11
    Este artigo discute críticas feitas à eficácia da psicanálise no mundo contemporâneo, marcado pelo grande avanço da ciência. Freud e Lacan são consultados como representantes insubstituíveis de psicanalistas que convi- daram a ci ê nci aeara ci ona lidade a o deba t e , pre ocupa dos que e ra m com s uas conseqüências para a subjetividade humana. Conseqüências muito visíveis na a t uali dadee que faz e m a ps i ca náli se a i nda mais vi va , ao cont rá ri o do que alguns querem crer. Palavras-chave : Sa be r; Ve rda de ; D i scurso ca pi t a l i s t a ; Polí t i cade a rrepe ndi - mento. Te xt o rec ebido em abri l de 2002 e a prova do para publ i ca çã o e m maio de 2002. O historiador americano de origem francesa, Jacques Barzun (2002), cuja vida atravessou quase todo século XX, fala de um mal-estar e de um declínio na civili z a çã o ocide nt a l, onde o a ut or de O ma l -e s t ar na c i vi li z a çã o” j á o go z a de pre st í gio. Pa ra e s t eex-profe s s or da Uni vers i da dede Col umbi a, a re t ra çã o na inf l nci a de Freud é visível, seu legado está sob ataque e, nem de longe, se fala tanto nele quanto na primeira metade do século XX. D i ze r que a ps i ca náli s eéat a ca da não écontar nenhuma novi dade , j á que ist o a con- tece desde sua criação e o próprio Freud faz várias referências às hostilidades e questiona- mentos sofridos. Falar que os tempos de hoje são diferentes daqueles do início do século passado é dizer do óbvio. O que desperta interesse na fala de Barzun é a posição de total de s ca s o, t a mbém e xpe ri me nt ada por mui t osoutros , fre nteàs pos s i bi lidadesde cont ri bui - ções da psicanálise para as questões atuais da sociedade ocidental. (...) a esa frontera abierta, móvil y real, entre el sa- ber y lo real, Lacan la llama el sujeto de la ciencia. (Morel, 199, p. 21)

A Psicanalise No Mundo Da Ciencia

Embed Size (px)

DESCRIPTION

article

Citation preview

  • 82 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    Ilka Franco Ferrari

    A psicanlise no mundo da cincia

    RESUMOEste artigo discute crticas feitas eficcia da psicanlise no mundocontemporneo, marcado pelo grande avano da cincia. Freud e Lacan soconsultados como representantes insubstituveis de psicanalistas que convi-daram a cincia e a racionalidade ao debate, preocupados que eram com suasconseqncias para a subjetividade humana. Conseqncias muito visveisna atualidade e que fazem a psicanlise ainda mais viva, ao contrrio do quealguns querem crer.Palavras-chave: Saber; Verdade; Discurso capitalista; Poltica de arrependi-

    mento.

    Ilka Franco Ferrari

    Texto recebido em abril de 2002 e aprovado para publicao em maio de 2002.

    Ohistoriador americano de origem francesa, Jacques Barzun (2002), cuja vidaatravessou quase todo sculo XX, fala de um mal-estar e de um declnio nacivilizao ocidental, onde o autor de O mal-estar na civilizao j no gozade prestgio. Para este ex-professor da Universidade de Columbia, a retrao na influnciade Freud visvel, seu legado est sob ataque e, nem de longe, se fala tanto nele quantona primeira metade do sculo XX.

    Dizer que a psicanlise atacada no contar nenhuma novidade, j que isto acon-tece desde sua criao e o prprio Freud faz vrias referncias s hostilidades e questiona-mentos sofridos. Falar que os tempos de hoje so diferentes daqueles do incio do sculopassado dizer do bvio. O que desperta interesse na fala de Barzun a posio de totaldescaso, tambm experimentada por muitos outros, frente s possibilidades de contribui-es da psicanlise para as questes atuais da sociedade ocidental.

    (...) a esa frontera abierta, mvil y real, entre el sa-ber y lo real, Lacan la llama el sujeto de la ciencia.

    (Morel, 199, p. 21)

  • 83Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    A psicanlise no mundo da cincia

    Ele retrata bem o que vem acontecendo nos ltimos tempos nos EUA. Neste pas,que se destaca na liderana do avano nas neurocincias, j no se passa um dia sem quea eficcia da psicanlise seja criticada. Al, a paixo pela psicanlise, vivida no incio dosculo passado, foi trocada pela paixo mitologia cerebral. Hoje em dia, sua ineficcia alardeada, j que todos os esforos se concentram no sentido de encontrar o funciona-mento cerebral do psiquismo. A farmacologia, bastante desenvolvida naquela Amrica ebem difundida pelo resto do mundo, trouxe de volta a iluso da possibilidade de se en-contrar o modo de funcionamento feliz, j que no se pode negar que ela tem seu lado po-sitivo no apaziguamento do sofrimento, se utilizada de forma adequada.

    O mundo atual, estruturado pela cincia e dirigido pela razo, quer abandonar, ra-dicalmente, o sujeito que Freud valorizou. Nele, parece no haver espao para a dor, paraa tristeza, para as fraquezas, para tudo que venha da subjetividade humana, pois tudo pre-cisa ser resolvido de forma rpida, eficaz, limpa, direta. necessrio a tudo normalizar!A nfase que se d ao sucesso pessoal, valor fundamental das sociedades capitalistas e,o xito pessoal, obtido a qualquer preo, passou a ser o modelo social e econmico. Acon-tece que o tiro acaba saindo pela culatra. A angstia enorme, a solido coletiva, a me-lancolia evidente, as drogas so consumidas em abundncia... Desta forma, ainda quea psicanlise no seja querida no mundo cientfico, a subjetividade do homem a reclamacomo possibilidade de ser escutada.

    bom recordar, no obstante, que existem diferenas entre as prticas psicanal-ticas, reflexo de diferentes formas de se ler Freud. Kernberg (1994, p. 75), por exemplo,psicanalista da International Psychoanalytical Association (IPA), um dos que propema utilizao de investigao emprica no mundo da psicanlise, com a nobre inteno deconseguir o xito de transpor as barreiras tericas entre os psicanalistas, objetivando en-grandecer o mundo cientfico. Por outro lado, o movimento lacaniano se ope com radi-calidade objetividade proposta pelo empirismo, quando se trata de fazer uma clnica dosujeito.

    O que sem dvida causa polmica, em todos os grupos de psicanalistas, indepen-dentemente da escola a que pertenam, so crticas relativas ineficcia da psicanlise, cr-ticas alusivas de que a cincia evoluiu e a psicanlise permaneceu em seu mundo pr-ci-entfico, j que ela no se adapta aos modelos cientficos propostos pela cincia, seja qualfor sua poca. Um exemplo atual de tal situao o livro intitulado El psicoanlisis ex-plicado a los medios de comunicacin, escrito pelo ento presidente da Escola Europiade Psicanlise, Miguel Bassols (1997), imediatamente depois que Ferrer, professor doDepartamento de Metodologia da Universidade de Barcelona e doutor em psicologia,publicou no jornal La Vanguardia um artigo intitulado La insoportable levedad del psi-coanlisis. Desnecessrio dizer que foi grande a repercusso deste artigo que questio-nava a prtica psicanaltica, considerando-a pseudocientfica. O ambiente psi, aindaque dividido entre empiristas e no empiristas, reagiu manifestando seu desagrado e estepequeno livro, bastante enftico, foi s mais uma entre as vrias formas de repdio aoacontecimento.

  • 84 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    Ilka Franco Ferrari

    Parece que pelo menos em casos dessa monta, existe certo consenso por parte dospsicanalistas. Trata-se do fato de que se eles esto colocados junto aos descartveis da cin-cia, porque existe algo muito importante neste lixo: a subjetividade humana.

    A psicanlise no desconsidera a importncia da cincia e muito menos a evidnciade que ela passou a ser o ideal de todos, uma vez que nela h progressos reais, significativos.Tambm no ignora que ela pode ser feita, e o que tem acontecido, pelo vis do discursocapitalista, desenvolvido por Lacan, a partir do discurso do mestre, no texto O avesso dapsicanlise. Este seu Seminrio, escrito em 1969, se reveste de especial interesse porque,de certa forma, o comentrio da estrutura profunda dos acontecimentos de Maio de 68,no momento em que se produziam. Fato como este, segundo Laurent (1998), s podeser comparado a Sobre a luta de classe na Frana, onde Marx comenta diretamente o gol-pe de Estado de Napoleo III em 1848, e obra de Freud dos anos vinte anunciando otriunfo do partido totalitrio ocorrido dez anos depois. Em O avesso da psicanlise, aoconsiderar o discurso capitalista como a verdadeira forma de lao social da modernidade,Lacan mostra como ele sem lei e regido somente por imperativos, colocando a mais-valiano lugar da causa de desejo. O desejo passa a ser interpretado como desejo de objetos eno mais como desejo do desejo do outro, transformando o sujeito em consumidor deobjetos, todos, preferentemente, de uso rpido e facilmente substituvel, com conseqn-cias que no so simples. Ao estimular a iluso de completude no mais com a consti-tuio de um par e sim com um parceiro conectvel e descartvel ao alcance da mo (...)isso pode levar decepo, tristeza, ao tdio e nostalgia do Um em vo prometido, as-sim como a diversos tipos de toxicomania (Quinet, 2001, p. 17).

    FREUD E LACAN: A BUSCA DE DILOGO COM A CINCIA

    Freud, um pesquisador, muito cedo percebeu que suas descobertas no tinham es-pao no saber cientfico da poca, que suas idias sobre a existncia de um saber no sin-toma neurtico e psictico e, conseqentemente, da existncia de um pensamento in-consciente no agradavam em nada aos cientistas. Segundo ele, a psicanlise j surgiu in-sultando o mundo inteiro, a partir de duas hipteses que lhe pareciam suficientes para fa-zer com que ela perdesse a simpatia de todos os amigos do pensamento cientfico (1915-1916, p. 35). Tais assertivas, que lhe ocorreram a partir do que as histricas lhe haviamensinado, diziam respeito, em primeiro lugar, ao fato de que os processos mentais so, emsi mesmos, inconscientes e da, de toda vida mental, apenas determinados atos e partesisoladas da vida mental so conscientes. Em segundo lugar, presena da sexualidade naorigem das doenas nervosas. Dessa forma, no sendo cego para observar, Freud tinhatambm a capacidade de escutar esse algo, esse pensamento que gritava sua verdadedesde os espaos no cobertos pela cincia, causando desconforto a muita gente e no seencaixando nos modos cientficos sustentados no valor dado conscincia. Sobre a cons-cincia, o que muito lhe importava era constatar que, por meio dela, o homem tem consci-

  • 85Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    A psicanlise no mundo da cincia

    ncia de que no livre, tem conscincia de que h algo que age nele, apesar e a contragostodele. Se suas descobertas no podem ser reproduzidas por meio da experimentao, con-ferindo-lhe o valor de saber cientfico, porque Freud se encontrou, exatamente, com ou-tra repetio: aquela que diz de um saber que no sabe a si mesmo, subjetivado e, portanto,muito diferente do saber consciente da cincia.

    Este pesquisador, admirador do cientista Darwin, ainda que tivesse inicialmenteuma viso muito positivista de cincia, acabou por enfraquecer a filosofia da objetividade,ao ensinar que a objetividade no exterior subjetividade, pois o racional se submergeno emocional, que o contedo manifesto do pensamento supe desejo, pensamentos la-tentes, e que so as paixes as que governam a inteligncia do homem. Sua psicanlise eradirecionada para as cincias naturais, porque nela permeava a crena de que um dia a bio-logia daria uma explicao para o psiquismo. Seu caminho, no entanto, j era outro queo da biologia, desde 1895, no Projeto para uma psicologia cientfica, acabando por dei-xar a outras geraes o legado da autonomia do psiquismo. Realmente, diante disso, a rea-o que despertava no podia ser a indiferena e tampouco somente a desconsiderao.Vale recordar, uma vez mais, que em 1932, quando a Liga das Naes e seu Instituto deCooperao Intelectual propuseram quele que consideravam o mais eminente cientistada poca que elegesse, por sua conta, um interlocutor para dialogar sobre os problemasda paz mundial, Albert Einstein escolheu a Freud.

    O comum, no obstante, que o leitor ao transitar pelos escritos de Freud encontreo pensador preocupado pelo desinteresse da cincia pela vida psquica que acabava mercde leigos, poetas e filsofos (1915-1916; 1915; 1927). Acontece que, no final do sculoXIX, semelhana do que se vive hoje, houve avano na biologia e certo reducionismodo psiquismo a mecanismos cerebrais, mas, paradoxalmente, foi tambm poca do sur-gimento de muitas prticas mgicas e criaes mitolgicas. Freud querendo compreendero que se passava, denunciou esta aparente contradio e mostrou que a cincia, sendo ci-entfica em demasia, no se dava conta de que desconsiderava o psiquismo e promovia noshomens a busca de outros meios tais como a religio e a magia, onde houvesse possi-bilidades para viver o subjetivo, o simblico sobre o ser, a vida, a morte, a sexualidade,ou seja, onde o corpo j no fosse mais pura matria. Assim, em toda sua obra est tambmo rigoroso investigador observando, descrevendo, agrupando fenmenos, criando sua psi-copatologia para alm dos fenmenos, construindo a prtica, abrindo portas para que ou-tros, quantos queiram, necessitem ou desejem, passem. Preocupado com a singularidadedo caso a caso, no ignorou a cultura. Sua constante preocupao com a civilizao e comos modos coletivos de organizao religio e poltica at lhe rendeu comentrios deque sua misso curativa mais global que individual (Laurent, 1991).

    O freqentador da obra freudiana encontrar, todavia, principalmente o psicana-lista que valora a cincia como um limite necessrio iluso e que recorre fsica e fi-siologia de sua poca para teorizar o inconsciente, promovendo um cientificismo para apsicanlise que no podia ser cincia. E, neste ponto, ele j ter condies de compreendero motivo pelo qual Lacan escreveu em Del sujeto por fin cuestionado (1998) que a psi-

  • 86 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    Ilka Franco Ferrari

    canlise nasceu com a cincia, assim como o porqu de sua permanente insistncia emapontar o que elas tm em comum, sendo to diferentes. Para Lacan, a psicanlise igual cincia porque tambm supe saber a desvelar e diferente porque valoriza, exatamente,aquilo que a cincia nada quer saber, ou seja, o sujeito deste saber.

    O sujeito lacaniano, diferente do cartesiano, aquele que rechaa os saberes exis-tentes sobre seu sintoma porque nele existe um saber que diz do inconsciente. Desta for-ma, este saber no est separado da verdade de seu ser e tanto assim que ele sofre, exa-tamente, da verdade que est no sintoma. O conceito de sujeito, bsico para a prtica laca-niana, muito diferente de pessoa, de indivduo ou de um corpo que pode ser contado,enumerado, medido, avaliado e, desta maneira, sua categoria s pode ser colocada na di-menso tica. Sendo assim, no h modo lacaniano de fazer experimentos ou praticar aobservao tal qual prope o mtodo cientfico. Ao se tentar faz-lo, o que se encontra soporcentagens e jamais o sujeito, como afirma Miller (1998).

    Miller, um dos principais representantes dos ensinos lacanianos, sempre que pos-svel, fala claramente da frustrao da ambio de Lacan, em seus mais de trinta anos detrabalho tentando dar estatuto de cincia psicanlise, j que todavia estamos em umtempo e talvez permaneamos nele onde a psicanlise est em impasse com relao sexigncias do saber cientfico (1999).

    notrio que Lacan recorre lingstica, teoria dos jogos, teoria dos conjuntos, topologia e teoria dos ns, buscando tal estatuto de cincia para a psicanlise. O an-coramento no discurso matemtico, por exemplo, se deve ao fato de que este discurso a franja da linguagem que mais se aproxima do real. Para ele, a cincia, em suas relaescom o que vai alm dos saberes, ou seja, a verdade, era a partenaire da psicanlise e, acercado tema, seu texto La ciencia y la verdad se reveste de especial interesse. Pelos caminhosde Bachelard, Koyr e a cincia moderna, no obstante, ele no se cansa de convidar a ci-ncia ao dilogo em El mito individual del neurtico (1953), Funcin y campo de lapalabra (1953), Kant con Sade (1962), Nota a los italianos (1973) e Televisin(1973)...

    Ao afirmar que a psicanlise depende da cincia, por ter encontrado no saber ci-entfico, depois de Kant, sua condio de possibilidade tica e, depois de Galileu e New-ton, sua condio epistemolgica, Lacan tambm enfatiza o quanto a cincia incompletae inumana e, por isto, a psicanlise sempre encontrou seu lugar no mal-estar da cultura.Este seu carter inumano deu origem a um protesto humanista, desejoso de ocupar-se doverdadeiro, do belo, do bem e do mal, protesto que reivindicou certo gozo da ignorncia,frente ao saber cientfico, e originou o que Lacan chamou a douta ignorncia humanista.Ignorncia que sabe mais que o saber cientfico e que ao fazer a pergunta sobre a verdade,cria uma barreira ao saber cientfico. Miller v que as direes dos comits de tica se en-contram nesse sentido e que a psicanlise estaria no ponto onde trataria de ocupar-se daquesto da verdade com os meios da cincia (1999, p. 21). Dito de outro modo, a psi-canlise continua em posio de dialogar com a cincia e a racionalidade.

    Em El mito individual del neurtico, por exemplo, ao comentar crticas sobre

  • 87Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    A psicanlise no mundo da cincia

    o no-cientificismo da psicanlise, Lacan acaba por aproxim-la das artes liberais da IdadeMdia, naquilo que diz respeito preservao da relao do homem com ele mesmo, umarelao interna, fechada em si mesma, inesgotvel, cclica, que o uso da palavra comporta.O modelo do real que vem da cincia, igual para todos, j era por ele denunciado naquelapoca e, claramente, no lhe servia.

    A ATMOSFERA DE VERDADE DA CINCIA

    Na psicanlise e na cincia existe a dialtica entre encontrar saber no real e operarcom este saber sobre o real.

    Nessa operao dialtica, que acontece no campo da cincia, os cientistas se con-frontam com uma fronteira mvel entre o saber e o real a qual, por exemplo, faz com quealgo seja vlido para uma determinada poca e no para outra. Morel (1991), ao tratardesse tema, sugere que se pense na descoberta das leis da gravidade e a frmula de atraof = mm/g desenvolvida por Newton. O real obedece a essa frmula matemtica e, lgico,j era assim antes dela ser formulada. Mas, se foi necessrio que algum um dia a formu-lasse para converter-se em saber cientfico, algum tambm, em outro dia, percebeu quea trajetria de Mercrio no obedecia s leis de Newton e constatou que no real havia algoque converteria a lei newtoniana em falsa ou inexata... Chega o momento, assim, em quea cincia se depara com aquilo que impossvel saber, ainda que existam at esforos ma-temticos. E so situaes como essas que permitem que as crenas testas se faam muitofreqentes entre os cientistas. Deus e o cientista homem e no, Deus e a cincia pro-priamente dita. Nas cartas de Gdel para sua religiosa me de oitenta e dois anos (Pa-lomera, 1991), pode-se ver como ele, por exemplo, encontrou uma soluo para essaquesto. Com muito carinho, ele lhe d uma aula de Lgica e Matemtica, ao dizer-lhesobre Deus e o universo j que via as crenas testas como algo que no se separava dosproblemas formulados na Lgica e na Matemtica.

    A epgrafe que inicia este texto mostra o quanto Lacan estava seguro dos dramasdo mundo cientfico. Chama de sujeito da cincia fronteira aberta, mvel e real, entreo saber e o real e define a cincia pelo fracasso no esforo de fechar, suturar esse sujeito,ou seja, essa fronteira. Tenta suturar fazendo coincidir todo o real com o saber. A psi-canlise, para ele, nessa dialtica procura fazer surgir o sujeito que produzido, exa-tamente, nesta fronteira que supe saber e gozo, simblico e real. Busca fazer surgir o su-jeito de um saber no universal, j que o inconsciente no coletivo, na certeza de queo deciframento deste saber tambm tem limites.

    Quando Gdel nos anos trinta contribuiu para uma crise nos fundamentos da ma-temtica com seu artigo Sobre enunciados formalmente indecidibles de Principia Ma-thematica y sistemas afines (1931), deprimido com sua descoberta, ele no tinha idiaque Lacan tambm chocaria o mundo incluindo seu teorema na teoria de conjunto quepropunha para a psicanlise. Ou seja, que Lacan diria que a lgica matemtica a cincia

  • 88 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    Ilka Franco Ferrari

    do real porque permite captar a noo de impossvel, chegando a utilizar o teorema g-deliano para ajudar a entender o inconsciente freudiano. Como no difcil ento de seconstatar, a cincia moderna, em vrias circunstncias, se deparou com a impossibilidadee teve que repensar a diviso cartesiana que propunha a Deus a verdade e aos cientistaso saber.

    Gratos a Newton e tantos outros grandes cientistas que possibilitaram que os furosno saber cientfico aparecessem em pontos considerados muito bem estruturados, amar-rados, os atuais praticantes de psicanlise que labutam na rea da clnica e da sade mentalcontinuam dando o testemunho das tentativas de suturamento do real, nesses locais ondeos limites da prtica so continuamente testados. O avano da farmacologia evidentee a clorpromazina, descoberta nos anos cinqenta, inaugurou no s outra poca no sabermdico, mas comeou a desconstruo dos fundamentos de certa aliana da psiquiatriacom a psicanlise, desconstruo que continuaria por meio da descoberta dos ansiolticose antidepressivos. Como discurso terico experimental, a psicofarmacologia iniciou nes-se momento seu lento mas decidido processo de oferecer psiquiatria tanto fundamentobiolgico quanto um instrumento teraputico dotado de alguma eficcia operatria(Birman, 2001, p. 22). O tratamento pelo medicamento aparece como a grande soluo:ele prescinde at mesmo da presena humana para acontecer. Assim, gera lucros de todasas formas! Mas,... a tentativa do controle cada vez mais eficaz das produes sintomticasa que a farmacologia se prope no consegue ser assegurada. A insatisfao crescente de-pois destes anos de descoberta dos psicofrmacos. No pura coincidncia o registro deque concomitante ao grande avano da farmacologia nos EUA, tambm avanaram asprticas msticas. A psicanlise ensina, desde muito tempo, que se o sujeito no encontraguarida na cincia, se ela cientfica demais a ponto de nela ele no ser levado em conta,seu caminho se dirige religio e magia.

    Os pacientes tm sido reduzidos, uma vez mais, a neuro-hormnios, e a psiquiatriabiolgica a psiquiatria de ponta. As queixas dos pacientes j no tm maior im-portncia que aquela de dizer que medicamento regular, outra vez, seu desarmnico fun-cionamento, eliminando o sofrimento. A enfermidade perdeu sua inscrio no registro dalinguagem, uma vez que dela foi esvaziada a existncia de um saber por parte do paciente.A dimenso histrica daquele que porta a enfermidade pouco importa e, ao invs de lheser possibilitada a palavra, rapidamente lhe so feitos pedidos de exames ou lhe oferecidoo remdio para que se cale. Os diagnsticos so dados pela forma que se comporta o pa-ciente, inclusive, pelo seu comportamento aps a medicao x. Quando algo da di-menso da escuta existe, ela destinada sndrome descrita nos Cdigos de Doena. Nes-ta situao, a psicanlise voltou a ser aquilo que os psiquiatras e outros devem evitar, emnome da cincia. Aqueles, estudando e receitando os frmacos; os outros, ingerindo-ospara a felicidade de todos.

    As constantes convocaes de comits de tica objetivando orientar certos de-bates e definir normas mnimas de ajustes desta indstria de servios problemtica dosdireitos humanos fazendo a distribuio da culpa so, por si prprias, orientaes no sen-

  • 89Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    A psicanlise no mundo da cincia

    tido de que algo vai mal no enfatizado ideal de eficcia e com aqueles que com ele se iden-tificam. Ecoa sensatez no dizer de Laurent (1998) sobre o fato de que o sculo XX ca-racterizado pelo sintoma mundial da poltica de arrependimento na poltica, pelo pedidoao outro de uma declarao de arrependimento. A Igreja catlica, por exemplo, se ar-rependeu publicamente de suas aes contra os judeus, a sociedade sua por suas am-bigidades durante a guerra, os EUA pela escravido, Ehud Barack, chefe da oposio emIsrael, pediu perdo aos serfadies pela humilhao dos anos cinqenta etc. Situaes con-sideradas por este autor como chamadas que ocupam o lugar da desiluso mais que a po-sio da dimenso tica.

    RISCOS NA DEMONSTRAO DE EFICCIA

    Diante de tal exposio que no esgota e nem tem a pretenso de esgotar a com-plexidade do tema proposto, pelo menos no difcil concluir que o ideal do funciona-mento eficaz esvazia o sentido edpico dado pelo amor ao pai e ocupa o lugar do Nomedo Pai. Em nome da verdade, os limites de eficcia so constantemente verificados, in-clusive os da psicanlise. Na atualidade, em nome da verdade, ela tem sido verificada emsua eficcia frente s nostalgias pelo amor ao pai.

    Para Barzun, a decadncia da cultura ocidental se expressa pela perda de energia eem lugar das possibilidades h estagnao, repetio, tdio... O estado da alma ocidentalno feliz e as confisses de mal-estar so contnuas, o repdio e a deturpao das ins-tituies so uma constante... O Estado-Nao, uma das maiores invenes de nossa era,est se desfazendo em toda parte... Ainda que na reportagem ele no diga qual o remdiopara tal situao, acredita que ele existe, mas no na psicanlise. bem verdadeiro quea psicanlise no pode ocupar-se de toda a questo. bem verdadeiro, tambm, que aqui-lo que ele retrata do mal-estar que percebe j era anunciado por Freud e Lacan e que osanalistas atuais no foram surdos a estes ensinamentos.

    Os analistas de hoje no so os da poca de Freud ou at mesmo de Lacan. Comobem disse Roudinesco, se eles no tm novos mestres porque talvez se recusem a ter mes-tres menores, mas o prottipo do analista de gravata e div j est distante. Eles, hoje, po-dem estar em seus consultrios, mas tambm esto nas comunidades, nas periferias, noshospitais, no social. So os analistas cidados (Laurent, 1999), aqueles que discutem asnovas formas de sintoma presentes no mundo, estando atentos dialtica existente entreo encontrar saber e operar sobre o real na psicanlise. Em nome de outra verdade, da ver-dade do inconsciente, os psicanalistas tm importante papel a desempenhar na civilizaocontempornea; inclusive, o de denunciar as contribuies da cincia para o mal-estar nacultura.

  • 90 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    Ilka Franco Ferrari

    Referncias bibliogrficas

    BARZUN, J. O apago na cultura. Veja, n. 14, p.11-15, 2002.

    BASSOLS, M. El psicoanlisis explicado a los medios de comunicacin. Barcelona: Eolia, 1997.

    BIRMAN, J. Despossesso, saber e loucura: sobre as relaes entre psicanlise e psiquiatria hoje.In: QUINET, A. (Org.). Psicanlise e psiquiatria controvrsias e divergncias. Rio de Janeiro:Rios Ambiciosos, 2001. p. 21-30.

    CHARRAUD, N. Que infinito para el psicoanlisis? Freudiana, n. 2, p. 5-16, 1991.

    FREUD, S. (1915). As pulses e suas vicissitudes. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.v. XIV, p. 128-162.

    FREUD, S. (1915-1916). Conferncia I. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. v. XV,p. 27-37.

    FREUD, S. (1915-1916). Psicanlise e psiquiatria. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.v. XV, p. 223-234.

    FREUD, S. (1917-1919). Nuevos caminos de la terapia psicoanaltica. In: Obras completas.Buenos Aires: Amorrortu. v. XVII, p. 151-164.

    FREUD, S. (1927). O futuro de uma iluso. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. v. XXI,p. 15-74.

    FREUD, S. (1932). Conferncia XXIX: Reviso da teoria dos sonhos. In: Obras completas. Riode Janeiro: Imago. v. XXII, p. 17-44.

    FREUD, S. (1933 [1932]). Por que a guerra? (Einstein e Freud). In: Obras completas. Rio deJaneiro: Imago. v. XXII, p. 234-259.

    KERNBERG, O. Validations in the clinical process. Int. J. Psychoanal, n. 75, p. 1.193, 1994.

    LACAN, J. Psicoanlisis y medicina. Intervenciones y textos, n. 1, p. 87-99, 1985.

    LACAN, J. O Seminrio, livro XVII: O avesso da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

    LACAN, J. Del sujeto por fin cuestionado. In: Escritos 1. Madrid: Siglo XXI. p. 219-226, 1998.

    LACAN, J. La ciencia y la verdad. In: Escritos 2. Madrid: Siglo XXI. p. 834-858, 1998.

    LAURENT, E. Psicoanlisis y ciencia: el vacio del sujeto y el exceso de objetos. Freudiana, n. 3,p. 58-66, 1991.

    LAURENT, . La tica del psicoanlisis hoy. Freudiana, n. 23, p. 7-18, 1998.

    ABSTRACTThis article discusses some criticisms of the efficacy of psychoanalysis in thecontemporary world, marked by great advances in science. Freud and Lacanare investigated as irreplaceable psychoanalysis icons, who have invitedscience and rationality to debate, concerned with its consequences tohuman subjectivity. Those consequences are most acutely perceivable atpresent, and render psychoanalysis even more alive, despite some peoplesrefusal to believe it.Keywords: Knowledge; Truth; Capitalist discourse; Regretfulness policy.

  • 91Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 82-91, jun. 2002

    A psicanlise no mundo da cincia

    LAURENT, . O analista cidado. Curinga, n. 13, p. 12-19, 1999.

    LAURENT, . Estado, sociedad, psicoanlisis. Uno por Uno, Revista Mundial de Psicoanlisis,n. 40, p. 34-52, 1994.

    MILLER, J.-A. El pase del psicoanlisis hacia la ciencia: el deseo de saber. Freudiana, n. 26,p. 7-22, 1999.

    MOREL, G. Ciencia y psicoanlisis. Freudiana, n. 2, p. 17-30, 1991.

    PALOMERA, V. Dialogos en el mas alla Cuatro cartas de Kurt Gdel a su madre. Freudiana,n. 2, p. 53-62, 1991.

    PALOMERA, V. Cmo la ciencia exculpa. En la Fundacin del Campo Freudiano. In: El sn-toma charlatan. Barcelona: Paids. p. 297-303, 1998.

    QUINET, A. A psiquiatria e sua cincia nos discursos da contemporaneidade. In: (Org.). Psi-canlise e psiquiatria controvrsias e divergncias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. p. 13-20,2001.

    ROUDINESCO, E. Programa Roda Viva, TV Cultura.