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A rampa Bis Chamamos de "cldssico" o momento bastante curto da hist6ria do cinema - trin- ta anos? - em que os cineastas souberam produzir o engodo do que parece faltar desde sempre no cinema: a profundidade. Essa foi a era de ouro da cenografia, o triunfo paradoxal de uma cenografia sem cena. Com o falado havia desaparecido o espago da mrisica de acompanhamento: orquestra ou piano. Depois do falado, essa cenografia serd assombrada pela lembranga do estridio, da cena sempre necessa- riamente perdida da filmagem, a partir de entio fraturada, volatilizada, submetida aos golpes de forga da montagem, ao imprevisivel do enquadramento, aos saltos de ampliddo dos planos. Chamamos esses golpes de forga de " diregdo" , a arte de bali- zar, para os espectadores, percursos num jogo de chicanas e de falsos caminhos, de faz€-los se perderem num labirinto de recorr6ncias. Ttrdo isso 6 muito conhecido. Estamos hoje muito longe desse cinema. N6s n5o sabemos mais fazO-lo e, por isso, n6s o amamos mais do que nunca. Aqui onde nos encontramos "che- gados", percebemos que o fnico engodo de profundidade que o cinema cl6ssi- co podia fabricar seria o de uma "profundidade desejada". Como se diz, "uma crianga desejada". O titulo de um filme americano de FritzLang resume bem o que 6 essa cenografia e o desejo que ela caffegai Secret Beyond the Door lO se- gredo da porta cerradal. Desejo de ver mais, de ver por trds, de ver atrav6s. Do que eIe trataria, interminavelmente? Do momento adiado onde veremos o que estava atrds. Atrds de qualquer coisa. O pacto com o espectador baseia-se L-

A rampa (bis)

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Serge Daney

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A rampaBis

Chamamos de "cldssico" o momento bastante curto da hist6ria do cinema - trin-ta anos? - em que os cineastas souberam produzir o engodo do que parece faltar

desde sempre no cinema: a profundidade. Essa foi a era de ouro da cenografia, o

triunfo paradoxal de uma cenografia sem cena. Com o falado havia desaparecido o

espago da mrisica de acompanhamento: orquestra ou piano. Depois do falado, essa

cenografia serd assombrada pela lembranga do estridio, da cena sempre necessa-

riamente perdida da filmagem, a partir de entio fraturada, volatilizada, submetida

aos golpes de forga da montagem, ao imprevisivel do enquadramento, aos saltos de

ampliddo dos planos. Chamamos esses golpes de forga de " diregdo" , a arte de bali-zar, para os espectadores, percursos num jogo de chicanas e de falsos caminhos, de

faz€-los se perderem num labirinto de recorr6ncias. Ttrdo isso 6 muito conhecido.

Estamos hoje muito longe desse cinema. N6s n5o sabemos mais fazO-lo e,

por isso, n6s o amamos mais do que nunca. Aqui onde nos encontramos "che-

gados", percebemos que o fnico engodo de profundidade que o cinema cl6ssi-

co podia fabricar seria o de uma "profundidade desejada". Como se diz, "umacrianga desejada". O titulo de um filme americano de FritzLang resume bem

o que 6 essa cenografia e o desejo que ela caffegai Secret Beyond the Door lO se-

gredo da porta cerradal. Desejo de ver mais, de ver por trds, de ver atrav6s.

Do que eIe trataria, interminavelmente? Do momento adiado onde veremos

o que estava atrds. Atrds de qualquer coisa. O pacto com o espectador baseia-se

L-

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num s6 ponto: existe de fato alguma coisa "atrds d,aporta,'.Talvez seja umacoisa qualquer.Talvez seja o horror. Mas esse horror vale mais do que a cons_tatagdo fria e desencantada de que nro existe nada e que nada pode existir por-que a imagem do cinema 6 uma superficie sem profundidade. E o que o cinemamoderno farArecordar, quebrando o pacto.

A cenografia do cinema cldssico consistiu pois em dispor obst6culos numestridio, depois as luzes, depois os trilhos para a camera e, em fltimo lugar, osatores. os grandes atores desse cinema sro simplesmente aqueles que esbarrammenos nos obstdculos. ou os que o fazem, como cary Grant, com uma elegan_cia, cujo segredo, este tamb6m, estii perdido. os bons cineastas sdo aqueles quesabem fazer qualquer objeto assumir o papel de algo que vela temporariamen-te, cheio da promessa de um "mais ver". objetos-piv6: as portas e as janeras,os olhares e os espelhos, o corpo em sedugio, o batente de uma porta. E esseobjeto imaterial, a palavra, quando ela passa a funcionar como um trocadilhoou um quebra-cabegas.

Esse cinema cativou o espectador por mais tempo que qualquer outro, por_que ele jamais cessou de lhe propor saidas. Aberturas para respirar e folgaspara confortar. Ele soube fazer o espectador escapar - da cena ou do filme -para fazer com que viesse rapidamente gozar com o final feliz das falsas so-lug6es. Por isso, a relativa indiferenga docinema cldssico com os ,,contetdos,,dos filmes, o rinico contefdo real de um filme residindo na arte com a qual elendo desencoraja o espectador a voltar para ver outro filme, que serd na verda-de uma variante daquele.

Qual o limite do cinema cldssico? eue os olhos, as portas, os objetos-piv6, eos objetos-esconderijo nio se abram mais sobre nada. Em Hitchcock jd: olhoscegados, portas proibidas, ringuagem intransitiva e rasa. Nada esconde nadaPorque tudo estd a vista. o que se passa se nio h6 mais nada para ver,,atr6s,,?u,m

lcid-ente' o bloqueio da pulsdo esc6pica. o olhar nio se perde mais entre

obstdculo e profundidade, mas 6 devorvido pela tela "o-o ,i-u bala por ummuro' A imagem reflui em diregro ao espectador com a aceleragio d.e um boo-

merang, e o chicoteia com forga.

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Eu chamaria de "moderno" o cinema que "assumiu" essa nio-profundidadede imagem, que a reivindicou e que pensou construir - com humor ou com fu_ror - uma mdquina de guerra contra o ilusionismo do cinema cldssico, contra aalienagdo das s6ries industriais, contra Hollywood.

Esse cinema nasceu - ndo por acaso - na Europa destruida e traumatizadado p6s-guerra, sobre as ruinas de um cinema enfraquecido e desqualificado,sobre a recusa fundamental da apar€ncia, da diregio, da cena. Sobre um div6r_cio com o teatro, expresso com forga por Bresson.

Essa recusa a entendemos apenas se nio perdermos de vista isto: as grandesencenagdes politicas, as propagandas de Estado tornadas pinturas-vivas, asprimeiras manipulag6es humanas de massa, todo esse teatro resultou - no real- em desastre. Por trds desse teatro guerreiro, como seu reverso escondido e suaverdade envergonhada, havia uma outra cena que ndo cessou desde entio deassombrar as imaginagdes: a dos campos de exterminio.

Assim, por diferentes que tenham sido uns dos outros, os grandes inovado-res do cinema moderno, de Rossellini a Godard, de Bresson a Resnais, de Tatia Antonioni, de welles a Bergman, sdo aqueles que afastam radicalmente suaarte do modelo teatral-propagandista, onipresente, ao contr6rio, no cinemacldssico. Em comum, eles t€m o fato de pressentir que ndo tom mais exatamen-te relag5o com os mesmos corpos que antes. Antes dos campos [de exterminio],antes de Hiroshima. E isso 6 irreversivel.

Qual a cenografia para o cinema moderno, jd que afinal se ftata de lidar -humor negro - com um "homem rtovo" , com os sobreviventes das sociedades

p6s-industriais? Com um corpo que perdeu o lastro de seu peso, cuja d6bilradiografia desbotada 6 exibida pela televisdo nascente? Ndo 6 surpreendenteque seja a pintura, e ndo mais o teatro, que foi a refer€ncia inicial, a primeiratestemunha do cinema moderno. A outorga do estatuto de "at)tor" e a famosa"politica" que devia acompanh6-la vieram oportunamente assinalar que a ve-lha profissio de "diretor" nunca mais seria inocente.

Foi preciso entSo uma nova cenografia, na qual a imagem funcionasse

como superficie, sem profundidade simulada, sem jogo de dngulos, sem saidas.

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Parede, folha de papel, tela, quadro-negro, sempre um espelho. um espelho noqual o espectador captaria seu pr6prio olhar como aquele de um intruso, comoum olhar a mais. A questdo central dessa cenografia nio 6 mais //o que h6 paraver atris? Mas sobretudo: "Posso continuar a olhar aquilo que, de todo modo,eu vejo? E que se desenvolve num rinico plano?

Trata-se de uma cenografia da obscenidade, muito diferente da pornografiasagrada do velho star system. o que faziacom que Garbo e Dietrich fossem es-trelas 6 que elas olhavam ao longe alguma coisa que nio era, afinal, inimaginiivel.A modernidade comega quando a foto de Monika, de Bergman, circula entretoda uma geragzo de cin6filos sem que Harriet Andersson se torne, no entanto,uma estrela. Ou quando os olhares-c6mera furtivos e insistentes do pickpocketde Bresson influenciam todo o cinema da Nouvelle vague, enquanto o pr6prionome do "ator", do portador desse olhar, 6 esquecido.

o que mudou? Esses olhares nos colocam numa situagdo insustentdvel. In-sustentdvel em todo caso para o "grande", para o "bom" priblico do cinema:ser testemunha do gozo do outro. Um outro que ndo 6 mais uma estrela, masqualquer um. Um outro que "ndo sabe rtada" , e que olha atrav6s de n6s. Semnos ver. Erotismo, certo, mas extremamente batailliano: excesso e sofrimento.

sob esse ponto de vista, se o cinema moderno nasce com a cena d.e Roma,cidade aberta, da tortura diante de um terceiro, ele termina talvezcom a eternaquestio-negagio dos riltimos filmes de Godard: por que no cinema mostramossempre os rostos das vitimas e os torturadores de costas? euestro de cenogra-fia, se fosse uma. Tendo, em seu centro, o olhar-cAmera, aquele que nega o es_pectador e destr6i todas as identificagdes. porque, se filmarmos os torturadoresde frente, 6 contra os espectadores que eles vdo agir. C.q.d.

. ,E possivel hoje especular tal coisa: o cinema ,,rriod.erno,,,

sua imagem acha-tada e sua cenografia do olhar se perdem. Nio porque ele teria se enfraqueci-do' ou porque, ao langar desafios ao espectador, ele o tivesse definitivamenteperdido' Mas porque ele teria sido rendid o, generarizado e como que ,,auto-matizado" por uma outra midia, a televisdo. Nessa, a falta de profundidade ea espe(ta)cularizagdo de tudo sdo a regra. Ferramenta de vigilAncia, a rv foi

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o arremate do cinema moderno. Mas ela tamb6m o traiu. o horror ante a in-diferenga, que confere aos filmes de Godard o pathos de sobressalto moral,tornou-se na televisSo indiferenga pura e simples diante do horror.

E o cinema? os cineastas mais inventivos dos anos r97o pararam de de-nunciar a ilusdo da cena. Menos hist6ricos, mais genealogistas, eles mostramo mecanismo, nio para desmistificar, mas para restituir ao cinema essa com-plexidade perdida com a instaurag5o do falado. A cena de cinema, com suasreminiscdncias teatrais, 6 complexa. os corpos de cinema, reais ou em efigie,sio necessariamente heterog€neos, imprevisiveis, tortuosos.

Nem a profundidade simulada da imagem rasa, nem a distdncia real daimagem em relagdo ao espectador, mas a possibilidade oferecida a este dedeslizar lentamente ao longo das imagens que deslizam elas mesmas umassobre as outras. Com delicias, com ironia. Um dos maiores momentos des-sa cenografia do terceiro tipo encontra-se no inicio de um belo filme deRaoul Ruiz, L'Hypothdse du tableau uol6 IA hip6tese do quadro roubado,r979l.A cAmera enquadra, de frente, um quadro ao longo do qual eladesliza insensivelmente, de lado, anamorfisando, passando por tr6s e nosarrastando com ela. E o que encontramos? Nem alguma coisa nem "nada",mas um cafarnaum [miscelAnea] obscuro que se revelarl um museu. Ummuseu da cenografia.

Estamos de volta aos bastidores da imagem, aos extremos do cinema. Nesse

"no man's land" , os diferentes sistemas de ilusio podem funcionar lado a lado.

Democracia da bilheteria: as pinturas vivas, os "verdadeiros" atores que se

mexem e falam, pequenas marionetes numa gaveta, os quadros reais etc.

Essa cenografia nem cldssica nem moderna 6, a da "visita guiada" . A hist6-ria do cinema, supondo-se que ela exista, faz emprtstimo dessa ponte battoca.Nos filmes de Syberberg, o fundo da imagem 6 sempre jd uma imagem. Uma

imagem de cinema. Entre ela e n6s, sobre o fr6gil prosc6nio do estridio de ci-

nema, a ilusdo se fabrica a olhos nus, exatamente como nos filmes de M6lids.

Em Syberberg encena-se a utopia de um cinema dos anos inaugurais, em que

os her6is seriam as criangas e as marionetes. Essa utopia 6 interpretada diante

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do espet6culo hist6rico do antigo cinema, aquele da propaganda, de Hitler e deHollywood. O cinema tem, a partir de entdo, o cinema como tela de fundo.

E o espectador, convidado para esses filmes-cerimdnias como para o museude suas pr6prias ilus6es, n6o 6 mais a aposta nem o alvo dessa cenografia folha-da, barroca em forma de diorama. Ele 6 o espectador da primeira fila, aquelemais perto de uma ribalta imaginlria, nem teatro nem cinema, mas esse lugarambivalente, que vale por todos: o estridio.

Syberberg, Ruiz sdo seres modelados na cultura. Poderia citar Duras, [Werner]Schroeter ou Carmelo Bene. Ou ainda [Manoel de] Oliveira. Curiosamente, dooutro lado da indristria do cinema, na nova Hollywood dos jovens cin6filos-na-babos, 6 da mesma questio que se trata por meio do retorno aos efeitos especiais,a Walt Disney e i fantasmagoria do silencioso.

Entdo, o barroco?