A Rainha Do Ignoto Emília de Freitas

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A rainha do ignotoResumo: Dr. Edmundo, moo rico, formado em Recife, viaja aos sertes do Cear. Aos poucos, deixa-se envolver por um certo clima de mistrio do lugar, principalmente aps ter a viso de uma mulher vestida de branco, com cabelos soltos e grinalda de rosas, que passa em um bote, noite, no rio Jaguaribe, que tem um comportamento estranho, alm de se fazer acompanhar de seres encantados. Impressionado, Edmundo tenta obter informaes sobre a mulher e fica obcecado em desvendar o segredo daquela que os nativos chamavam ora de Funesta, ora de Fada do Arer. Usando de um disfarce e do auxlio de Probo, marido de uma empregada da Rainha, consegue penetrar nos seus domnios - um mundo praticamente dominado pelas mulheres -, e transforma-se em testemunha das benfeitorias que a mulher vai distribuindo entre as pessoas mais humildes e injustiadas. Aps inmeras peripcias, a Rainha do Ignoto resolve que devia morrer, levando consigo seu segredo. Durante sua agonia, faz discurso, toca, canta e deixa, enfim, transparecer aos que a cercam sua verdadeira face. Os trechos selecionados mostram o momento em que Dr. Edmundo penetra nos domnios da Rainha e, ao mesmo tempo, comea a desvendar seu mistrio.

"A ingratido, uma vbora entre flores"Era quase meio-dia quando o Dr. Edmundo despertou, quase sem se recordar do lugar onde estava.Esfregando os olhos ainda sonolentos, procurou coordenar as idias; sentia a cabea pesada, e lhe pareceu ter sonhado muito no desacordo de uma febre intensa. De pouco a pouco foi reconhecendo seu erro, e se persuadindo de seu modo de ser entre aquela gente singular. Ele correu a vista pela moblia do quarto e achou que, apesar de rica, no tinha nada de gentil nem de atraente; no se via ali esses pequenos nadas que caracterizam o quarto de uma moa: fitas, leques, perfumes, caixas de ps, flores, figurinhas de biscuit e muitas outras insignificncias- Que ornatos esquisitos! Disse ele consigo, fitando uma tosca cruz de madeira que se erguia da cpula do cortinado da cama, que era de renda preta.Nos braos da mesma cruz estavam enramadas ervas e flores secas. Para onde ele lanava a vista via disparates e extravagncias.Ento lembrou-se que estava representando Odete, e que havia dormido no quarto e no leito que fora de uma doida. Apressou-se em deixar aquele aposento contristador para ir ter com Probo. No vendo o velho no palcio, desceu ao jardim, e ficou passeando ao longo de uma ruazinha de murtas.O Dr. Edmundo olhava pasmado para o palcio do Ignoto e dizia a meia voz.- No mentira, nem conto de fada... ali est a escadaria e o ptio, tudo de mrmore! A balaustrada das escadas e varandas, tudo de coral com frisos de ouro!Cada vez mais ele admirava e descobria deslumbramentos; as prprias varandas eram de prata cinzelada, onde se viam embutidas diversas figuras de pssaros e de flores, com diferentes matizes formados pelo engaste de pedras finas e preciosas!Aquele palcio era como o sol! No se podia fit-lo por muito tempo. Nele estava o gosto artstico de um verdadeiro pintor, com os retoques de um ideal de poeta!Os jardins eram uma surpreendente maravilha! Havia neles todas as flores de cujo desabrochar Lineu comps um relgio, de forma que eram as ptalas recendentes desses mimos da natureza que ali marcavam as horas saindo do clice, onde estiveram em boto. Tudo quanto a Botnica e a Zoologia possuem de belo, de raro e de precioso os jardins do Ignoto ostentavam, bem ordenado e classificado por mo de mestre!As dependncias eram uma cidade ativa pela fumaa das fbricas que trabalhavam, pelo bater do ferro nas oficinas e pela voz das crianas nas escolas.O Dr. Edmundo andava perdido, de admirao em admirao, aproximando-se de tudo que lhe causava curiosidade. Cansado de andar, fatigado de surpresas, parou junto a um banco de jaspe sombreado por um jasmineiro, e sentou-se.De repente, uma mo desenlaou os ramos de duas roseiras, e passou entre elas a figura elevada de Probo, um verdadeiro Moiss bblico, com sua longa barba branca.- H que tempo o procurava, disse ele, estendendo a mo ao Dr. Edmundo, e sentando-se a seu lado.- Posso falar aqui, no h perigo? Perguntou o moo em voz baixa. - No h; estamos bem, podemos conversar vontade; sabe o que disse a rainha hoje pela manh: que estava estranhando Odete, pois que sempre quela hora lhe vinha trazer um ramo de amores-perfeitos... e no a tinha visto ainda.- Devo ir logo levar-lhe o ramo? Perguntou o Dr. Edmundo.- No, agora ser fora de tempo; o sol j vai alto e pende para tarde. - Supus que no acordasse to cedo, principalmente depois de uma sesso que terminou quase s cinco horas da manh.- Ora, doutor, cuida ainda lidar com uma dessas fidalgas enervadas pelos cmodos e mimos da vida? Engana-se, o ttulo de rainha, segundo dizem, no lhe vem pelo gozo, vem pelo martrio. um esprito de ferro inclinando, dobrando, movendo um corpo que fecha na mo como uma luva de seda! Para esta mulher no h dia nem noite, h somente a necessidade de momento! Ela deita-se sempre calada, atacada, e pronta para seguir a qualquer ponto! Tem o sono to leve que poderia despertar ao rumor sutil de uma ptala de rosa lanada na gua. - Oh! Exclamou o Dr. Edmundo, mas, por que tanta inquietao? Julga-se cercada de perigos? Tem muitos inimigos? - Nada, disse o velho, que ela a fora centrfuga dessa sociedade de malucas...- Por que as chama malucas?- Porque so mesmo. No v o senhor uma fortuna como esta to mal empregada em benefcios que s elas conhecem. Vivem errantes, obscuras, perdidas no seio da humanidade, como as areias no fundo do oceano, no seio das vagas, quando podiam gozar de tudo que dado na vida ao poder do ouro!- E fazer bem ao prximo, no uma virtude recomendada por Cristo? - E pensa o senhor que esta maonaria de mulheres no tem um desgnio funesto para o pas?- Qual! Sr. Probo, elas s tm corao e fantasias.- Ai! Ai! Eu c sei, j no denunciei-as polcia por falta de provas... mas, meu amigo, disse o velho com mistrio, eu no lhe dei entrada aqui com outro fim, foi para ajudar-me a descobrir a trama e lav-la ao conhecimento do governo.- Mas, senhor, o que tem o governo que ver com elas? Disse o Dr. Edmundo, indignado, sem fitar o rosto daquele velho ingrato e traidor, que j lhe estava causando asco.- O que tem o governo que ver com elas? Tem muito: ele no autorizou esta sociedade secreta... Este tesouro acumulado na mo deste diabo deve ser considerado um crime! Ela no podia explorar as minas da ilha e explora; no contente com isso, funda, com nomes imaginrios, casas comerciais, fbricas, engenhos, centros de lavoura e grande criao de gado, de forma que tem, em todas ou em quase todas as provncias do Brasil, um rendimento fabuloso! E para qu? Para desperdiar em fantasias loucas! Em benefcios extravagantes! Em fazer mal propriedade alheia, pois rouba ao senhor para dar ao escravo. Que absurdo! abolicionista! J eu a ouvi dizer que no h lei alguma de direito humano que possa escravizar um cidado, que a condio de escravo resultou de um abuso da fora contra a fraqueza, e urge reagir...- Tem idias alevantadas e ss, disse o Dr. Edmundo.- Que ss?! exclamou Probo exaltado. Veja, examine o que ela teve a petulncia de declarar em um discurso que fez, na ltima sesso do Nevoeiro: "A pena ltima o recurso dos governos impotentes para regenerar o criminoso pela instruo e pelo trabalho". - Bem pensado! senhor Probo.- Bem pensado, tambm incutir no nimo dos que a rodeiam que o rei o produto da ignorncia dos povos antigos, que ainda no estavam em estado de governarem-se e formar uma repblica. - Bravo! Uma rainha republicana!- Como Robespierre! Ou como Danton! Acrescentou Probo.- E o senhor quer-lhe mal por isso?- No s por isso, senhor Edmundo, por muitas outras idias subversivas... Para no faltar-lhe mais nada do que sublevar esprita!- Esprita! mais este crime! disse o Dr. Edmundo zombando. - O senhor zomba porque no conhece os males que ela causa s mais santas instituies, como sejam: ao direito de propriedade dos senhores, monarquia e religio. - E que faz ela para destruir esta trindade?- O senhor h de ver, como eu tenho visto. Olhe, aqui na ilha no h templo catlico, nem de religio alguma, h somente sesses espritas, na biblioteca, onde ela possui todas as obras de Alan Kardec, de Flammarion e outros malucos como ela. Enfim, o senhor ver. [.......] O Dr. Edmundo pensou ainda alguns instantes em tudo o que ouvira e, vendo Probo se afastar pela alameda do jardim, disse consigo:- uma vbora entre flores!. [......]Depois do almoo, que terminou s duas horas da tarde, a Rainha do Ignoto, acompanhada pelas paladinas e as enjeitadas, entrou no salo de honra do palcio. Aquele compartimento era o primor da fantasia: o ideal do gosto, do belo e do sublime. O estranho que, como o Dr. Edmundo, transpusesse pela primeira vez os seus umbrais, ficaria, como ele ficou, de p, pasmado, soerguendo o reposteiro com uma mo e com a outra buscando o corao que parecia sem pulsaes.Estava indeciso, sem saber se devia pisar com o taco das botas aquele tapete aveludado, macio, de onde se exalava um perfume delicioso e enlevado!As crianas se espalhavam por ele, correndo, saltando, ou antes, a voar, como um bando de avezinhas pipilantes ao deixar o ninho. As cadeiras estufadas de veludo carmesim, com franjas de ouro e bordadas a seda, prolas e diamantes, eram atropeladas pelas pequenitas que tambm queriam acompanhar as maiores numa valsa doida como a alegria que se manifestava nos semblantes daquelas enjeitadas felizes. O som do piano, que a mais crescida delas tocava com perfeio, enchia o espao duma msica viva, como o raiar do sol num dia de primavera. [......]A menina do piano chamava-se Helena, e j tinha quinze anos feitos; era um tipo ideal de beleza! Uma rosa entreaberta, uma alvorada anunciando o sol! Ela tinha o porte altivo, os modos distintos, o olhar profundo e srio, e os lbios sempre cerrados por uma leve sombra de tristeza, ou contrados pela ironia. Estava claro em seu semblante inteligente o muito que ela compreendia de sua condio no mundo; via-se bem o quanto lhe estava a doer, em sua vaidade de formosa, o nome de enjeitada. A Rainha do Ignoto fitou-a por alguns instantes, acompanhando seus finos dedos sobre o marfim do teclado, e disse:- Pobre menina! Receio muito que tu no sejas feliz; mas eu serei o teu anjo da guarda. [......] Helena cessou de tocar, o piano calou-se e as crianas, exaustas da dana, caam rindo sobre o tapete e enterrando nele as mozinhas, como em macia relva. Outras agarravam-se ao rendilhado dos mveis ou aos ps dos grandes vasos de ouro que, espalhados pela salo, sustentavam enormes tufos de flores. Helena acudiu a um aceno da Rainha do Ignoto e sentou-se ao lado da doutora Clara Bencio.- Ests contente com a viagem que vamos fazer, Helena? Perguntou a Rainha do Ignoto. - Que alegria me pode causar o tumulto das grandes cidades, senhora? Disse a menina, baixando os olhos negros e de longos clios aveludados. Aqui, entre minhas companheiras e mestras, sou digna de ombrear com todas; l... serei uma menina sem famlia ... uma enjeitada. [......]- Deus! Como a solido faz o esprito amadurecer depressa! Exclamou a Rainha do Ignoto. Esta menina fala como uma senhora. No, Helena, no te leves por essas idias; sou eu quem se compromete a te fazer feliz; ouve: se no tens o nome de teu pai, ters o dum esposo muito digno, muito nobre por suas qualidades. [......]A Rainha do Ignoto guardou silncio e escutava com delcia o alarido que faziam as enjeitadas nos brinquedos que inventavam com muito esprito.Era muito condescendente com elas, tinha imaginado dar-lhes todo o carinho que lhes fora negado pelas mes, e por isso escolheu para empregar no Ninho dos Anjos vivas que, por ocasio de naufrgio, incndio, guerra ou epidemia, tinham perdido o marido e os filhos, porque assim fazia duas restituies, dando mes a filhos sem mes e dando filhos a mes sem filhos. S elas poderiam ter essa dedicao maternal, impossvel nos coraes ressequidos pelo misticismo da religio e do claustro. (A Rainha do Ignoto. Romance psicolgico. 2 ed. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, Imprensa Oficial do Cear, 1980.)