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JOHN MICKLETHWAIT & ADRIAN WOOLDRIDGE A QUARTA REVOLUÇÃO A CORRIDA GLOBAL PARA REINVENTAR O E STADO Tradução de Miguel Freitas da Costa

A QUARTA REVOLUÇÃO - static.fnac-static.com · Quando os chineses modernizaram a sua economia, viraram-se para o Ocidente em busca de inspiração e a academia de liderança continua

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J O H N M I C K L E T H WA I T & A D R I A N W O O L D R I D G E

A Q U A R T A R E V O L U Ç Ã O

A C O R R I D A G L O B A L P A R A R E I N V E N T A R O E S T A D O

T r a d u ç ã o d eM i g u e l F r e i t a s d a C o s t a

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Í N D I C E

INTRODUÇÃOO Leviathan e os seus descontentesPorque tem de mudar

Porque importam as ideias

PRIMEIRA PARTE – AS TRÊS REVOLUÇÕES E MEIA

CAPÍTULO 1 – Thomas Hobbes e a Ascensão do Estado-Nação O nascimento do Leviathan A construção do Leviathan

CAPÍTULO 2 – John Stuart Mill e o Estado LiberalUm liberal a favor do Estado grande? Esquerda volver

CAPÍTULO 3 – Beatrice Webb e o Estado-providência A Nova Jerusalém O sonho global

CAPÍTULO 4 – O Paraíso Perdido de Milton Friedman A crise do Estado-providência O ricochete A revolução que triunfou pela metade

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SEGUNDA PARTE – DO OCIDENTE PARA O ORIENTE

CAPÍTULO 5 – Os Sete Pecados Mortais – e Uma Grande Virtude – do Governo da Califórnia

1. De um outro século 2. A doença de Baumol 3. A lei de Olson 4. O Estado hiperativo 5. Matemática incerta 6. Àqueles que têm, mais lhes será dado 7. Paralisia política e bloqueio partidário

Apresentamos-lhe o maior problema de todos: nós… E uma grande virtude

CAPÍTULO 6 – A Alternativa Asiática Um amor inevitável Uma ama elitista – mas magricela A delícia de uma boa ordem social O Leviathan como capitalista-chefe Do maoismo à meritocracia A contas com o consenso de Beijing

TERCEIRA PARTE – OS VENTOS DE MUDANÇA

CAPÍTULO 7 – O Sítio Onde o Futuro Aconteceu PrimeiroJá vi o futuro e é loiroA reversão de Baumol?O futuro é cinzento, não vermelhoFicar com o bolo e comê-lo

CAPÍTULO 8 – A Reparação do Leviathan As quatro terríveis premissas É realmente bastante difícil Porque pode ser diferente desta vez O nó da questão Arranjaroestado.com As delícias do pluralismo O encanto da diversidade Rumo ao localismo Uma pitada de experimentação

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CAPÍTULO 9 – Para Que Serve o Estado? A política da liberdade O paradoxo do Leviathan A sobrecarga e os seus descontentes Aliviar o fardo Que usem outros as pratas Capitalismo de compadrio à beira do Potomac Aparar direitos sociais Acorda, Maggie

Mil anos depois, um bom século A necessitar seriamente de uma remodelação Da disfunção democrática ao mal-estar democrático Capitalismo, globalismo e democracia Reequipar e rever

NOTASAGRADECIMENTOSÍNDICE REMISSIVO

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Enterrada num subúrbio de Xangai, perto da fumarenta Estra-da de Circunvalação Interior daquela cidade, a Academia Chinesa de Liderança Executiva de Pudong (China Executive Leadership Academy Pudong – CELAP) parece um estabelecimento de na-tureza militar. As vedações que rodeiam o enorme complexo têm arame farpado e há guardas ao portão. Mas para quem entra no recinto procedente da rua que tem o curioso nome de Expec-tativas Futuras é como entrar numa Harvard redesenhada pelo Dr. No. No meio ergue-se um enorme edifício vermelho-vivo, com a forma de uma secretária, tendo ao lado um tinteiro escar-late igualmente monumental. À volta disto, espraiando-se por uns 42 hectares de terreno, há lagos e árvores, bibliotecas, campos de ténis, um centro desportivo (com ginásio, piscina e mesas de pingue-pongue) e uma série de edifícios baixos castanhos com camaratas, todos desenhados para terem o aspeto de livros aber-tos. A CELAP chama a isto «campus», mas a sua organização é disciplinada, hierárquica e prática demais para ser uma universi-dade. A gente da terra está mais perto de acertar quando lhe cha-ma «Escola de Formação de Quadros», pois é uma organização apostada em dominar o mundo.

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Os estudantes da academia de liderança são os futuros gover-nantes da China. Os dormitórios de aspeto igualitário mascaram uma rígida escala hierárquica, com suítes para os mais importan-tes visitantes de Beijing. E como noutras tentativas de supremacia mundial, há um elemento de desforra. O pessoal da CELAP lem-bra-nos que há 1300 anos a China imperial instituiu um sistema de exames destinado a selecionar para a função pública os melhores de entre os jovens. Durante séculos, esses «mandarins» administra-ram o Governo mais avançado do mundo, mas no século XIX os

sistema – e melhoraram-no. Um melhor governo foi, desde então, uma das grandes vantagens do Ocidente. Agora, os chineses que-rem reaver essa vantagem.

Quando a academia de liderança foi instituída, em 2005, o presi-dente Hu Jintao explicou com todas as letras o seu objetivo: «Para fazer da China uma sociedade moderna e próspera em todos os aspetos e desenvolver um socialismo de características chinesas é urgente para nós lançar programas de formação em larga escala

Em vez de se concentrar na doutrinação como as escolas do parti-do, a CELAP e as suas irmãs mais novas de Jinggaushan (CELAJ) e Yan’an (CELAY) foram concebidas para serem lugares práticos. O discurso é o do alavancamento das aptidões, do reforço de uma atitude mental global e da melhoria das capacidades de apresenta-ção. Tudo isto é destinado a complementar o que se passa nas es-colas do partido. Mas o facto de a CELAP estar sediada em Xangai enquanto as escolas centrais do partido são em Beijing acrescenta um frisson competitivo. Quando um formando de Pudong explica que a escola do partido se centra no «porquê» enquanto a CELAP olha para o «como», não há qualquer dúvida sobre a questão que ele considera mais importante para o futuro da China. Se a CELAP tivesse um lema, poderia ser o par de versos de Alexander Pope:

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«Podem os insensatos das formas de governo disputar/Mas é me-lhor governo o que melhor administrar.»

Movidas pelo desejo de «melhor administrar», cerca de 10 000 pes-soas por ano frequentam os cursos da escola, 900 delas pela primeira vez. Alguns chegam : qualquer burocrata que tenha acabado de ser colocado à frente de uma empresa do Estado, um governa-dor a quem foi entregue uma província para dirigir ou um embaixa-dor a caminho de um novo posto é enviado a Pudong para fazer um refrescamento dos seus conhecimentos. (Espera-se que, em sinal de agradecimento, os embaixadores ofereçam à biblioteca um livro que simbolize a sua nova colocação. O homem que mandou o Rough Guide to Nepal terá algumas explicações a dar.) Em termos mais gerais, um curso na academia de liderança tornou-se um troféu a colecionar por qualquer burocrata ambicioso. Espera-se de todos os funcionários pú-blicos chineses que, de cinco em cinco anos, marquem presença em três meses de formação, ou seja, 133 horas por ano. As candidaturas aos cursos da CELAP são o triplo das vagas e os candidatos proce-

As duas perguntas mais frequentes, diz um dos professores, são: «O que funciona melhor?» e «Pode ser aplicado cá?». Um curso tí-pico compõe-se de três partes, com as aulas a darem rapidamente lugar a trabalho de campo, com os mandarins a serem mandados, primeiro, para o terreno estudar coisas que possam ser úteis, e, de-pois, com a discussão de como as aplicar. Os temas variam do rela-tivamente pequeno, como por exemplo a maneira mais conveniente de demolir casas para construir infraestruturas, ao monumental, como desenhar o sistema de pensões mais equitativo. O apetite de ideias é voraz: ideias provindas de negócios locais (há 200 centros de estudo de campo no delta do rio Yangtzé, incluindo um mini--campus da CELAP na cidade de Kunshan); ideias oriundas de várias universidades nacionais; ideias dos pensadores de gestão ocidentais.

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Quando os chineses modernizaram a sua economia, viraram-se para o Ocidente em busca de inspiração e a academia de liderança continua a enviar gente a Silicon Valley para ver as inovações. O go-verno é uma história diferente. Diz-se que a CELAP é «a Kennedy School da China» e Joseph Nye, antigo diretor da Kennedy Scho-ol of Government de Harvard, já deu aqui uma conferência. Mas há também a sugestão de que Harvard é um bocadinho teórica de-mais para o que a China precisa neste momento. O que se requer não são exemplos históricos, quanto mais exemplos históricos que celebrem as virtudes da democracia ou do soft power. O objetivo da

cuidados de saúde baratos e escolas disciplinadas. E desse ponto de vista há lugares melhores para onde olhar do que uma América paralizada – entre os quais se destaca Singapura.

A Cidade-Estado pode ser minúscula, mas tem conseguido a maior parte das coisas que os chineses querem do governo – esco-

-mento industrial – com um setor público que proporcionalmente é metade do da América. Para os chineses, é o Silicon Valley do governo. Até a ideia que está no cerne da CELAP – a formação de quadros de elite – se baseia num modelo singapurense, embora os chineses se gabem de que as suas exigências são mais pesadas. Não é, assim, surpreendente que a academia de liderança exiba

-niões em Singapura e do criador de Singapura, Lee Kuan Yew, de visita ao campus.

A academia de liderança pode parecer, por vezes, um tanto có-mica. Os seus dirigentes atrapalham-se um bocado a tentar explicar porque é que certas ideias de governo que funcionam bem no es-trangeiro, como a democracia e a liberdade de expressão, não ser-vem na China por «motivos culturais». Um dos seus professores cita um provérbio sobre umas laranjeiras que são doces «só na margem

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sul do rio». A corrupção em Washington é denunciada em termos tonitruantes sem olhar ao facto de que a fortuna conhecida dos 50 membros mais ricos do Congresso Nacional do Povo chinês é de 95 mil milhões de dólares – 60 vezes a riqueza combinada dos 50 membros mais ricos de um Congresso americano escrutinado com muito maior severidade.1 Os sítios locais da Internet estão cheios

-cia da CELAP é que os chineses sabem que têm de fazer melhor.

No entanto, em termos gerais, a reação correta de qualquer po-lítico ocidental de visita à CELAP é semelhante à de um industrial ocidental de visita a uma fábrica de Xangai há duas décadas: es-panto e talvez um certo grau de medo. Tal como há duas décadas a China se propôs deliberadamente refazer a arte do capitalismo, está agora a tentar refazer a arte de governar. A principal diferença é que os chineses acreditam que hoje em dia há muito menos a ga-nhar em estudar a governação ocidental do que achavam que havia em estudar o capitalismo ocidental.

O Leviathan e os seus descontentesA CELAP pode ser extraordinária, mas não é de modo nenhum

única. À volta do mundo, de Santiago a Estocolmo, os políticos e burocratas mais inteligentes também vasculham o mundo em busca

será o de reformar o Estado. Em The Federalist Papers, Alexander Hamilton instava os seus

compatriotas americanos a decidirem «se as sociedades humanas são ou não são realmente capazes de estabelecer um bom governo

sempre nas suas constituições políticas do acidente e da força»2. As suas palavras são igualmente verdadeiras hoje. Os países que con-seguirem um «bom governo» terão uma razoável hipótese de for-necer aos seus cidadãos um padrão de vida decente. Os países que

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não o conseguirem estarão condenados ao declínio e à disfunção, da mesma maneira que os chineses em tempos estiveram.

O Estado está a ponto de mudar. Está no ar uma revolução, mo-vida em parte pela necessidade que advém da escassez de recursos, pela lógica de uma renovada concorrência entre os Estados-nação e também pela oportunidade de fazer melhor as coisas. Esta Quar-ta Revolução em matéria de governo mudará o mundo.

Porquê chamar-lhe uma quarta revolução? Desde logo para lem-brar que o Estado pode mudar drasticamente. A maior parte de nós no Ocidente só conhece um modelo – o Estado democráti-co cada vez mais generalizado que tem dominado as nossas vidas desde a Segunda Guerra Mundial. No entanto, o que se passou até então conta uma história diferente. De resto, a Europa e a Amé-rica ganharam a dianteira precisamente porque estiveram sempre a mudar. O Estado esteve empenhado num contínuo processo de

-zias de pequenas revoluções, tais como a «revolução no governo» de Thomas Cromwell, na Inglaterra dos Tudor, ou a reforma das pensões de Otto von Bismarck, na Alemanha do século XIX. Neste

-sou nos tempos modernos três grandes revoluções e meia.

A primeira teve lugar no século XVII, quando os príncipes da Europa construíram Estados centralizados que começaram a dis-tanciar-se do resto do mundo. Nos anos 40 do século XVII, quan-do um monárquico a monte chamado Thomas Hobbes produziu a sua anatomia do Estado sobre o pano de fundo da Guerra Civil Inglesa, havia boas razões para crer que o futuro estava na China ou na Turquia. Hobbes decidiu dar ao Estado, que ele considera-va a única resposta à maldade, brutalidade e brevidade da vida do Homem, o nome de um monstro bíblico, Leviathan. Mas que bem--sucedido o monstro veio a revelar-se! A rede europeia de monstros concorrentes vomitou um sistema de governo sempre a melhorar:

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os Estados-nação tornaram-se impérios comerciais, depois demo-cracias liberais empresariais. A luta pela ascensão política e econó-mica foi muitas vezes uma trapalhada sangrenta – a Grã-Bretanha travou guerras com praticamente todos os países da Europa Oci-dental –, mas essa competição garantiu também que o Ocidente deixasse para trás outras regiões do globo.

XVIII e no século XIX. Começou com as revoluções americana e francesa e acabou por alastrar a toda a Europa, à medida que os reformadores liberais subs-tituíram os sistemas de patrocínio real – a «Velha Corrupção», como era conhecida em Inglaterra – por um governo mais meritocrático e responsabilizável. Concentramo-nos nas manifestações britânicas desta revolução porque os seus irmãos gémeos mais conhecidos têm mais distrações – a Revolução Francesa degenerou num banho de sangue, enquanto a americana teve a peculiar virtude de ter um continente inteiro com que trabalhar – e em parte porque é a era vitoriana a que parece mais relevante hoje em dia. Os liberais ingleses pegaram num velho sistema decrépito e reformaram-no de dentro dando prioridade

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ram o amiguismo, abriram os mercados e restringiram os direitos do Estado a subverter a liberdade. O «Estado guarda-noturno» propug-nado por gente como John Stuart Mill era ao mesmo tempo mais re-duzido e mais competente. Muito embora o tamanho da população britânica crescesse em cerca de 50% de 1816 para 1846 e os vitorianos melhorassem muitos serviços (incluindo a criação da primeira força de polícia moderna), as receitas do Estado em impostos caíram de 80 milhões de libras para 60 milhões.3 E reformistas posteriores como William Gladstone continuaram à procura de maneiras de «poupar cotos de vela e raspas de queijo, a bem do país».

No entanto, como acontece muitas vezes, uma revolução pre-parou outra. Ao longo de toda a segunda metade do século XIX, o

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liberalismo começou a questionar a tese do Estado reduzido que estava na sua raiz: de que serve a liberdade, interrogavam-se Mill e os seus seguidores, ao trabalhador que não tem instrução ou cui-dados de saúde? E se esse homem (e eventualmente mulher) me-recia o direito de voto, e seria iliberal pensar o contrário, então a instrução tinha de ser ampla e ambiciosa. E se os Estados estavam em competição uns com os outros – e era crescentemente esse o ponto de vista quando Bismarck moldava a Prússia como grande potência –, então decerto triunfariam aqueles que educassem me-lhor os seus trabalhadores.

Assim, uma vida melhor para todos os cidadãos tornou-se parte do contrato com o Leviathan. Isso abriu o caminho à aberração do comunismo, mas também à terceira grande revolução: a invenção do moderno Estado-providência. Também este mudou muito em relação ao que os seus fundadores, como Beatrice e Sidney Webb, imaginaram; mas é nesse Estado que nós, no Ocidente, hoje vive-mos. Na Europa Ocidental e na América tem dominado sem con-testação desde a Segunda Guerra Mundial – exceto durante os anos 80 do século XX, em que Margaret Thatcher e Ronald Reagan, ins-pirados por pensadores liberais clássicos como Milton Friedman, temporariamente detiveram a expansão do Estado e privatizaram os altos comandos da economia. Alcunhamos isto de meia revolu-ção porque, embora remontasse a algumas das ideias fundadoras da segunda revolução «liberal», acabou por não fazer nada para re-verter a dimensão do Estado.

As voltas e reviravoltas de cada revolução, como veremos, foram

Europa e a América foram a única fonte de ideias novas sobre o Estado. Nem todas funcionaram bem mas, mesmo nos seus desvios mais grotescos do fascismo e do comunismo, o Ocidente continu-ava a esforçar-se, pelo menos na teoria, em forjar o futuro. O resto do mundo ia atrás. Chineses e russos seguiram o marxismo. A Índia,

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quando se tornou independente, em 1947, abraçou o fabianismo ao mesmo tempo que ateava fogo ao imperialismo britânico. Na América Latina, a despeito da relação de amor-ódio com os gringos de el nortehá duas décadas quando abraçaram na sua maior parte «o consen-so de Washington» (uma frase inventada por John Williamson para

-te gestão económica). Mesmo em Pudong existe o reconhecimento de que, até recentemente, o modelo ocidental representou o padrão ouro da modernidade.

A liberdade e a democracia têm sido centrais para tal. A ascensão do Estado ocidental não foi só uma questão de organizar um fun-cionalismo público competente. Até o monstro de Hobbes, como veremos, era perigosamente liberal para ser proposto por um adep-to da realeza, pois o Leviathan assentava na noção de um contrato social entre governantes e governados. Os liberais vitorianos viam um Estado bem dirigido como requisito prévio da emancipação individual. Os seus sucessores fabianos viam o Estado-providên-cia como requisito prévio da realização individual. À medida que se expandiu, o Estado ocidental tem tendido a dar mais direitos às pessoas – o direito a votar, o direito à educação, aos cuidados de saúde e aos apoios sociais. Coisas como o acesso à universidade, que há um século era considerado um privilégio de homens bran-cos ricos, são vistas agora como um serviço público, nalguns casos um direito gratuito de toda a gente.

O Estado ocidental é agora, no entanto, associado a um outro traço: o inchaço. As estatísticas contam parte da história. Na Amé-rica, a despesa do governo subiu de 7,5% do PIB em 1913 para 19,7% em 1937, para 27% em 1960, para 34% em 2000 e para 41% em 2011. Na Grã-Bretanha, subiu de 13% em 1913 para 48% em 2011, e a percentagem média em 13 países ricos trepou de 10% para cerca de 47%.4 Mas estes números não captam totalmente o modo

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como o Estado se tornou parte do tecido das nossas vidas. O Levia-than da América reivindica o direito de nos dizer por quanto tempo precisamos de estudar para sermos cabeleireiros na Florida (dois anos) e o direito de monitorizar o nosso correio eletrónico. Também obriga os hospitais americanos a obedecer a 140 000 códigos nas maleitas que tratam, incluindo um para os danos resultantes de ser atingido por uma tartaruga. O governo costumava ser um parceiro ocasional na nossa vida, o contraente no outro lado do contrato de Hobbes, o guarda-noturno que olhava por nós no de Mill. Hoje é uma ama omnipresente. Em 1914, «um inglês sensato, cumpridor da lei, podia passar a vida inteira sem quase dar pela existência do Estado, para além da estação de correios e do polícia», observou uma vez o historiador A. J. P. Taylor. «Podia viver onde quisesse e como quisesse… Em termos gerais, o Estado agia apenas para ve-lar por aqueles que não podiam velar por si mesmos. Deixava em paz o cidadão adulto.» Hoje, o inglês sensato, cumpridor da lei, não pode passar uma hora, quanto mais uma vida inteira, sem reparar na existência do Estado.

Tem havido tentativas periódicas de travar o agigantamento do Estado. Em 1944, Friedrich Hayek, com The Road to Serfdom (O Ca-minho para a Servidão), avisou que o Estado estava em risco de es-magar a sociedade que o dera à luz. De então para cá este tem sido um tema importante para os políticos conservadores. Em 1975, o atual governador da Califórnia, Jerry Brown, numa anterior encar-nação, decretou uma «era de limites». Esta preocupação com os «li-mites» remodelou profundamente o pensamento sobre o Estado na década e meia seguinte. Nos anos 90 do século XX houve gente tanto de esquerda como de direita que assumiu que a globalização iria aparar o Estado: Bill Clinton proclamou que a era do Estado gigante tinha acabado. Na realidade, o Leviathan tinha apenas fei-to uma pausa para tomar fôlego. O Estado depressa recomeçou a crescer. George W. Bush aumentou o tamanho do Governo dos

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Estados Unidos mais do que qualquer outro presidente desde Lyn-don Johnson, enquanto a globalização apenas aumentou a ânsia das pessoas por uma rede de segurança. Mesmo levando em conta os seus recentes contratempos, o Estado ocidental é mais poderoso do que qualquer Estado na história e mais poderoso, de longe, do que

-deia de distribuição do mundo, mas não tem o poder de prender as pessoas ou cobrar-lhes impostos – ou escutar os seus telefonemas. O Estado moderno pode matar pessoas do outro lado do mundo com o toque de um botão – e assistir em tempo real.

muita gente pensa que o Estado continuará a crescer. Os direitos crescem à medida que as populações envelhecem. Os governos dominam áreas da economia, como a saúde e a educação, que são resistentes a melhorias da produtividade.

Mas a outra razão para o alastramento do Estado é política. Es-querda e direita têm lisonjeado os seus apetites, a primeira cantando os louvores de hospitais e escolas, a segunda dedicando serenatas às prisões, às forças armadas e às forças de polícia, e ambas criando re-gulamentos como se fossem confetes. O apelo a que «tem de se fazer alguma coisa», isto é, que tem de ser criado mais um regulamento ou mais um departamento, vem tantas vezes da Fox News ou do Daily Mail como da BBC ou do New York Times. Apesar de toda a preo-cupação com os «subsídio-dependentes» e as «rainhas da assistência social», a maior parte da despesa do Estado é sugada pelas classes médias, muitas delas conservadoras. Os eleitores sempre votaram a favor de mais serviços; do que se queixam algumas pessoas é de pa-gar mais por eles do que as outras. O cartaz apócrifo num comício do Tea Party avisando o «Monstro» para «tirar as mãos do meu Me-dicare» resume a hipocrisia dos americanos a respeito do Estado.

Para o melhor ou para o pior, a democracia e a elefantíase têm andado de mãos dadas. O negócio dos nossos políticos tem sido o

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de nos dar mais daquilo que queremos – mais educação, mais cui-dados de saúde, mais prisões, mais pensões, mais segurança, mais direitos. E no entanto – eis o paradoxo – não estamos contentes.

Tendo sobrecarregado o Estado com as suas exigências, os vo-tantes estão furiosos por isto funcionar tão mal. De Seattle a Salz-burgo, a preocupação é a de que o sistema que tem servido tão bem o Ocidente se tenha tornado disfuncional, que, para usar uma frase das organizações de sondagens, as coisas estejam «fora dos trilhos», que as nossas crianças vão viver vidas mais humildes do que as nossas. Na América, o Governo Federal tem menos apoio do que Jorge III à época da Revolução Americana: apenas 17%

-tados nos anos 1960.5 O Congresso recebe regularmente uma taxa de aprovação de 10%. A militância nos partidos políticos desmoro-

num partido político. O número de Tories declinou de 3 milhões nos anos 50 do século XX para 134 000 hoje, um desempenho que teria posto qualquer empresa privada nas mãos de um administra-

como independente do que como republicano ou democrata. Os únicos políticos com sangue na guelra parecem estar nos extremos – gente que não quer nenhum Estado ou se recusa a aceitar quais-quer reformas ou atribui a culpa de todos os males aos imigrantes ou aos banqueiros ou à União Europeia.

A deriva para os extremos não é surpreendente dada a incapacida-de do centro para enfrentar a realidade. Basta pegar nas duas maiores

e a euroderrocada, e ver os políticos centristas a comportarem-se como avestruzes. Quanto à primeira, os economistas concordam na sua maioria em que a solução requer uma combinação de cortes na despesa e subidas de impostos. Os economistas discordam apenas

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talvez quanto à respetiva proporção. Na maioria dos «ajustamen-

a maior parte do trabalho, mas nunca o trabalho todo. No entanto, nas últimas eleições presidenciais americanas, todos os candidatos republicanos, sem exceção, rejeitaram a ideia de qualquer espécie de aumento de impostos. «Nem mais um tostão» era o refrão uni-versal. Os democratas eram só ligeiramente menos insanos na sua granítica recusa de considerar qualquer redução de direitos sociais.

Poderá argumentar-se que talvez os americanos ainda tenham

nas três maiores economias da zona euro. A contenda de França em 2012 foi um exercício de negação, sem que Nicolas Sarkozy ou François Hollande alimentassem qualquer ideia de cortes no que se tornou o Estado mais inchado do continente. Em 2013, apesar de o seu país estar a sofrer a pior crise registada desde o pós-guerra, um em cada quatro italianos não se maçou em ir votar – e mais de me-tade dos que foram escolheram ou Beppe Grillo, um antigo cómi-co, ou Silvio Berlusconi, um palhaço congénito. Ninguém acusaria Angela Merkel de farsante, mas até a sua fácil vitória na Alemanha em 2013 foi uma recusa nacional de enfrentar a realidade, pensando que a eurocrise era um problema do sul da Europa com os aforra-dores alemães a terem de apagar o fogo. Ninguém discutiu o facto de os bancos alemães ainda estarem de pé apenas porque os seus devedores do sul tinham sido resgatados.

Há algumas razões mecânicas para este cambaleio até ao limite

muitos distritos congressionais nas mãos de extremistas enquanto na União Europeia o sistema de governação é um labirinto de irres-ponsabilização. Mas o facto é simplesmente que os eleitores – sejam bávaros furiosos com os italianos preguiçosos que vivem uma dolce vita à custa dos seus euros ou gregos furiosos com a austeridade da

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Sra. Merkel – estão frustrados com o sistema. Estão mesmo dana-

maneira como é governado.O mesmo se pode dizer do mundo emergente. Após uma déca-

da de crescimento espetacular nos mercados emergentes, muitos têm agora o seu próprio debate sobre governação. Os pequenos príncipes chineses têm consciência de que haver mais progresso de-pende agora de melhorar o Estado, não apenas de abrir os mercados. E, como os seus pares da Índia, veem-se confrontados com a con-sequência desses mercados mais livres – uma classe média instruída, cada vez mais farta de um Estado obsoleto, muitas vezes corrupto.6

quatro brasileiros diz que pagou subornos. Na Turquia, a queixa é a da arrogância por parte do primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, que age mais como um sultão do que como um demo-crata. Gurcharan Das, um arguto comentador indiano, aponta que não há muito os seus compatriotas estavam dispostos a proclamar que «a Índia cresce durante a noite enquanto o governo está a dor-mir». Agora, tomam consciência de que a Índia não pode continuar a crescer enquanto as suas escolas forem de segunda e as estradas estiverem cheias de buracos.7 -ne: a frustração com as más escolas tanto se sente em Cantão como na Praça Tahrir ou nas favelas de São Paulo.

Portanto, tanto no Ocidente como no mundo emergente, o Es-tado está metido em sarilhos. O mistério está em haver tanta gente a assumir que é pouco provável uma mudança radical. O status quo, com efeito, é a opção menos provável. Como secamente observou uma vez o economista Herbert Stein: «Se uma coisa não pode con-tinuar para sempre, para.» O Estado terá de mudar drasticamente de forma ao longo das próximas décadas. No mundo emergente acabou a era de crescer durante a noite. No Ocidente a era do mais

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Porque tem de mudarPorque há de ser diferente esta época? Dominar o Leviathan será

-ças: a falência, a concorrência e a oportunidade. O Ocidente tem de mudar porque está a falir. O mundo emergente precisa de se re-formar para continuar a caminhar em frente. Há uma competição global, mas é uma competição que se baseia tanto nas expectativas como no medo: há maneiras de governar melhor.

tem de mudar. Mesmo antes de ruir o Lehman Brothers os governos ocidentais estavam a gastar mais do que arrecadavam. O governo dos Estados Unidos teve saldos positivos apenas cinco vezes desde 1960; a França não tem nenhum desde 1974-75. A crise só fez au-mentar a dívida, pois os governos endividaram-se, com toda a razão. Em março de 2012 havia uns 43 biliões de dólares de obrigações do Estado em circulação,8

de 2001. Isto é apenas uma fração das verdadeiras responsabilidades dos governos ocidentais se contarmos com as pensões e as presta-ções de saúde. Os números de muitas cidades são ainda piores: San Bernardino, na Califórnia, e Detroit, no Michigan, declararam-se em bancarrota por causa destas obrigações fora do balanço.

E quem vai pagar isto tudo? Na «velha Europa», por exemplo, a população em idade de trabalhar atingiu o seu pico em 2012, com 308 milhões – e prevê-se que decaia para 265 milhões até 2060. Estes trabalhadores terão de sustentar cada vez mais pessoas de idade. O rácio de dependência da velhice (o número de pesso-as com mais de 65 anos em relação ao número de pessoas entre os 20 e os 64) subirá de 28% para 58% – e isto é assumindo que a União Europeia deixa entrar um milhão de jovens imigrantes por ano.9 Do outro lado do Atlântico, a América continua a taxar--se com impostos de país de Estado pequeno e a gastar como se fosse grande enquanto esconde as suas verdadeiras responsabili-

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dades usando táticas que fariam corar Bernie Madoff. Com os ba-by-boomers a envelhecer, o Gabinete do Orçamento do Congresso calcula que a conta dos benefícios sociais só por si crescerá 60%

agora, mas os Estados Unidos têm de fazer uma escolha: puxar as rédeas a esses direitos, subir os impostos até níveis extraordi-nários ou tropeçar de crise em crise.

De seis em seis meses o Fundo Monetário Internacional publi-

excitante título de «Economias Avançadas: Necessidades de Ajus-tamento Indicativas na Base dos Objetivos de Endividamento a

menos quanto, uma vez contabilizada a despesa relacionada com o envelhecimento, os governos precisam de cortar nos custos ou aumentar nas receitas em ordem a baixar a sua dívida para níveis razoáveis até 2030. Na América, o número é 11,7% do PIB, no Japão é 16,8% e a média no total dos países do G20 é de 9,3%. Podemos discutir algumas das exigências do FMI em relação a de-terminados países. Alguns economistas pensam que se mostra duro demais com a América, por exemplo. Argumentam que o FMI es-tabelece um objetivo desnecessariamente ambicioso para a redução da dívida do Estado (60% do PIB) e sublinham que uma pequena alteração quer nos números do crescimento quer na receita dos impostos faria uma grande diferença nas perspetivas da América.10 Mas as duas décadas passadas da história política da América su-gerem que seria insensato apostar na capacidade do país para subir os seus impostos. E mesmo que os números de alguma maneira possam ser equilibrados, sem sérias reformas do seu setor público a América tornar-se-á num «conglomerado de seguros protegido por um grande exército permanente»,11 com todo o dinheiro a ir para direitos sociais e Defesa, não sobrando nenhum para educa-ção ou qualquer outra coisa.

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No futuro previsível a ocupação do Estado ocidental será a de tirar coisas – muito mais coisas do que a maior parte das pes-soas julga. Nalguns lugares, onde os governos conseguiram ad-

e algumas cidades americanas, essa retirada foi já dramática: em San Bernardino o advogado da cidade aconselhou as pessoas a «trancarem as portas e carregarem as suas armas» porque a cida-de já não se podia permitir ter polícia. Mesmo os políticos euro-peus mais consensualistas reconhecem que alguma coisa tem de mudar: a estatística favorita de Angela Merkel é a de que a União Europeia representa 7% da população do mundo, 25% do PIB mundial e 50% das despesas sociais.12 Mas as políticas de intro-dução da mudança serão sangrentas, pondo em liça governos sem dinheiro que têm de cortar serviços contra eleitores agastados que querem manter os seus direitos sociais e contribuintes que querem receber mais em troco do seu dinheiro, contra poderosos sindica-tos do setor público que querem preservar os seus privilégios. Se milhões de franceses saíram à rua quando o presidente Sarkozy elevou a idade da reforma de 60 para 62 anos, Deus sabe o que acontecerá quando François Hollande ou o seu sucessor for for-çado a elevá-la para os 70.

Esta batalha irá direita ao coração da democracia. Os políticos ocidentais adoram gabar as virtudes da democracia e urgir os ou-tros países, do Egito ao Paquistão, a abraçá-la. Argumentam que «uma pessoa, um voto» é a cura de tudo, da pobreza ao terrorismo. Mas a prática da democracia no Ocidente está a divergir cada vez mais do ideal, com o Congresso do Estados Unidos poluído pelo

deriva e o público em geral crescentemente descontente. A verdade

Os grupos de interesses (incluindo muitas pessoas que trabalham

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para o Estado) têm-se mostrado notavelmente bem-sucedidos em sequestrar os governos. O exemplo do Japão é assustador: durante décadas não conseguiu remediar o seu sistema político esclerótico

-tar a seguir uma trajetória similar.

Se a falência é o primeiro incentivo da mudança no Ocidente, a concorrência é o segundo. Por muitas frustrações que o governo lhe faça sentir, o mundo emergente está a começar a produzir algu-mas ideias chamativas, erodindo de caminho a vantagem competi-tiva do Ocidente. Para quem tenta discernir o futuro dos cuidados de saúde, a tentativa da Índia para aplicar as técnicas da produção em série aos hospitais é parte da resposta, tal como o sistema bra-sileiro de transferências condicionais de dinheiro é parte do futuro da assistência social. Mas a questão vai mais fundo do que isso. A Ásia de orientação chinesa oferece um novo modelo de governo que põe em causa dois dos valores mais caros ao Ocidente: o su-frágio universal e a generosidade de cima para baixo (top down). Esta «alternativa asiática» é uma estranha mistura de autoritarismo e Es-tado pequeno, cujo melhor símbolo é Lee Kuan Yew, que há muito governa Singapura. Tem sido um severo crítico da democracia de-senfreada do Ocidente, mas também do seu Estado-providência, que compara com um buffet em que se pode comer tudo o que se quiser: coisas que deviam ter visado os pobres, tais como propinas universitárias gratuitas e cuidados de saúde gratuitos para os mais velhos, tornaram-se direitos da classe média, empolados e insusten-táveis. E a China está a tentar seguir o exemplo de Singapura em vez do do Ocidente, tanto no que respeita ao Estado social como no referente à democracia. Nos últimos dois anos alargou a cober-tura das pensões a mais 240 milhões de pessoas do campo, bas-tantes mais do que o número de pessoas cobertas pelo sistema de pensões públicas da América, mas também quer claramente evitar os excessos americanos.

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É fácil encontrar falhas no modelo asiático – e neste livro re--

vernamental da China desconjunta-se ao nível local. Até agora o mundo emergente não tem aproveitado a oportunidade de dar sal-tos em frente que a tecnologia lhe tem oferecido. O Brasil encami-nha-se para uma crise das pensões ao lado da qual até as da Grécia e de Detroit serão uma brincadeira de crianças. A Índia poderá ter uns quantos dos mais inovadores hospitais do mundo, mas tem al-gumas das piores estradas e alguns dos políticos mais preguiçosos. Mas não nos deixemos enganar e ser levados a pensar que o mundo emergente está muito atrás de nós. Os burocratas da CELAP têm razão: os dias em que o Ocidente tinha o monopólio do governo inteligente passaram há muito.

Isto aponta para a terceira força: a oportunidade de praticar um «melhor governo». A crise do Estado ocidental e a expansão do Estado emergente estão ambas a chegar a um momento auspicio-so: as novas tecnologias oferecem uma hipótese de melhorar dra-maticamente a governação, mas também obrigam a colocar velhas questões, como a mais básica de todas: «Para que serve o Estado?» Tal como nas revoluções anteriores, a ameaça é clara: bancarrota, extremismo, deriva. Mas também é clara a oportunidade: a possi-bilidade de modernizar uma instituição que carregámos com um excesso de responsabilidades.

Porque importam as ideiasComo deveria ser alterado o Estado? Pensamos que qualquer

resposta tem de envolver duas coisas – uma radicada no pragma-tismo e a outra em princípios políticos.

A resposta pragmática, que gente de todas as persuasões deveria adotar, assenta em melhorar a gestão e tomar as rédeas da tecno-logia, em particular da tecnologia da informação. Cinquenta anos atrás as empresas sofriam do mesmo inchaço de que sofre o governo

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agora. As empresas mudaram drasticamente desde então, emagre--

mo podem fazer os governos. O Estado ainda está preso na era da integração vertical, quando Henry Ford pensava que fazia sentido ser dono das ovelhas cuja lã era usada no estofo dos assentos dos seus carros. Os governos não têm jeito nenhum para espalhar boas ideias. Não há nenhuma boa razão para que as escolas da Califór-

dando-se particularmente o caso de a Califórnia gastar muito mais dinheiro por aluno. Se todas as escolas secundárias dos EUA fos-

décimo sétimo e vigésimo sexto. Em Itália, Trento teve uma das

anos atrás. Os governos também são péssimos a manterem-se a si próprios sob controlo: pensem nos milhares de páginas das refor-

-ros. O Gabinete Nacional de Estatística da Grã-Bretanha calculou que a produtividade no setor privado de serviços aumentou 14% entre 1999 e 2013. Em contraste, a produtividade do setor públi-co caiu 1% entre 1999 e 2010. Os governos precisam de aprender com as melhores práticas muito da mesma maneira que nos anos 80 do século XX as empresas que antes se iam alargando aprende-ram com o método de produção da Toyota.

A tecnologia tem um potencial ainda maior do que a gestão. A Internet revolucionou tudo aquilo em que tocou, do negócio dos jornais ao retalho. Seria estranho que não revolucionasse também o Estado. A revolução das Tecnologias da Informação (TI) está a roubar ao Estado aquilo que era uma das suas grandes fontes de poder – o facto de possuir mais informação do que quem quer que fosse. Esta revolução é também parte de uma possível cura da

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«doença dos custos de Baumol». William Baumol, um economis-ta americano, defendeu que era impossível reduzir o tamanho do Estado porque estava concentrado em áreas de trabalho intensivo, tais como os cuidados de saúde e a educação, onde a despesa con-

setor público tem sido, de facto, miserável. Mas os computadores e a Internet estão a começar a fazer pelos serviços o que as má-

de borla no nosso iPad os melhores professores do mundo em vez de termos de pagar bem para ouvir gente medíocre em salas de aula malcheirosas.

A defesa da causa de uma melhor gestão devia ser completa-mente apolítica. Quem não acredita em proporcionar às crianças um bom princípio de vida? Ou às pessoas de idade uma aposenta-ção decente? É pouco provável que possa ser assim porque o pri-meiro obstáculo à modernização são muitas vezes os sindicatos do setor público, sejam os professores na América, sejam os ferroviá-rios em França, que estão intimamente aliados com partidos da esquerda. Na verdade, a esquerda tem mais a ganhar do que a di-reita em melhorar a gestão do Estado, pela simples razão de que a esquerda investe mais esperança na capacidade dos governos para melhorar a vida das pessoas. Não pode fazer sentido para pessoas que acreditam na benevolência do Estado impedir os governos de contratar as melhores pessoas (ou despedir as piores) ou permitir que a máquina governamental seja dominada pelos interesses espe-ciais. Considerem este facto alarmante que veio a lume na América durante a febril discussão nacional sobre o falhado lançamento do Obamacare: 94% dos projetos federais de TI ao longo dos últimos dez anos fracassaram – mais de metade foram adiados ou ultra-passaram o orçamento e 41,4% falharam completamente. O Pen-tágono gastou 3 mil milhões de dólares em dois sistemas de saúde que nunca funcionaram devidamente. Falharam em parte porque

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as rígidas regras de contratação de pessoal do governo impediram o emprego de especialistas em TI e em parte porque as regras ain-

está cativa dos poucos fornecedores que têm recursos para estudar as 1800 páginas de terminologia jurídica do Regulamento de Aqui-sições Federais. Se a esquerda toma a sério a sua defesa do Esta-

O futuro do Estado, porém, não se resume a uma melhor gestão. Haverá um ponto em que terá de ser tomada uma decisão mais im-portante. Por muito bem que se faça funcionar o atual Estado, so-mos confrontados com a questão de saber qual o tipo de Estado que devemos ter. Para que serve o Estado? Essa pergunta está no cerne de um velho debate – um debate que desapareceu durante a fase da democracia moderna do «comam tudo o que forem capazes de co-mer». Para Hobbes, o Leviathan existia para proporcionar segurança. Para Mill e para o radical Thomas Paine, a resposta era a liberdade. Para os fabianos, era o bem-estar da humanidade. Mas todos estes pensadores julgavam que precisávamos de tratar da grande questão antes de passar aos pormenores práticos. Agora essas questões são discutidas só de forma segmentada. Os políticos modernos são como arquitetos a discutirem sobre o estado de cada divisão numa casa que está a ruir, correndo para arranjar uma janela aqui ou dar uma nova mão de pintura acolá, sem nunca considerarem o desenho de todo o edifício. Precisamos de olhar para o desenho de toda a estrutura – e também de pensar intensamente sobre o papel apropriado do Esta-

os vitorianos nos alvores da moderna era democrática. Nesta grande discussão, os autores devem admitir que têm um

marcado preconceito: vimos de uma publicação radicada no libe-ralismo clássico, que geralmente dá um alto valor à liberdade do indivíduo (e que, diga-se de passagem, foi fundada na época dessa reinvenção vitoriana). Somos, em termos gerais, a favor de um Es-

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tado mais pequeno. Pensamos que parte da compreensão do que correu mal é reconhecer que os Estados têm de ser mantidos em respeito; que são muitas vezes uma ferramenta romba; que, deixa-dos aos seus próprios expedientes, se expandirão inexoravelmente. Mas este é um preconceito que deve ser posto à prova pelos fac-tos, não um dogma.

Assim, não aceitamos a ideia libertária de que o Estado é no melhor dos casos um mal necessário. Estado a menos é mais peri-goso do que a mais: era preciso ser doido para preferir viver num Estado falhado como o Congo, onde a ausência do Leviathan tor-na a vida verdadeiramente «repugnante, animalesca e curta», do que num Estado grande e bem governado como a Dinamarca. Ao pagar bens públicos como a educação e os cuidados de saúde, os

bem-estar. O sistema de saúde supostamente «privado» dos EUA custa mais em impostos aos seus habitantes e fornece pior saúde do que o sistema público sueco. Uma das razões pelas quais a Ale-manha é muito mais bem-sucedida do que a Grécia é que tem um Estado bem-sucedido que é capaz de recolher impostos, fornecer serviços e granjear respeito. O mesmo se poderia dizer de Singa-pura comparada com a Malásia, da China com a Rússia ou do Chi-le com a Argentina.

O Estado pode, portanto, ser um instrumento de civilização. Mas não aceitamos a ideia progressista de que não há nada de mal no Estado que «mais Estado» não possa resolver. Talvez haja uma razão pragmática para usar a despesa pública no curto prazo para evitar que uma economia se afunde na recessão. Mas não há ma-neira de fugir à necessidade de domar o Leviathan a médio prazo. O moderno Estado sobrecarregado é uma ameaça à democracia: quantas mais responsabilidades o Leviathan assume pior se desem-

exigirem ainda mais ajuda. É este o círculo vicioso da política pro-

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gressista. Mais fundamentalmente, o Estado moderno é também uma ameaça à liberdade: quando o Estado nos tira metade do que produzimos, quando impede as pessoas de ganhar a vida a fazer tranças sem uma licença dispendiosa, quando dita a raça e o géne-ro das pessoas que podemos empregar, quando convoca poderes draconianos para travar «guerras» contra o terror, os motoristas em excesso de velocidade e a marijuana, então começou a tornar-se um amo em vez de um servidor. O Leviathan tem de ser domado. Tem de ser posto sob controlo.

«Ainda não estamos, por enquanto, a dançar ao ritmo de uma nova música», disse uma vez John Maynard Keynes de uma outra grande mudança. «Mas há uma mudança no ar.»13 Isto também é hoje verdade. São as democracias ocidentais que têm a melhor hipó-tese de reagir à mudança: a democracia proporciona aos governos

deve ser em direção a uma maior liberdade e a democracia é a mais livre forma de governo. Mas é também o Ocidente que corre os maiores riscos. Ouvir as pessoas foi uma das razões pelas quais o

a impor ao Estado cada vez mais obrigações. A democracia, neste momento, parece estar a cavar a sua própria sepultura. Se o Ociden-te dará agora ouvidos aos seus melhores ou aos seus piores instin-tos é a questão que determinará o resultado da Quarta Revolução.

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Porque se adiantou o Ocidente ao resto do mundo nos últimos 300 anos? E porque foi pioneira a Europa Ocidental, uma mera probóscide de terra na ponta da massa terrestre euroasiática, em tanto do que distingue o mundo contemporâneo? Os historiadores têm procurado uma resposta a esta pergunta em toda a espécie de lugares: da lei romana, que estabeleceu os direitos de propriedade, à religião cristã, que promoveu o universalismo moral. Mas uma grande parte da resposta reside no aparelho de governo.

Uma história completa de como o Ocidente estabeleceu a sua liderança na construção do Estado seria uma empresa monumen-tal: a grande história do Estado de Samuel Finer, que ele deixou inacabada à sua morte, enche 1701 páginas.1 Aqui, decidimos pôr de parte qualquer tentativa de sermos exaustivos: o nosso plano é

-verno no Ocidente e contemplar essas reinvenções pelo prisma de três grandes pensadores: Thomas Hobbes (um anatomista do Es-tado-nação que também abriu o caminho ao Estado Liberal), John

Estado-providência) e Beatrice Webb (a madrinha do Estado-pro-

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capítulo, examinamos a meia revolução contra o Estado através de Milton Friedman, cujas ideias tiveram tão grande impacto em Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Esses pensadores ocuparam posições diferentes no espectro que vai da teoria à prática. Hobbes

-dar o mundo. Mill e Friedman ocuparam uma posição intermédia – produziram obras profundas de economia política, mas desem-penharam também um papel ativo na política, Mill como membro do Parlamento e Friedman como conselheiro de presidentes e pri-

um profundo impacto na natureza do Estado enquanto o incan-

E todos os quatro (ou quatro e meio, se contarmos Sidney como meio) deram respostas incrivelmente diferentes à questão que está no coração deste livro: para que serve o Estado?

Por isso não pedimos desculpa pelo facto de nos concentrar-mos em gente de ideias. Desculpamo-nos um bocadinho pelo facto de os primeiros três destes pensadores serem britânicos e o quarto estar associado intimamente a um primeiro-ministro britânico. A Grã-Bretanha fornece a espinha dorsal desta parte da nossa história e foi pioneira de muitas das ideias que discutimos, boas e más. Nenhum outro país fornece um melhor exemplo dos movimentos do Estado ocidental ao longo dos últimos 400 anos.

O nascimento do LeviathanÉ difícil datar o início de qualquer grande mudança. Virginia

Woolf disse-o memoravelmente no seu ensaio sobre o advento do modernismo:

Em dezembro de 1910, ou por aí, o caráter humano mudou. Não estou a dizer que uma pessoa saísse, como quem sai para o

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nesses casos. Mas que houve mudança, no entanto, lá isso houve; e visto que temos de ser arbitrários vamos datá-la de cerca de 1910.2

Seguindo o mesmo critério, datemos de maio de 1651 o mo-mento em que o pensamento político mudou.3 Pois foi nessa altura que Thomas Hobbes publicou o seu Leviathan e foi com a publica-ção do Leviathan que nasceu o conceito moderno do Estado-nação.

Hobbes não foi o primeiro a basear a sua teoria política numa visão realista da natureza humana: essa honra pertence a Nicolau Maquiavel. Nem foi o primeiro a basear a sua teoria num raciocínio dedutivo: reconheçamos que esse foi Tomás de Aquino. Nem foi, ainda, o primeiro a centrar-se no Estado-nação em vez de na Cida-de-Estado ou na Cristandade: esse prémio vai para Jean Bodin. Mas Hobbes foi o primeiro a juntar essas três coisas num único volume. E foi o primeiro a acrescentar-lhes a ideia explosiva de um contra-to social entre governantes e governados. Se o Estado moderno é uma das grandes produções do engenho humano, então tem no Leviathan o seu apropriado documento fundacional.

A ideia nuclear do Leviathan é a de que o primeiro dever do Es-

– aquele que resgata o homem da infelicidade e torna a civilização humana possível. Hobbes chegou a esta conclusão por uma lógi-ca implacável. Desmontou a sociedade nas partes que a compõem quase da mesma maneira que um mecânico desmontaria um carro para descobrir como funciona. Fê-lo perguntando a si mesmo o que seria a vida num «estado de natureza». Hobbes não tinha paciência para a ideia de Aristóteles de que o homem era por natureza um animal social. Pelo contrário, pensava que o homem era por natu-reza um pequeno átomo de ego, puxado para um lado pelo medo e para o outro pela cobiça. Nem tinha nada a ver com a noção feudal de que os homens eram habitantes de papéis sociais pré-

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-determinados, destinados pela natureza para dar ordens, se tives-sem nascido com sorte, ou cortar lenha e tirar água, se não tivessem. Os homens, argumentava, não são levados a associar-se uns com

por temerem pela sua segurança. No estado de natureza de Hobbes, os homens estão constantemente a tentar levar a melhor uns sobre os outros, cativos de uma «guerra de todos contra todos» e con-denados a uma vida «repugnante, animalesca e curta». «Isto não é um retrato do homem com “mazelas e tudo”», observou uma vez um conservador americano moderno, George Will. «Era tudo ma-zelas.»4 A única maneira de escapar a uma guerra civil permanente, alegava Hobbes, é renunciar aos nossos direitos naturais a fazer o

cujas opiniões são a verdade e cujas ordens são a justiça – o Big

neste «Leviathan»: isso ameaçaria devolver o homem às «desgraças da vida sem governo». O único direito que o indivíduo conserva é o direito de salvar a sua vida em circunstâncias extremas: dado que o propósito do Estado é proteger a vida, não podemos consentir ao Estado que nos liquide.

Por muito rigor lógico que tivesse, o argumento de Hobbes era também emocional, moldado pelas suas experiências pessoais. Ti-nha todas as razões para perceber como uma vida ordeira se podia dissolver em caos e barbárie. Hobbes nasceu prematuramente em 1588, quando a sua mãe foi aterrorizada a ponto de perder o juízo pela combinação de um violento temporal e do boato sem funda-mento de que a Armada Espanhola tinha desembarcado. (Hobbes

-cheu-se de tal medo que deu à luz gémeos: eu e, junto comigo, o medo».5) O pai dele era um clérigo de pouca instrução que ocupa-va uma das posições mais pobres do Wiltshire, passava mais tempo