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Copyright Autor: José Ortega y Gasset Tradutor: Herrera Filho Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org) A REBELIÃO DAS MASSAS Jose Ortega y Gasset ÍNDICE Apresentação Biografia do autor PRÓLOGO PARA FRANCESES PRIMEIRA PARTE A REBELIÃO DAS MASSAS I - O fato das aglomerações II - A ascensão do nível histórico III - A altura dos tempos IV - O crescimento da vida V - Um dado estatístico VI - Começa a dissecação do homem-massa A rebelião das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (1 of 139) [7/11/2001 21:34:38]

A rebelião das massas jose ortega y gasset livro

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  1. 1. Copyright Autor: Jos Ortega y Gasset Tradutor: Herrera Filho Edio eletrnica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org) A REBELIO DAS MASSAS Jose Ortega y Gasset NDICE Apresentao Biografia do autor PRLOGO PARA FRANCESES PRIMEIRA PARTE A REBELIO DAS MASSAS I - O fato das aglomeraes II - A ascenso do nvel histrico III - A altura dos tempos IV - O crescimento da vida V - Um dado estatstico VI - Comea a dissecao do homem-massa A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (1 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  2. 2. VII - Vida nobre e vida vulgar, ou esforo e inrcia VIII - Porque as massas intervm em tudo e porque s intervm violentamente IX - Primitivismo e tcnica X - Primitivismo e histria XI - A poca do "mocinho satisfeito" XII - A barbrie do "especialismo" XIII - O maior perigo, o Estado SEGUNDA PARTE QUEM MANDA NO MUNDO? XIV - Quem manda no mundo? XV - Desemboca-se na verdadeira questo EPLOGO PARA INGLESES Quanto ao pacifismo DINMICA DO TEMPO As vitrinas mandam Juventude Masculino ou feminino? NOTAS APRESENTAO Nlson Jahr Garcia "A Rebelio das Massas", obra prima de Jos Ortega y Gasset, comeou a ser publicado em 1926 num jornal madrilenho ("El Sol"). Retrata as grandes transformaes do sculo XX, especialmente na Europa, com nfase no processo histrico de crescimento das massas urbanas. No se refere s classes sociais mas s multides e aglomeraes. Tendo esse contexto como pano de fundo, Ortega discute temas, aparentemente contrrios A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (2 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  3. 3. entre si, mas que se fundem (ou devem fundir-se) numa unidade de sentido. assim que contrape individualismo e submisso ao coletivo; comunidade, nao e estado; histria, presente e porvir; homens cultos e especialistas; poder arbitrrio e respeito opinio pblica; juventude e velhice; guerra e pacifismo; masculino e feminino. So tpicos que, inevitavelmente, nos induzem reflexo crtica. Em alguns casos so apresentados de forma extremamente provocativa. Referindo-se ao poder do dinheiro, minimiza seu significado e afirma: ", talvez, o nico poder social que ao ser reconhecido nos repugna. A prpria fora bruta que habitualmente nos indigna acha em ns um eco ltimo de simpatia e estima. Incita-nos a recha-la criando uma fora paralela, mas no nos inspira asco. Dir-se-ia que nos sublevam estes ou os outros efeitos da violncia; porm ela mesma nos parece um sintoma de sade, um magnfico atributo do ser vivente, e compreendemos que o grego a divinizasse em Hrcules." Discutindo o fato de que os antigos gregos expressavam um certo desprezo pelas mulheres, acaba por concluir que estas acabaram se masculinizando: "A Vnus de Milo uma figura msculo-feminil, uma espcie de atleta com seios. E um exemplo de cmica insinceridade que tenha sido proposta tal imagem ao entusiasmo dos europeus durante o sculo XIX, quando mais brios viviam de romanticismo e de fervor pela pura, extrema feminilidade. O cnone da arte grega ficou inscrito nas formas do moo desportista, e quando isto no lhe bastou preferiu sonhar com o hermafrodita." Sobre a guerra, chega a afirmar: "O pacifismo est perdido e converte-se em nula beateria se no tem presente que a guerra uma genial e formidvel tcnica de vida e para a vida." Sua interpretao do modelo escravista bastante sugestiva: "Do mesmo modo, costumamos, sem mais reflexo, maldizer da escravido, no advertindo o maravilhoso progresso que representou quando foi inventada. Porque antes o que se fazia era matar os vencidos. Foi um gnio benfeitor da humanidade o primeiro que ideou, em vez de matar os prisioneiros, conservar-lhes a vida e aproveitar seu labor." So essas aparentes contradies que estimulam nosso esprito crtico. Ortega defendeu suas concepes com vigor, fundamentos slidos e uma lgica irreprensvel. Em poucos momentos foi totalmente conclusivo, mas deixou uma enorme abertura para que possamos repensar as idias que defendeu em seus dias, adaptando-as ao nosso tempo e ao que viveremos no futuro. BIOGRAFIA DO AUTOR Jos Ortega y Gasset nasceu em Madrid, a 9 de maio de 1883. A famlia de sua me era A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (3 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  4. 4. proprietria do jornal madrilenho "El Imparcial" e seu pai jornalista e diretor desse mesmo dirio. Essa relao com o jornalismo foi essencial para o desenvolvimento de sua formao intelectual e seu estilo de expresso literria. Grande parte de seus escritos filosficos foram produzidos a partir do contato com a imprensa. Ortega, alm de considerado um dos maiores filsofos da lngua espanhola tambm lembrado como uma das maiores figuras do jornalismo espanhol do sculo XX. Tendo adquirido as primeiras letras em Madrid foi enviado a cursar o bacharelado em um colgio jesuta de Mlaga. Embora reconhecendo o valor da educao jesutica recebida, reagiu contra os tnues fundamentos da cincia adquirida, formulando um projeto pessoal de reforma da filosofia europia. Terminando os estudos em Mlaga iniciou seus estudos universitrios em Deusto e depois na Universidade de Madrid, onde se doutorou em Filosofia. Buscando uma formao intelectual mais slida continuou seus estudos em Marburgo, na Alemanha, onde prevalecia o neokantismo. Acabou por adotar uma atitude crtica em relao aos seus mestres e a Kant, que se refletiu na afirmao: "Durante dez anos vivi no mundo do pensamento kantiano: eu o respirei com a uma atmosfera que foi, ao mesmo tempo, minha casa e minha priso (...) Com grande esforo, consegui evadir-me da priso kantiana e escapei de sua influncia atmosfrica." A partir de 1910 iniciou uma vida pblica repartida entre a docncia universitria e atividades polticas e culturais extra acadmicas. Com o incio da guerra civil espanhola, em julho de 1936, Ortega decidiu andar pelo mundo, viajando Frana, Holanda, Argentina, Portugal, pases onde proferiu inmeras conferncias. Suas obras se revestem de um carter extremamente crtico, as mais polmicas das quais foram: "Meditaciones del Quijote", "Que s filosofia?", "En torno a Galileo", "Historia como sistema","Rebelin de las masas", "Obras Completas". Foi tambm co-fundador do dirio "El Sol" e fundador e diretor da "Revista de Occidente". Faleceu em Madrid no dia 18 de outubro de 1955. PRLOGO PARA FRANCESES I Este livro - supondo que seja um livro - data... Comeou a ser publicado num jornal madrilenho em 1926, e o assunto de que trata demasiado humano para que pudesse escapar ao do tempo. H sobretudo pocas em que a realidade humana, sempre instvel, se precipita em velocidade vertiginosa. Nossa poca dessa classe porque de descidas e quedas. Da que os fatos ultrapassaram o livro. Muito do que nele se enuncia foi logo um presente e j um passado. Alm disso, como este livro circulou muito durante estes anos fora da Frana, no poucas de suas frmulas chegaram ao leitor francs por vias A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (4 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  5. 5. annimas e so puro lugar comum. Teria sido, pois, excelente ocasio para praticar a obra de caridade mais adequada a nosso tempo: no publicar livros suprfluos. Eu fiz tudo que me foi possvel em tal sentido - vai para cinco anos a Casa Stock me props a sua verso -; mas me fizeram ver que o organismo das idias enunciadas nestas pginas no corresponde ao leitor francs, e que, acertada ou erroneamente, seria til submet-lo a sua meditao e a sua crtica. No estou convencido disso, mas no h motivo para formalismo. Importa-me, entretanto, que no entre na sua leitura com iluses injustificadas. Conste, pois, que se trata simplesmente de uma srie de artigos publicados num jornal madrilenho de grande circulao. Como quase tudo que escrevi, estas foram pginas escritas para uns quantos espanhis que o destino colocou minha frente. No sobremodo improvvel que minhas palavras, mudando agora de destinatrio, consigam dizer aos franceses o que elas pretendem exprimir. No posso esperar melhor sorte quando estou persuadido de que falar uma operao muito mais ilusria do que se supe, certamente, como quase tudo que o homem faz. Definimos a linguagem como o meio de que nos servimos para manifestar nossos pensamentos. Mas uma definio, se verdica, irnica, encerra tcitas reservas, e quando no a interpretamos assim, produz funestos resultados. Assim esta. O de menos que a linguagem sirva tambm para ocultar nossos pensamentos, para mentir. A mentira seria impossvel se o falar primrio e normal no fosse sincero. A moeda falsa circula apoiada na verdadeira. No final das contas, o engano vem a ser um humilde parasita da ingenuidade. No; o mais perigoso daquela definio o acrscimo otimista com que costumamos escut-la. Porque ela mesma no nos assegura que mediante a linguagem possamos manifestar, com suficiente justeza, todos os nossos pensamentos. No se arrisca a tanto, mas tampouco nos faz ver francamente a verdade estrita: que sendo ao homem impossvel entender-se com seus semelhantes, estando condenado radical solido, esgota-se em esforos para chegar ao prximo. Desses esforos a linguagem que consegue s vezes declarar com maior aproximao algumas das coisas que acontecem dentro de ns. Apenas. Mas, habitualmente, no usamos estas reservas. Ao contrrio, quando o homem se pe a falar, isto faz porque cr que vai poder dizer tudo que pensa. Pois bem, isso o ilusrio. A linguagem no d para tanto. Diz, mais ou menos, uma parte do que pensamos e pe uma barreira infranquevel transfuso do resto. Serve bastantemente para enunciados e provas matemticas; j ao falar de fsica comea a ser equvoco e insuficiente. Porm quanto mais a conversao se ocupa de temas mais importantes que esses, mais humanos, mais "reais", tanto mais aumenta sua impreciso, sua inpcia e seu confusionismo. Dceis ao prejuzo inveterado de que falando nos entendemos, dizemos e ouvimos com to boa f que acabamos muitas vezes por no nos entendermos, muito mais do que se, mudos, procurssemos adivinhar-nos. Esquece-se demasiadamente que todo autntico dizer no s diz algo, como diz algum a algum. Em todo dizer h um emissor e um receptor, os quais no so indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo vocbulo ocasional (l). A linguagem por essncia dilogo, e todas as outras formas do falar destituem sua eficcia. Por isso eu creio que um livro s bom na medida em que nos traz um dilogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente seu leitor e este percebe como se dentre as linhas sasse u'a mo ectoplstica que tateia sua pessoa, que quer acarici-la - ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro. Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraa. Como em tantas outras coisas, o abuso aqui A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (5 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  6. 6. consistiu no uso sem preocupao, sem conscincia da limitao do instrumento. H quase dois sculos que se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto , a todos e a ningum. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando no sei concretamente a quem falo. Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do fato, que quando se celebrou o jubileu de Victor Hugo foi organizada uma grande festa no palcio do Elseo, da qual participaram, levando suas homenagens, representaes de todas as naes. O grande poeta achava-se na grande sala de recepo, em solene atitude de esttua, com o cotovelo apoiado no rebordo de uma chamin. Os representantes das naes adiantavam-se ao pblico e apresentavam sua homenagem ao vate da Frana. Um porteiro, com voz estentrica, anunciava-os: "Monsieur le Reprsentant de l'Anglaterre!" E Victor Hugo, com voz de dramtico trmulo, virando os olhos, dizia: "L'Anglaterre! Ah, Shakespeare!" O porteiro continuou: "Monsieur le Reprsentant de l'Espagne"! E Victor Hugo: "L'Espagne! Ah, Cervantes!" O porteiro: "Monsieur le Reprsentant de L'Allemagne!" E Victor Hugo: "L'Allemagne! Ah, Goethe!" Mas ento chegou a vez de um senhor baixo, atarracado, balofo e de andar desgracioso. O porteiro exclamou: "Monsieur le Reprsentant de la Msopotamie!" Victor Hugo, que at ento permanecera impertrrito e seguro de si mesmo, pareceu vacilar. Suas pupilas, ansiosas, fizeram um grande giro circular como procurando em todo o cosmos algo que no encontrava. Mas logo se viu que o achara e que recobrara o domnio da situao. Efetivamente, com o mesmo tom pattico, com a mesma convico, respondeu homenagem do rotundo senhor dizendo: "La Msopotamie! Ah, L'Humanit!" Contei isso a fim de declarar, sem a solenidade de Victor Hugo, que no escrevi nem falei Mesopotmia, e nunca me dirigi Humanidade. Esse costume de falar para a Humanidade, que a forma mais sublime, e, portanto, a mais desprezvel da demagogia, foi adotada at 1750 por intelectuais desajustados, ignorantes de seus prprios limites e que sendo, por seu ofcio, os homens do dizer, do logos, usaram dele sem respeito e precaues, sem perceberem que a palavra um sacramento de mui delicada administrao. II Esta tese que sustenta a exiguidade do raio de ao eficazmente concedido palavra, podia parecer invalidada pelo fato mesmo de que este volume tenha encontrado leitores em quase todas as lnguas da Europa. Eu creio, todavia, que este fato de preferncia sintoma de outra coisa, de outra grave coisa: da pavorosa homogeneidade de situaes em que vai caindo todo o Ocidente. Desde o aparecimento deste livro, pela mecnica que nele mesmo se descreve, essa identidade cresceu de modo angustioso. Digo angustioso porque, realmente, o que em cada pas sentido como circunstncia dolorosa, multiplica ao infinito seu efeito deprimente quando quem o sofre adverte que apenas h lugar no continente onde no acontea estritamente o mesmo, Outrora podia ventilar-se a atmosfera confinada de um pas abrindo-se as janelas que do para outro. Mas agora esse expediente no serve de nada, porque em outro pas a A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (6 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  7. 7. atmosfera to irrespirvel como no prprio. Da a sensao opressora de asfixia. Job, que era um terrvel pince-sans-rire, pergunta a seus amigos, os viajores e mercadores que rodaram pelo mundo: Unde sapientia venit et quis est locus intelligentiae? "Sabeis de algum lugar do mundo onde a inteligncia exista?" Convm, entretanto, que nessa progressiva assimilao das circunstncias distingamos duas dimenses diferentes e de valor contraposto. Este enxame de povos ocidentais que alou vo sobre a histria desde as runas do mundo antigo, caracterizou-se sempre por uma forma dual de vida. Pois aconteceu que medida que cada um ia formando seu gnio peculiar, entre eles ou sobre eles se ia criando um repertrio de idias, maneiras e entusiasmos. Mais ainda. Este destino que os fazia, a par, progressivamente homogneos e progressivamente diversos, h de entender-se com certo superlativo de paradoxo. Porque neles a homogeneidade no foi alheia diversidade. Pelo contrrio: cada novo princpio uniforme fertilizava a diversificao. A idia crist engendra as igrejas nacionais; a lembrana do Imperium romano inspira as diversas formas do Estado; a "restaurao das letras" no sculo XV impele as literaturas divergentes; a cincia e o princpio unitrio do homem como "razo pura" cria os distintos estilos intelectuais que modelam diferencialmente at as extremas abstraes da obra matemtica. Finalmente e para cmulo: at a extravagante idia do sculo XVIII, segundo a qual todos os povos ho de ter uma constituio idntica, produz o efeito de despertar romanticamente a conscincia diferencial das nacionalidades, que vem a ser como estimular em cada um sua vocao particular. E que para esses povos chamados europeus, viver sempre foi - claramente desde o sculo XI, desde ton III - mover-se e atuar em um espao ou mbito comum. Isto , que para cada um viver era conviver com os demais. Esta convivncia tomava indiferentemente aspecto pacfico ou combativo. As guerras inter-europias mostraram quase sempre um curioso estilo que as faz parecer muito com as altercaes domsticas. Evitam a aniquilao do inimigo, e so verdadeiros certames, lutas de emulao, como as dos jovens numa aldeia ou disputas de herdeiros pela partilha de um legado familiar. Um pouco de outro modo, todos vo ao mesmo. Eadem sed aliter. Como Carlos V dizia de Francisco I: Meu primo Francisco e eu estamos de perfeito acordo: ambos queremos Milo". de somenos importncia que a esse espao histrico comum, onde todos os povos do Ocidente se sentiam como em sua casa, corresponda um espao fsico que a geografia denomina Europa. O espao histrico a que aludo mede-se pelo raio de efetiva e prolongada convivncia - um espao social. Ora, convivncia e sociedade so termos equivalentes. Sociedade o que se produz automaticamente pelo simples fato da convivncia. De sua essncia e inelutavelmente esta segrega costumes, usos, lnguas, direito, poder pblico. Um dos mais graves erros do pensamento "moderno", cujas salpicaduras ainda padecemos, tem sido confundir a sociedade com a associao, que , aproximadamente, o contrrio daquela. Uma sociedade no se constitui do acordo das vontades. Ao contrrio, todo acordo de vontades pressupe a existncia de uma sociedade, de pessoas que convivem, e o acordo no pode consistir seno em precisar uma ou outra forma dessa convivncia, dessa sociedade preexistente. A idia da sociedade como reunio contratual, portanto jurdica, o mais insensato ensaio que se fez de pr o carro adiante dos bois. Porque o direito, a realidade "direito" - no as idias sobre ele do filsofo, jurista ou demagogo - , se me permitem a expresso barroca, secreo espontnea da sociedade e no pode ser outra coisa. Querer que o direito reja as relaes entre seres que previamente no vivem em efetiva sociedade, parece-me - perdoe-se-me a insolncia - ter uma idia muito confusa do que o direito. A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (7 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  8. 8. No deve estranhar, por outra parte, a preponderncia dessa opinio confusa e ridcula sobre o direito, porque uma das mximas desditas do tempo que, ao toparem os povos do Ocidente com os terrveis conflitos pblicos do presente, se encontraram aparelhados com instrumental arcaico e ineficiente de noes sobre o que sociedade, coletividade, indivduo, usos, lei, justia, revoluo, etc. Boa parte da inquietao atual provm da incongruncia entre a perfeio de nossas idias sobre os fenmenos fsicos e o atraso escandaloso das "cincias morais". O ministro, o professor, o fsico ilustre e o novelista soem ter dessas coisas conceitos dignos de um barbeiro suburbano. No perfeitamente natural que seja o barbeiro suburbano quem d a tonalidade do tempo? (2) Mas voltemos a nossa rota. Queria insinuar que os povos europeus so h muito tempo uma sociedade, uma coletividade, no mesmo sentido que tm estas palavras aplicadas a cada uma das naes que a integram. Essa sociedade manifesta todos os atributos possveis: h costumes europeus, usos europeus, opinio pblica europia, direito europeu, poder pblico europeu. Mas todos esses fenmenos sociais se do na forma adequada ao estado de evoluo em que se encontra a sociedade europia, que no , evidentemente, to avanado como o de seus membros componentes, as naes. Por exemplo: a forma de presso social que o poder pblico funciona em toda sociedade, inclusive naquelas primitivas em que no existe ainda um organismo especial encarregado de manej-lo. Se a esse rgo diferenciado a quem se entrega o exerccio do poder pblico se quer chamar Estado, diga-se que em certas sociedades no h Estado, mas no se diga que nelas no h poder pblico. Onde h opinio pblica, como poder faltar um poder pblico se este no mais que a violncia coletiva suscitada por aquela opinio? Ora bem, que h sculos e com intensidade crescente existe uma opinio pblica europia e at uma tcnica para influir nela - incmodo neg-lo. Por isso, recomendo ao leitor que poupe a malignidade de um sorriso ao deparar que nos ltimos captulos deste volume se faz com certo denodo, ante o cariz oposto das aparncias atuais, a afirmao de uma possvel, de uma provvel unidade estatal da Europa. No nego que os Estados Unidos da Europa so uma das fantasias mais mdicas que existem e no me solidarizo com o que os outros pensaram sob esses signos verbais. Mas, por outra parte, sumamente improvvel que uma sociedade, uma coletividade to madura como a que j formam os povos europeus, ande longe de criar para si seu artefato estatal mediante o qual formalize o exerccio do poder pblico europeu j existente. No , pois, debilidade ante as solicitaes da fantasia nem propenso a um "idealismo" que detesto, e contra o qual hei pugnado toda a minha vida, o que me leva a pensar assim. Foi o realismo histrico que me ensinou a ver que a unidade da Europa como sociedade no um "ideal", mas um fato de velhssima cotidianidade. Ora bem, uma vez que se viu isso, a probabilidade de um Estado geral europeu impe-se necessariamente. A ocasio que leve subitamente a trmino o processo pode ser qualquer, por exemplo, a clera de um chins que aparea pelos Urais ou uma sacudida do grande magma islmico. A figura desse Estado super-nacional ser, claro, muito diferente das usadas, como, segundo nesses mesmos captulos se tenta mostrar, foi muito diferente o Estado nacional do Estado-cidade que os antigos conheceram. Eu procurei nestas pginas pr em franquia as mentes para que saibam ser fiis sutil concepo do Estado e sociedade que a tradio europia nos prope. Nunca foi fcil ao pensamento greco-romano conceber a realidade como dinamismo. No podia A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (8 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  9. 9. desprender-se do visvel ou seus sucedneos, como um menino no entende do livro seno as ilustraes. Todos os esforos de seus filsofos autctones para transcender essa limitao foram vos. Em todos os seus ensaios para compreender atua, mais ou menos, como paradigma, o objeto corporal, que , para eles, a "coisa" por excelncia. S conseguem ver uma sociedade, um Estado onde a unidade tenha carter de continuidade visual; por exemplo, uma cidade. A vocao mental do europeu oposta. Toda coisa visvel lhe parece, como tal, simples mscara aparente de uma fora latente que a est constantemente produzindo e que sua verdadeira realidade. Ali onde a fora, a dynamis, atua unitariamente, h real unidade, embora vista se nos apaream como manifestao dela apenas coisas diversas. Seria recair na limitao antiga no descobrir unidade de poder pblico apenas onde este tomou mscaras j conhecidas e como solidificadas de Estado; isto , nas naes particulares da Europa. Nego redondamente que o poder pblico decisivo atuante em cada uma delas consista exclusivamente em seu poder pblico interior ou nacional. Convm cair de uma vez na compreenso de que h muitos sculos - e com conscincia disso h quatro - vivem todos os povos da Europa submetidos a um poder pblico que por sua prpria pureza dinmica no tolera outra denominao que a extrada da cincia mecnica: o "equilbrio europeu" ou balance of Power. Esse o autntico governo da Europa que regula em seu vo pela histria o enxame de povos, solcitos e pugnazes como abelhas, escapados s runas do mundo antigo. A unidade da Europa no uma fantasia, mas de fato a prpria realidade, e a fantasia precisamente a crena de que a Frana, a Alemanha, a Itlia ou a Espanha so realidades substantivas e independentes. Compreende-se, entretanto, que nem todo o mundo perceba com evidncia a realidade da Europa, porque a Europa no uma "coisa", mas um equilbrio. J no sculo XVIII o historiador Robertson qualificou o equilbrio europeu de the great secret of modern politics. Segredo grande e paradoxal, sem dvida! Porque o equilbrio ou balana de poderes uma realidade que consiste essencialmente na existncia de uma pluralidade. Se essa pluralidade se perde, aquela unidade dinmica se desvaneceria. A Europa , com efeito, enxame; muitas abelhas e um s vo. Esse carter unitrio da magnfica pluralidade europia o a que eu chamaria boa homogeneidade, a que fecunda e desejvel, a que fazia Montesquieu dizer: L'Europe n'est qu'une nation compose de plusieurs, (3) e Balzac, mais romanticamente, falava da grande famille continentale, dont tous les efforts tendent je ne sais quel mystre de civilisation. (4) III Esta multido de modos europeus que brotam constantemente de sua radical unidade e reverte a ela mantendo-a, o maior tesouro do Ocidente. Os homens de cabeas toscas no conseguem congeminar uma idia to acrobtica como esta em que preciso saltar, sem descanso, da afirmao da pluralidade ao reconhecimento da unidade e vice-versa. So cabeas pesadas nascidas para existir sob as perptuas tiranias do Oriente. A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (9 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  10. 10. Triunfa hoje sobre toda a rea continental uma forma de homogeneidade que ameaa consumir completamente aquele tesouro. Onde quer que tenha surgido o homem-massa de que este volume se ocupa, um tipo de homem feito de pressa, montado to somente numas quantas e pobres abstraes e que, por isso mesmo, idntico em qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste aspecto de asfixiante monotonia que vai tomando a vida em todo o continente. Esse homem-massa o homem previamente despojado de sua prpria histria, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dcil a todas as disciplinas chamadas "internacionais". Mais do que um homem, apenas uma carcaa de homem constitudo por meros idola fori; carece de um "dentro", de uma intimidade sua, inexorvel e inalienvel, de um eu que no se possa revogar. Da estar sempre em disponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem s apetites, cr que s tem direitos e no cr que tem obrigaes: o homem sem nobreza que obriga - sine nobilitate - snob. (5) Este universal snobismo, que to claramente aparece, por exemplo, no operrio atual, cegou as almas para compreender que, embora toda estrutura dada da vida continental tenha de ser transcendida, tudo isso h de se fazer sem perda grave de sua interior pluralidade. Como o snob est vazio de destino prprio, como no sabe que existe sobre o planeta para fazer algo determinado e impermutvel, incapaz de entender que h misses particulares e mensagens especiais. Por essa razo hostil ao liberalismo, com uma hostilidade que se assemelha do surdo em relao palavra. A liberdade significou sempre na Europa franquia para ser o que autenticamente somos. Compreende-se que aspire a prescindir dela quem sabe que no tem autntico mister. Com estranha facilidade todo o mundo se colocou de acordo para combater e injuriar o velho liberalismo. A coisa suspeita. Porque as pessoas no costumam pr-se de acordo a no ser em coisas um pouco velhacas ou um pouco tolas. No pretendo que o velho liberalismo seja uma idia plenamente razovel: como pode ser se velho e se ismo! Mas sim penso que uma doutrina sobre a sociedade muito mais profunda e clara do que supem seus detratores coletivistas, que comeam por desconhec-lo. Ademais, h nele uma intuio do que a Europa tem sido, altamente perspicaz. Quando Guizot, por exemplo, contrape a civilizao europia s demais fazendo notar que nela no triunfou nunca em forma absoluta nenhum princpio, nenhuma idia, nenhum grupo ou classe, e que a isso se deve o seu crescimento permanente e seu carter progressivo, no podemos deixar de pr o ouvido atento (6). Este homem sabe o que diz. A expresso insuficiente porque negativa, mas suas palavras chegam-nos carregadas de vises imediatas. Como do mergulhador emergente transcendem olores abismais, vemos que este homem chega efetivamente do profundo passado da Europa onde soube submergir. , com efeito, incrvel que nos primeiros anos do sculo XIX, tempo retrico e de grande confuso, se tenha composto um livro como a Histoire de la Civilisation en Europe. Todavia o homem de hoje pode aprender ali como a liberdade e o pluralismo so duas coisas recprocas e como ambas constituem a permanente entranha da Europa. Mas Guizot teve sempre pssima publicidade, como em geral, os doutrinrios. No me surpreendo. Quando vejo que para um homem ou grupo se dirige fcil e insistente o aplauso, surge em mim a veemente suspeita de que nesse homem ou nesse grupo, talvez junto a dotes excelentes, h algo sobremodo impuro. Talvez isto seja um erro em que incorro, mas devo dizer que no o procurei, que o foi dentro de mim decantando a experincia. De qualquer maneira, quero ter a coragem de afirmar que este grupo de doutrinrios, de quem todo o mundo riu e fez mofas truanescas, , a meu ver, o mais A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (10 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  11. 11. valioso que houve na poltica do continente durante o sculo XIX. Foram os nicos que viram claramente o que havia que fazer na Europa depois da Grande Revoluo, e foram alm disso homens que criaram em suas pessoas uma atitude digna e distante, no meio da rusticidade e da frivolidade crescente daquele sculo. Rotas e sem vigncia quase todas as normas com que a sociedade presta uma continncia ao indivduo, no podia este constituir-se uma dignidade se no a extraa do fundo de si mesmo. Mal pode fazer-se isso sem alguma exagerao, ainda que seja somente para se defender do abandono orgistico em que vivia seu contorno. Guizot soube ser, como Buster Keaton, o homem que no ri (7). No se abandona jamais. Condensam-se nele vrias geraes de protestantes nimeses que haviam vivido em alerta perptuo, sem poder flutuar deriva no ambiente social, sem poder abandonar-se. Havia chegado a converter-se neles em um instinto a impresso radical de que existir resistir, fincar os calcanhares no cho para se opor correnteza. Numa poca como a nossa, bom tomar contacto com os homens que no "se deixam levar". Os doutrinrios so um caso excepcional de responsabilidade intelectual; quer dizer, do que mais tem faltado aos intelectuais europeus desde 1750, defeito que , por sua vez, uma das causas profundas do presente desconcerto Mas eu no sei se, ainda que me dirigindo a leitores franceses, Posso aludir ao doutrinarismo como a uma magnitude conhecida. Pois se d o fato escandaloso de que no existe um s livro onde se tenha tentado precisar o que aquele grupo de homens pensava, (8) como, ainda que parea incrvel, no h tampouco um livro medianamente formal sobre Guizot nem sobre Royer-Collard (9). verdade que nem um nem o outro publicaram jamais um soneto. Mas, enfim, pensaram profundamente, originalmente, sobre os problemas mais graves da vida pblica europia, e constituram o doutrinal poltico mais estimvel de toda a centria. Nem ser possvel reconstruir a histria desta se no se estabelece intimidade com o modo em que se apresentaram as grandes questes ante estes homens (10), Seu estilo intelectual no s diferente em espcie, mas o de outro gnero e de outra essncia em face de todos os demais triunfantes na Europa antes e depois deles. Por isso no os entenderam, apesar da sua clssica lucidez. E, todavia, muito possvel que o porvir pertena a tendncias de intelecto muito semelhantes s suas. Pelo menos, asseguro a quem se proponha formular com rigor sistemtico as idias dos doutrinrios, prazeres de pensamento no esperados e uma intuio da realidade social e poltica totalmente diferente das usadas. Perdura neles ativa a melhor tradio racionalista em que o homem se compromete consigo mesmo a procurar coisas absolutas; mas diferentemente do racionalismo linftico de enciclopedistas e revolucionrios, que encontram o absoluto em abstraes bon march, descobrem eles o histrico com o verdadeiro absoluto. A histria a realidade do homem. No tem outra. Nela chegou a fazer-se tal e como . Negar o passado absurdo e ilusrio, porque o passado "o natural do homem que volta a galope". O passado no est presente e no teve o trabalho de acontecer para que o neguemos, mas para que o integremos (11). Os doutrinrios desprezavam os "direitos do homem" porque so absolutamente "metafsicos", abstraes e irrealidades. Os verdadeiros direitos so os que absolutamente esto a, porque foram aparecendo e se consolidando na histria: tais so as "liberdades", a legitimidade, a magistratura, as "capacidades". Se alentassem hoje reconheceriam o direito de greve (no poltica) e o contrato coletivo. A um ingls tudo isso pareceria bvio; mas os continentais ainda no chegamos a essa estao. Talvez desde o tempo de Alcuino tenhamos vivido cinqenta anos pelo menos atrasados a respeito dos ingleses. Igual desconhecimento do velho liberalismo sentem os coletivistas de agora quando supem, nem mais nem menos, como coisa inquestionvel, que era individualista. Em todos estes temas andam, como eu disse, as noes sobremodo turvas. Os russos desses anos passados costumavam chamar a Rssia de A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (11 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  12. 12. "o coletivo". No seria interessante averiguar que idias ou imagens se espreguiavam invocao deste vocbulo na mente um tanto gasosa do homem russo que to freqentemente, como o capito italiano de que falava Goethe, bisogna aver una confusione nella testa? Diante disso tudo eu rogaria ao leitor que tomasse em conta, no para aceit-las, mas para que sejam discutidas e passem depois sentena, as seguintes teses: Primeira: o liberalismo individualista pertence flora do sculo XVIII; inspira, em parte, a legislao da Revoluo francesa, mas morre com ela. Segunda: a criao caracterstica do sculo XIX foi precisamente o coletivismo, a primeira idia que inventa apenas nascido e que ao longo de cem anos no fez seno crescer at inundar todo o horizonte. Terceira: esta idia de origem francesa. Aparece pela primeira vez nos arquireacionrios de Bonald e de Maistre. No essencial imediatamente aceita por todos, sem outra exceo que no seja Benjamim Constant, um "atrasado" do sculo anterior. Mas triunfa em Saint-Simon, em Ballanche, em Comte e pulula por toda a parte (12). Por exemplo: um mdico de Lyon, M. Amard, falar em 1821 do collectivisme em face do personnalisme (13). Leiam-se os artigos que em 1830 e 1831 publica L'Avenir contra o individualismo. Mais importante, porm, que tudo isso outra coisa. Quando, avanando pela centria, chegamos aos grandes teorizadores do liberalismo - Stuart Mill ou Spencer - surpreende-nos que sua suposta defesa no se baseia em mostrar que a liberdade beneficia ou interessa a este, mas pelo contrrio, em que interessa e beneficia sociedade. O aspecto agressivo do ttulo que Spencer escolhe para seu livro - O indivduo contra o Estado - tem sido causa de que o no entendam teimosamente os que no lem dos livros seno os ttulos, Porque indivduo e Estado significam nesse titulo dois meros rgos de um nico sujeito - a sociedade. E o que se discute se certas necessidades sociais so melhor servidas por um ou pelo outro rgo. Nada mais. O famoso "individualismo" de Spencer boxeia continuamente dentro da atmosfera coletivista de sua sociologia. O resultado, no final, que tanto ele como Stuart Mill tratam os indivduos com a mesma crueldade socializante com que os termitas a certos de seus congneres, os quais cevam para depois chupar-lhes a substncia. At esse ponto era a primazia do coletivo o fundo por si mesmo evidente sobre o qual ingenuamente danavam suas idias! De onde se infere que minha defesa lohengrinesca do velho liberalismo , completamente, desinteressada e gratuita. Porque o caso que eu no sou um "velho liberal". O descobrimento - sem dvida glorioso e essencial - do social, do coletivo, era demasiado recente. Aqueles homens apalpavam, mais do que viam, o fato de que a coletividade uma realidade diferente dos indivduos e de sua simples soma, mas no sabiam bem em que consistia e quais eram seus efetivos atributos. Por outra parte, os fenmenos sociais do tempo camuflavam a verdadeira economia da coletividade, porque ento convinha a esta ocupar-se em cevar bem os indivduos. No chegara ainda a hora da nivelao, da espoliao e da partilha em todas as ordens. Da que os "velhos liberais" se abrissem sem suficientes precaues ao coletivismo que respiravam. Mas quando se viu com clareza o que no fenmeno social, no fato coletivo, simplesmente e como tal, h por um lado de benefcio, porm, por outro, de terrvel, de pavoroso, s se pode aderir ao liberalismo de A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (12 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  13. 13. estilo radicalmente novo, menos ingnuo e de mais destra beligerncia, um liberalismo que est germinando j, prximo a florescer, na linha mesma do horizonte. Nem era possvel que sendo estes homens, como eram, fartamente perspicazes, no entrevissem de quando em quando as angstias que seu tempo nos reservava. Contra o que si acreditar-se tem sido normal na histria que o porvir seja profetizado (14). Em Macaulay, em Tocqueville, em Comte, encontramos pr-desenhada nossa hora. Veja-se, por exemplo, o que h mais de oitenta anos escrevia Stuart Mill: " parte as doutrinas particulares de pensadores individuais, existe no mundo uma forte e crescente inclinao a estender em forma extrema o poder da sociedade sobre o indivduo, tanto por meio da fora da opinio como pela legislativa. Ora bem, como todas as mudanas que se operam no mundo tm por efeito o aumento da fora social e a diminuio do poder individual, este desbordamento no um mal que tenda a desaparecer espontaneamente, mas, ao contrrio, tende a fazer-se cada vez mais formidvel. A disposio dos homens, seja como soberanos, seja como concidados, a impor aos demais como regra de conduta sua opinio e seus gostos, se acha to energicamente sustentada por alguns dos melhores e alguns dos piores sentimentos inerentes natureza humana, que quase nunca se reprime seno quando lhe falta poder. E como o poder no parece achar-se em via de declinar, mas de crescer, devemos esperar, a menos que uma forte barreira de convico moral no se eleve contra o mal, devemos esperar, digo, que nas condies presentes do mundo esta disposio nada far seno aumentar" (15). Mas o que mais nos interessa em Stuart Mill sua preocupao pela homogeneidade de m classe que via crescer em todo o Ocidente. Isso o faz acolher-se a um grande pensamento emitido por Humboldt na sua juventude. Para que o humano se enriquea, se consolide e se aperfeioe necessrio, segundo Humboldt, que exista "variedade de situaes" (16). Dentro de cada nao, e tomando em conjunto as naes, preciso que se dem circunstncias diferentes. Assim, ao falhar uma restam outras possibilidades abertas. E insensato pr a vida europia numa s carta, num s tipo de homem, numa idntica "situao". Evitar isso tem sido o secreto acerto da Europa at hoje, e a conscincia desse segredo a que, clara ou balbuciante, moveu sempre os lbios do perene liberalismo europeu. Nessa conscincia se reconhece a si mesma como valor positivo, como bem e no como mal, a pluralidade continental. Importava-me esclarecer isso para que no se tergiverse a idia de uma superao europia que este volume postula. Tal e como vamos, com a mngua progressiva da "variedade de situaes", caminhamos em linha reta para o Baixo Imprio. Tambm foi aquele um tempo de massa e de pavorosa homogeneidade. J no tempo dos Antoninos se nota claramente um estranho fenmeno, menos sublinhado e analisado do que devera: os homens tornaram-se estpidos, O processo vinha de tempos atrs. Disse-se, com alguma razo, que o estico Possidnio, mestre de Ccero, o ltimo homem antigo capaz de se colocar ante os fatos com a mente porosa e ativa, disposto a investig-los. Depois dele, as cabeas se obliteram, e salvo os Alexandrinos, no faro outra coisa seno repetir, estereotipar. Mas o sistema e documento mais terrvel desta forma, a um tempo homognea e estpida - e uma eqivale outra - que adota a vida de um a outro extremo do Imprio, est onde menos se podia esperar e onde todavia, que eu saiba, ningum o procurou: no idioma. A lngua, que no nos serve para dizer suficientemente o que cada um de ns quisramos dizer, revela pelo contrrio e grita, sem que o queiramos, a condio mais arcana da sociedade que a fala. Na poro mais helenizada do povo romano, a lngua vigente a que se chamou "latim vulgar", matriz de nossos romances. No se conhece bem este A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (13 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  14. 14. latim vulgar e, em boa parte, s se chega a ele mediante reconstrues. Mas o que se conhece basta e sobra para que nos espantem dois de seus caracteres. Um a incrvel simplificao do seu mecanismo gramatical em comparao com o latim clssico. A saborosa complexidade indo-europia, que conservava a linguagem das classes superiores, ficou suplantada por uma fala plebia, de mecanismo muito fcil, porm, ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, pesadamente mecnico, como material; gramtica balbuciante e perifrstica, de ensaio e rodeio como a infantil. E, efetivamente, uma lngua pueril ou gaga que no permite a fina aresta do raciocnio nem lricas cambiantes. uma lngua sem luz nem temperatura, sem evidncia e sem calor de alma, uma lngua triste, que avana s cegas. Os vocbulos parecem velhas moedas de cobre, imundas e sem rotundidade, como fartas de rolar pelas tabernas mediterrneas. Que vidas evadidas de si mesmas, desoladas, condenadas eterna cotidianidade se adivinham atrs desse seco artefato lingstico! O outro carter aterrador do latim vulgar precisamente sua homogeneidade. Os lingistas, que so talvez, depois dos aviadores, os homens menos dispostos a assustar-se com coisa alguma, no parecem admirar-se ante o fato de que falassem da mesma maneira pases to dspares como Cartago e Glia, Tingitnia e Dalmcia, Hispnia e Rumnia. Eu, pelo contrrio, que sou bastante tmido, que tremo quando vejo como o vento fatiga uns canios, no posso reprimir ante esse fato um estremecimento medular. Parece-me simplesmente atroz. E verdade que trato de me representar como era por dentro isso que olhado de fora nos aparece, tranqilamente, como homogeneidade; procuro descobrir a realidade vivente de que esse fato a quieta marca. Consta, claro, que havia africanismos, hispanismos, galicismos. Mas ao constar isto quer dizer-se que o torso da lngua era comum e idntico, apesar das distncias, do escasso intercmbio, da dificuldade de comunicaes e de que no contribua para fix-lo uma literatura. Como podiam vir coincidncia o celtibero e o belga, o morador de Hipona e o de Lutcia, o mauritnio e o dcio, seno em virtude de um achatamento geral, reduzindo a existncia sua base, nulificando suas vidas? O latim vulgar est a nos arquivos, como um arrepiante empedernimento, testemunho de que uma vez a histria agonizou sob o imprio homogneo da vulgaridade por haver desaparecido a frtil "variedade de situaes". IV Nem este volume nem eu somos polticos. O assunto de que aqui se fala prvio poltica e pertence a seu subsolo. Meu trabalho obscuro labor subterrneo de mineiro. A misso do chamado "intelectual" , em certo modo, oposta do poltico. A obra intelectual aspira, com freqncia baldada, a esclarecer um pouco as coisas, enquanto a do poltico si, pelo contrrio, consistir em confundi-las mais do que estavam. Ser da esquerda , como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil: ambas, com efeito, so formas da hemiplegia moral. Ademais, a persistncia destes qualificativos contribui no pouco a falsificar mais ainda a "realidade" do presente, j fala de per si, porque se encrespou o crespo das experincias polticas a que respondem, como o demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revolues e as esquerdas propem tiranias. H obrigaes de trabalhar sobre as questes do tempo. Isto, sem dvida. E eu o fiz durante toda a minha vida. Sempre estive na estacada. Mas uma das coisas que agora se dizem - uma "corrente" - que, incluso a custo da claridade mental, todo o mundo tem de fazer poltica sensu stricto. Dizem-no, claro, A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (14 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  15. 15. os que no tm outra coisa que fazer. E at o corroboram citando de Pascal o imperativo d'abtissement. Mas h muito tempo que aprendi a ficar em guarda quando algum cita Pascal. E uma cautela de higiene elemental. O politicismo integral, a absoro de todas as coisas e de todo o homem pela poltica, uma e mesma coisa com o fenmeno de rebelio das massas que aqui se descreve. A massa em rebeldia perdeu toda a capacidade de religio e de conhecimento. No pode ter dentro mais que poltica exorbitada, frentica, fora de si, posto que pretenda suplantar o conhecimento, a religio, a sagesse - enfim, as nicas coisas que por sua substncia so aptas para ocupar o centro da mente humana -. A poltica despoja o homem de solido e intimidade, e por isso a predicao do politicismo integral uma das tcnicas que se usam para socializ-lo. Quando algum nos pergunta o que somos em poltica, ou, antecipando-se com a insolncia que pertence ao estilo de nosso tempo, nos adscreve simultaneamente em vez de responder devemos perguntar ao impertinente que pensa ele que o homem e a natureza e a histria, que a sociedade e o indivduo, a coletividade, o Estado, o uso, o direito. A poltica apressa-se a apagar as luzes para que todos estes gatos sejam pardos. preciso que o pensamento europeu proporcione sobre todos estes temas nova claridade. Para isso est a, no para fazer o leque do pavo real nas reunies acadmicas. E preciso que o faa prontamente ou, como dizia Dante, que encontre a sada, studiate il passo Mentre que l'Occidente non s'annera. (Purg. XXVII, 62-63) Isso seria o nico de que poderia esperar-se com alguma probabilidade a soluo do tremendo problema que as massas atuais aventam. Este volume no pretende, nem de longe, nada parecido. Como suas ltimas palavras fazem constar, s uma primeira aproximao ao problema do homem atual. Para falar sobre ele mais seriamente e mais profundamente no haveria mais remdio seno pr-se em roupa abissal, vestir o escafandro e descer ao mais profundo do homem. Importa fazer isso sem pretenses, mas com deciso, e eu o tentei num livro prximo a aparecer em outros idiomas sob o ttulo El hombre y la gente. Uma vez que nos afiguramos bem de como esse tipo humano hoje dominante, e que eu chamei o homem-massa, quando se suscitam as interrogaes mais frteis e mais dramticas: Pode-se reformar este tipo de homem? Quero dizer: os graves defeitos que h nele, to graves que se no os extirpamos produziro de modo inexorvel a aniquilao do Ocidente, toleram ser corrigidos? Porque, como ver o leitor, se trata precisamente de um homem hermtico, que no est aberto de verdade a nenhuma instncia superior. A outra pergunta decisiva, da qual, a meu juzo, depende toda possibilidade de sade, esta: podem as massas, ainda que quisessem, despertar a vida pessoal? No cabe desenvolver aqui o tremendo tema, porque est demasiado virgem. Os termos com que deve ser levantado no constam na conscincia A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (15 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  16. 16. pblica. Nem sequer est esboado o estudo da distinta margem de individualidade que cada poca do passado deixou existncia humana. Porque pura inrcia mental do "progressismo" supor que conforme avana a histria, assim cresce a folga que se concede ao homem para poder ser indivduo pessoal, como cria o honrado engenheiro, mas nulo historiador, Herbert Spencer. No; a histria est cheia de retrocessos nesta ordem, e talvez a estrutura da vida em nossa poca impea superlativamente que o homem possa viver como pessoa. Ao contemplar nas grandes cidades essas imensas aglomeraes de seres humanos, que vo e vm por suas ruas ou se concentram em festivais e manifestaes polticas, incorpora-se em mim, obsedante, este pensamento: Pode hoje um homem de vinte anos formar um projeto de vida que tenha figura individual e que, portanto, necessitaria realizar-se mediante suas iniciativas independentes, mediante seus esforos particulares? Ao tentar o desenvolvimento desta imagem em sua fantasia, no notar que , seno impossvel, quase improvvel, porque no h a sua disposio espao em que possa aloj-la e em que possa mover-se segundo seu prprio ditame? Logo advertir que seu projeto tropea com o prximo, como a vida do prximo aperta a sua. O desnimo o levar com a facilidade de adaptao prpria de sua idade a renunciar no s a todo ato, como at a todo desejo pessoal e buscar a soluo oposta: imaginar para si uma vida standard, composta de desiderata comuns a todos e ver que para consegui-la tem de solicit-la ou exigi-la em coletividade com os demais. Da a ao em massa. A coisa horrvel, mas no creio que exagera a situao efetiva em que se vo achando quase todos os europeus. Em uma priso onde se amontoaram muito mais presos dos que cabem, ningum pode mover um brao ou uma perna por iniciativa prpria, porque chocaria com os corpos dos demais. Em tal circunstncia, os movimentos tm de se executar em comum, e at os msculos respiratrios tm de funcionar a ritmo de regulamento. Isto seria a Europa convertida em formigueiro. Mas nem sequer esta cruel imagem uma soluo. O formigueiro humano impossvel, porque foi o chamado "individualismo", que enriqueceu o mundo e a todos no mundo e foi esta riqueza que prolificou to fabulosamente a planta humana. Quando os restos desse "individualismo" desaparecessem, faria sua reapario na Europa o esfomeamento gigantesco do Baixo Imprio, e o formigueiro sucumbiria como ao sopro de um deus torvo e vingativo. Restariam muito menos homens, que o seriam um pouco mais. Ante o feroz patetismo desta questo que, queiramos ou no, est visvel, o tema da "justia social", apesar de to respeitvel, empalidece e se degrada at parecer retrico e insincero suspiro romntico. Mas, ao mesmo tempo, orienta sobre os caminhos acertados para conseguir o que dessa "justia social", possvel e justo conseguir, caminhos que no parecem passar por uma miservel socializao, mas dirigir-se em linha reta para um magnnimo solidarismo. Este ltimo vocbulo , alm do mais, inoperante, porque at hoje no se condensou nele um sistema enrgico de idias histricas e sociais, pelo contrrio ressuma s vagas filantropias. A primeira condio para um melhoramento da situao presente perceber bem sua enorme dificuldade. S isto nos levar a atacar o mal nos estratos fundos de onde verdadeiramente se origina. , com efeito, muito difcil salvar uma civilizao quando lhe chegou a hora de cair sob o poder dos demagogos. Os demagogos tm sido apenas os grandes estranguladores de civilizaes. A grega e a romana sucumbiram nas mos desta fauna repugnante, que fazia Macaulay exclamar: "Em todos os sculos, os exemplos mais vis da natureza humana deparam-se entre os demagogos" (17). Mas um homem no demagogo somente porque se ponha a gritar ante a multido. Isso pode ser em ocasies A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (16 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  17. 17. uma magistratura sacrossanta. A demagogia essencial do demagogo est dentro de sua mente, radica em sua irresponsabilidade ante as idias mesmas que maneja e que ele no criou, mas recebeu dos verdadeiros criadores. A demagogia uma forma de degenerao intelectual, que como amplo fenmeno da histria europia aparece na Frana em 1750. Por que ento? Por que na Frana? Este um dos pontos nevrlgicos do destino ocidental e especialmente do destino francs. Isso o que, desde ento, cr a Frana, e por sua irradiao, quase todo o continente, que o mtodo para resolver os grandes problemas humanos o mtodo da revoluo, entendendo por tal o que j Leibnitz chamava uma "revoluo geral" (18), a vontade de transformar de chofre tudo e em todos os gneros (19). Graas a isso essa maravilha que a Frana chega em ms condies difcil conjuntura do presente. Porque esse pas tem ou cr que tem uma tradio revolucionria. E se ser revolucionrio j coisa grave, quanto mais s-lo, paradoxalmente, por tradio! verdade que na Frana fez-se uma Grande Revoluo e vrias torvas ou ridculas; mas, se nos atemos verdade nua dos anais, o que encontramos que essas revolues serviram principalmente para que durante todo um sculo, salvo uns dias ou umas semanas, a Frana tenha vivido mais que outro qualquer povo sob formas polticas, em maior ou menor escala, autoritrias e contra-revolucionrias. Sobretudo, a grande depresso moral da histria francesa que foram os vinte anos do Segundo Imprio, deveu-se bem claramente extravagncia dos revolucionrios de 1848 (20), grande parte dos quais confessou o prprio Raspail que haviam sido antes clientes seus. Nas revolues tenta a abstrao sublevar-se contra o concreto; por isso consubstancial s revolues o fracasso. Os problemas humanos no so, como os astronmicos ou os qumicos, abstratos. So problemas de mxima concreo, porque so histricos. E o nico mtodo de pensamento que proporciona alguma probabilidade de acerto em sua manipulao a "razo histrica". Quando se contempla panoramicamente a vida pblica da Frana durante os ltimos cento e cinqenta anos, salta vista que seus gemetras, seus fsicos e seus mdicos se equivocaram sempre em seus juzos polticos, e que conseguiram ao contrrio, acertar seus historiadores. Mas o racionalismo fsico-matemtico tem sido na Frana demasiado glorioso para que no tiranize a opinio pblica. Malebranche rompe com um amigo seu porque viu sobre sua mesa um Tucdides (21). Estes meses passados, impelindo minha solido pelas ruas de Paris, compreendi que eu no conhecia ningum na grande cidade, salvo as esttuas. Algumas destas, entretanto, so velhas amizades, antigas incitaes ou perenes mestres de minha intimidade. E como no tinha com quem falar, conversei com elas sobre grandes temas humanos. No sei se algum dia sairo luz estas Conversaciones con estatuas, que dulcificaram uma etapa dolorosa e estril de minha vida. Nelas se raciocina com o marqus de Condorcet, que est no Quai Conti, sobre a perigosa idia do progresso. Com o pequeno busto de Comte que h em seu departamento da rue Monsieur-le-Prince falei sobre pouvoir spirituel, insuficientemente exercido por mandarins literrios e por uma Universidade que ficou completamente excntrica diante da efetiva vida das naes. Ao mesmo tempo tive a honra de receber o encargo de uma enrgica mensagem que esse busto dirige ao outro, ao grande, erigido na praa de Sorbonne, e que o busto do falso Comte, do oficial, do de Littr. Mas era natural que me interessasse sobretudo em ouvir uma vez mais a palavra do nosso sumo mestre Descartes, o homem a quem a Europa mais deve. O puro acaso que ciranda minha existncia fez que eu redija estas linhas tendo vista o lugar da Holanda em que habitou em 1642 o novo descobridor da raison. Este lugar, chamado Endageest, cujas A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (17 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  18. 18. rvores do sombra a minha janela, hoje um manicmio. Duas vezes ao dia - em admoestadora vizinhana - vejo passar os idiotas e os dementes que arejam por momentos intemprie sua malograda humanidade. Trs sculos de experincia "racionalista" obrigam-nos a rememorar o esplendor e os limites daquela prodigiosa raison cartesiana. Esta raison s matemtica, fsica, biolgica. Seus fabulosos triunfos sobre a natureza, superiores a quanto pudera sonhar-se, sublinham tanto mais seu fracasso ante os assuntos propriamente humanos e convidam a integr-la em outra razo mais radical, que a "razo histrica" (22). Esta nos mostra a vaidade de toda revoluo geral, de tudo quanto seja tentar a transformao sbita de uma sociedade e comear de novo a histria, como pretendiam os confusonrios do 89. Ao mtodo da revoluo ope o nico digno da larga experincia que o europeu atual tem atrs de si. As revolues to incontinentes em sua pressa, hipocritamente generosa, de proclamar direitos, violaram sempre, espezinhado e esfarrapado, o direito fundamental do homem, to fundamental que a definio mesma de sua substncia: o direito continuidade. A nica diferena radical entre a histria humana e a "histria natural" que aquela no pode nunca comear de novo. Khler e outros mostraram como o chimpanz e o orangotango no se diferenciam do homem pelo que, falando rigorosamente, chamamos inteligncia, mas porque tm muito menos memria que ns. Os pobres animais cada manh esquecem quase tudo que viveram no dia anterior, e seu intelecto tem de trabalhar sobre um mnimo material de experincias. Semelhantemente, o tigre de hoje idntico ao de seis mil anos, porque cada tigre tem de comear de novo a ser tigre, como se no houvesse outro antes. O homem, pelo contrrio, merc de seu poder de recordar, acumula seu prprio passado, possui-o e o aproveita. O homem no nunca um primeiro homem: comea desde logo a existir sobre certa altitude de pretrito amontoado. Este o tesouro nico do homem, seu privilgio e sua marca. E a riqueza menor desse tesouro consiste no que dele parea acertado e digno de conservar-se: o importante a memria dos erros, que nos permite no cometer os mesmos sempre. O verdadeiro tesouro do homem o tesouro dos seus erros, a extensa experincia vital decantada gota a gota em milnios. Por isso Nietzsche define o homem superior como o ser "de memria mais desenvolvida." Romper a continuidade com o passado, querer comear de novo, aspirar a descer e plagiar o orangotango. Apraz-me que seja um francs, Dupont-White, que em 1860 se atrevesse a clamar: "La continuit est un droit de l'homme; elle est un hommage tout ce qui le distingue de la bte" (23). Diante de mim est um jornal em que acabo de ler o relato das festas com que a Inglaterra celebrou a coroao do novo rei. Diz-se que h muito a Monarquia inglesa uma instituio meramente simblica. Isso verdade, mas dizendo-o assim deixamos escapar o melhor. Porque, efetivamente, a Monarquia no exerce no Imprio britnico nenhuma funo material e palpvel. Seu papel no governar, nem administrar a justia, nem mandar o Exrcito. Mas nem por isso uma instituio vazia, carente de servio. A Monarquia da Inglaterra exerce uma funo determinadssima e de alta eficcia: a de simbolizar. Por isso o povo ingls, com deliberado propsito, deu agora inusitada solenidade ao rito da coroao. Ante a turbulncia atual do continente quis afirmar as normas permanentes que regulam sua vida. Deu-nos mais uma lio. Como sempre - j que a Europa sempre pareceu um tropel de povos -, os continentais, cheios de gnio, mas isentos de serenidade, nunca maduros, sempre pueris, e ao fundo, atrs deles, a Inglaterra... como a nurse da Europa. A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (18 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  19. 19. Este o povo que sempre chegou antes ao porvir, que se antecipou a todos em quase todas as ordens. Praticamente deveramos omitir o quase. E eis aqui que este povo nos obriga, com certa impertinncia do mais puro dandysmo, a presenciar seu vetusto cerimonial e a ver como atuam - porque no deixaram nunca de ser atuais os mais velhos e mgicos utenslios de sua histria, a coroa e o cetro que entre ns regem apenas a sorte do baralho. O ingls faz empenho de nos fazer constar que seu passado, precisamente porque passou, porque lhe passou, continua existindo para ele. Desde um futuro ao qual no chegamos mostra-nos a vigncia lou de seu pretrito (24), Este povo circula por todo o seu tempo, verdadeiramente senhor de seus sculos, que conserva em ativa posse. E isso ser um povo de homens: poder hoje continuar no seu ontem sem por isso deixar de viver para o futuro, poder existir no verdadeiro presente, j que o presente s a presena do passado e do porvir, o lugar onde pretrito e futuro efetivamente existem. Com as festas simblicas da coroao, a Inglaterra ops, mais uma vez, ao mtodo revolucionrio o mtodo da continuidade, o nico que pode evitar na marcha das coisas humanas esse aspecto patolgico que faz da histria uma luta ilustre e perene entre os paralticos e os epilticos. V Como nestas pginas se faz a anatomia do homem hoje dominante, procedo partindo de seu aspecto externo, por assim dizer, de sua pele, e depois penetro um pouco mais em direo a suas vsceras. Da por que sejam os primeiros captulos os que mais caducaram. A pele do tempo mudou. O leitor deveria, ao ler esses captulos, retroceder aos anos 1926-1928. J comeou a crise na Europa, mas ainda parece uma de tantas. As pessoas ainda sentem-se em segurana. Ainda gozam os luxos da inflao. E, sobretudo, pensava-se: a est a Amrica! Era a Amrica da fabulosa prosperity. O nico do que vai dito nestas pginas que me inspira algum orgulho, no haver incorrido no inconcebvel erro de tica que sofreram ento quase todos os europeus, inclusive os prprios economistas. Porque no convm esquecer que ento se pensava mui seriamente que os americanos haviam descoberto outra organizao da vida que anulava para sempre as perptuas pragas humanas que so as crises. Eu me envergonhava de que os europeus, inventores do mais elevado que at agora se inventou - o sentido histrico -, mostrassem carecer dele completamente. O velho lugar comum de que a Amrica o porvir havia nublado por instantes sua perspiccia. Tive ento a coragem de me opor a semelhante deslize, sustentando que a Amrica, longe de ser o futuro, era, na realidade, um remoto passado porque era primitivismo. E, tambm contra o que se cr, era-o e o muito mais a Amrica do Norte do que a Amrica do Sul, a hispnica. Hoje a coisa vai sendo clara e os Estados Unidos no enviam j ao velho continente senhoritas para - como me dizia uma naquela ocasio - "convencer-se de que na Europa no h nada interessante" (25). Violentando-me isolei neste quase-livro, do problema total que e para o homem e especialmente para o homem europeu seu imediato porvir, um s fator: a caracterizao do homem mdio que hoje se vai apoderando de tudo. Isto me obrigou a um duro ascetismo, absteno de expressar minhas convices sobre tudo quanto toco de passagem. Mais ainda: a apresentar freqentemente as coisas em forma que se A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (19 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  20. 20. era a mais favorvel para aclarar o tema exclusivo deste estudo, era a pior para deixar ver minha opinio sobre estas coisas. Basta assinalar uma questo, embora fundamental. Medi o homem mdio quanto a sua capacidade para continuar a civilizao moderna e quanto a sua adeso cultura. Dir-se-ia que essas duas coisas - a civilizao e a cultura - no so para mim questes. A verdade que elas so precisamente o que ponho em questo quase desde meus primeiros estudos. Mas eu no devia complicar os assuntos. Qualquer que seja nossa atitude ante a civilizao e a cultura, est a, como um fator de primeira ordem com que se deve contar, a anomalia representada pelo homem-massa. Por isso urgia isolar cruamente seus sintomas. No deve, pois, o leitor francs esperar mais deste volume, que no , no final das contas, seno um ensaio de serenidade em meio tormenta. JOSE ORTEGA Y GASSET. "Het Witte Huis". Oegstgeest-Holanda, maio, 1937. PRIMEIRA PARTE A REBELIO DAS MASSAS I. O FATO DAS AGLOMERAES (26) H um fato que, para bem ou para mal, o mais importante na vida pblica europia da hora presente. Este fato o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definio, no devem nem podem dirigir sua prpria existncia, e menos reger a sociedade, quer dizer-se que a Europa sofre agora a mais grave crise que a povos, naes, culturas, cabe padecer. Esta crise sobreveio mais de uma vez na histria. Sua fisionomia e suas conseqncias so conhecidas. Tambm se conhece seu nome. Chama-se a rebelio das massas. Para a inteligncia do formidvel fato convm que se evite dar, desde j, s palavras "rebelio", "massas", "poderio social", etc. um significado exclusivo ou primariamente poltico. A vida pblica no s poltica, mas, ao mesmo tempo e ainda antes, intelectual, moral, econmica, religiosa; compreende todos os usos coletivos e inclui o modo de vestir e o modo de gozar. Talvez a melhor maneira de aproximar-se a este fenmeno histrico consista em referir-nos a uma experincia visual, sublinhando uma feio de nossa poca que visvel com os olhos da cara. Simplicssima de enunciar, ainda que no de analisar, eu a denomino o fato da aglomerao, do "cheio". As cidades esto cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotis cheios de hspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafs, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos mdicos famosos, cheias de enfermos. Os espetculos, desde que no sejam muito extemporneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes no era problema, comea a s-lo quase de contnuo: encontrar lugar. Nada mais. H fato mais simples, mais notrio, mais constante, na vida atual? Vamos agora puncionar o corpo trivial desta observao, e nos surpreender ver como dele brota um repuxo inesperado, onde a A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (20 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  21. 21. branca luz do dia, deste dia, do presente, se decompe em todo o seu rico cromatismo interior. Que o que vemos e ao v-lo nos surpreende tanto? Vemos a multido, como tal, possuidora dos locais e utenslios criados pela civilizao. Apenas refletimos um pouco, nos surpreendemos de nossa surpresa. Mas qu, no o ideal? O teatro tem suas localidades para que se ocupem; portanto, para que a sala esteja cheia. E do mesmo modo os assentos o vago ferrovirio e seus quartos o hotel. Sim; no h dvida. Mas o fato que antes nenhum destes estabelecimentos e veculos costumavam estar cheios, e agora transbordam, fica fora gente afanosa de usufru-los. Embora o fato seja lgico, natural, no se pode desconhecer que antes no acontecia e agora sim; portanto, que houve uma mudana, uma inovao, a qual justifica, pelo menos no primeiro momento, nossa surpresa. Surpreender-se, estranhar, comear a entender. E o esporte e o luxo especfico do intelectual. Por isso sua atitude gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo estranho e maravilhoso para umas pupilas bem abertas. Isso, maravilhar-se, a delcia vedada ao futebolista e que, ao contrrio, leva o intelectual pelo mundo em perptua embriaguez de visionrio. Seu atributo so os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pssaro com os olhos sempre deslumbrados. A aglomerao, ou cheio, antes no era freqente. Por que o agora? Os componentes dessas multides no surgiram do nada. Aproximadamente, o mesmo nmero de pessoas existia h quinze anos. Depois da guerra pareceria natural que esse nmero fosse menor. Aqui topamos, entretanto, com a primeira nota importante. Os indivduos que integram estas multides preexistiam, mas no como multido. Repartidos pelo mundo em pequenos grupos, ou solitrios, levavam uma vida, pelo visto, divergente, dissociada, distante. Cada qual - indivduo ou pequeno grupo - ocupava o lugar, talvez o seu, no campo, na aldeia, na vila, no bairro da grande cidade. Agora, de repente, aparecem sob a espcie de aglomerao, e nossos olhos vm por toda a parte multides. Por toda a parte? No, no; precisamente nos lugares melhores, criao realmente refinada da cultura humana, reservados antes a grupos menores, em definitiva, a minorias. A multido, de repente, tornou-se visvel, e instalou-se nos lugares preferentes da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenrio social; agora adiantou-se at s gambiarras, ela o personagem principal. J no h protagonistas: s h coro. O conceito de multido quantitativo e visual. Traduzamo-lo, sem alter-lo, terminologia sociolgica. Ento achamos a idia de massa social. A sociedade sempre uma unidade dinmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias so indivduos ou grupos de indivduos especialmente qualificados. A massa o conjunto de pessoas no especialmente qualificadas. No se entenda, pois, por massas s nem principalmente "as massas operrias ". Massa "o homem mdio". Deste modo se converte o que era meramente quantidade - a multido - numa determinao qualitativa: a qualidade comum, o mostrengo social, o homem enquanto no se diferencia de outros homens, mas que repete em si um tipo genrico. Que ganhamos com esta converso da quantidade para a qualidade? Muito simples: por meio desta compreendemos a gnese daquela. E evidente, at acaciano, que a formao normal de uma multido implica a coincidncia de desejos, idias, de modo de ser nos indivduos que a integram. Dir-se- que o que acontece com todo grupo social, por seleto que pretenda ser. Com efeito; A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (21 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  22. 22. mas h uma diferena essencial. Nos grupos que se caracterizam por no ser multido e massa, a coincidncia efetiva de seus membros consiste em algum desejo, idia ou ideal, que por si exclui o grande nmero. Para formar uma minoria, seja qual seja, preciso que antes cada qual se separe da multido por razes essenciais, relativamente individuais. Sua coincidncia com os outros que formam a minoria , pois, secundrio, posterior a haver-se cada qual singularizado, e , portanto, em boa parte uma coincidncia em no coincidir. H casos em que esse carter singularizador do grupo aparece a cu descoberto: os grupos ingleses que se chamam a si mesmos "no conformistas", isto , a agrupao dos que concordam s em sua desconformidade a respeito da multido ilimitada. Este ingrediente de juntarem-se os menos precisamente para separar-se dos demais vai sempre misturado na formao de toda minoria. Falando do reduzido pblico que ouvia um msico refinado, diz graciosamente Mallarm que aquele pblico salientava com a presena de sua escassez a ausncia multitudinria. A rigor, a massa pode definir-se, como fato psicolgico, sem necessidade de esperar que apaream os indivduos em aglomerao. Diante de uma s pessoa podemos saber se massa ou no. Massa todo aquele que no se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal - por razes especiais, mas que se sente "como todo o mundo", e, entretanto, no se angustia, sente-se vontade ao sentir-se idntico aos demais. Imagine-se um homem humilde que ao tentar valorizar-se por razes especiais - ao perguntar de si para si se tem talento para isto ou para aquilo, se sobressai em alguma ordem - adverte que no possui nenhuma qualidade excelente. Este homem sentir-se- medocre e vulgar, e mal dotado; mas no se sentir "massa". Quando se fala de "minorias seletas", a velhacaria habitual costuma tergiversar o sentido desta expresso, fingindo ignorar que o homem seleto no o petulante que se supe superior aos demais, mas o que exige mais de si que os demais, embora no consiga cumprir em sua pessoa essas exigncias superiores. E indubitvel que a diviso mais radical que cabe fazer na humanidade, esta em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que no exigem de si nada especial, mas que para elas viver ser em cada instante o que j so, sem esforo de perfeio em si mesmas, bias que vo deriva. Isto me lembra que o budismo ortodoxo se compe de duas religies distintas: uma, mais rigorosa e difcil; outra, mais frouxa e trivial; ou Mahayana - "grande veculo" ou "grande carril" - e o Hinayana - "pequeno veculo", "caminho menor". O decisivo se pomos nossa vida num ou no outro veculo, a um mximo de exigncias ou a um mnimo. A diviso da sociedade em massas ou minorias excelentes no , portanto, uma diviso em classes sociais, mas em classes de homens, e no pode coincidir com a jerarquizao em classes superiores e inferiores. Claro est que nas superiores, quando chegam a s-lo e enquanto o forem de verdade h mais verossimilitude em achar homens que adotam o "grande veculo", enquanto as inferiores esto normalmente constitudas por indivduos sem qualidade. Mas, a rigor, dentro de cada classe social h massa e minoria autntica. Como veremos, caracterstico do tempo o predomnio, ainda nos grupos cuja tradio era seletiva, da massa e do vulgo. Assim, na vida intelectual, que por sua prpria essncia requer e supe a qualificao, adverte-se o progressivo triunfo dos pseudo-intelectuais inqualificados, inqualificveis e desclassificados por sua prpria contextura. O mesmo nos grupos sobreviventes da "nobreza" masculina e feminina. A seu turno, no raro encontrar hoje entre os obreiros, que antes A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (22 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  23. 23. podiam valer como o exemplo mais puro disto que chamamos "massa", almas egregiamente disciplinadas. Ora bem: existem na sociedade operaes, atividades, funes da ordem mais diversa, que so, por sua mesma natureza, especiais, e, conseqentemente, no podem ser bem executadas sem dotes tambm especiais. Por exemplo: certos prazeres de carter artstico e luxuoso, ou bem as funes de governo e de juzo poltico sobre os assuntos pblicos. Antes eram exercidas estas atividades especiais por minorias qualificadas - qualificadas, pelo menos, em pretenso -. A massa no pretendia intervir nelas: percebia-se que se queria intervir teria congruentemente de adquirir esses dotes especiais e deixar de ser massa. Conhecia seu papel numa saudvel dinmica social. Se agora retrocedermos aos fatos enunciados a princpio, eles nos aparecero inequivocamente como nncios de uma mudana de atitude na massa. Todos eles indicam que esta resolveu avanar para o primeiro plano social e ocupar os locais e usar os utenslios e gozar dos prazeres antes adstritos aos poucos. evidente que, por exemplo, os locais no estavam premeditados para as multides, posto que sua dimenso seja muito reduzida e o povo transborde constantemente deles, demonstrando aos olhos e com linguagem visvel o fato novo: a massa, que, sem deixar de s-lo, suplanta as minorias. Ningum, creio eu, deplorar que as pessoas gozem hoje em maior medida e nmero que antes, j que tm para isso os apetites e os meios. O mal que esta deciso tomada pelas massas de assumir as atividades prprias das minorias, no se manifesta, nem pode manifestar-se, s na ordem dos prazeres, mas que uma maneira geral do tempo. Assim - antecipando o que logo veremos -, creio que as inovaes polticas dos mais recentes anos no significam outra coisa seno o imprio poltico das massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo pela lei. Ao servir a estes princpios o indivduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina difcil. Ao amparo do princpio liberal e da norma jurdica podiam atuar e viver as minorias. Democracia e Lei, convivncia legal, eram sinnimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa atua diretamente sem lei, por meio de presses materiais, impondo suas aspiraes e seus gostos. falso interpretar as situaes novas como se a massa se houvesse cansado da poltica e encarregasse a pessoas especiais seu exerccio. Pelo contrrio. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que, no final das contas, com todos os seus defeitos e vcios, as minorias dos polticos entendiam um pouco mais dos problemas pblicos que ela. Agora, por sua vez, a massa cr que tem direito a impor e dar vigor de lei a seus tpicos de caf. Eu duvido que tenha havido outras pocas da histria em que a multido chegasse a governar to diretamente como em nosso tempo. Por isso falo de hiperdemocracia. O mesmo acontece nas demais ordens, muito especialmente na intelectual. Talvez cometa eu um erro; mas o escritor, ao tomar da pena para escrever sobre um tema que estudou intensamente, deve pensar que o leitor mdio, que nunca se ocupou do assunto, se o l, no com o fim de aprender algo dele, mas, pelo contrrio, para sentenciar sobre ele quando no coincide com as vulgaridades que este leitor tem na cabea. Se os indivduos que integram a massa se acreditassem especialmente dotados, teramos no mais de um caso de erro pessoal, mas no uma subverso sociolgica. O caracterstico do momento que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito de vulgaridade e o impe por toda a parte. Como se diz na Amrica do Norte: ser diferente indecente. A massa atropela tudo que diferente, egrgio, individual, qualificado e seleto. Quem no seja como todo o mundo, quem no pense como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado. E claro est que esse "todo o mundo" no "todo o A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (23 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  24. 24. mundo". "Todo o mundo" era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes, especiais. Agora todo o mundo s a massa. II. A ASCENSO DO NVEL HISTRICO Este o fato formidvel do nosso tempo, descrito sem ocultar a brutalidade de sua aparncia. , ademais, de uma absoluta novidade na histria de nossa civilizao. Jamais, em todo o seu desenvolvimento, aconteceu nada semelhante. Se temos de achar algo semelhante, teramos de pular fora de nossa histria e submergir-nos em um orbe, em um elemento vital, completamente diferente do nosso; teramos de insinuar-nos no mundo antigo, e chegar a sua hora de declinao. A histria do Imprio romano tambm a histria da subverso, do imprio das massas que absorvem e anulam as minorias dirigentes e se colocam em seu lugar. Ento se produz tambm o fenmeno da aglomerao, do cheio. Por isso, como observou muito bem Spengler, foi preciso construir, como se faz agora, edifcios enormes. A poca das massas a poca do colossal (27). Vivemos sob o brutal imprio das massas. Perfeitamente; j chamamos duas vezes "brutal" a este imprio, j pagamos nosso tributo ao deus dos tpicos; agora, com o bilhete na mo, podemos alegremente ingressar no tema, ver por dentro o espetculo. Ou supunha-se que eu ia contentar-me com essa descrio, talvez exata, mas externa, que s a fachada, o frontispcio sob os quais se apresenta o fato tremendo quando olhado desde o passado? Se eu deixasse aqui este assunto e estrangulasse meu presente ensaio, ficaria o leitor pensando, muito justamente, que este fabuloso advento das massas superfcie da histria no me inspirava outra coisa seno algumas palavras displicentes, desdenhosas, um pouco de abominao e outro pouco de repugnncia; a mim, de quem notrio que sustento uma interpretao da histria radicalmente aristocrtica (28) radical, porque eu no disse nunca que a sociedade humana deva ser aristocrtica, mas muito mais que isso. Eu disse e continuo crendo, cada dia com mais enrgica convico, que a sociedade humana aristocrtica sempre, queira ou no, por sua prpria essncia, at o ponto de que sociedade na medida em que seja aristocrtica, e deixa de s-lo na medida em que se desaristocratize. Bem entendido que falo da sociedade e no do Estado. Ningum pode acreditar que diante deste fabuloso encrespamento da massa, seja o aristocrtico contentar-se com fazer um breve trejeito amaneirado, como um fidalgote de Versalhes. Versalhes - entende-se esse Versalhes dos trejeitos - no aristocracia, o seu oposto: a morte e a putrefao de uma magnfica aristocracia. Por isso, de verdadeiramente aristocrtico s restava naqueles seres a graa digna com que sabiam receber em seu pescoo a visita da guilhotina; aceitavam-na como o tumor aceita o bisturi. No: a quem sinta a misso profunda das aristocracias, o espetculo da massa o incita e aviva como ao escultor a presena do mrmore virgem. A aristocracia social no se parece nada a esse grupo reduzidssimo que pretende assumir para si ntegro o nome de "sociedade", que se chama a si mesmo "a sociedade" e que vive simplesmente de convidar-se ou de no convidar-se. Como tudo no mundo tem sua virtude e sua misso, tambm tem as suas dentro do vasto mundo este pequeno "mundo elegante", mas uma misso muito subalterna e incomparvel com a faina herclea das autnticas aristocracias. Eu no teria inconveniente em falar sobre o sentido que possui essa vida elegante, em aparncia to sem sentido; mas nosso tema agora outro de maiores propores. Certamente que essa mesma "sociedade distinta" est de acordo com o tempo. Muito me fez meditar certa damazinha em flor, toda juventude e atualidade, estrela de primeira grandeza no zodaco da elegncia madrilenha, porque me disse: "Eu no tolero um A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (24 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  25. 25. baile ao qual tenham sido convidadas menos de oitocentas pessoas". Atravs desta frase vi que o estilo das massas triunfa hoje sobre toda a rea da vida e se impe ainda naqueles ltimos rinces que pareciam reservados aos happy few. Repilo, pois, igualmente, toda interpretao de nosso tempo que no descubra a significao positiva oculta sob o atual imprio das massas e das que o aceitam, beatamente, sem estremecer de espanto. Todo destino dramtico e trgico em sua profunda dimenso. Quem no tenha sentido na mo palpitar o perigo do tempo, no chegou entranha do destino, no fez mais seno acariciar sua mrbida face. No nosso, o ingrediente terrvel posto pela atropelante e violenta sublevao moral das massas, imponente, indomvel e equvoca como todo destino. Para onde nos leva? um mal absoluto, ou um bem possvel? A est, colossal, instalada sobre nosso tempo como um gigante, csmico sinal de interrogao, o qual tem sempre uma forma equvoca, com algo, efetivamente, de guilhotina ou de forca mas tambm com algo que quisera ser um arco triunfal! O fato de que necessitamos submeter a anatomia pode formular-se sob estas duas rubricas: primeira, as massas exercitam hoje um repertrio vital que coincide, em grande parte, com o que antes parecia reservado exclusivamente s minorias; segunda, ao mesmo tempo as massas tornaram-se indceis diante das minorias; no lhes obedecem, no as seguem, no as respeitam, mas, pelo contrrio, as puseram de lado e as suplantam. Analisemos a primeira rubrica. Quero dizer com ela que as massas gozam dos prazeres e usam os utenslios inventados pelos grupos seletos e que antes s estes usufruam. Sentem apetites e necessidades que antes se qualificavam de refinamentos, porque eram patrimnios de poucos. Um exemplo trivial: em 1820 no havia em Paris dez quartos de banho em casas particulares; vejam-se as Memrias da comtesse de Boigne. Mais ainda: as massas conhecem e empregam hoje, com relativa suficincia, muitas das tcnicas que antes s os indivduos especializados manejavam. E no apenas as tcnicas materiais, mas, o que mais importante, as tcnicas jurdicas e sociais. No sculo XVIII, certas minorias descobriram que todo indivduo humano, pelo mero fato de nascer, e sem necessidade de qualificao alguma, possua certos direitos polticos fundamentais, os chamados direitos do homem e do cidado, e que, a rigor, estes direitos comuns a todos so os nicos existentes. Todo outro direito imposto a dotes especiais ficava condenado como privilgio. Isto foi, primeiro, um puro teorema e idia de uns poucos; depois, esses poucos comearam a usar praticamente dessa idia, a imp-la e reclam-la: as minorias melhores. No obstante, durante todo o sculo XIX a massa, que se ia entusiasmando com a idia desses direitos como com um ideal, no os sentia em si, no os exercitava nem fazia valer seno de fato, sob as legislaes democrticas, continuava vivendo, continuava sentindo-se a si mesma como no antigo regime. O "povo" - segundo ento era chamado -, o "povo" sabia j que era soberano; mas no acreditava nisso. Hoje aquele ideal converteu-se numa realidade, no j nas legislaes, que so esquemas externos da vida pblica, mas no corao de todo indivduo, quaisquer que sejam as suas idias, inclusive quando as suas idias so reacionrias; quer dizer, inclusive quando esmaga e tritura as instituies onde aqueles direitos se sancionam. A meu juzo, quem no entende esta curiosa situao das massas no pode compreender nada do que hoje comea a acontecer no mundo. A soberania do indivduo no qualificado, do indivduo humano genrico e como tal, passou, de idia ou ideal jurdico que era, a ser um estado psicolgico constitutivo do homem mdio. E note-se bem: quando algo que foi ideal se faz ingrediente da realidade, inexoravelmente deixa de ser ideal. O prestgio e a magia autorizante, que so atributos do ideal, que so seu efeito sobre o homem, se volatilizam. Os A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (25 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  26. 26. direitos niveladores da generosa inspirao democrtica converteram-se, de aspiraes de ideais, em apetites de supostos inconscientes. Ora bem: o sentido daqueles direitos no era outro seno tirar as almas humanas de sua interna servido e proclamar dentro delas certa conscincia de senhorio e dignidade. No era isto que se queria? Que o homem mdio se sentisse amo, dono, senhor de si mesmo e de sua vida? J est conseguido. Por que se queixam os liberais, os democratas, os progressistas de h 30 anos? Ou que, como os meninos querem uma coisa, mas no suas conseqncias? Quer-se que o homem mdio seja senhor. Ento no estranhe que atue por si, que reclame todos os prazeres, que imponha decidido sua vontade, que se negue a toda servido, que no continue dcil, que cuide de sua pessoa e seus cios, que componha sua indumentria: so alguns dos atributos perenes que acompanham a conscincia de senhorio. Hoje os achamos residindo no homem mdio, na massa. Julgamos pois, que a vida do homem mdio est agora constituda pelo repertrio vital que antes caracterizava s as minorias culminantes. Ora bem: o homem mdio representa a rea sobre que se move a histria de cada poca; na histria o que o nvel do mar na geografia. Se, pois, o nvel mdio se acha hoje onde antes s tocavam as aristocracias, quer dizer-se lisa e lhanamente que o nvel da histria ascendeu de repente - depois de largas e subterrneas preparaes, mas em sua manifestao, de repente -, de um salto, numa gerao. A vida humana, em totalidade, ascendeu. O soldado do dia, diramos, tem muito de capito; o exrcito humano se compe j de capites. Basta ver a energia, a resoluo, o desembarao com que qualquer indivduo luta hoje pela existncia, agarra o prazer que passa, impe sua deciso. Todo o bem, todo o mal do presente e do imediato porvir tem neste ascenso geral do nvel histrico sua causa e sua raiz. Mas agora nos ocorre uma advertncia impremeditada. Isso, que o nvel mdio da vida seja o das antigas minorias, um fato novo na histria; mas era o fato nativo, constitucional, da Amrica. Pense o leitor, para ver clara minha inteno, na conscincia de igualdade jurdica. Esse estado psicolgico de sentir-se amo e senhor de si e igual a qualquer outro indivduo, que na Europa s os grupos preeminentes conseguiam adquirir, o que desde o sculo XVIII, praticamente desde sempre, acontecia na Amrica. E nova coincidncia, ainda mais curiosa! Ao aparecer na Europa esse estado psicolgico do homem mdio, ao subir o nvel de sua existncia integral, o tom e maneiras da vida europia em todas as ordens adquire de repente uma fisionomia que fez muitos dizer: "A Europa est se americanizando". Os que isto diziam no davam ao fenmeno importncia maior; acreditavam que se tratava de uma leve mudana nos costumes, de uma moda, e, desorientados pelo parecido externo, o atribuam a no se sabe que influxo da Amrica na Europa. Com isso, a meu juzo, banalizou-se a questo, que muito mais sutil e surpreendente e profunda. A galanteria tenta agora subornar-me para que eu diga aos homens de Ultramar que, com efeito, a Europa se americanizou e que isto devido a um influxo da Amrica na Europa. Mas no: a verdade entra agora em coliso com a galanteria, e deve triunfar. A Europa no se americanizou. No recebeu ainda influxo grande da Amrica. Tanto um como outro, eventualmente, iniciam-se agora mesmo; mas no se produziram no prximo passado, de que o presente broto. H aqui um cmulo desesperante de idias falsas que nos estorvam a viso tanto aos americanos como aos europeus. O triunfo das massas e a conseguinte magnfica ascenso de nvel vital aconteceu na Europa por razes internas, depois de dois A rebelio das massas. file:///C|/site/livros_gratis/rebeliao_massas.htm (26 of 139) [7/11/2001 21:34:38]
  27. 27. sculos de educao progressista das multides e de um paralelo enriquecimento econmico da sociedade. Mas isso que o resultado coincide com o trao mais decisivo da existncia americana; e por isso, porque coincide a situao moral do homem mdio europeu com a do americano, aconteceu que pela primeira vez o europeu entende a vida americana, que antes lhe era um enigma e um mistrio. No se trata, pois, de um influxo, que seria um pouco estranho, que seria um refluxo, mas do que menos se suspeita ainda: trata-se de uma nivelao. Desde sempre se entrevia obscuramente pelos europeus que o nvel mdio da vida era mais alto na Amrica que no velho continente. A intuio, pouco analtica, mas evidente deste fato, deu origem idia, sempre aceita, nunca posta em dvida, de que a Amrica era o porvir. Compreender-se- que idia to ampla e to arraigada no podia vir do vento, como dizem que as orqudeas se criam sem razes no ar. O fundamento era aquela entreviso de um nvel mais elevado na vida mdia de Ultramar, que contrastava com o nvel inferior das minorias melhores da Amrica comparadas com as europias. Mas a histria, como a agricultura, nutre-se dos vales e no dos cumes, da altitude mdia social e no das eminncias. Vivemos em tempo de nivelaes: nivelam-se as fortunas, nivela-se a cultura entre as diferentes classes sociais, nivelam-se os sexos. Pois bem: tambm se nivelam os continentes. E como o europeu se achava vitalmente mais baixo, nesta nivelao no fez seno ganhar. Portanto, olhada deste lado, a subverso das massas significa um fabuloso aumento de vitalidade e possibilidades; tudo ao contrrio, pois, do que ouvimos to amide sobre a decadncia da Europa. Frase confusa e tosca, onde no se sabe bem de que se fala, se dos Estados europeus, da cultura europia ou do que est sob tudo isso e importa infinitamente mais que tudo isto, a saber: da vitalidade europia. Dos Estados e da cultura europia diremos algum vo