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Nivaldo Vieira de Andrade Junior A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos 1 IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006 A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos: da reconstrução literal ao contraste radical Nivaldo Vieira de Andrade Junior 1 Do surgimento da teoria do restauro estilístico de Viollet-le-Duc, na segunda metade do século XIX, até as primeiras décadas do século XX, o desaparecimento de todo e qualquer monumento histórico era resolvido quase sempre com a sua reconstrução fidedigna e no mesmo local de origem – uma reconstrução, como dizem os italianos, com’era e dov’era 2 . Um exemplo bastante significativo desta postura é a reconstrução do Campanário de São Marcos, na praça do mesmo nome, em Veneza. Após o desabamento em 1902 da torre original – uma construção cujos trechos mais antigos remontavam ao início do século X –, a prefeitura de Veneza se decidiu pela reconstrução de uma nova torre no mesmo lugar da original e que a repetisse em cada um de seus detalhes. Esta reconstrução teve início em 1903, sendo finalmente concluída em 1912. Embora a administração local veneziana jamais tenha cogitado qualquer solução distinta da reconstrução da torre com’era e dov’era, algumas personalidades ligadas às vanguardas culturais italiana e estrangeira se colocaram publicamente, desde o primeiro momento, contra a sua reconstrução. O arquiteto austríaco Otto Wagner, por exemplo, em entrevista concedida a um jornal dois dias após o desabamento, defendia não a reconstrução literal da torre desaparecida, mas sim a construção de uma nova torre em “estilo moderno”: Porque motivo não deveria ser representado na praça de Veneza também o estilo moderno, uma vez que a desgraça aconteceu? [...] Seria querer falsificar a história da arquitetura se o campanário fosse reconstruído no estilo antigo. [...] Parece-me que Veneza não tenha sofrido graves danos pelo desabamento do seu campanário. Ela deveria recolher amorosamente entre os escombros cada bloco, cada bronze, cada fragmento de ornamento como lembrança histórica. Porém me agradaria vê-lo em outro ponto, porque ali onde estava, estragava indubitavelmente a harmonia estética da praça. (Otto Wagner apud ROMANELLI, 1985: 252) 3 1 Laboratório de Requalificação Urbana do Pilar – Faculdade de Arquitetura / UFBA. e-mail: [email protected] 2 A expresssão italiana com’era e dov’era, traduzida literalmente por como era e onde estava, é utilizada para indicar as reconstruções de edifícios destruídos, realizadas no mesmo local e com as características originais. 3 Tradução do italiano realizada pelo autor.

A Questao Da Ocupação Dos Vazios Em Conjuntos Historicos

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Artigo trata dos vazios urbanos em centros históricos. Nivaldo Vieira Jr.

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IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006

A Questão da Ocupação dos Vazios em Conjuntos Históricos: da reconstrução literal ao contraste radical

Nivaldo Vieira de Andrade Junior1

Do surgimento da teoria do restauro estilístico de Viollet-le-Duc, na segunda metade do século

XIX, até as primeiras décadas do século XX, o desaparecimento de todo e qualquer monumento

histórico era resolvido quase sempre com a sua reconstrução fidedigna e no mesmo local de

origem – uma reconstrução, como dizem os italianos, com’era e dov’era2.

Um exemplo bastante significativo desta postura é a reconstrução do Campanário de São Marcos,

na praça do mesmo nome, em Veneza. Após o desabamento em 1902 da torre original – uma

construção cujos trechos mais antigos remontavam ao início do século X –, a prefeitura de Veneza

se decidiu pela reconstrução de uma nova torre no mesmo lugar da original e que a repetisse em

cada um de seus detalhes. Esta reconstrução teve início em 1903, sendo finalmente concluída em

1912.

Embora a administração local veneziana jamais tenha cogitado qualquer solução distinta da

reconstrução da torre com’era e dov’era, algumas personalidades ligadas às vanguardas culturais

italiana e estrangeira se colocaram publicamente, desde o primeiro momento, contra a sua

reconstrução. O arquiteto austríaco Otto Wagner, por exemplo, em entrevista concedida a um

jornal dois dias após o desabamento, defendia não a reconstrução literal da torre desaparecida,

mas sim a construção de uma nova torre em “estilo moderno”:

Porque motivo não deveria ser representado na praça de Veneza também o estilo moderno,

uma vez que a desgraça aconteceu? [...] Seria querer falsificar a história da arquitetura se o

campanário fosse reconstruído no estilo antigo. [...] Parece-me que Veneza não tenha

sofrido graves danos pelo desabamento do seu campanário. Ela deveria recolher

amorosamente entre os escombros cada bloco, cada bronze, cada fragmento de ornamento

como lembrança histórica. Porém me agradaria vê-lo em outro ponto, porque ali onde

estava, estragava indubitavelmente a harmonia estética da praça. (Otto Wagner apud

ROMANELLI, 1985: 252)3

1 Laboratório de Requalificação Urbana do Pilar – Faculdade de Arquitetura / UFBA. e-mail: [email protected] 2 A expresssão italiana com’era e dov’era, traduzida literalmente por como era e onde estava, é utilizada para indicar as reconstruções de edifícios destruídos, realizadas no mesmo local e com as características originais. 3 Tradução do italiano realizada pelo autor.

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A posição de Wagner contra uma reconstrução fidedigna e anacrônica do Campanário de Veneza

ainda era, nos primeiros anos do século XX, uma voz discordante em um cenário no qual

predominavam as reconstruções com’era e dov’era – apesar de teóricos como Camillo Boito que,

desde a década de 1880, se colocavam contra as reconstruções e aquilo que passou a ser

chamado de falso histórico – construções contemporâneas que, contudo, não correspondem aos

padrões técnicos, estéticos e programáticos da arquitetura contemporânea, enganando o

observador.

O restauro filológico de Boito propunha uma mínima ação restauradora, prevalecendo sempre a

conservação, se colocando ao mesmo tempo contra a visão da unidade formal e estilística

propalada desde meados do século XIX por Viollet-le-Duc. A teoria boitiana começa a ser tornar

conhecida no cenário europeu apenas a partir de finais do século XIX e, principalmente, a partir da

sua sistematização – com algumas mutações – por Gustavo Giovannoni, nas primeiras décadas

do século XX.

Giovannoni será também o responsável pela difusão, a partir da década de 1910, da noção

atualmente corrente de que conjuntos urbanos históricos também podem ser considerados

patrimônio cultural e, portanto, dignos de serem preservados; Giovannoni foi o primeiro teórico do

restauro a reconhecer que não apenas os monumentos isolados devem ser objeto de ações

visando a sua preservação, como também alguns conjuntos urbanos – a chamada “arquitetura

menor”.

A inovação da sua contribuição consiste não somente na defesa da conservação de conjuntos

urbanos inteiros como também em reconhecer as relações históricas entre o monumento e o

contexto urbano em que este se insere – o seu entorno –, enunciando assim o conceito de

ambiente como definição urbana visual do monumento, na medida em que constitui sua própria

natureza imagética.

Entretanto, o problema dos centros urbanos levantado por Giovannoni se restringiu, inicialmente,

à questão da proteção e conservação das edificações existentes nestes conjuntos. As intensas

destruições provocadas nas cidades européias pelos bombardeios realizados durante a II Guerra

Mundial (1939-45) colocaram um novo problema: como reconstruir centros históricos e até mesmo

cidades inteiras destruídas pela guerra?

A partir desta pergunta, se estabelece um rico debate, que terá seus momentos mais polêmicos

na Itália. Em agosto de 1944, a destruição pelo exército alemão em retirada de quarteirões inteiros

na zona de Por Santa Maria, ao lado da Ponte Vecchio de Florença, foi o pretexto para que se

iniciasse um animado debate nas páginas da revista florentina Il Ponte, já nos primeiros meses de

1945.

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De um lado, o crítico de arte norte-americano Bernard Berenson defendia a reconstrução o mais

fiel possível dos edifícios destruídos, enquanto o italiano Ranuccio Bianchi Bandinelli denunciava

este posicionamento como “retórica do falso antigo” e, admitindo a possibilidade de intervenções

inovadoras, reivindicava o direito dos italianos de não serem simplesmente “guardiões de um

museu”, mas de habitar cidades vivas, fossem elas belas ou feias, desde que fossem “sinceras”.

Segundo Manfredo Tafuri,

na ansiosa tentativa de contrapor as qualidades da ‘civilização’ à ignomínia da barbárie, os

arquitetos toscanos [que desenvolveram o plano de reconstrução parcialmente executado]

se arriscam em projetos e polêmicas que se concluem com uma reconstrução do tecido

histórico pobre e comprometedor: [...] o acontecimento florentino desemboca também em

um fracasso, deixando, porém, emergir problemas sobre os quais parecerá correto dedicar-

se profundamente. (TAFURI, 2002: 11) 4

Apenas a partir do surgimento, na Itália dos anos 1950, das teorias do restauro crítico, o debate

penderá de forma mais clara para o lado daqueles que se posicionam contra a reconstrução

rigorosa das edificações destruídas.

Entretanto, mesmo entre os principais teóricos italianos do restauro dos anos 1950, não havia

consenso com relação à questão. Enquanto Cesare Brandi defende, em um artigo publicado em

1956 na revista L’Architettura Cronache e Storia, a proibição de qualquer edificação realizada com

arquitetura moderna nos centros antigos (BRANDI, 1956), Roberto Pane, em sua famosa

conferência Città Antiche Edilizia Nuova, contesta abertamente a suposta inconciliabilidade entre

arquitetura nova e antiga alegada por Brandi, ao mesmo tempo em que defende que se reconheça

a realidade das estratificações históricas existentes em todo e qualquer conjunto urbano que

configuram o seu ambiente – processo no qual, da mesma forma, a arquitetura contemporânea

poderia participar ativamente, reconfigurando-o:

A tese da inconciliabilidade entre a edificação nova e a antiga está baseada,

substancialmente, em uma fatalista aceitação do fato concluído, generalizando-o como um

dado inevitável e definitivo para as experiências que se deverão concluir amanhã. Desta

forma, as dimensões dos modernos edifícios e o uso do cimento e do ferro na atroz

banalidade das suas formas correntes seriam, e não poderiam deixar de ser, a imagem

mais afirmada da inconciliabilidade. O equívoco está em esquecer as numerosas

experiências positivas de aproximação do novo ao antigo [...] realizadas sem qualquer

renúncia à modernidade [...]. Aquilo que na tese da intransigência parece francamente

absurdo é querer ignorar a evidente realidade histórica da estratificação que se concluiu no

4 Tradução do original italiano realizada pelo autor.

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passado configurando, com os seus contrastes, o ambiente que desejamos salvar, e a

negação que a mesma situação possa e deva ocorrer também no presente. (PANE, 1959)5

A REINTERPRETAÇÃO DAS PREEXISTÊNCIAS AMBIENTAIS

Enquanto no âmbito da teoria do restauro Roberto Pane foi o inegável precursor na defesa da

construção de edifícios modernos em contextos históricos, no que diz respeito à atuação

profissional quem desempenhou um papel análogo no cenário italiano do segundo pós-guerra foi

Ernesto Nathan Rogers.

Através dos editoriais escritos para a revista Casabella Continuità entre as décadas de 1950 e

1960, Rogers foi o principal responsável pela consolidação e divulgação, no meio arquitetônico

italiano e internacional, de uma arquitetura moderna que busque reinterpretar criticamente as

preexistências ambientais.

No editorial de setembro de 1954 da revista Casabella, intitulado La responsabilità verso la

tradizione, Rogers apresentou pela primeira vez alguns exemplos de edifícios recentemente

realizados por arquitetos ligados ao Movimento Moderno nos quais era claramente perceptível a

preocupação em integrá-los ao contexto em que se inseriam sem, contudo, abdicarem de uma

linguagem arquitetônica moderna e da utilização de materiais e técnicas construtivas

contemporâneos:

Estas arquiteturas contemporâneas interpretam as preexistências ambientais criticamente;

mesmo quando reconhecem mais ou menos certos valores figurativos, jamais trazem a sua

linguagem específica, imitando-a. É o modo mais fecundo de continuar a tradição na

modernidade. (ROGERS, 1997: 274)6

Os edifícios citados por Rogers neste artigo estavam todos localizados na Itália, como a Bolsa de

Valores de Pistóia (Giovanni Michelucci, 1948-50) e o edifício de escritórios INA em Parma

(Franco Albini, 1950-54); ou nos países escandinavos, como o Edifício Rautatalo em Helsinque

(Alvar Aalto, 1951-54) e a menos recente Prefeitura de Goteburgo (Erik Gunnar Asplund, 1913-

37).

A partir de então, a busca pela realização de uma arquitetura que, em lugar de imitar as antigas

construções remanescentes dos terrenos vizinhos, optasse por reinterpretar, de maneira criativa e

moderna, os diversos aspectos formais das preexistências do entorno tem sido uma constante na

produção arquitetônica italiana e de outros países. Esta abordagem da questão dos vazios em

contextos históricos urbanos pode ser percebida não apenas em algumas obras dos arquitetos

5 Tradução do original italiano realizada pelo autor. 6 Tradução do original italiano realizada pelo autor.

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citados acima, como Aalto, Asplund, Albini7 e Michelucci, mas também na produção projetual de

nomes como os italianos Carlo Scarpa8, Vittorio Gregotti9, Roberto Gabetti e Aimaro d’Isola10 e

Cino Zucchi11.

A partir da década de 1960, um enfrentamento semelhante da questão da ocupação dos vazios

em conjuntos históricos pode ser encontrado em países como Portugal e Espanha, em algumas

obras dos arquitetos da Escola do Porto, como Fernando Távora12 e Álvaro Siza13, ou em projetos

de Rafael Moneo14, Juan Navarro-Baldeweg15 e Josep Llinàs16.

No Brasil, um exemplo bastante interessante desta postura é o Edifício Ipê, projetado em 1965 por

Paulo Ormindo de Azevedo, quando este trabalhava como colaborador do IPHAN17. Este edifício

de uso misto se insere harmoniosamente no tecido urbano do Centro Histórico de Salvador, em

um lote de esquina cercado por sobrados construídos entre os séculos XVII e XIX, e traz para o

Brasil o debate italiano a respeito das preexistências ambientais.

Ao repetir a cobertura em telhas cerâmicas, a altura e a volumetria dos sobrados vizinhos, o

edifício desenhado por Paulo Ormindo de Azevedo consegue estabelecer uma continuidade visual

com as antigas edificações que lhe são vizinhas. A afirmação da sua modernidade, por sua vez, é

obtida seja pela reinterpretação do ritmo das fachadas vizinhas, através da estrutura em concreto

aparente, seja pelos largos e salientes painéis horizontais de madeira treliçada que, à altura do

primeiro pavimento, substituem os balcões das edificações tradicionais da zona, seja ainda pelo

fechamento dos intercolúnios com painéis modulares de madeira e pelas janelas quadradas e

centralizadas dos dois pavimentos superiores.

Ao projetar este edifício, Paulo Ormindo pretendeu, na verdade, restaurar a ambiência daquele

trecho do Centro Histórico: defendendo uma reintegração paisagística, o arquiteto propõe uma

arquitetura moderna que se integre às preexistências ambientais, tal como defendia Rogers:

7 Além do edifício de escritórios INA de Parma, Albini realizou outros projetos de integração com as preexistências ambientais, como a Loja de Departamentos La Rinascente em Roma (1957-61) 8 O Banco Popular de Verona (1972-81), dentre outros projetos. 9 Em projetos como o Centro Cultural de Belém, em Lisboa (1988-93) e o Complexo Residencial em Cannaregio, em Veneza (1981-2002) 10 Em construções como o conjunto residencial localizado na via Sant’Agostino, em Turim (1980-84), mais do que no polêmico projeto da Bottega di Erasmo (1953-56), na mesma cidade. 11 Destacando-se o premiado projeto do complexo residencial construído na antiga área Junghans em Veneza (1996-2002). 12 A influência da arquitetura norte-italiana de Rogers et alli pode ser particularmente percebida no Edifício Municipal e Biblioteca de Aveiro (1963-70). 13 Dentre as obras de Siza realizadas em conjuntos históricos, destaca-se a delicadeza da inserção do Centro Galego de Arte Contemporânea (1988-93) no centro histórico de Santiago de Compostela, ao lado de um convento do século XVII. 14 Diversos exemplos podem ser encontrados na obra recente de Moneo, como o Museu de Arte Romana de Mérida (1980-85), a Casa de Cultura de Don Benício (1991-97) e, principalmente, a Prefeitura de Múrcia (1991-98). 15 Principalmente a Prefeitura de Vila-Seca (1995-98) e o Edifício Carme em Barcelona (1989-94). 16 Na obra de Navarro-Baldeweg, o melhor exemplo de integração crítica com o contexto preexistente está no Centro Cultural e Museu Hidráulico de Múrcia (1984-89). 17 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do Ministério da Cultura responsável pela identificação, documentação, preservação e divulgação do patrimônio cultural brasileiro. Criado em 1937 como SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), passou por diversas denominações até se transformar definitivamente em IPHAN, em 1994. Neste trabalho, utilizaremos preferencialmente a sigla IPHAN para nos referirmos ao órgão, independentemente do período abordado.

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A restauração não deve se limitar aos edifícios em separado. Deve recriar a atmosfera dos

espaços externos como ladeiras, vielas, largos e encostas, através da restauração das

relações de cores das calçadas e pisos, espécies vegetais, etc. A reintegração paisagística

do conjunto com a cidade que cresceu em torno deve ser estudada a partir dos locais

públicos de observação. [...] Especial atenção deve ser dada à abordagem do conjunto. A

seqüência de emoções que culminam com o encontro do conjunto constitui a iniciação do

observador à compreensão do monumento.

Nos casos de demolições anteriores ao tombamento ou de acidentes que provocaram a

ruína dos prédios ao ponto de impedirem a recuperação, a construção de edifícios com

feição antiga é condenável. Não só pela inautenticidade, como pela impossibilidade de

reproduzir com fidelidade, inclusive em sua rusticidade, edifícios do passado, quando já não

existe o artesanato construtivo que os produziu. [...] Nestas situações o que se deseja são

soluções válidas como expressão arquitetônica atual, embora orientadas na manutenção

das linhas gerais de composição da quadra e na inalterância das relações de volume,

textura e cor (AZEVEDO, 1965: 17).

A MANUTENÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DOS VAZIOS

Existem alguns casos, atualmente menos comuns, em que o problema do desaparecimento de

uma construção no interior de um conjunto histórico urbano é afrontado não através da

reconstrução do edifício desaparecido ou da realização de uma nova arquitetura, mas sim com a

consolidação do vazio. Esta abordagem encontra suas raízes mais remotas no conceito de

diradamento edilizio, estabelecido por Gustavo Giovannoni no início do século XX.

O diradamento – que poderia ser traduzido por desbastamento – corresponde originalmente à

retirada de acréscimos espúrios de edifícios históricos ou à demolição de edifícios de menor valor

dentro do tecido urbano consolidado, tendo como objetivos destacar visualmente os elementos e

monumentos arquitetônicos de maior valor, bem como reduzir o caos provocado pelo excessivo

adensamento dos centros históricos.

Atualmente, os casos em que o vazio decorrente do desaparecimento de construções em

conjuntos históricos tem sido consolidado correspondem quase sempre ou a um desejo deliberado

de perpetuar na memória coletiva o episódio que levou ao desaparecimento daquele edifício

(como um incêndio, terremoto, ou mesmo um ataque terrorista18) ou a uma forma de criar espaços

abertos de uso coletivo em conjuntos altamente densificados.

18 O debate que se seguiu ao desabamento das Torres Gêmeas do World Trade Center de Nova York, como conseqüência de um ataque terrorista realizado em 11 de setembro de 2001, levantou várias hipóteses a respeito do que fazer com o imenso clarão surgido

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No primeiro caso, é representativa a polêmica suscitada após o imprevisto desabamento, em 17

de março de 1989, da Torre Cívica de Pavia, que resultou na morte de quatro pessoas e em mais

de trinta feridos. O desabamento provocou um intenso debate entre especialistas em restauro,

estudiosos da arquitetura e gestores urbanos, em que se defendiam posições tão distintas quanto

a reconstrução com’era e dov’era da torre, a execução de uma nova torre em linguagem atual e a

sua reconstituição através de feixes de raio laser; a decisão final, contudo, consistiu em

simplesmente remover os escombros da torre, preservando a sua base e as suas fundações, junto

às quais foi afixada uma placa em memória das vítimas fatais do episódio.

No que se refere à consolidação de vazios em conjuntos urbanos, em detrimento da sua

reocupação, visando criar espaços abertos de uso coletivo, é interessante analisar o caso do

terreno estreito e profundo localizado no Largo do Pelourinho, em Salvador, quase em frente à

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

Neste terreno, resultante da destruição pelo fogo de três sobrados muitos anos antes, o arquiteto

Pasqualino Magnavita desenvolveu, entre 1992 e 1994, o projeto de um palco móvel, uma sala de

espetáculos que estaria dentro do terreno baldio, porém que poderia deslizar, como uma gaveta,

sobre o Largo do Pelourinho até quase tocar a Igreja do Rosário dos Pretos, se transformando em

um palco aberto, voltado para a parte mais alta do largo, onde a platéia poderia se posicionar:

uma edificação, cujo elemento dominante da composição é uma grande sala que, quando

necessário, desliza em balanço sobre o Largo do Pelourinho, transformando-se, quase num

toque de mágica, num palco para espetáculos. Tal movimento se constitui, no nosso

entender, em um espetáculo à parte. (MAGNAVITA, 1995: 124)

O projeto de Pasqualino Magnavita associava a recomposição volumétrica do conjunto urbano à

criação de um importante equipamento cultural, evitando a constante montagem e desmontagem

de palcos provisórios que, ainda hoje, representam um grande investimento de recursos

financeiros e a inserção de um desagradável elemento na paisagem.

Entretanto, apesar de contar com o apoio do órgão municipal de cultura, o projeto foi arquivado e,

em seu lugar, neste mesmo terreno, foi realizado pelo Governo do Estado da Bahia um pequeno

espaço aberto para realização de espetáculos, cercado de bares e lanchonetes, consolidando

assim, de uma vez por todas, o vazio urbano e a interrupção na contínua fachada do casario

voltado para o Largo do Pelourinho.

O CONTRASTE RADICAL dentro de Manhattan, dentre elas a manutenção do vazio como testemunho da brutalidade do atentado realizado por fundamentalistas muçulmanos. Esta proposta se tornou inviável devido às próprias dimensões do vazio resultante dos atentados, bem como do seu elevado valor de mercado.

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Apesar da defesa, por parte de alguns arquitetos e teóricos do restauro, de uma arquitetura

moderna e ambientada, particularmente em países como Itália, Espanha e Portugal, em outros

contextos têm prevalecido intervenções que buscam, de forma deliberada, contrastar o mais

radicalmente possível com os conjuntos históricos em que ocorrem.

Estas intervenções, quase sempre bastante polêmicas, têm como um dos seus marcos

referenciais a construção do Centro Georges Pompidou em Paris (1971-77), projeto de Renzo

Piano e Richard Rogers. O Centro Pompidou representou a primeira de uma série de intervenções

em contextos históricos na França com uma abordagem que priorizava a utilização de materiais

leves e contemporâneos, como o aço e o vidro, criando indiscutíveis contrastes com os contextos

em que ocorrem.

Localizado no bairro medieval do Marais e na imediata vizinhança de edifícios antigos como a

Igreja de Saint Eustache (séc. XVI), o Centro Pompidou se constitui em um elemento

absolutamente estranho na paisagem, seja pelas suas dimensões, que destoam do fragmentado

contexto urbano em que se situa, seja pela leveza da sua estrutura em aço e do fechamento em

vidro, em contraste com as sólidas construções do entorno, seja ainda pelas vibrantes cores

utilizadas para marcar as diversas instalações e equipamentos. Embora seja indiscutível a

importância do Centro Pompidou na requalificação desta zona central de Paris, até então bastante

degradada, bem como o seu papel simbólico ao criar um novo marco para a capital francesa, é

também inquestionável o contraste que este imenso equipamento urbano estabelece com o

fragmentado tecido urbano em que se situa.

Embora mais recentemente tenham predominado na França as intervenções que, se utilizando de

materiais leves como aço e vidro, buscam referências tipológicas e morfológicas no entorno,

continuam a ser realizadas intervenções significativas que contrastam de maneira radical com o

conjunto em que se inserem. Dominique Perrault, por exemplo, tem realizado projetos com estas

características e é um declarado defensor da violência e do radicalismo como qualidades da

arquitetura:

Acredito que a violência é uma qualidade da arquitetura; encontro nela um radicalismo vital,

a manifestação primeira e primordial dos elementos. Trata-se de uma violência paradoxal

que reivindica abertamente a complexidade e que, ao mesmo tempo, é uma reafirmação da

simplicidade [...].

Na medida em que assumimos que construir consiste em criar o proibido – uma vez que se

segrega um lugar do outro –, conseqüentemente trata-se de um gesto paradoxal, já que a

arquitetura que nos protege é também um instrumento de segregação. Eu quero levar em

consideração essa dimensão e assumi-la plenamente, fora de qualquer demagogia, como

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um fator determinante do projeto. Tudo depende do que entendemos por ‘violência’: para

mim se trata de assumir um ato. [...] Se o tempo histórico – o contexto com seu valor

histórico – já não é para mim mais que um referencial relativo, o tempo real sobressai como

portador que uma riqueza absoluta. A noção de ‘contexto’ já não é determinante; o valor do

específico, o que realmente qualifica um projeto, é o contexto em um dado momento. Não

consigo segregar o contexto da noção de ‘tempo’; o contexto não tem mais que a dimensão

da imobilidade [...]. (Dominique Perrault apud EL CROQUIS, 2001: 9-10)19

A Grã-Bretanha é outro terreno fértil para esta abordagem nas últimas décadas. Embora a City

londrina20 não se constitua exatamente em um conjunto histórico homogêneo e totalmente

conservado, nela estão localizadas diversas construções e conjuntos de edifícios que são

protegidos por legislações específicas, e é nas suas ambiências – e muitas vezes em substituição

a edifícios tombados ou de grande valor arquitetônico – que alguns destes projetos vêm sendo

realizados. Enquanto o edifício-sede do Banco Lloyd’s (Richard Rogers, 1978-86) representou um

marco da realização da arquitetura high-tech em pleno centro de Londres, os projetos mais

recentes de Norman Foster, como a nova Prefeitura de Londres (1998-2002) e a Torre Swiss Re

(1997-2004), se configuram em elementos de grande contraste no ambiente urbano em que se

situam.

A Prefeitura de Londres fica nas proximidades de alguns dos mais importantes marcos urbanos de

Londres, como a Tower Bridge, e com 45 metros de altura e 45 metros de diâmetro, possui formas

curvas e materiais de revestimento que não estabelecem relações de continuidade visual com

quaisquer das construções do entorno. Da mesma forma, a Torre da Swiss Re se caracteriza

pelas formas curvas e pelo revestimento em vidro, criando uma situação de contraste radical com

o contexto urbano, que é agravada pelos seus 180 metros de altura. Neste caso específico, a

polêmica não se restringe à sua inusitada e fálica forma – que lhe rendeu o apelido de “pepino

erótico” –, mas se deve também ao fato de se localizar no eixo visual da Catedral de Saint Paul e

de ter representado a demolição das ruínas de um edifício tombado do início do século XX.

Outro exemplo de intervenção em conjunto histórico realizada recentemente na Grã-Bretanha e

que estabelece um contraste radical com o contexto é o edifício do Parlamento Escocês em

Edimburgo (1998-2004). Neste projeto, o contraste ocorre menos pelos materiais utilizados – já

que materiais tradicionais, como granito e madeira, são empregados junto ao aço e ao vidro – e

mais pela linguagem arquitetônica particular desenvolvida pelo arquiteto Enric Miralles,

caracterizada pela complexidade, pela tensão visual, pelas formas incomuns utilizadas e pela sua

escala monumental, decorrente do vasto programa e do seu significado simbólico, fazendo com

19 Tradução do espanhol realizada pelo autor. 20 A City de Londres é o seu centro financeiro e corresponde ao núcleo medieval da cidade.

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que os novos edifícios atuem de maneira contrastante com as demais construções do centro

histórico de Edimburgo.

Também na Áustria vêm sendo realizadas algumas intervenções em contextos históricos com

uma abordagem de contraste radical. Um dos exemplos recentes mais polêmicos de intervenções

de contraste radical em conjuntos históricos é certamente o Kunsthaus, a Galeria de Arte

Contemporânea de Graz (2000-03), realizado dentro do conjunto declarado como Patrimônio da

Humanidade pela Unesco em 1999.

A construção do Kunsthaus sem que fosse realizada uma consulta prévia à Unesco, somada à

realização de outras intervenções polêmicas, levou esta agência da ONU a cogitar a retirada do

título de Patrimônio da Humanidade anteriormente concedido a Graz (UNESCO, 2005). Esta

postura de confronto estabelecida entre o novo centro cultural e o centro desta cidade histórica

austríaca não é, contudo, de forma alguma encarada pelos autores do projeto, Peter Cook e Colin

Fournier, como algo negativo:

O melhor presente que uma cidade pode se dar é oferecer aos escritores, artistas, músicos,

designers e arquitetos a oportunidade de desafiar seu contexto histórico com alegre

irreverência e transgredir as regras estabelecidas. Graz sempre agiu bem neste sentido e

mantém uma animada vanguarda em várias frentes, daí o particular desafio que foi para

nós, enquanto forasteiros, participar do concurso internacional para o novo Kunsthaus e

implantar um novo animal no coração da cidade. [...] Ele é deliberadamente um alienígena,

que não se refere, nem na sua forma, nem nos seus materiais, ao vocabulário arquitetônico

do tecido urbano do entorno, com suas coberturas em telhas vermelhas. A nova construção

surge como algo de outro planeta e parece que a cidade está grata pela provocação.

Quanto tempo levará até que ela se torne familiar? Quem jogará a próxima carta e qual será

ela? Está na natureza da transgressão atrair mais transgressão e aí está a graça do jogo.

(FOURNIER, s/d)

Um dos exemplos mais conhecidos – e polêmicos – de intervenções de contraste radical é à Torre

John Hancock (1967-76) em Boston, Estados Unidos: um edifício de escritórios de 60 pavimentos,

localizado na Copley Square, em pleno centro de Boston e na vizinhança imediata de dois

importantes edifícios do século XIX – a Trinity Church (1872-77) e o neo-renascentista edifício da

Biblioteca Pública (1888-95).

Pelas suas gigantescas dimensões e pelos painéis de vidro que recobrem a totalidade das suas

fachadas, o edifício projetado por Ieoh Ming Pei e Henry Cobb se configura em um elemento

absolutamente exógeno ao contexto em que se insere:

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A simetria quadrilateral da Copley Square de Boston, onde se encontram face a face a

Igreja da Trindade de H. H. Richardson e a biblioteca pública de McKim, Mead e White, foi

visualmente trespassada pela introdução de uma cunha em diagonal ali perto, o enorme

arranha-céus rombóide da Torre John Hancock. Em casos como este, a adição pode ser

simplesmente absorvida e subordinada pelo cenário existente – possibilidade improvável

neste caso, devido ao volume e à altura do intruso. Ou então, a nova estrutura e a antiga

podem reorganizar-se e constituir uma nova configuração coesa. Mas provavelmente, a

colisão de dois padrões incompatíveis terá como resultado a mútua rejeição – e desordem

significa destruição visual. (ARNHEIM, 1988: 20)

No Brasil, há diversos exemplos de intervenções de contraste radical realizadas a partir do

surgimento da arquitetura moderna no Brasil, como a Caixa d’Água de Olinda, construída entre

1934 e 1937 em pleno centro histórico e em frente à Igreja da Sé – um edifício que contrasta

radicalmente com o entorno em todos os seus aspectos, e cuja construção hoje certamente não

seria permitida.

A partir dos anos 1940 e 1950, com a consolidação da arquitetura moderna no Brasil, estas

intervenções se tornaram cada vez mais comuns. A construção de edifícios verticais sobre pilotis,

com fachadas em combogós ou brise-soleils, se torna uma constante mesmo no interior de

conjuntos históricos.

Em Salvador, podemos citar dois importantes edifícios do ponto de vista da afirmação da

arquitetura moderna da Bahia, porém realizados nos limites do Centro Histórico de Salvador e na

vizinhança imediata de monumentos tombados: o edifício Octacílio Gualberto (1952-53) e o

edifício Ranulfo de Oliveira (1945-60), erguidos em terrenos vizinhos na Rua José Gonçalves,

entre o viaduto da Sé e a praça do mesmo nome. Os edifícios foram construídos nos limites de um

conjunto de edificações seculares e ao lado de sobrados do período colonial, como o Mirante do

Saldanha, tombado pelo IPHAN desde 1941.

Os autores de ambos os projetos – Diógenes Rebouças e Hélio Duarte, respectivamente – eram

arquitetos ligados ao Movimento Moderno e, ao mesmo tempo, colaboradores do IPHAN. Parece-

nos claro que nestes projetos eles estivessem mais preocupados em realizar manifestos da nova

arquitetura do que em estabelecer uma continuidade visual com as preexistências do entorno.

Isto pode ser percebido tanto pelo emprego de boa parte do repertório da arquitetura moderna

brasileira – volume erguido sobre pilotis que deixam livre o pavimento térreo, cobertura em

terraço-jardim e quebra-sóis nas fachadas (este último apenas no caso do projeto de Diógenes) –

quanto pelos croquis do projeto definitivo do Edifício Ranulfo de Oliveira, publicados em 1948, em

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que o mesmo aparece isolado, sem que as edificações históricas que rodeavam o terreno fossem

sequer representadas.

Embora hoje esse contraste com o contexto não seja mais percebido tão facilmente, uma vez que

diversos outros edifícios modernos foram construídos na mesma zona desde então, nos anos

1950 aqueles edifícios se constituíam em exceções em um contexto formado por construções

baixas, solidamente assentadas sobre o terreno, com coberturas em telhas cerâmicas e grandes

planos lisos de fachada permeados por pequenas aberturas verticais – características

absolutamente distintas daquelas propostas nas novas torres de escritórios.

Estas intervenções de contraste radical grassaram no Brasil – embora não chegassem a ser

hegemônicas – pelo menos até o final dos anos 1970. Uma das intervenções mais agressivas de

que se tem notícia, pela transformação radical que realiza na paisagem em que ocorre, é a

construção do edifício das Faculdades Cândido Mendes no Rio de Janeiro (Harry Cole, 1976-82).

Em diversos aspectos semelhante à Torre John Hancock de Boston, este edifício foi construído no

pátio do Convento do Carmo, um dos edifícios mais antigos do Rio de Janeiro e que remonta a

1619.

Além das interferências na leitura da imagem e da espacialidade interna do próprio Convento do

Carmo, este arranha-céu de 45 pavimentos, com fachadas totalmente revestidas em vidro escuro

espelhado, modifica totalmente a percepção da Praça XV de Novembro, um dos espaços mais

antigos e significativos do ponto de vista da história do Rio de Janeiro e onde se encontram

diversos monumentos arquitetônicos, como o Paço Imperial e o Arco do Teles.

A ARQUITETURA PÓS-MODERNA E A RECONSTRUÇÃO CRÍTICA

Apesar da busca de uma arquitetura que levasse em consideração as preexistências ambientais,

por parte de alguns arquitetos ligados ao movimento moderno, a partir dos anos 1950 a

arquitetura e o urbanismo modernos serão objeto de críticas cada vez mais intensas, culminando

com a publicação de textos, nas décadas seguintes, de textos como L’Architettura della Città

(1966), de Aldo Rossi21; Complexity and Contradiction in Architecture (1966) e Learning from Las

Vegas (1972), de Robert Venturi22; e Collage City (1978), de Colin Rowe e Fred Koetter23. Estes

textos serão utilizados pelos defensores de uma nova arquitetura, fortemente influenciada pela

cultura pop e de massas e que se apropria de elementos da arquitetura vernacular e dos estilos

21 ROSSI, 1995. 22 VENTURI, 1995; VENTURI et alli, 2003. No caso de Learning from Las Vegas, em co-autoria com Densie Scott-Brown e Steven Izenour. 23 ROWE & KOETTER, 1978.

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arquitetônicos do passado, em um “empório de estilos” complexo e fragmentado: a chamada

arquitetura pós-moderna.

A arquitetura pós-moderna se desenvolve simultaneamente nos Estados Unidos (através das

obras de Venturi, Robert Stern, Michael Graves e Charles Moore, dentre outros), no Japão (Arata

Isozaki e Takefumi Ainda) e na Europa (com o austríaco Hans Hollein, o francês Christian de

Portzamparc, o espanhol Ricardo Bofill, os italianos Aldo Rossi e Paolo Portoghesi, os alemães

O.M. Ungers e Josef Paul Kleihues e o inglês James Stirling), ainda que de formas bastante

distintas: o sério racionalismo de Aldo Rossi, embora resgate formas arquetípicas da arquitetura

das antigas cidades italianas, pouco tem em comum com a ironia pop que caracteriza a obra de

Robert Venturi, por exemplo.

Embora a consolidação da arquitetura pós-moderna enquanto movimento coletivo tenha ocorrida

apenas em 1980, com a realização da I Bienal de Arquitetura de Veneza24, a oportunidade para

que estes arquitetos realizassem intervenções concretas em larga escala ocorreu em Berlim

Ocidental, a partir do início de 1979, com a nomeação de Josef Paul Kleihues como coordenador

do setor Neubau (novas construções) da IBA (Internationale Bauaustellung Berlin – Exposição

Internacional de Construção de Berlim), uma exposição de arquitetura que pretendia comemorar o

750º aniversário da cidade, em 1987.

Desde o início da década de 1970, Kleihues desenvolvera, partindo da teoria urbanística de Aldo

Rossi e de estudos específicos da realidade de Berlim, uma nova teoria de desenho urbano,

denominada reconstrução crítica, segundo a qual o traçado e a morfologia históricos devem ser

resgatados em intervenções em vazios existentes nos conjuntos urbanos consolidados.

Diferentemente das diversas exposições de arquitetura realizadas na Alemanha desde a

Weissenhofsiedlung de Stuttgart (coordenada por Mies van der Rohe em 1927), em lugar de

construir edificações isoladas em uma área desocupada na periferia das grandes cidades, a IBA

iria buscar preencher os imensos vazios existentes no núcleo urbano de uma cidade destruída

pela guerra e fragmentada pela divisão da nação.

Centenas de arquitetos da Alemanha Ocidental e do mundo participaram da IBA e, ainda que

escritórios absolutamente desvinculados da arquitetura pós-moderna também estivessem

envolvidos25, a IBA demonstrou ser um terreno extremamente fértil para a aplicação do

historicismo pós-moderno no contexto de uma paisagem urbana preexistente – ainda que

fragmentada e com imensas e contínuas lacunas.

24 A exposição que obteve maior repercussão na I Bienal de Arquitetura de Veneza, dirigida por Paolo Portoghesi, foi a Via Novissima, na qual vinte dos principais nomes ligados à arquitetura pós-moderna foram convidados a realizar fachadas de uma fictícia rua urbana, no interior das Corderie onde se realiza a Bienal. 25 Como por exemplo o OMA (Office for Metropolitan Architecture, dirigido por Rem Koolhaas), e os escritórios de Peter Eisenman, Zaha Hadid, John Hejduk e Herman Hertzberger.

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Josef Paul Kleihues e sua teoria da reconstrução crítica continuam extremamente influentes no

processo de reconstrução de Berlim, acelerado a partir da reunificação, em 1990, e da

transferência da sede do governo nacional para lá, em 1999. Hans Stimmann, o Diretor-Chefe de

Arquitetura e Urbanismo da Prefeitura de Berlim – responsável pela reconstrução da capital em

seu período mais pujante –, adotou as idéias de Kleihues e as levou às últimas conseqüências.

Buscando resgatar a Berlim do seu período áureo – a capital do Império Alemão entre a unificação

(1870) e a ascensão nazista (c. 1933) –, Stimmann ignora as transformações sociais, políticas,

econômicas e culturais ocorridas nos últimos sessenta anos e propõe a reconstrução crítica – e

muitas vezes acrítica – de pedaços inteiros da cidade.

Daniel Libeskind, um arquiteto da vanguarda deconstrutivista que participou de alguns projetos

durante a reconstrução berlinense dos últimos anos26, afirmou que as posturas de Stimmann

“estão transformando a fascinante diversidade da cidade em uma uniformidade banal” e que “a

abordagem de Stimmann simplesmente apaga os últimos cinqüenta anos da história de Berlim”

(Daniel Libeskind apud REMPEL, 2000)27.

Uma das intervenções contra as quais Libeskind parece se colocar contra corresponde ao projeto

para um quarteirão em Schützenstrasse, em Berlim, realizado entre 1992-97. Em um quarteirão

anteriormente ocupado por palacetes ecléticos e quase totalmente destruído, Aldo Rossi projetou

um edifício estrutural e funcionalmente único, de gabarito e alinhamentos uniformes, que ocupa de

forma contínua toda a periferia do quarteirão, incorporando os poucos edifícios remanescentes.

Visando fragmentar este imenso bloco em termos visuais, Rossi tratou o quarteirão como um

conjunto de edifícios independentes, resgatando na aparência o parcelamento histórico da zona.

Desta forma, cada “unidade” recebe revestimentos e esquadrias de cores e características

diferentes e é tratada, em termos de volumetria e até mesmo de linguagem arquitetônica, de

maneiras distintas, dissociando estrutura e aparência, espaço e imagem. Embora a referência

predominante seja a arquitetura berlinense do final do século XIX, Rossi realizou até mesmo uma

réplica em argamassa pré-moldada do Palazzo Farnese de Roma (séc. XVI), em uma das

“unidades” que compõem o conjunto.

Embora a teoria da reconstrução crítica não tenha tido uma repercussão significativa no Brasil,

algumas edificações construídas em terrenos vazios de conjuntos históricos tombados têm se

identificado com esta abordagem, pelo respeito rigoroso a aspectos da preexistência como

volumetria, alinhamentos e gabarito, associados a uma recriação dos detalhes e elementos

arquitetônicos em materiais contemporânea.

26 Além de participar de diversos concursos de reconstrução urbana, Libeskind desenvolveu o projeto do Museu Judaico de Berlim, um edifício construído em anexo à barroca sede do Museu de Berlim entre 1989 e 2001. 27 Tradução do inglês realizada pelo autor.

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É o caso, por exemplo, da Residência do Arcebispo de Mariana, em Minas Gerais, projeto

desenvolvido e executado entre 1982 e 1997 pelos arquitetos Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Sylvio

de Podestà – não por acaso considerados os nomes mais importantes da arquitetura pós-

moderna brasileira.

Neste projeto, realizado em uma praça dentro do conjunto tombado desta cidade histórica mineira,

os arquitetos criam um edifício que repete a arquitetura tradicional no que se refere à volumetria,

aos alinhamentos e ao gabarito; além disso, se apropriam de alguns elementos e características

encontrados nas construções do entorno, como as telhas cerâmicas capa-canal que compõem a

cobertura em quatro águas, as janelas de dimensões e desenho semelhantes aos dos edifícios

vizinhos e o reboco branco que predomina nas paredes externas.

Os detalhes arquitetônicos, por sua vez, são reinterpretações da arquitetura tradicional mineira: as

aberturas são cavadas no volume, sem maiores rebuscamentos, porém com molduras bem

marcadas, enquanto no lugar das estruturas autônomas de madeira da arquitetura tradicional, são

realizados “cunhais” de aço. No interior, por sua vez, as referências à arquitetura colonial estão

nas colunas do pátio e na kitsch capela semi-enterrada, rica em cores e luzes, que pretende ser

uma releitura da cultura popular e do barroco mineiros:

O encontro do novo com o antigo é uma postura delicada e polêmica. Diversas posições,

análises e colocações estéticas, filosóficas e mesmo políticas, são contraditórias e

consonantes. É inevitável que este encontro aconteça em centros históricos, pela

necessidade de reconstrução e da própria revitalização do antigo. Todos os períodos

históricos são importantes com as suas construções. É pacífica a convivência dos mesmos

pois, se autênticos, são frutos da criação do espírito humano.

[...] O patrimônio ambiental urbano não se limita aos valores isolados das edificações que o

compõem. Na análise para o projeto verificamos, pelas alturas dos sobrados, suas

gradações cromáticas e pelo ritmo das aberturas, que o espaço em questão é contínuo sem

ser monótono. Nossa proposta foi manter a complementar a harmonia do espaço urbano.

O prédio apresenta características de um contraponto final. Sua leitura é atual, mas dentro

da harmonia do entorno. Possui aberturas planos aberturas. As aberturas são cavadas no

volume, despidas de qualquer rebuscamento. Marcos e quadros de aço são a

representação contemporânea das antigas estruturas autônomas de madeira. (MAIA &

VASCONCELLOS, 1995)

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RECONSTRUÇÕES LITERAIS E ARQUITETURA DE PASTICHE

A teoria da reconstrução crítica de Kleihues tem levado, em alguns casos, a verdadeiras

reconstruções literais dos edifícios desaparecidos, em que se torna bastante difícil ao observador

diferenciar a arquitetura recém construída daquela que lhe serve de referência, configurando-se

muitas vezes em verdadeiros falsos históricos. Alguns dos exemplos mais claros desta

abordagem podem ser encontrados nas intervenções realizadas recentemente na Pariser Platz.

Historicamente um dos pontos mais significativos da imagem e da vida urbana de Berlim, é nesta

praça que está localizado o Portão de Brandemburgo (1791), um dos principais símbolos da

cidade. Com os bombardeios durante a II Guerra Mundial, todas as construções desta praça

foram reduzidas a ruínas, sendo em seguida demolidas devido ao fato da Pariser Platz ter se

transformado em uma zona limítrofe entre os dois setores em que Berlim se viu dividida28.

Em 1993, já após a unificação, o Senado alemão se decidiu pela recomposição da praça através

dos critérios da reconstrução crítica: as novas edificações deveriam resgatar a volumetria e os

antigos usos das construções anteriormente existentes, demolidas como conseqüência dos danos

provocados pelos bombardeios aliados durante a II Guerra Mundial. Segundo os parâmetros

estabelecidos pela Prefeitura entre 1993 e 1996, as novas edificações deveriam ainda ter suas

fachadas formadas por três níveis (embasamento, corpo e coroamento), deveriam ser revestidas

com pedra natural opaca e não poderiam apresentar um percentual de fenestrações superior a

49%.

Embora estes rigorosos parâmetros urbanísticos não tenham impedido totalmente a realização de

construções claramente contemporâneas, como nos prova o edifício do DG-Bank de Frank O.

Gehry (1995-2001) localizado na mesma praça, em alguns casos termina por favorecer o

surgimento de uma arquitetura anacrônica e passadista.

Por exemplo, os dois edifícios de uso cultural que ladeiam o Portão de Brandenburgo, a Haus

Liebermann e a Haus Sommer, projetados pelo próprio Josef Paul Kleihues entre 1996 e 1998,

são reconstruções quase fidedignas das construções neoclássicas anteriormente existentes no

local – dois palacetes residenciais construídos na década de 1840, dos quais as novas edificações

retomam não apenas a volumetria, o gabarito, os alinhamentos e o ritmo da fenestração, conforme

determina a legislação urbanística vigente, como também a linguagem arquitetônica e os materiais

28 A derrota alemã na II Guerra Mundial dividiu o país, assim como a antiga capital, em quatro setores a partir de 1945. Estes setores eram administrados por cada uma das quatro potências aliadas, vencedoras da guerra: União Soviética, Estados Unidos, França e Grã-Bretanha. Com o azedamento das relações entre a União Soviética e as demais nações aliadas, no que ficou conhecido como Guerra Fria, os setores francês, britânico e norte-americano foram agrupados, em maio de 1949, na República Federal da Alemanha (RFA), com capital em Bonn; e os respectivos setores de Berlim passaram a constituir Berlim Ocidental. Como retaliação, em outubro do mesmo ano os soviéticos instalaram a República Democrática da Alemanha (RDA), socialista, na zona oriental da antiga Alemanha, com capital em Berlim Oriental, o antigo setor soviético berlinense. A partir de agosto de 1961, as comunicações entre os setores ocidental e oriental da antiga capital alemã, que já eram precárias desde o início da Guerra Fria, foram praticamente exterminadas, com a construção de um imenso e vigiado muro que impedia qualquer tipo de contato entre os cidadãos dos dois setores.

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utilizados. Da mesma forma que o Hotel Adlon, reconstrução inaugurada em 1997 do homônimo

hotel erguido na Pariser Platz em 1907, correspondem a edificações anacrônicas, que apenas os

conhecedores das transformações urbanas daquele espaço são capazes de identificar como

construções realizadas recentemente.

É interessante notar que, apesar da linguagem historicista, os edifícios de Kleihues possuem um

pavimento a mais que aqueles anteriormente existentes, enquanto o novo Hotel Adlon, embora

repita os arcos no embasamento, o revestimento em pedra e a cobertura em cobre com lucarnas,

dentre outras características do antigo hotel, duplica a área da construção original, ocupando

também o terreno vizinho ao do hotel original.

Em resumo, correspondem a reconstruções quase fidedignas dos edifícios anteriormente

existentes naqueles locais que, aceitando modificações mais ou menos sutis no que se refere ao

gabarito e às dimensões originais, terminam por se afastar do conceito de reconstrução crítica

estabelecido pelo próprio Kleihues.

A ânsia reconstrutiva em Berlim não conhece limites, chegando a propor, nos últimos anos, a

reconstrução literal do Castelo Real dos Hohenzolern, edifício de feição barroca que remontava ao

século XV e que fora demolido em 1950 para dar lugar à imensa Marx-Engels-Platz, praça cívica

de Berlim Oriental destinada às marchas e desfiles oficias da antiga República Democrática da

Alemanha.

O projeto de reconstrução do Castelo, incluindo os suntuosos salões internos, encontra-se em

discussão na Alemanha e tem recebido o apoio de diversos políticos importantes, como o ex-

presidente Johannes Rau e o primeiro-ministro Gerhard Schröder, além de intelectuais, artistas e

arquitetos, como I.M. Pei e Philip Johnson.29

De uma maneira geral, no Brasil, a reconstrução dos edifícios desaparecidos em conjuntos

históricos – ou a sua realização de maneira esquemática, o que não chega a ser muito diferente –

representou, entre os anos 1940 e 1960, uma espécie de política oficial do IPHAN para

intervenções em sítios tombados.

Como nos informa Lia Motta, enquanto nos primeiros anos o IPHAN defendia a construção de

uma arquitetura que atendesse apenas em linhas gerais à estrutura urbana em que se inseria,

estas diretrizes foram se modificando a ponto de passarem a ser exigidos verdadeiros falsos

históricos, no que ficou conhecido como “estilo patrimônio” – uma arquitetura “falsa em relação ao

passado e ao presente, sem ter personalidade nem marca cultural” (MOTTA, 1987: 116)30:

29 O projeto de reconstrução do Castelo Real de Berlim e as declarações de apoio destas e de outras personalidades podem ser encontrados no site oficial do Förderverein Berliner Schloss e.V.: www.berliner-schloss.de. 30Embora o artigo em questão se refira ao caso específico de Ouro Preto, corresponde a um contexto que era, de certa forma, nacional.

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Afora a restrição a alguns poucos volumes e a decisão contrária ao afastamento frontal

sempre que era pedido, as normas anteriores empregadas pelo Patrimônio foram sendo

particularizadas para o aperfeiçoamento dos detalhes coloniais nas fachadas. Aquilo que na

primeira fase pretendia apenas conseguir a repetição de linhas tradicionais, passando

depois à definição de utilização de alguns elementos tradicionais anteriormente descritos,

nesta fase se consolidou em exigências específicas e rígidas para o detalhamento do

casario novo. E, desta maneira, os pareceres de aprovação dos projetos se repetiam

durante anos, como um carimbo ou cartilha, variando muito pouco. Eram exigidos telhados

em duas águas, com telha canal, galbo no contrafeito e beiral encachorrado, janelas em

guilhotina com caixilhos, medindo 1,00 x 1,50m, e cerdura [sic] de 0,10m ou 0,12m, pintura

em cor branca nas alvenarias e cor escura nas madeiras. Até mesmo na cor houve um

enrijecimento, pois na década de 40 ainda era permitida cor clara nas alvenarias, não

necessariamente o branco. Com o tempo foram sendo incorporados outros detalhes, como

por exemplo os basculantes dos banheiros, que na década de 70 passaram a ter material e

dimensão fixados, sendo em madeira e medindo 0,80 x 0,80m.

O Patrimônio fixou, desta forma, seu critério conservador estético-estilístico às fachadas,

por serem estas uma expressão passível de deformação e assimilação pelos ouro-pretanos

de hoje, mesmo porque não seria possível exigir a volta às relações sociais que outrora

determinaram o que havia de fundamental na expressão da cidade e das habitações

coloniais. Afinal não seria fácil no século XX viver em alcovas nem achar mocinhas

recatadas por trás das gelosias. (MOTTA, op .cit.: 114-115)

Esta arquitetura de pastiche31 pode ser claramente percebida em dois edifícios construídos por

volta dos anos 1950 no Centro Histórico de Salvador: o Edifício Derrick, localizado na Praça

Anchieta, nº 01/03, e o Edifício Bouzas, situado no Terreiro de Jesus, nº 1332.

Correspondem a duas edificações recentes, com estrutura independente em concreto,

“travestidas” de sobrados antigos que, ao observador menos atento, passam por construções

originais do conjunto, uma vez que os materiais de revestimento, a composição das fachadas

(relação entre janelas, portas e planos de fachada) e até mesmo detalhes arquitetônicos, como as

cornijas, coberturas e algumas esquadrias, repetem os elementos característicos do conjunto.

Somente um olhar mais cuidadoso perceberá que, seja pela escala, seja pela tipologia e por

31 Segundo o Dicionário Houaiss, pastiche é a “imitação servil de obra literária ou artística” (HOUAISS & VILLAR, 2001: 2146). Em arquitetura, ela possui o mesmo significado: corresponde àquelas intervenções nas quais o arquiteto, ao propor a reconstrução de uma edificação desaparecida, se limita a copiar a linguagem arquitetônica e os principais elementos e materiais dos edifícios vizinhos. 32 Embora não se possa afirmar com segurança, há indícios de que ambos correspondem a projetos desenvolvidos por um antigo arquiteto do SPHAN, Anísio Alves Luz, em substituição àqueles apresentados pelos proprietários dos imóveis e cujas execuções não haviam sido autorizadas pelo órgão devido à linguagem art-déco das fachadas, que destoaria do conjunto histórico.

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alguns materiais construtivos utilizados, como o concreto armado, correspondem a edifícios

modernos.

A arquitetura de pastiche no Brasil não se restringe, contudo, ao “estilo patrimônio” vigente em

meados do século XX, estando vinculada também, em alguns casos, aos arquitetos que

realizaram, particularmente entre o final dos anos 70 e os anos 1980, uma arquitetura pós-

moderna abrasileirada – como o já citado Éolo Maia na Residência Valter e Lenita, na Rua das

Flores em Ouro Preto (1979-85), construída em um terreno estreito e profundo, típico do tecido

urbano ouro-pretense.

Na fachada principal desta residência, Éolo Maia buscou com tal rigor estabelecer relações de

mimetismo com a arquitetura do entorno que o edifício era fotografado pelos turistas como se

fosse uma edificação histórica, levando o arquiteto a desenvolver posteriormente a treliça que foi

aplicada nas portas e janelas da fachada principal:

Externamente, a sua volumetria mantém a escala da Rua das Flores, com uma tipologia

semelhante às construções laterais, do conjunto barroco – conforme exigência do SPHAN.

Posteriormente, o arquiteto criou uma reinterpretação sutil de uma treliça histórica que foi

aplicada nas portas e janelas, cuja finalidade é a de registrar uma referência contemporânea

aos turistas leigos, que imaginavam estar em frente a imóvel histórico autêntico. (MAIA,

VASCONCELLOS & PODESTÀ, 1985: 58)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A defesa da reconstrução de edifícios desaparecidos, particularmente aqueles localizados em

conjuntos históricos, é mais um dos sintomas daquilo que o filósofo alemão Andreas Huyssen

identificou como a “cultura da memória” exacerbada que caracteriza os tempos atuais, onde a

possibilidade de resgate do passado parece frequentemente mais interessante que a construção

do novo (HUYSSEN, 2000: 10-15). Estes “resgates”, entretanto, se constituem quase sempre

naquilo que, desde a segunda metade do século XIX, com a contribuição de Camillo Boito à teoria

do restauro e a preferência pela consolidação e pela conservação do existente à sua

reconstrução, se convencionou denominar de falso histórico.

Ademais, considerando que construir de novo o anteriormente existente é sempre mais

econômico, simples e rápido do que a sua conservação e restauração, ao aceitar

indiscriminadamente toda e qualquer reconstrução, corre-se o risco de tornar moralmente

aceitável que as construções do passado – aquelas verdadeiramente importantes e dignas de

preservação pelo seu valor arquitetônico, histórico, urbanístico ou paisagístico, e que a muito

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custo têm sido preservadas – sejam deixadas sob a livre ação do tempo, sem que haja qualquer

preocupação em conservá-las.

A preferência pela reconstrução da arquitetura do passado ou pela sua imitação é representativa

da incompreensão, hoje difundida entre grande parte dos profissionais atuantes nas áreas de

arquitetura, urbanismo e restauro, de que é possível realizar uma arquitetura moderna em

consonância com o contexto; uma arquitetura que, sem abdicar da sua contemporaneidade, não

entre em conflito com as preexistências do entorno e não se transforme em um elemento de

destaque em um conjunto urbano consolidado.

Por outro lado, a ocupação dos vazios urbanos com uma arquitetura absolutamente distinta

daquela que caracteriza o conjunto histórico em que se insere tende a modificar radicalmente a

paisagem urbana, se comportando não como mais um elemento do conjunto consolidado e sim

subvertendo a sua lógica gestáltica, passando o novo edifício a ser percebida como figura,

enquanto o contexto preexistente que deveria ser preservado passa a ser percebido como fundo.

Quanto à consolidação de vazios resultantes do desaparecimento imprevisto de construções

dentro destes conjuntos, se constitui quase sempre em um equivoco, uma vez que compromete a

leitura da morfologia urbana como um todo e dos edifícios vizinhos em particular, modificando a

escala de sua percepção e muitas vezes deixando expostas grandes empenas laterais que jamais

foram pensadas para serem vistas.

A aceitação destes vazios se justifica apenas em situações muito particulares como, por exemplo,

nos casos em que o desabamento imprevisto da edificação anteriormente existente tenha

provocado vítimas fatais. Nestes casos, a manutenção do vazio como testemunho do acidente

pode ser compreendida como uma homenagem póstuma àqueles que ali perderam a vida.

Por fim, a busca por uma arquitetura que, equilibradamente, associe às referências ao contexto

preexistente uma linguagem arquitetônica e materiais e técnicas construtivas atuais parece ser a

solução mais acertada e coerente tanto com a história da arquitetura quanto com as teorias de

restauro mais aceitas na atualidade.

No que se refere às intervenções a serem realizadas nestes vazios, a legislação urbanística deve,

portanto, buscar definir determinados parâmetros de intervenção que impeçam o surgimento de

construções que descaracterizem o conjunto sem, contudo, inviabilizar a realização de uma

arquitetura contemporânea, executada com as técnicas construtivas mais atuais e que atenda de

maneira plena às necessidades da sociedade contemporânea.

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