científicos, acadêmicos e diplomáticos dentro e fora do Brasil, reaparece neste livro, para usar uma definição a seu respeito de sua própria lavra, como um homem que fez ciência, primeiro, e depois ajudou muitos outros a fazer ciência.

Fazer e ajudar a fazer ciênciaLivro fundamental para entender o campo científico

Ciência em tempo de crise: 1974-2007

José Israel Vargas

380 páginasR$ 45,00

Mariluce Moura

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N ós e a natureza é o mais recente li-vro em português de um dos mais proeminentes antropólogos norte-

americanos especializados em estudos sobre as relações entre as sociedades humanas e o ambiente. Emilio Moran, professor da Indiana University e diretor do Centro Antropológico de Treinamen-to e Pesquisa em Mudança Ambiental Global daquela universidade, vem se dedicando a pesquisas sobre questões ecológico-humanas desde a década de 1970, quando em seu doutorado realizou estudo pioneiro sobre a colonização da Transamazônica. Ao longo das últimas 4 décadas, Moran produziu uma vasta obra cujo fio condutor tem sido a análise das interações recíprocas entre as pessoas e a natureza. Nós e a natureza mostra a maturidade de seu pensamento em um momento quando, mais do que nunca, as mudanças ecológicas globais estão na linha de frente de importantes debates acadêmicos e políticos.

No plano teórico, um dos principais pontos do livro é que os seres humanos, ao longo de sua história, tenderam a pensar e agir localmente, o que Moran caracteriza como uma “marca registrada” de nossa espécie. Não obstante, o que se configura no presente é que o impacto das ações humanas, por sua dimensão cumulativa, atingiu uma escala global. Para o autor, do ponto de vista cogni-tivo, há a imediata necessidade de um importante passo: que as sociedades humanas, em toda sua diversidade, compartilhem da noção de que a pro-blemática ambiental não é individual ou local, mas coletiva e planetária.

Moran argumenta que o atual padrão de relação entre os seres humanos e a natureza é ecologicamente insusten-tável. Se não houver modificações a curto prazo nas formas de exploração e utilização dos recursos, caminha-se, irreversivelmente, para uma crise com graves repercussões. Segundo ele, esta

crise já se anuncia com todos os seus contornos, o que inclui as taxas exponenciais de redução do ozônio na atmosfera, as perdas aceleradas das florestas tropicais, os aumentos nas freqüências de desastres naturais e das extinções de espécies, entre outras evidências.

Se não são poucos os livros disponíveis que exploram temáticas afins aos discutidos em Nós e a natureza, Moran as aborda transitando por searas próprias. Ele tem sua ân-cora, teórica e metodológica, na antropologia, sobretudo aquela de vertente ecológica. Adicionalmente, transita com desenvoltura em áreas tão diversificadas como a ecologia, sociologia, economia, história e ciência política. Dentro da antropologia, uma disciplina cada vez mais multifacetada, o autor constrói seus argumentos com elementos não somente da antropologia social, como também da arqueologia e da antropologia biológica. Menos que recortes disciplinares, o que interessa a Moran é a complexa tessitura histórica, socioeconômica, ecológica e política necessária para com-preender os processos ecológico-bumanos envolvidos nas transformações ambientais de escala global.

Moran enfatiza que é absolutamente necessário que as sociedades, e a norte-americana em particular, modifiquem seu padrão de uso de recursos. Uma das vias, segundo ele, seria a redução do consumo. Ele aposta nas ações dos indivíduos, com sua agência (ou agency em inglês), como uma das pedras de toque de processos de transformação. Ou seja, o enfoque deve ser estimular que os indivíduos façam escolhas para mudar comportamentos quanto a prioridades de consumo. A certa altura, o próprio Moran reconhece que sua proposição sobre as vias para garantir a sustentabilidade podem soar ingênuas (p. 31). Não obstante, argumenta que talvez não seja algo tão utópico, já que cresce o número de pessoas e organizações que começam a questionar os efeitos desastrosos do atual modelo econômico. A matriz antropológica de Moran manifesta-se claramente ao discutir as vias possíveis: ele enfatiza que, apesar de o problema ser global, não existem soluções universais para os dilemas ambientais modernos, mas sim uma diversidade de vias para alcançar a sustentabilidade.

Nós e a natureza, com seu texto agradável e que con-tinuamente articula múltiplos campos do conhecimento, além de buscar estreitar teoria e implicações práticas, é um livro intelectualmente importante e que deve ser lido por todos aqueles interessados na temática das transformações ecológicas globais.

Delicada relação entre nós e a naturezaNovo estudo de Emilio Moran chega agora ao Brasil

Nós e a natureza

Emilio F. Moran

302 páginasR$ 65,00

Ricardo Ventura Santos é antropólogo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Museu Nacional/ UFRJ.

Ricardo Ventura Santos

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LIVROS

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Sete lições sobre as interpretações do BrasilBernardo RicuperoAlameda Casa Editorial224 páginas, R$ 34,00

“Existe um pensamento político brasileiro?” É com esta pergunta que Ricupero orienta suas incursões às obras dos principais in-térpretes da realidade brasileira. Diante da necessidade de conhecer melhor a singulari-dade do país, o autor se propõe a reexaminar as obras de seis grandes pensadores: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e Florestan Fernandes.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

América Afro-Latina, 1800-2000George Reid AndrewsEdUFSCar 320 páginas, R$ 36,00

George Reid conta a diáspora africana na América Latina. Cobrindo o período de emancipação até os dias de hoje, o trabalho sintetiza a história das pessoas de descendên-cia africana em cada país latino-americano. Ele examina, ainda, como ocorreram os processos que conduziriam estes povos da escravidão à liberdade e como moldaram e responderam às mudanças políticas, econô-micas e culturais em suas sociedades.

EdUFSCar (16) 3351-8137 www.editora.ufscar.br

BalmacedaJoaquim NabucoCosac Naify272 páginas, R$ 47,00

Joaquim Nabuco, a partir da leitura do livro Balmaceda, su gobierno y la revolución de 1891, de Julio Bañados Espinosa, discorre sobre o mandato do presidente chileno José Manuel Balmaceda, que se suicidou após a derrota na sangrenta guerra civil de 1891. Em uma série de artigos publicados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Nabuco concluiu que o drama chileno estava cheio de lições para o Brasil. É surpreendente a semelhança entre a morte do chileno e a de Vargas.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

A vida de José de AlencarLuís Viana FilhoEditora Unesp/ Edufba430 páginas, R$ 55,00

O livro de Luís Viana Filho não se de-bruça sobre a obra literária de José de Alencar, um dos principais autores do romantismo brasileiro, mas sim sobre sua vida. Valendo-se da correspondência do escritor e de materiais fornecidos pelo seu bisneto, a obra traça, além do perfi l do Alencar escritor, o perfi l do político – como deputado e ministro da Justiça –, a faceta menos estudada do biografado.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Sexo à moda patriarcal: o feminino e o masculino na obra de Gilberto FreyreFátima QuintasGlobal Editora184 páginas, R$ 32,00

Com base na obra freyriana, Fátima Quintas analisa as relações de gênero, em especial o papel das mulheres na vida cotidiana dos engenhos de cana-de-açúcar. Relegadas a segundo plano na historiografi a tradicional, nesta obra essas mulheres ressurgem em fragmentos: ora sensuais, ora maternais, mas sempre presentes na construção da sociedade colonial.

Global Editora (11) 3277-7999 www.globaleditora.com.br

Espaço público: do urbano ao políticoSérgio Luís AbrahãoAnnablume/ FAPESP194 páginas, R$ 35,00

O livro aborda o processo de contínua ressignifi cação pelo qual passa o concei-to de espaço público urbano. Focando o contexto brasileiro, desde a construção de Brasília à emergência dos movimentos democráticos, o autor recupera algumas das principais vertentes ideológicas que têm em comum a concepção dos espaços públicos urbanos como expressão material dos dilemas políticos e sociais.

Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br FO

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Música em debate: perspectivas interdisciplinaresSamuel Araújo, Gaspar Paz,Vicenzo Cambria (orgs.) Mauad X256 páginas, R$ 39,00

Desde 2004, o Laboratório de Etnomusico-logia da UFRJ vem realizando debates cujo propósito é a tematização da música sob as mais variadas perspectivas. Reunindo pesquisadores dos campos da etnomusi-cologia, antropologia, gestão cultural e direito, o livro apresenta as intervenções realizadas durante as três primeiras edições do evento e constitui rica contribuição àqueles que se interessam por uma refl exão contemporânea do assunto.

Mauad Editora (21) 3479-7422 www.mauad.com.br

O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no BrasilIrene RizziniCortez Editora200 páginas, R$ 28,00

Irene Rizzini se dispõe a traçar a trajetória dos malogros das políticas públicas nacio-nais referentes ao tratamento da população infanto-juvenil brasileira. O livro traz uma análise da legislação proposta e em vigor nos séculos XIX e XX, dos discursos par-lamentares e de fontes diversas, tais como jornais e obras de fi cção.

Cortez Editora (11) 3864-0111 www.cortezeditora.com.br

Crônicas inéditas I, 1920-1931 Manuel BandeiraCosac Naify464 páginas, R$ 65,00

Dando continuidade à obra em prosa do poeta Manuel Bandeira, iniciada com o clássico Crônicas da província do Brasil (2006), o livro reúne 113 crônicas, escritas entre o período de 1920 e 1931, e aborda os mais diversos temas como música, lite-ratura, cinema, arquitetura e política, além do Carnaval e os concursos de miss.Tudo narrado na forma peculiar de Bandeira.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

Em nome da América: os corpos da paz no Brasil (1961-1981)Cecília AzevedoAlameda Casa Editorial392 páginas, R$ 56,00

Através da análise de fontes ofi ciais e priva-das, o livro narra a história de voluntários de uma agência de missão assistencialista, criada no governo Kennedy, cujo fi m era atuar nas áreas sociais de comunidades pobres da América Latina – consideradas propícias ao avanço da “ameaça comunista” – e assegurar disseminação dos valores da sociedade norte-americana. A autora mostra a importância que esse tipo de ação teve na legitimação das políticas externas dos EUA.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

Revista Estudos Avançados/USPInstituto de Estudos AvançadosIEA384 páginas, R$: 27,00

A revista Estudos Avançados traz em seu número 62 o dossiê Nação/nacionalismo. Esta edição aborda os aspectos políticos e econômicos que permeiam o tema e procura retomar e aprofundar questões candentes do contexto internacional de nossos dias. Além de 16 artigos de autores como István Jancsó e Bresser-Pereira, a revista quadrimestral contém uma entrevista sobre economia solidária, com o professor Paul Singer.

Instituto de Estudos Avançados (11) 3091-1675 www.iea.usp.br/iea/revista/

Pateo do Collegio – Coração de São PauloHernâni DonatoEdições Loyola276 páginas, R$ 90,00

O jornalista Hernâni Donato faz um relato histórico e fartamente ilustrado dos princi-pais acontecimentos, desde a construção até os dias de hoje, do colégio que é o marco da fundação da cidade de São Paulo. O autor acompanha detalhadamente as transfor-mações e reformas pelas quais passou este monumento que deu origem àquela que viria a ser a maior metrópole do país.

Edições Loyola (11) 6914-1922 www.loyola.com.br

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FICÇÃO...

G erúndio

O relógio permanece no gerúndio. Não fazia diferença o horário em que a moça entrou na sala. Não faz diferen-ça, nunca fez. Alguma refl exão dessa natureza, sobre o

tempo ou sobre os verbos, fl utuava naquela hora em minha cabeça e quase não a teria notado, não fosse o tom de sua voz. Triste, humilde, mas com a ousadia dos desesperados. Pensou que eu fosse médico. Era um pesquisador, mas meu jaleco branco justifi cava o engano facilmente. Não, minha senhora, não acho que esteja com dengue. Em todo caso, está aqui para fazer exames, não é? Não, não sou médico. Não tem problema. Não incomodou. Existem muitos tipos de mosquito, pode não ser nada. Claro, faça isso, é melhor prevenir mesmo. Não precisa se desculpar. Pode ir por ali.

Ela tinha a pele manchada. Estava doente, os olhos e o nariz avermelhados. Curiosamente, as pesquisas que eu realizava naquela época eram destinadas ao departamento de virologia. O que não me conferia qualquer atributo de médico ou vidente que pudesse validar um diagnóstico para a mulher. Mas, lá com os botões de meu jaleco, minha tese era que ela, na verdade, padecia de pobreza. O hospital, vinculado à faculdade de medicina, recebia por dia milhares de enfermos que sofriam dessa mesma chaga. Vinham apre-sentando sintomas diversos, estado febril, purulências, dores, velhice. Mas a todos eles era comum o tumor inexpugnável da pobreza. Sentei-me outra vez, o relógio trabalhando no meu pulso, já me distanciando do olhar assustado da mulher e de sua lembrança incômoda. Não havia muito tempo.

Os vírus talvez me consumissem, a mim e a toda a hu-manidade, o que, cá entre nós, seria ótimo para o planeta. No entanto, eu trabalhava a favor dos meus, sempre, se-guindo o que fora ensinado na casa de meu pai. Defender os irmãos contra qualquer um, em qualquer situação. Pelo menos, era minha justifi cativa à época da faculdade e nos primeiros anos de laboratório. O tempo, porém, consumiu

boa parte de minha segurança nos méritos de se trabalhar para compreender melhor o mundo, em prol de uma sanha de dominação e sobrevivência da qual já não partilhava completamente no dia em que a mulher manchada entrou por engano na sala onde eu estava.

Segurando uma caneta, minha mão saltou à minha vista e afastou os pensamentos do vírus e da possibilidade de aniquilamento. Interessante é que, então, velho e já não me restando tanto tempo, minha capacidade de concentração era tamanha que beirava a neurose, muito diferente dos dias em que eu fora um homem livre de calendários, quando datas eram conceitos de sentido apenas social, nunca existencial. Tinha difi culdade em me libertar de qualquer pensamento, sobretudo daqueles que me distraíam de minha atividade cotidiana e me conduziam para mais perto do centro de minha inquietude. Naquele momento, a mão. A mão que riscava e atravessava o tempo. A mão que se apoiava no presente ainda com fi rmeza, apesar da idade. A mão que servia de parâmetro para a passagem do tempo.

Havia uma série de manchas e pintas que eu evitara durante anos – estavam todas ali, zombando de minha displicência. Os nós dos dedos permaneciam belos, era próximo do punho que o tal fi zera melhor seu trabalho. Einstein. Bailava em minha memória, mas à sua caricatura divertida somava-se o conceito de morte. Estava morto. Lorentz, Einstein. O tempo acabara com eles? O tempo deles se acabara? O meu, próximo do fi m. A mulher manchada, perdida em corredores de hospital. Todos nós, atônitos à passagem do tempo, cobertos de sonhos que nos permitam esquecê-lo. Três dimensões do espaço, mais o tempo: quarta dimensão. Uma dimensão, um conceito, uma linha num gráfi co, nada. E minha mão manchada – como a mulher perdida. Talvez estivéssemos todos perdidos.

Santo Agostinho me valesse naquele momento, minha mão não deixava dúvidas: o tempo não existia fora de nós.

Leandro Rodrigues

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Ele estava ali, impresso em manchas senis, naquela mão que segurava a caneta. Pousei-a na mesa. Abri os dedos. A mulher tinha a pele manchada, mas era jovem. Estava inevitavelmente carente de algo, não fosse de saúde seria de dignidade, de fé ou de um pai. Fazia 30 mil anos que o homem marcava o tempo, o tempo cíclico, o tempo li-near. Marcava a passagem do sol sobre nossas cabeças, da trajetória dos fi lhos de Caim até o apocalipse. O tempo de vida, o tempo de espera e o tempo de colher. Mas o tempo não passa, ó deus, nós é que passamos. Eu e todos os que vieram antes, e os que nem sonhamos que virão. Passamos e nos amparamos num conceito, numa divindade a quem culpar pelas manchas que nos nascem nas mãos, pelas perdas e pelo fim. Pulgas ousando no éter, carregamos atada ao pulso ou exposta na parede uma estimativa do futuro próximo e uma esperança de longevidade. De fato, apenas o que importava ali, naquele solilóquio frente a anotações e à mão pesada do presente, era a mulher que eu abandonei à deriva naquele imenso laboratório que era o hospital.

Ciente do nosso abandono, ergui o corpo pesado, ten-tando ser rápido. Dediquei a vida ao ensinamento de meu pai, defender os irmãos. Estudar as pestes que pudessem se aventurar em atrapalhar a nossa caminhada sobre o planeta. Mas não hesitei em abandoná-la, aquela que precisou de mim no momento presente e dentro das três dimensões do espaço. Enquanto eu deixava minha sala, entravam em minha mente as sombras inconvenientes de outras mulheres e homens que eu deixara pra trás. Caminhávamos todos juntos, eu talvez me houvesse dado conta disso tarde demais. Os corredores eram longos. Passei a correr. Um labirinto que eu conhecia bem até a área de atendimento de emergência. Embora não fosse médico, minha assiduidade naquele pré-dio me aproximava mais dos minotauros brancos que dos

que perambulavam por ali, manchados, à espera de uma informação. De uma esperança.

Esbarrei em um enfermeiro. Já estava o medo do enfarto rondando minha mente sexagenária. O relógio em meu pulso não parava, os ponteiros venciam a disputa com as pernas. Cheguei à sala lotada e não a vi. Em meu íntimo, eu sabia que nunca mais a veria. Viva ou morta, espaço e tempo seriam para nós a partir de então um obstáculo translúcido, mas intransponível. Percorri com o corpo e com a vista as fi las de bancos onde estavam homens, mulheres, crianças. Eles transbordavam dos assentos, havia gente em pé, gente nas paredes, fumantes no pátio de entrada. Eu sabia que ela não estava ali, mas procurei. Perguntei às atendentes, que fi ngiram me dar atenção em respeito ao meu cargo. Fui in-formado gentilmente de que seria impossível, pela descrição, saber se uma mulher passara por ali. Eram centenas, foram centenas. Nas entrelinhas do discurso, o convite para que eu me retirasse era onipresente.

Abandonei o hospital decidido a me aposentar de fato. Já o teria feito, não fosse a obediência ao ensinamento fami-liar – como não continuar trabalhando, eu que tinha tanto a contribuir, era a questão que em silêncio meus próprios amigos me repetiam. Sem jaleco e sem certeza, parei no primeiro boteco, ali mesmo, na rua. Havia muitos homens esquecendo o batente ou se lembrando vagamente do que um dia fora trabalhar. Quase todos jovens. Um deles, em-briagado, me perguntou: “E aí, tio, quem ganha o jogo hoje?”. Sorri, pedi uma cerveja. “Nós, claro.” O relógio permanece no gerúndio. Eu envelheço.

LIO

DE

AL

ME

IDA

Leandro Rodrigues nasceu em 1977, em São Paulo. Paralela-mente às suas atividades como professor de língua portuguesa e assistente editorial, escreve contos.

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