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A questão agrária no governo Jango A questão agrária foi um dos principais pontos que polarizaram o debate político durante os anos em que João Goulart ocupou a presidência. Ela esteve no centro das preocupações dos atores políticos em geral, do governo, dos partidos, dos movimentos sociais, da Igreja Católica, da opinião pública. Foi, em grande parte, naquele momento que se consolidou a noção de que o Brasil necessitava de uma reforma agrária capaz de eliminar a grande propriedade, o latifúndio, visto como obstáculo fundamental ao desenvolvimento. Os conflitos na área rural brasileira vinham de longa data, tendo alguns deles assumido grandes proporções, como foi o caso de Canudos, nos primeiros anos da República. Porém, foi principalmente a partir de meados dos anos 1940, e durante a década de 1950, que esses conflitos não apenas se intensificaram, mas também passaram a assumir uma feição nova. Tornou-se corrente, a partir dali, a idéia de que a questão agrária configurava um dos nossos problemas sociais mais sérios, resultado de um padrão concentrador da propriedade da terra instituído ainda no período colonial. Em uma ponta da hierarquia social, esse padrão acarretava riqueza, poder e privilégio. Na outra, produzia pobreza, analfabetismo, fome, doença, subordinação, isolamento. Tal distribuição, longe de se circunscrever apenas ao campo, produzia efeitos negativos para a nação como um todo. A pobreza gerada excluía do acesso ao mercado de bens industrializados a maior parcela da população do país, uma vez que cerca de 70% dos brasileiros habitavam a área rural até os anos 1950. Portanto, além de resolver o problema rural, restabelecendo a paz em áreas marcadas por uma crescente mobilização social, uma reforma agrária, na visão que se afirmou, seria capaz de colocar o país nos trilhos da industrialização e do desenvolvimento econômico. Com esses argumentos, algumas medidas foram propostas tendo por foco o problema rural brasileiro. Todas elas experimentaram fortes resistências em um Congresso onde os interesses agrários tinham uma expressiva representação. Uma das diferenças entre o governo Jango e os precedentes foi o envolvimento que o Poder Executivo passou a ter com a questão agrária. Esse envolvimento ficou claro em novembro de 1961, quando o presidente compareceu ao I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) em Belo Horizonte. Sua ação incidiu, por um lado, no terreno da legislação sindical e trabalhista rural, e, por outro, na realização de uma reforma agrária. Foi no governo Jango que os trabalhadores rurais, que até então se organizavam, em função de uma série de complicadores legais, em entidades de caráter civil, como Ligas Camponesas e associações de lavradores, passaram a criar sindicatos e

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Questão agrária

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A questão agrária no governo Jango 

A questão agrária foi um dos principais pontos que polarizaram o debate político durante os anos em que João Goulart ocupou a presidência. Ela esteve no centro das preocupações dos atores políticos em geral, do governo, dos partidos, dos movimentos sociais, da Igreja Católica, da opinião pública. Foi, em grande parte, naquele momento que se consolidou a noção de que o Brasil necessitava de uma reforma agrária capaz de eliminar a grande propriedade, o latifúndio, visto como obstáculo fundamental ao desenvolvimento.

Os conflitos na área rural brasileira vinham de longa data, tendo alguns deles assumido grandes proporções, como foi o caso de Canudos, nos primeiros anos da República. Porém, foi principalmente a partir de meados dos anos 1940, e durante a década de 1950, que esses conflitos não apenas se intensificaram, mas também passaram a assumir uma feição nova. Tornou-se corrente, a partir dali, a idéia de que a questão agrária configurava um dos nossos problemas sociais mais sérios, resultado de um padrão concentrador da propriedade da terra instituído ainda no período colonial. Em uma ponta da hierarquia social, esse padrão acarretava riqueza, poder e privilégio. Na outra, produzia pobreza, analfabetismo, fome, doença, subordinação, isolamento.

Tal distribuição, longe de se circunscrever apenas ao campo, produzia efeitos negativos para a nação como um todo. A pobreza gerada excluía do acesso ao mercado de bens industrializados a maior parcela da população do país, uma vez que cerca de 70% dos brasileiros habitavam a área rural até os anos 1950. Portanto, além de resolver o problema rural, restabelecendo a paz em áreas marcadas por uma crescente mobilização social, uma reforma agrária, na visão que se afirmou, seria capaz de colocar o país nos trilhos da industrialização e do desenvolvimento econômico. Com esses argumentos, algumas medidas foram propostas tendo por foco o problema rural brasileiro. Todas elas

experimentaram fortes resistências em um Congresso onde os interesses agrários tinham uma expressiva representação.

Uma das diferenças entre o governo Jango e os precedentes foi o envolvimento que o Poder Executivo passou a ter com a questão agrária. Esse envolvimento ficou claro em novembro de 1961, quando o presidente compareceu ao I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) em Belo Horizonte. Sua ação incidiu, por um lado, no terreno da legislação sindical e trabalhista rural, e, por outro, na realização de uma reforma agrária. Foi no governo Jango que os trabalhadores rurais, que até então se organizavam, em função de uma série de complicadores legais, em entidades de caráter civil, como Ligas Camponesas e associações de lavradores, passaram a criar sindicatos e federações, desembocando, posteriormente, na criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Foi no governo Jango que direitos trabalhistas básicos, pelo menos há duas décadas existentes nas cidades, foram estendidos ao campo por meio do Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado em 1963. Foi também no governo Jango que foi criada a Superintendência de Política Agrária (Supra), que tinha por incumbência implementar medidas de reforma agrária no país. Foi ainda o governo Jango que mais efetivamente investiu na aprovação de uma reforma agrária pelo Congresso.

Um dos empecilhos à realização de uma ampla reforma agrária no país era o dispositivo constitucional determinando que desapropriações de terras deveriam se dar mediante prévia indenização em dinheiro. Alegando inexistência de recursos suficientes, o governo, por intermédio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), passou a propor uma reforma constitucional que permitisse o pagamento das indenizações em títulos da dívida agrária. A solução da questão agrária articulava-se a uma série de outras mudanças constitucionais propostas pelo governo, as chamadas reformas de base, anunciadas como fundamentais para o desenvolvimento nacional. Sua aprovação, contudo, tratando-se de reformas constitucionais, demandava um apoio de 3/5 do Congresso, o que nunca chegou a ser conseguido.

Diante das resistências, o governo passou a pressionar o Congresso de modo firme, juntamente com os movimentos sociais, que demandavam reforma agrária "na lei ou na marra". Foi nesse jogo de pressões

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que João Goulart anunciou, em 13 de março de 1964, no Comício das Reformas, realizado no Rio de Janeiro, a desapropriação de terras localizadas às margens de rodovias, ferrovias e obras públicas. Ao invés de resultarem na aprovação da reforma, contudo, os atos do governo aprofundaram a ruptura com grupos de centro que lhe davam suporte, como o Partido Social Democrático (PSD), abrindo caminho para o golpe de1964.

Mario Grynszpan(Fonte: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/A_questao_agraria_no_governo_Jango)

A importância econômica e social da reforma agrária e dos assentamentos rurais A reforma agrária hoje possui uma grande importância, principalmente no âmbito social. É unânime entre os estudiosos favoráveis à reforma agrária a sua importância social, como uma política de distribuição de renda e de inclusão social, “desafogando” pequenos arrendatários, parceiros, meeiros e minifundiários. Proporcionando a oportunidade de uma grande parte de pessoas que estão nas periferias das grandes cidades e excluídos do mercado de trabalho e que foram expulsas do espaço rural nas décadas de 1960/1970 migrando para as cidades, em decorrência da cruel modernização conservadora e da industrialização do país, voltarem para o campo, agora com as condições para produzir de maneira viável, resgatando assim sua dignidade. Até porque, segundo Martins (2000, p. 37), [...] os fatos demonstram, no período recente, que a disseminação da agricultura familiar, com base nos assentamentos da reforma agrária, para não poucas famílias, multiplica a renda, melhora a qualidade de vida e suprime fatores de anomia e desagregação familiar. Assim, alguns estudiosos brasileiros vêm realizando pesquisas para analisar os impactos sociais dos assentamentos rurais implantados nas décadas de 1980/1990. Dessa maneira, apesar de carências de condições básicas, como crédito, extensão, saúde, educação, viabilidade econômica e social dos assentamentos rurais, constataram-se resultados muito significativos no âmbito social. Dessa maneira, há vários estudos de caso que comprovam a relevância social dos assentamentos rurais no Brasil.

Um bom exemplo é o trabalho de Ramalho (2002), que estudou os impactos socioterritoriais dos assentamentos rurais no município de Mirante do Paranapanema, que se constitui no principal município em termos de número de assentamentos rurais com um total de 28. Assim, Ramalho (2002) constatou em sua pesquisa que, [...] a criação dos assentamentos possibilitou para uma população de baixa escolaridade e que enfrentava no momento anterior uma instável e precária inserção no mundo do trabalho rural/agrícola, a possibilidade de centrar suas estratégias de reprodução familiar e de sustento no próprio lote. Ainda que de forma precária passaram a ter acesso à moradia, saúde, escola. [...] Para além das questões econômicas, criam-se novos sujeitos sociais e resgata-se a dignidade de uma população historicamente excluída. O acesso à terra provocou, em muitos casos, rupturas e uma sensação nítida de melhoria em relação ao passado. (RAMALHO, 2002, pp. 130-131) Leite (1997, p. 168) analisa os impactos dos assentamentos rurais no Brasil e deixa claro quando diz que, “os assentamentos não só geraram empregos e, de alguma maneira, aumentaram o nível de renda das famílias assentadas, como também transformaram em maior ou menor medida as relações de poder local”.

Segundo Leite (1997), a tentativa mais ambiciosa de estudos de assentamentos rurais no Brasil é o estudo realizado pela FAO. Neste estudo foram selecionados 440 assentamentos criados entre outubro de 1985 e outubro de 1989, e deles selecionou-se uma amostra de 44 casos distribuídos por todos os estados do país. Dessa maneira, Leite (1997, p. 165) salienta que, entre as conclusões da pesquisa da FAO, [...] os autores apontam, a partir da análise de variáveis como geração e e distribuição de renda, capitalização, características do processo produtivo, comercialização da produção, etc., que os assentamentos revelaram-se eficazes promotores do desenvolvimento rural e de fixação do homem no campo. Em suma, os assentamentos rurais no Brasil têm demonstrado ser de grande importância social para o país, dando a possibilidade de inclusão social e melhoria de vida para famílias que estavam excluídas do mercado do trabalho e do acesso a terra, transformando um amplo setor de “excluídos” em sujeitos políticos. No que tange à questão econômica da reforma agrária hoje, muitos intelectuais brasileiros favoráveis à reforma agrária, incluindo partidários da esquerda, compreendem que a reforma agrária não possui importância econômica para o país, sendo importante apenas como uma política de cunho social como parte de uma “divida social” com os “pobres da terra” que historicamente enfrentam a opressão e exclusão das elites latifundiárias.

Sobre a questão da importância econômica dos assentamentos rurais de reforma agrária, Zamberlam e Florão (1991, pp. 36-38) realizaram um estudo sobre o impacto econômico dos assentamentos rurais na economia em municípios na região de Cruz Alta (RS) e constataram que, do ponto de vista econômico, os assentamentos pesquisados encontram-se numa posição vantajosa, se levarmos em consideração outras

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propriedades, nas mesmas condições, fora dos assentamentos. Os resultados econômicos dos assentamentos em termos de geração de impostos diretos e indiretos têm sido um fator positivo aos cofres públicos. Com relação à viabilidade econômica dos assentamentos rurais, Zamberlam e Florão (1991, p. 39) salientam que, [...] a colocação de terras de latifúndios para assentamentos de trabalhadores rurais tem viabilidade econômica. O nível de produção e produtividade, a qualidade de vida dos assentados, têm reafirmado a condição intrínseca do expressivo excedente que, colocado no mercado, reforça o próprio fim social da terra.[...] Os retornos em forma de tributos diretos e indiretos, para a sociedade, por seu montante, demonstram que os assentamentos são centelhas energizantes na alimentação e aquecimento do sistema capitalista, seja pelos tributos gerados, seja pela demanda e oferta de produtos ao mercado. Dessa maneira, fica evidente que os assentamentos rurais implantados até hoje no Brasil - que ficam longe de ser considerado como reforma agrária, em virtude da forma em que a maioria foram implantados, tendo o Estado que desembolsar recursos financeiros para a desapropriação da propriedade e investir pouco em infra-estrutura e recursos sociais, econômicos e culturais para que o assentamento se torne realmente viável – mostram resultados positivos tanto econômicos quanto sociais, e nesse sentido reforçamos a idéia de que o Brasil ainda necessita de uma ampla e verdadeira reforma agrária que geraria resultados muito melhores do que os assentamentos rurais implantados até hoje.(fonte: Questão agrária brasileira: origem, necessidade e perspectivas de reforma hoje. Wagner Miralha, Mestrando em Geografia pela UNESP)

Os conflitos sociais revigorados Nos anos 80 iniciou-se um novo ciclo de lutas que, em alguma medida, refletia as profundas alterações pelas quais passava a agricultura brasileira e a presença de novas mediações nos conflitos. Surgiram novos temas (os efeitos sociais da construção de usinas hidrelétricas, a importância da preservação de áreas de matas, os efeitos da modernização sobre os pequenos agricultores, etc) e novas categorias (sem terra, atingidos, seringueiros, etc.) que se somaram às anteriores. Enquanto as categorias mais usuais nos anos 70 (posseiros, arrendatários, parceiros, assalariados) refletiam a referência à lei, aquelas refletiam a nova dinâmica de lutas e expressavam identidades constituídas no próprio processo de crítica e enfrentamento das condições vigentes no meio rural. Essa nova dinâmica inovou no que se refere às formas de luta, priorizando os espaços públicos, a busca de visibilidade, mas também atualizou as referências legais, por vezes apoiando-se fortemente nelas, reivindicando a aplicação do Estatuto da Terra, por vezes constituindo novas interpretações da lei, outras criando fatos políticos cujo reconhecimento provocou inovações nas leis vigentes e novos direitos.

Um dos casos mais notórios foi o dos seringueiros do Acre que, ameaçados de expulsão da terra em função dos desmatamentos estimulados pelo incentivos do Estado, ainda durante o regime militar, resistiram, em princípio demandando o direito de ficar na terra com base no Estatuto da Terra, depois obtendo essa mesma permanência a partir da constituição de novos instrumentos legais, como os que deram origem às reservas e assentamentos extrativistas, que não só garantiam o direito à terra, mas também disciplinavam o uso da floresta, impedindo sua derrubada. Além de lutas de resistência, nas quais o acesso à terra foi demandado a partir de noções costumeiras sobre direito de uso, constituídas a partir de longo tempo de trabalho investido na terra, o início das ocupações fundaram novas concepções de direito. Tratavase de um outro movimento no qual não era questionada a legalidade da propriedade da terra mas sim, principalmente, a sua legitimidade, uma vez que a apropriação não se justificava através de uma destinação produtiva. Atualizou-se, através dessas práticas, a própria noção de função social da terra, incorporada à Constituição Brasileira desde 1946 e atualizada em 1988. Como aponta João Pedro Stedile, "se não ocupamos, não provamos que a lei está do nosso lado... a lei só é aplicada quando existe iniciativa social... a lei vem depois do fato social, nunca antes. O fato social na reforma agrária é a ocupação, as pessoas quererem terra, para depois se aplicar a lei" (Stedile e Fernandes, 199: 115).

As ocupações de terra cresceram ao longo da primeira metade dos anos 80, consolidaram-se com a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, e foram, pelos fatos políticos que criaram, pelo apoio que receberam de diversas entidades e pelas pressões que conseguiram realizar, um importante motor das desapropriações a partir daí realizadas, em especial após o fim do regime militar, em 1985. No final dos anos 80, essa forma de luta, que até então se concentrava no centro sul do país, expandiu-se por novos espaços, correspondendo à nacionalização do MST, que ganhou expressão nacional e tornou-se o próprio símbolo da luta por terra. Desse processo fez parte a sua inserção em São Paulo, em especial na região do Pontal do Paranapanema, que começou a ser objeto das ações mais sistemáticas do MST no início dos anos 90 e a intensificação das suas ações nas regiões Norte e Nordeste do país. As ocupações tornaram-se não só mais constantes em termos de número de eventos, mas também em termos de quantidade de pessoas envolvidas. Voltavam-se quer para terras de titulação duvidosa (como é o caso do Pontal, onde grande parte das terras eram públicas e haviam sido griladas),

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quer para imóveis em processo de falência, motivada pela crise de tradicionais atividades agrícolas (em especial, região canavieira pernambucana e fluminense). Com os altos índices de miséria e desemprego dela decorrentes, a possibilidade de acesso à terra não só facilitava a arregimentação de pessoas dispostas a ir para os acampamentos, como também legitimava as ações dos sem terra junto à opinião pública, além de dar-lhes uma cobertura legal. Num quadro de redução das alternativas de emprego, até mesmo trabalhadores com longo período de experiência urbana passaram a engrossar as ocupações, em especial em estados bastante urbanizados, como é o caso de Rio de Janeiro e São Paulo. Verifica-se, assim, uma mudança no próprio público que demandava terra, o que ocasionou inúmeros debates sobre quem poderia receber lote num assentamento, mais uma vez contrapondo a legislação (critérios de seleção instituídos pelo Incra) às demandas efetivas.

A constituição e expansão do MST representaram não só inovações nas formas de luta, como também no plano organizativo, ampliando a concepção de luta por terra e de seu papel. Com efeito, um dos mais significativos traços desse movimento é a concepção de que a demanda por terra não se esgota na obtenção de um lote, mas implica na necessidade de organizar a produção, de obter créditos para isso, de formar líderes como caminho para dar continuidade às ocupações para além dos seus locais de origem. Em decorrência, verifica-se uma forte ênfase na organização dos assentamentos, tanto no plano local, quanto no plano regional, estadual e nacional, de forma a fazer da luta por terra uma bandeira ampla, capaz de recobrir não só diferentes setores sociais, mas também um conjunto amplo de demandas que vão além da terra. A estratégia de consolidação do MST implicava, pois, não só em garantir a sobrevivência econômica dos assentados como também em buscar legitimá-los socialmente, através da produção. Dentro dessa estratégia, passaram a estimular formas de produção cooperada e de beneficiamento, estabeleceram rígidas regras de conduta no interior dos assentamentos (desde proibição de bebida até regulamentação sobre transferência e divisão de lotes), ênfase na educação não só política, mas também formal (escolarização básica, visando a erradicação do analfabetismo entre os adultos e a preparação de crianças e jovens) e tecnológica. Conjugaram-se, assim, como estratégia política, mobilizações e ocupações envolvendo grande número de pessoas, dando maior visibilidade às lutas por terra, com um trabalho cotidiano e molecular de recrutamento de novos ocupantes, organização de acampamentos, fortalecimento dos assentamentos e formação de líderes. Evidentemente o processo organizativo que tem revigorado a luta por terra no Brasil não tem se mostrado isento de tensões, tanto internamente aos assentamentos, onde foi grande a resistência dos assentados às formas coletivas de produção, levando à flexibilização do modelo, como nas dificuldades inerentes à forma como a expansão nacional do MST se deu, através da ação de líderes, no mais das vezes formados no sul do país, com tradição de uma agricultura familiar, com fortes laços de solidariedade. Essa trajetória muitas vezes era transposta para áreas onde havia uma tradição secular de subordinação à figura de um patrão. O choque de percepções sobre formas de organização e significado do acesso à terra foi concomitante a esse processo e o tensionou em diferentes momentos.

O aumento na quantidade de ocupações e de volume de ocupantes foi concomitante ao crescimento da violência no campo, culminando, já no início do governo Fernando Henrique Cardoso, com a morte de um grande número de trabalhadores em Corumbiara, estado de Rondônia (agosto de 1995), durante uma ação de despejo, em Eldorado de Carajás, no Pará (abril de 96), por ocasião de uma mobilização, e prisões de importantes lideranças do MST em Pontal do Paranapanema, em São Paulo. Nos dois primeiros casos, identificados como situações de "massacre" de trabalhadores, chama a atenção o fato de que não se tratava da ação de milícias privadas, mas sim de forças policiais chamadas a intervir, confirmando os argumentos de Barp (1998) de que uma das tendências da violência no campo é o crescimento das suas formas legais (ou seja através da ação policial ou judicial) e a redução da violência ilegal (através da ação de pistoleiros e jagunços).

As lutas por terra nos anos 80/90 resultaram na constituição de novas categorias e novas identidades: de um lado o sem terra, de outro o assentado, objeto por excelência de políticas públicas, no sentido de que sua própria origem é mediatizada por uma política estatal: a desapropriação de uma área e o assentamento. O assentamento, sob essa ótica, representa o reconhecimento pelo Estado da demanda por terra, de alguma forma alimentando a concepção de que o acesso à terra é um direito. A sua proliferação, por outro lado, tem provocado a constituição de uma série de demandas (estradas, saúde, educação, etc), que colocam os assentados em novas redes de relações, pressionando o poder público municipal, cobrando do Estado o cumprimento de prazos, fazendo-os atores políticos significativos em municípios onde a participação política dos trabalhadores do campo sempre foi marcada pelo controle clientelístico.(extraído de: Os trabalhadores do campo e desencontros nas lutas por direitos. Leonilde Servolo de Medeiros)

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