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A qualidade da vida Edgar MORIN Como o rumo atual de nossa civilização privilegia a quantidade, o cálculo, o ter, eu me empenharei em estabelecer uma vasta política de restauração ou instauração uma da qualidade da vida, da primazia do ser sobre o ter, da preocupação com o que não pode ser calculado, a felicidade, a infelicidade, a alegria, a dor, o prazer de fazer o bem, a emoção estética e paixão de conhecer. Nesse sentido, favorecerei tudo o que combate as múltiplas degradações da atmosfera, da alimentação, das águas, da saúde. Todas as medidas de economia de energia devem constituir um ganho em matéria de saúde e qualidade de vida. Dessa maneira, a desintoxicação da atmosfera dos centros das cidades dos poluentes automotivos deverá traduzir-se pela diminuição das bronquites, asmas, doenças, psicossomáticas. A desintoxicação dos lençóis freáticos conduz à eliminação progressiva da agricultura e da pecuária industriais em proveito do desenvolvimento rural de culturas biológicas que restaura a qualidade dos alimentos e a saúde do consumidor. A conscientização das intoxicações da civilização, como a provocada pelos automóveis, à intoxicação consumista pra os que têm acesso, o desperdício de objetos descartáveis, a moda que não para de tornar os produtos do ano passado em obsoletos, a intoxicação publicitária que garante oferecer juventude, beleza, prazer, nos produtos supérfluos e por meio deles, tudo isso deve nos conduzir a uma inversão da busca pelo mais em prol de uma marcha rumo ao melhor. Tudo isso se inscreve em uma ação continua em favor de duas correntes que começaram espontaneamente, mas que é preciso desenvolver: a reumanização das cidades a revitalização da zona rural. Está última inclui a necessidade de substituir a agricultura e pecuária industriais pelas atividades rurais neocamponesas e o reavivamento das cidades da padaria e do bistrô. Dessa forma, a preocupação ecológica não pode ser considerada como um adendo na ação política, ela se encontra em todos os domínios da política, da sociedade, da vida cotidiana e contribui para transformar tudo para o melhor. Em matéria de emprego, eu instituiria ajudas destinadas à criação e ao desenvolvimento de atividades profissionais de solidariedade e de todas as atividades que contribuíssem para a qualidade de vida. A política de grandes obras que eu proporia, a fim de desenvolver o transporte rodoviário e ferroviário combinados, alargar e equipar os canais, criar cinturões de estacionamento ao redor das cidades e dos centros das cidades, permitirá criar empregos e, simultaneamente, melhorar a qualidade de vida. Os gastos e investimentos necessários para isso serão amplamente compensados em alguns anos pela diminuição das doenças sociopsicomossomáticas provocadas pelo stress, poluições e intoxicações. Em matéria de economia, eu agiria em favor de uma economia plural; um pouco por toda a parte, de maneira dispersa, uma economia plural está em gestação no planeta e seus desenvolvimentos

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A qualidade da vidaEdgar MORIN

        Como o rumo atual de nossa civilização privilegia a quantidade, o cálculo, o ter, eu me empenharei em estabelecer uma vasta política de restauração ou instauração uma da qualidade  da vida, da primazia do ser sobre o ter, da preocupação com o que não pode ser calculado, a felicidade, a infelicidade, a alegria, a dor, o prazer de fazer o bem, a emoção estética e paixão de conhecer.       Nesse sentido, favorecerei tudo o que combate as múltiplas degradações da atmosfera, da alimentação, das águas, da saúde. Todas as medidas de economia de energia devem constituir um ganho em matéria de saúde e qualidade de vida. Dessa maneira, a desintoxicação da atmosfera dos centros das cidades dos poluentes automotivos deverá traduzir-se pela diminuição das bronquites, asmas, doenças, psicossomáticas. A desintoxicação dos lençóis freáticos conduz à eliminação progressiva da agricultura e da pecuária industriais em proveito do desenvolvimento rural de culturas biológicas que restaura a qualidade dos alimentos e a saúde do consumidor.      A conscientização das intoxicações da civilização, como a provocada pelos automóveis, à intoxicação consumista pra os que têm acesso, o desperdício de objetos descartáveis, a moda que não para de tornar os produtos do ano passado em obsoletos, a intoxicação publicitária que garante oferecer juventude, beleza, prazer, nos produtos supérfluos e por meio deles, tudo isso deve nos conduzir a uma inversão da busca pelo mais em prol de uma marcha rumo ao melhor.    Tudo isso se inscreve em uma ação continua em favor de duas correntes que começaram espontaneamente, mas que é preciso desenvolver: a reumanização das cidades a revitalização da zona rural. Está última inclui a necessidade de substituir a agricultura e pecuária industriais pelas atividades rurais neocamponesas e o reavivamento das cidades da padaria e do bistrô.     Dessa forma, a preocupação ecológica não pode ser considerada como um adendo na ação política, ela se encontra em todos os domínios da política, da sociedade, da vida cotidiana e contribui para transformar tudo para o melhor.     Em matéria de emprego, eu instituiria ajudas destinadas à criação e ao desenvolvimento de atividades profissionais de solidariedade e de todas as atividades que contribuíssem para a qualidade de vida. A política de grandes obras que eu proporia, a fim de desenvolver o transporte rodoviário e ferroviário combinados, alargar e equipar os canais, criar cinturões de estacionamento ao redor das cidades e dos centros das cidades, permitirá criar empregos e, simultaneamente, melhorar a qualidade de vida. Os gastos e investimentos necessários para isso serão amplamente compensados em alguns anos pela diminuição das doenças sociopsicomossomáticas provocadas pelo stress, poluições e intoxicações.       Em matéria de economia, eu agiria em favor de uma economia plural; um pouco por toda a parte, de maneira dispersa, uma economia plural está em gestação no planeta e seus desenvolvimentos permitiriam, enfim, superar a ditadura do mercado mundial. Na França, a economia plural, que incluirá as grandes empresas mundializadas, desenvolverá não apenas as pequenas e médias  e as empresas cidadãs, como também as cooperativas e fundos de ajuda mútua de produção e/ou consumo, os empregos de solidariedade, o comércio eqüitativo, a ética econômica. Desenvolveremos a poupança solidária (seguindo o exemplo da caixa solidária do Nord-Pas-de-Calais) que mobiliza a poupança para financiar projetos de proximidade que criam empregos e respeitam as pessoas e o meio ambiente; generalizaremos o microcrédito (hoje, dez mil empresas de microcrédito servem cem milhões de pessoas no mundo). O desenvolvimento da alimentação de proximidade, independente dos grandes circuitos intercontinentais, nos fornecerá produtos agrícolas de qualidade e, além disso, nos preparará para enfrentar as eventuais crises ou guerras planetárias.         No que diz respeito à educação, muito mais do que nos oferecer um certificado de aprovação quanto ao nosso sistema educacional e de nos limitar ao desejo de aumentar nossos bens materiais, é preciso reconsiderar a missão primordial, muito bem formulada por Jean-Jacques Rousseau em Emilio: “Quero ensiná-lo a viver.” Trata-se de fornecer os meios para enfrentar os problemas fundamentais e globais que afetam cada indivíduo, cada sociedade  e toda a humanidade. Esses problemas são desintegrados nas e por meio das disciplinas compartimentadas, o que nos impede de concebê-los. Para começar, eu instituiria um ano propedêutico para todas as disciplinas sobre: os risos de erros e de ilusão no conhecimento: as condições para um conhecimento pertinente; a identidade e a condição humana; a era planetária em que vivemos; o enfrentamento das incertezas, a compreensão

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humana. Eu acrescentaria a isso uma educação de civilização contemporânea: a vida urbana ( com as megalópoles); as relações entre as cidades e o campo; a humanização das cidades e a revitalização das zonas rurais; o individualismo e as solidariedades; a cultura juvenil; a evolução da família; a situação da velhice; a educação do consumo; a intoxicação provocada pelos automóveis; a educação para as férias, a educação diante das mídias.       Todas as reformas aqui indicadas se conjugariam numa grande reforma que, conduziria a uma metamorfose da sociedade.       O entusiasmo para a grande reforma surgirá das grandes profundezas do nosso país quando ele próprio perceber que ela se encarrega de suas necessidades e de suas aspirações: na França existem inumeráveis manifestações de vitalidade básica que fervilham de iniciativas solidárias, ecológicas, regeneradoras. Esclerosado em todas as suas estruturas, o país permanece vivo em sua base. Religaremos, faremos reunir, desenvolveremos, exemplificaremos todas as iniciativas que se originam da base.       A mudança individual e a mudança social serão inseparáveis, pois sozinhas são insuficientes. A idéia de um melhor viver inclui um aprimoramento ético permite fazer a ligação entre as duas mudanças. Não se pode compartimentalizar nada.       A reforma política, a reforma do pensamento, a reforma da sociedade, a reforma da vida são necessidades inter-relacionadas. Sem dúvida alguma, o futuro é incerto e para muitos não existe mais futuro concebível. Por isso, abrimos uma via para um futuro possível. A partir então, poderemos superar o medo do futuro, a perda do futuro que caracteriza a época atual. Restauraremos o futuro e, com isso, a esperança. Essa via poderá ser aberta em primeiro lugar na França e, depois, esperar que a Europa inteira adote, fazendo da França novamente um exemplo, ela nos permitirá indicar a via para a salvação planetária. 

 Edgar Morin. A minha esquerda, 2011.- Texto inédito (2007)