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João Pessoa UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LINGUAGEM E ENSINO A RECEPÇÃO DE MANUEL BANDEIRA NA SALA DE AULA : Entre a fragmentação de poemas e a libertação do lirismo MESTRANDO: PLÍNIO ROGENES DE FRANÇA DIAS ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ HÉLDER PINHEIRO ALVES JOÃO PESSOA MAIO DE 2007

A Recepção de Manuel Bandeira Na Sala de Aula: entre a

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João Pessoa UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LINGUAGEM E ENSINO

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MESTRANDO: PLÍNIO ROGENES DE FRANÇA DIAS

ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ HÉLDER PINHEIRO ALVES

JOÃO PESSOA MAIO DE 2007

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PLÍNIO ROGENES DE FRANÇA DIAS

A RECEPÇÃO DE MANUEL BANDEIRA NA SALA DE AULA:

Entre a fragmentação de poemas e a libertação do lirismo

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Letras. Área de Concentração: Linguagem e Ensino. Orientador: Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves.

JOÃO PESSOA MAIO DE 2007

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D541r Dias, Plínio Rogenes de França. A recepção de Manuel Bandeira na sala de

aula: entre a fragmentação de poemas e a libertação do lirismo / Plínio Rogenes de França Dias. João Pessoa, 2007.

140 p. Orientador: José Hélder Pinheiro Alves Dissertação (mestrado) UFPB/CCHLA 1. Literatura brasileira. 2. Poesia Manuel

Bandeira. 3. Literatura ensino

UFPB/BC

CDU: 821.134.3(81)(043)

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Dedico esta pesquisa e toda minha formação aos educandos, razão de ser do meu trabalho

e condição de existência do meu sonho por um mundo melhor.

Dedico meus esforços e orgulho de minhas vitórias à lembrança daqueles que não

podem participar materialmente delas hoje: meu pai, Francisco das Chagas Cavalcante

Dias, e meu irmão, Ronald França Dias.

Dedico minha vocação à minha mãe, Maria Anízia de França, que me ensinou o sublime

e a doação.

Dedico o que sou a quem me completa: Clédia Inês Matos Veras

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Gonzaguinha pois sinto sua poesia em mim: E aprendi que se depende sempre de tanta muita diferente gente. Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas (in Pessoa = pessoas). É impossível, para mim, reconhecer tudo o que aprendi e com quem aprendi nesses anos de formação humana e formação pedagógica. Porém, tento aqui fazer, ora fácil, ora leve, um esforço de agradecimento àqueles e àquelas que carrego dentro de mim como verdadeiros tesouros para a vida: Agradeço a meus familiares, queridos e de quem tenho muitas saudades: meus avós, padrinhos, tios e primos, além de sogro, sogra e cunhados. Família grande, do tamanho da minha felicidade quando estou com ela. Agradeço a meus amigos de vida e de consolos, que muitas vezes estiveram ao meu lado contra tudo e contra todos. Agradeço aos meus novos amigos, construídos e aprendidos no dia-a-dia da pós-graduação:

Vlader e Fabíola; Josivaldo, Hildênia, Edvânea, Brígida, Fábio e Moama; Zonda, Fanka, Bernardina e Andréia. Agradeço a vocês, professores, que um dia me ensinaram e/ ou hoje são meus companheiros de trabalho: Profa. Leoneide; profa. Priscila; Prof. Frâncio; Prof. Alfredo Codevilla; Prof. Antônio; Prof. Pedro Nunes e companheiros do fazer pedagógico cotidiano, principalmente ao prof. Túlio, pelo espaço e grande apoio no momento crucial; Tia Áurea; Profa. Arminda Serpa; Profa. Maria Luíza Amorim; Profa. Lena Espíndola; e, especialmente, meu professor-pai, Prof. Morais. Ao PPGL e aos professores que compartilharam sua sabedoria comigo nesse período do mestrado: Profa. Elisalva Madruga Dantas; Prof. Diógenes Maciel; Profa. Ana Cristina Marinho Lúcio; Profa. Genilda Azeredo; Profa. Wilma Mendonça e Profa. Fátima Batista. Agradeço de coração, a vocês, professores, que aceitaram me avaliar, na qualificação e na defesa, e que souberam e saberão reconhecer com sinceridade em meu texto as falhas e as qualidades que me farão crescer, Profa. Genilda Azeredo; Profa. Marta Nóbrega; Profa. Socorro Barbosa e Prof. Humberto Hermenegildo de Araújo. Agradeço a você, excelente professor Hélder Pinheiro, meu orientador e já um grande amigo, homem em que pesam o diálogo, a simplicidade e a compreensão, e cuja voz faz com que eu acredite que a poesia ainda pode fazer diferença na humanidade. Agradeço a você, Clédia, minha amada, minha amiga e minha amante, companheira de tantas realidades diárias e que constrói comigo uma realidade cada dia mais feliz, porque me mostra que o sonho pode ser real! Por me dar esperança e também porque cedo ou tarde vai enriquecer minha existência com os filhos! Agradeço à senhora, mãe, porque é o meu espelho e sou o seu espelho. Porque a senhora é tudo que sou e tudo que serei. Porque um dia poderiam faltar todas as coisas na minha vida e uma única coisa me sustentaria: o seu amor por mim, e o meu orgulho de ti! Agradeço a Deus por tudo isso que acima agradeci, e mais nada preciso dizer, porque no absoluto amor, palavras não se pronunciam...

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Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar... José Saramago. In: A Caverna. (p. 76)

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RESUMO

Com a presente dissertação, venho discutir teorias e práticas que fazem parte do cotidiano pedagógico da disciplina literatura em salas de aula do ensino médio. Contextualizando a minha realidade dentro de escola particular, procuro refletir sobre questões que perpassam a práxis de professores e estudiosos. O problema central de todo este trabalho diz respeito à aplicabilidade do conteúdo de história da literatura na formação de leitores pela escola. A partir da identificação dos problemas que envolvem a metodologia e o currículo no ensino médio, focalizo a fragmentação do texto poético como um dos problemas mais graves do nosso trabalho. Esse problema se manifesta sobretudo nos livros didáticos e demonstra o caráter de pura informatividade com que a disciplina vem sendo administrada. Daí que faço um estudo de caso sobre um livro didático, analisando a abordagem que ele faz de um poeta que compõe o cânone literário brasileiro

Manuel Bandeira. Mostro, com uma interpretação dos poemas Os Sapos e Poética , que a história da literatura se constrói a partir da leitura e não necessariamente das informações prévias que os livros didáticos veiculam sobre o autor e seu contexto. Essa idéia se confirmou na aplicação dos poemas em salas de aula de terceiro e de primeiro ano, nas quais utilizo uma abordagem recepcional com estratégias diferentes de apresentação dos textos aos jovens leitores.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de literatura; Livro didático; Poesia de Manuel Bandeira; Fragmentação.

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ABSTRACT

Through this dissertation, I hope to discuss the theories and practices that are involved in the daily pedagogical exercises of Literature in the secondary school classroom. Contextualizing my reality inside a high school classroom, I try to reflect on questions as far as teachers and scholars are concerned. The main problem of this work is on the applicability of the history of literature in the formation of readers by the school. From the moment the problem involving methodology and the high school curriculum was identified, focusing on the fragmentation of poetic texts as one of the most serious problems in our work. This problem is clearly demonstrated in didactic books and demonstrates the character of pure informativity with which this discipline is being administrated. This is the main reason as to why this case studies on a didactic book, analyzing its approach towards a poet, the Brazilian literary canon

Manuel Bandeira. I am trying to show through the interpretation of the poems Os Sapos and Poética , that the history of literature is constructed through the practice of reading, but not necessarily from the previous information on the author and his context. This idea is confirmed through the application of poems in classrooms of the first and the third years, where I use a receptive approach with different text presentation strategies to young readers.

KEYWORDS: literature teaching; didactic book; lyric poetry of Manuel Bandeira; fragmentation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................10

1º CAPÍTULO LITERATURA E ESCOLA: UMA PRÁTICA ENTRE TEORIAS.............................15

1.1. As vozes da leitura literária e a história da literatura na prática escolar .....................................16 1.2. A estranha voz cristalizada..........................................................................................................29 1.3. A recepção e o efeito da leitura e da história da literatura ..........................................................37

2º CAPÍTULO A LEITURA DE MANUEL BANDEIRA ENTRE A FRAGMENTAÇÃO E A LIBERTAÇÃO DO LIRISMO......................................................................................48

2.1. Lendo Manuel Bandeira. Libertando o lirismo. ..........................................................................49 2.2. Marginalizando do texto o que está retratado no texto como marginal. .....................................59 2.3. O sorriso e a exclusão da sociedade na história da literatura ......................................................65

3º CAPÍTULO POSSIBILIDADES E LIMITES ...................................................................................71

3.1. No espaço instituído....................................................................................................................72 3.2. Outro espaço. Outras leituras ......................................................................................................84

3.2.1. Identificação e ruptura com o Horizonte de Expectativas ...................................................86 3.2.2. O retorno da historicidade e as barreiras da metalinguagem .............................................100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................115

ANEXOS .....................................................................................................................120 Anexo 1: Plano de Aplicação Didática - 3º ano do Ensino Médio ..............................................121 Anexo 2: Material didático extraído do livro Português (Faraco & Moura) - Série Novo Ensino Médio. ..........................................................................................................................................122 Anexo 3: Plano de Aplicação Didática - 1º ano do Ensino Médio ..............................................125 Anexo 4: Antologia aplicada ao 1º ano do Ensino Médio ...........................................................126 Anexo 5: Questão proposta em prova de 1º ano sobre Poética ...................................................130 Anexo 6: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque o poema apresenta linguagem difícil ...............................................................................131 Anexo 7: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque discordam da opinião do poeta/eu-lírico..........................................................................132 Anexo 8: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque preferem formas tradicionais de versificação ..................................................................134 Anexo 9: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua aprovação do poema...........................................................................................................................................135 Anexo 10: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando respostas originais sobre o poema ...............................................................................................................137 Anexo 11: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando a má interpretação das idéias......................................................................................................................................139

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INTRODUÇÃO

Trabalho numa escola particular de grande porte da cidade de João Pessoa -

PB. Ensino especificamente literatura para oito turmas de primeira série do Ensino

Médio. Em nossa escola, o aluno já tem contato com essa disciplina na oitava série do

Ensino Fundamental e, além disso, assiste a aulas específicas para interpretação de

texto, aulas estas que são mais voltadas para o estudo das obras do vestibular. Situo

minha realidade escolar por julgá-la importante na definição dos problemas que

direcionam este trabalho como relato de experiência e como teorização para o ensino.

Além do que, como ressalta Maria Célia Ribeiro da Silva, destacando a importância da

observação do contexto para a construção de pesquisas em literatura e ensino:

Pode-se começar a definir a experiência com o texto literário (re)conhecendo a situação concreta em que vivem aluno e professor-pesquisador. No caso do aluno, interessa investigar qual a natureza do meio social em que vive, qual a sua procedência econômica, que imaginário ou expectativas guarda em relação à aula de literatura ou, em especial, ao texto literário em si, que dificuldades apresenta na qualidade de leitor iniciante desse tipo de texto (2003, p. 127).

Dentro da realidade descrita e assim como qualquer professor, vivencio

vários problemas que interferem sobre minha prática de maneira peculiar, entre eles:

uma aparente falta de sintonia entre as avaliações e as expectativas dos alunos; o pouco

relacionamento entre os professores até dentro da própria disciplina (indo à direção

oposta à interdisciplinaridade); a pouca leitura.

Quando escutados, os jovens manifestam suas próprias angústias. Em alguns

casos, alunos de boa participação chegam a dizer: estudei bastante, passei em todas as

matérias e não consegui passar na prova de Literatura . É claro que afirmações como

estas assustam qualquer professor preocupado com o rendimento de seu trabalho. Para

alguns, seria mais fácil seguir o senso comum e afirmar categoricamente que esses

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jovens de hoje não querem mais estudar, passam o dia brincando ou batendo papo na

internet e nem querem se interessar por ler . Para questionar, em parte, tais posturas,

farei aqui um cotejamento de dados, levantados por questionário e observação

participante, que discutirão o problema da leitura nessa realidade e, em seguida,

buscarei aprofundar a discussão através do cruzamento de teorias sobre o livro didático

e os estudos da recepção da obra literária.

Ao escutar dos meus alunos alguns dos comentários como o citado mais

acima, procuro explicar, em linhas gerais, que aprender literatura requer mais do que

somente o gesto de estudar o livro didático ou anotações de caderno. Isso seria

entender nosso trabalho como o de gestores de informação . E é isso que se critica na

escola tradicional: o seu caráter de transmissão de conteúdos. A aprendizagem da

Literatura exige mais: exige leitura, como um ato indispensável ao viver em sociedade.

E leitura literária, por sua vez, não acontece sem um exercício mental de interpretação,

realizado lado a lado com o estímulo sensorial à experiência com os dramas humanos

representados no texto. No dizer de Janilto Andrade: A relação leitor-texto artístico dá

origem a uma experiência cognitiva cuja discussão envolve, de um lado, a vivência

prazerosa do sujeito, do outro, a capacidade criativa da palavra na obra

(2001, p. 14).

Daí que, em sala de aula, várias vezes escuto comentários como ele viaja

demais . Na comunidade que meus alunos criaram sobre mim, no site de

relacionamentos Orkut, perguntada sobre o que gosta em meu trabalho, uma aluna

afirma: as viagens mirabolantes que só ele consegue fazer tentando encontrar

explicação para aqueles poemas toscos 1.

A aluna afirma gostar das viagens , mas está claramente expresso o seu

desgosto pelos poemas. Não me contenta, então, que alunos gostem de uma ou outra

aula e não gostem do texto literário. E ainda me questiono: se realizo viagens

1 O comentário pode ser acessado no endereço eletrônico: http://www.orkut.com/community.aspx?cmm=5242161. Já são vários professores homenageados ou criticados nas comunidades do Orkut. Acredito que não devemos ignorar essa realidade e que, direta ou indiretamente, pode indicar variadas representações e relações entre professores e alunos.

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mirabolantes , estarei extrapolando os limites interpretativos do poema? Ou por outra

percepção: se interpreto os poemas de acordo com os seus sentidos permitidos, o que

falta para meus alunos acompanharem essa interpretação? E, além do mais: Será que

estou fechando para os alunos o espaço para eles próprios interpretarem? Ou será que

eles (alguns ou vários, mas nunca todos) não querem concretizar, através do esforço e

da sensibilidade, alguma interpretação sobre os textos que lhes são apresentados?

Essas questões têm apontado para a existência de um grande choque que

perpassa o ensino de literatura e que diz respeito às diferenças entre o modo de leitura

dos estudantes e a aplicabilidade dos conteúdos de ensino de literatura. Os dados

numéricos e as falas dos alunos que reproduzirei aqui nos apontarão para essa

dicotomia. Já o decorrer dos passos de nossa pesquisa procurará discutir a necessidade

de revisão de ambos. Ou seja, é preciso focalizar o problema na composição

curricular (1º capítulo) e na formação do aluno (3º capítulo).

Daí que uma categoria fundamental desta pesquisa se baseie na

fragmentação do texto poético. Se o conteúdo da disciplina se pauta nessa

configuração do seu objeto de estudo mais elementar, o que se espera que o aluno

apreenda? A resposta mais imediata que podemos aferir é informação. É por isso que

o nosso olhar se volta para a formação do leitor nesse contexto. Sem a efetiva vivência

com o texto literário, haverá experiência estética na formação dos nossos alunos?

Concordamos com Luiz Percival Leme Britto quando este questiona o caráter

informativo das práticas leitoras na formação efetiva de leitores:

Não se pretende (...) sugerir que tais práticas leitoras não produzam conhecimento, mas sim que o conhecimento que produzem é essencialmente aceitação de uma representação de mundo em que as coisas são naturalmente como são (2001, p. 88).

As atividades que serão aqui detalhadas na tentativa de discutir essas

questões têm exigido um referencial que privilegie a recepção. Nesse caso, procurei

realizar uma aproximação dos dados colhidos com interpretações baseadas na teoria da

estética da recepção e nos debates entre literatura, ensino e história.

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No primeiro capítulo, percorro teorias e práticas que cercam nossa atividade

para questionar o estatuto da disciplina literatura e sua principal vertente no ensino,

qual seja, a história da literatura. Procuro definir uma posição dialética dentro de uma

dicotomia entre a afirmação ou a negação desse conteúdo no ensino médio. O caminho

aqui adotado observa as vozes implicadas na aula de literatura (do aluno, a minha, a da

escola, do livro didático, dos Parâmetros Curriculares Nacionais) através da

observação participante para chegar a uma construção teórica com a estética da

recepção.

A respeito desse paradigma teórico, o percurso metodológico desta pesquisa

evidenciou, durante o seu correr, uma questão, a meu ver, pouco discutida sobre

metodologia de pesquisa em literatura e ensino: não foram de todo claras (pelo menos

para mim) as diferenças entre método de pesquisa, método de aplicação em sala de

aula

e método de análise dos poemas. No caso deste trabalho, as proposições da

chamada Escola de Constança

contribuíram mais fortemente como método de

pesquisa e de análise das falas dos sujeitos da sala de aula, pela possibilidade que ela

abre para compreender as elaborações do leitor sobre a obra literária.

Essas elaborações permitem analisar o problema da história da literatura de

vários pontos de vista, cada um se evidenciando em uma parte diferente deste trabalho.

No segundo capítulo, realizo, a partir da análise literária, uma percepção, na

leitura, dos prejuízos da apresentação fragmentada de poemas pelos livros didáticos.

Para isso, foi estabelecido um recorte de um autor (Manuel Bandeira) no livro didático

adotado na escola em que leciono. Os poemas em destaque

Poética e Os Sapos

permitem uma interpretação que exige do jovem leitor mais do que as informações

prévias (de natureza historicista) que os livros didáticos comumente oferecem. Porém,

os mesmos textos evidenciam a necessidade de um recorte histórico para uma efetiva

leitura literária.

Essa necessidade também se apresenta na aplicação dos poemas nas aulas do

ensino médio. A experiência foi vivenciada em turmas de terceiro ano, o que obedeceu

ao critério lógico do currículo instituído, já que o Modernismo e, especificamente,

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Manuel Bandeira são assuntos vistos comumente nessa etapa do ensino. Como

contraponto às conclusões dessa aplicação, experimentei apresentar os mesmos poemas

e outros do mesmo autor a turmas de primeiro ano do ensino médio, verificando a

diferença na produção de sentidos que pode ocorrer já que este público ainda não foi

oficialmente submetido ao discurso historicista tradicional das escolas e estilos de

época. Além disso, procurava realizar, em caráter laboratorial, uma proposta curricular

mais atual, que procura colocar como primeiro plano no ensino de Literatura o estudo

dos diferentes gêneros literários.

Assim, a observação participante, o estudo teórico, a análise literária e a

aplicação de poemas em sala de aula podem nos levar a revisões de posturas didáticas

e à reformulação do componente curricular da história da literatura como não menos

importante que qualquer outro conteúdo a ser ministrado durante o ensino médio. Na

verdade, sua significância acabou revelando-se no método, e não no produto.

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1º CAPÍTULO

LITERATURA E ESCOLA: UMA PRÁTICA ENTRE TEORIAS

A enciclopédia que pai e filha acabam de abrir sobre a mesa da cozinha foi considerada a melhor na época da sua publicação, enquanto hoje só poderá servir para indagar em saberes fora de uso ou que, nessa altura, estavam ainda a articular as suas primeiras e duvidosas sílabas. Colocadas em fila, uma após outra, as enciclopédias de hoje, de ontem e de transantontem representam imagens sucessivas de mundos paralisados, gestos interrompidos no seu movimento, palavras à procura do seu último ou penúltimo sentido. As enciclopédias são como cicloramas imutáveis, máquinas de mostrar prodigiosas cujos carretes se bloquearam e exibem com uma espécie de maníaca fixidez uma paisagem que, assim condenada a ser só, para todo o sempre, aquilo que tinha sido, se irá tornando ao mesmo tempo mais velha, mais caduca e mais desnecessária. José Saramago. A Caverna (p. 74)

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1.1. As vozes da leitura literária e a história da literatura na prática escolar

Se a reflexão de José Saramago, epígrafe deste capítulo, puder ser postulada

como verdade, o saber que as enciclopédias carregam será sempre considerado

consumível e, em conseqüência, passageiro, datado. Dentro deste raciocínio, toda

leitura, como conhecimento de uma realidade, apesar de acumulável, há de ser sempre

alvo da ação do tempo, podendo ver reduzida, mais cedo ou mais tarde, a sua

significância para as futuras gerações?

Apesar de os saberes e a realidade humana serem completamente mutáveis

de acordo com a história e as distâncias, a modalidade discursiva a que chamamos

Literatura parece ser a mais capacitada a realizar um diálogo entre duas pessoas

totalmente separadas pelos séculos e séculos. Mesmo composta de linguagem também

mutável, alguma coisa nela se perpetua e, vez por outra, reencanta um novo leitor,

descobridor descoberto de um mundo que não é o real, mas que, paradoxalmente, lhe

revela a realidade.

Eu creio nisso. E acredito que esse reencantamento, essa descoberta, se

revela, também vez por outra, nas nossas salas de aula, desde que sejam dadas as

condições necessárias a esse fenômeno. Uma forma de proporcionar isso é a

priorização do ato da leitura em si. Leitura essa que muitas vezes carece de motivação.

Um nome que se dá a uma das formas dessa motivação é prazer . Mas se a escola

precisa priorizar o acúmulo do saber, até porque essa parece ser sua condição sine qua

non? Aí o saber corre o risco de se chocar com o prazer, representados na Antigüidade

por Apolo e por Dionísio, respectivamente. Na dúvida, a sociedade (optou por ser

apolínea) fica com o saber, marginalizando a dimensão dionisíaca da aprendizagem.

Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2003), sobre o espaço dos interesses do

leitor no ensino, afirmam que raras vezes as leituras que produzem prazer circulam

em ambiente sancionado, como a escola

(p. 219). Segundo a estética da recepção,

principal suporte teórico deste trabalho, essa desconsideração do leitor é muito própria

das sociedades autoritárias:

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O método recepcional é estranho à escola brasileira, em que a preocupação com o ponto de vista do leitor não é parte da tradição. Via de regra, os estudos literários nela têm se dedicado à exploração de textos e de sua contextualização espaço-temporal, num eixo positivista. O relativismo de interpretação e, portanto, de leitura não é tópico de consideração no âmbito acadêmico, o que se explica pela tendência ao autoritarismo da própria cultura brasileira, que endeusa seus expoentes, temerosa de expô-los à crítica (BORDINI e AGUIAR, 1987, p. 81, grifo nosso).

A valorização da voz dos jovens leitores, nossos alunos, requer posturas

teórico-metodológicas diferenciadas. De acordo com as idéias acima expostas,

considerar esse sujeito é também reavaliar toda a postura positivista de conhecimento e

vivenciar um novo fazer pedagógico, fundado sobretudo num dialogismo que respeite

a voz do educando, permitindo que eu possa aprender com ele e fazendo eu me

reconstruir todo dia como aprendiz, pois ensinar exige consciência do inacabamento

(FREIRE, 1996, p. 50).

No caso da literatura enquanto disciplina escolar (saber que se funda num

pouco reconhecido prazer), temos uma organização curricular engessada em modelos

persistentes desde o século XIX, em que a história das condições de produção artísticas

é o foco principal. Em muitas de nossas escolas de Ensino Médio, é comum haver um

professor específico para Literatura. Normalmente, seu plano de conteúdo (e, de certa

forma, o meu também) para todas as séries se resume em estudar exclusivamente as

escolas literárias, sintetizando-as em contexto de época, principais características da

escola e principais autores. Essa organização encontra eco em vários vestibulares e se

resume nos livros didáticos. Nessa repetição de uma metodologia tradicional, o que

está sendo priorizado é a transmissão de conteúdos, mas não necessariamente a

produção de saberes, muito menos a construção de sentidos e menos ainda a reflexão

sobre a natureza humana e suas pulsões.

Essa situação caoticamente estável (antítese proposital) do ensino de

Literatura se insere, no Brasil, num contexto de desaparelhamento e mercantilização do

conhecimento. Como nos informa Lígia Chiappini:

Essa separação entre aulas de redação, de gramática e de literatura começa a ficar marcada na escola pós-1970, havendo, inclusive, profissionais

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diferentes para dar essas coisas todas. Paradoxalmente, elas se misturam num livro só. No manual, pega-se um texto literário e, a partir dele, começa-se a fazer exercícios gramaticais. É preciso, pois, refletir sobre o aparente paradoxo que se instaura aí (2005, p.114).

O quadro de desagregação disciplinar aí descrito se agrava ainda mais pela

destituição do ensino de filosofia e sociologia da escola básica. Quer dizer, para os

centros de poder que recrudesceram com a ditadura militar, um pensamento humanista

e interdisciplinar não é necessário à formação para esta sociedade. Essa exclusão da

filosofia se manteve até os dias atuais, quando, depois de muitos debates e um veto do

presidente Fernando Henrique Cardoso em 2001, foi finalmente reinstituída pelo

governo Lula em 2004, mas ainda num contexto de cada vez maior mercantilização do

conhecimento, autorizado pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996.

As tentativas de integrar a um currículo moderno (que a economia neo-

liberal pretende como qualificador para o mercado de trabalho) os paradigmas de

pensamento que muitas vezes são confundidos como tradicionais por vezes têm gerado

dissensos que chegam ao professor da escola básica como modelos sazonais. Ou seja, a

grande discussão de modelos teóricos que se deve aplicar ao ensino gera, muitas vezes,

o pensamento de que a teoria é uma coisa, a prática é totalmente outra . Fica, de fato,

a muitos professores a sensação de que, na dúvida, é melhor deixar como está .

O estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais a partir de 1996

tem sido uma tentativa de dialogar essa necessidade de mudança a partir de uma

proposta coletiva, nacional, que democratize o conhecimento. E, para o Ensino Médio,

o primeiro foco foi a proposta de agrupamento das disciplinas vinculadas à língua

portuguesa:

A disciplina na LDB nº 5.692/71 vinha dicotomizada em Língua e Literatura (com ênfase na literatura brasileira). A divisão repercutiu na organização curricular: a separação entre gramática, estudos literários e redação. Os livros didáticos, em geral, e mesmo os vestibulares, reproduziram o modelo de divisão. Muitas escolas mantêm professores especialistas para cada tema e há até mesmo aulas específicas como se leitura/literatura, estudos gramaticais e produção de texto não tivessem relação entre si. Presenciamos situações em que o caderno do aluno era assim dividido (PCNs, 2002, p. 138).

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Concordo com a perspectiva de reagrupamento da disciplina e, há muito me

incomodo com a instituição de aulas específicas também para interpretação de texto,

muitas vezes voltadas para o vestibular. Quer dizer, agora Literatura é uma coisa e

Interpretação de texto é outra?2 Porém, aquela versão dos PCNs propôs o agrupamento

de todas as atividades de língua, literatura e produção textual como um conjunto único

de trabalho com a linguagem, desconsiderando as especificidades de ambas. Decorre

disso o nosso pouco estranhamento para com as conclusões drásticas que são feitas

sobre o conteúdo de história da Literatura:

A história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno. Outra situação de sala de aula pode ser mencionada. Solicitamos que alunos separassem de um bloco de textos, que iam desde poemas de Pessoa e Drummond até contas de telefone e cartas de banco, textos literários e não-literários, de acordo como são definidos. Um dos grupos não fez qualquer separação. Questionados, os alunos responderam : Todos são não-literários, porque servem apenas para fazer exercícios na escola. E Drummond? Responderam: Drummond é literato, porque vocês afirmam que é, eu não concordo. Acho ele um chato. Por que Zé Ramalho não é literatura? Ambos são poetas, não é verdade? (op cit., p. 138)

De fato, é natural que nossos alunos não compreendam porque os textos que

lhes atraem não podem ser considerados sob um critério de valoração estética. É que

tal valor, muitas vezes, também é desconsiderado na composição de nossas aulas.

Ficamos com o que é tido como certo e que foi estabelecido pelos críticos (outras

vozes, quase nunca as nossas) como o cânone literário brasileiro . Até mesmo a não-

leitura desses textos como fuga do trabalho árduo tem acontecido com freqüência nas

salas de aula. É comum, por exemplo, ver professores qualificarem Camões como o

maior escritor de nossa língua, mas poucos realmente leram a obra que o consagrou

Os Lusíadas. Daí que também não nos espantamos com a proposta conclusiva dos

PCNs de 1996:

2 Já aludimos a essa situação em nossa escola na introdução, mas ela volta aqui como uma realidade que ressalta a fragmentação que queremos atacar.

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Os conteúdos tradicionais de ensino de língua, ou seja, nomenclatura gramatical e história da literatura, são deslocados para um segundo plano. O estudo da gramática passa a ser uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-se à área de leitura (p. 17).

Como vemos, várias posições teóricas apontam para uma crise disciplinar

dos conteúdos de Literatura. Elas explicitam a visão de que o cânone literário se

apresenta como uma instituição anacrônica e ilógica, pois se concentra em gêneros

que, pouco aproximados da realidade dos jovens, não lhes fazem sentido . Fica a

impressão da necessidade de uma revisão crítica(...) do cânone literário estabelecido

(JAUSS, 1974, p. 40).

Realmente, entre os dados que levantei sobre os interesses de leitura de

meus alunos através de um questionário, certos gêneros literários ficam extremamente

estigmatizados. Como podemos perceber pelo quadro a seguir:

Preferência por gênero:3

Pergunta: Qual Gênero literário mais atrai a sua atenção? Gênero: Recorrência romance policial / suspense 66 romance romântico / amoroso 43 crônicas 27 contos 19 peças teatrais 10 poesia 9 outros tipos de romance 7

romance histórico 4

auto-ajuda / romance espírita 2

filosofia 1

Foram inquiridos 96 alunos de duas turmas de primeiro ano do Ensino

Médio, tomadas de forma aleatória. É notável o exacerbado gosto pelo gênero

romance, qualquer que seja sua espécie e tema, como também é notável a pouca

atratividade pela poesia ou mesmo a peça teatral. Mas desses dados questiono qual a

representação que é feita para o jovem leitor e, conseqüentemente, por ele, sobre o que

3 Para esta pergunta, os jovens podiam marcar mais de uma resposta entre as opções que iam desde o romance policial até a poesia. Os itens que se situam ao fim da tabela foram de respostas próprias dos alunos que não foram contemplados pelas opções disponíveis.

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é poesia ou dramaturgia. Lembro-me de meu próprio caso, que tive de ouvir

comentários preconceituosos e gracejos de amigos quando, na adolescência, tentei

participar de um grupo de teatro e de poesia. Diziam-me muitas vezes que aquilo era

atividade de efeminados (para usar uma expressão branda que não chega a ser

metade da grosseria dos termos reais).

Desse modo, quando muitos adolescentes dizem que não gostam de poesia e

preferem romances, cumpre entender como se forma (ou de-forma) esse gosto.

Influências, convivência familiar, realidade sócio-cultural e sentimentos suscitados

pela leitura são categorias muito difíceis de serem mapeadas. Numa tentativa de

construir um registro aproximado dessas dimensões, venho propondo aos meus alunos

um projeto em que eles apresentem aos colegas as leituras que estejam fazendo fora

das obrigações escolares. Entre as perguntas de um questionário aplicado durante esse

processo, uma desejava fazer uma lista de, pelo menos, três livros que os entrevistados

têm pretensão de ler. As dez obras mais desejadas foram, pela quantidade de vezes

citadas:

Lista de interesse:4

Pergunta: Você pode citar três livros que tem interesse de ler? Livro autor Recorrência

O Código Da Vinci Dan Brown 26 Assassinatos na Academia Brasileira de Letras Jô Soares 9 O diário da Princesa Mag Cabot 8 O Senhor dos Anéis J R R Tolkien 7 Harry Potter H G Rowling 6 O Homem que Matou Getúlio Vargas Jô Soares 6 Senhora José de Alencar

6 Fortaleza Digital Dan Brown 5 O mundo de Sofia Jostein Gaarden

5 Silmarillion J R R Tolkien 5

Muito tem a dizer esta lista. A começar pela ruptura com uma opinião que se

tem de que o aluno tem medo de volume , pois algumas das obras aí citadas possuem

4 A lista completa consta, para os 96 jovens, de 113 obras referidas entre os mais variados tipos de leitura, o que configura um amplo painel de variação de Literatura que, por inúmeras questões, a escola dificilmente terá condições de conhecer.

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mais de 400 páginas, o que é considerado extenso para uma maioria dos leitores. Mas o

que interessa nesse recorte é mais exatamente a capacidade de influência que tem a

leitura de um jovem sobre outros. Os livros que na lista estão em negrito já foram

comentados em sala dentro do projeto de comentários sobre as leituras extra-escolares.

Até aí estaríamos trabalhando para evidenciar apenas o óbvio, se não fosse a presença

do romance Senhora, de José de Alencar. Mesmo sendo tão canônico quanto o papa,

ele foi apresentado por uma aluna por volta do mês de maio e veio a constituir o

interesse de alguns no mês de agosto, época em que foi aplicado o questionário.

Eis aí, finalmente, uma esperança de diálogo, em que uma obra que já se

constitui cristalizada no saber escolarizado pode ser bem recebida pelos leitores que

muitas vezes priorizam os best-sellers? Vejamos isso como um sinal, um dado que

encontra ecos na tabela a seguir, que ilustra os livros mais citados como preferidos

pelos alunos questionados:

Livro da preferência dos sujeitos5

Pergunta: Até hoje, qual livro você pode considerar como seu preferido? Ele foi lido por indicação da escola ou por leitura independente? Livro autor tipo Recorrência

Harry Potter H G Rowling independente 10 O Senhor dos Anéis J R R Tolkien independente 8 O Código Da Vinci Dan Brown independente 7 Dom Casmurro Machado de Assis 4escolar/1independente

5 O Escaravelho do Diabo Lúcia M. de Almeida escolar 4 A Escrava Isaura Bernardo Guimarães 1independente/1escolar

3 Comédias para se Ler na Escola

Luís Fernando Veríssimo escolar 3 Iracema José de Alencar escolar 3 Menino de engenho José Lins do Rego escolar 3 O guarani José de Alencar independente/escola 3 O Pequeno Príncipe Saint-Exupèry indep. 2 /esc. 1 3 Pollyana Eleanor H. Porter 3 Senhora José de Alencar 2independente/1escolar

3

No quadro estão destacadas as obras tidas como canônicas, dentre as quais

há a liderança de Machado de Assis, que mesmo podendo ter sido lido através de uma

5 Harry Potter é o preferido da moçada, mas a lista consta de 67 obras citadas pelos 96 sujeitos. Poucos alunos listaram mais de uma obra e logo abaixo dessa lista dos treze mais vêm, entre outros: Capitães de Areia, Odisséia, Olhai os Lírios do Campo, Fogo Morto, etc. É bem verdade que algumas dessas obras possam ser adaptações.

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adaptação, o prazer pela história narrada é que acabou se evidenciando. Não é o caso

de concordar aqui (e, sobretudo, para o Ensino Médio não se deve concordar) com a

adoção das adaptações, mas o que se pode esperar é que o jovem, ao travar contato

com o texto original no seu percurso de leitor, já tenha um horizonte de expectativa

sobre a obra.

A partir desses dados, podemos recontextualizar as questões que os geraram:

a voz do leitor deve ser ouvida e deve constituir uma preocupação no momento de

elaboração do plano de ensino. Mas antes que este discurso se revele cegamente a

favor da perspectiva que coloca prioridade sobre os interesses do jovem, como

defendido na primeira versão dos PCNs, é preciso ressaltar que o que se quer

desconstruir não é uma disciplina, mas sim a forma antidialógica como ela se constitui

no currículo escolar. Imposta e normatizada, a história da literatura não tem condições

de produzir efeito estético no leitor que não possua um horizonte de expectativas sobre

qualquer texto literário. Por outro lado, os próprios autores da primeira versão dos

Parâmetros defendem a importância da transdisciplinaridade para os estudos de

linguagem (BRASIL, 2002, p.16). Como, portanto, deixar de observar as relações entre

linguagem literária e história humana?

Neste ponto, portanto, é preciso realizar uma diferenciação básica: história

da literatura como conteúdo tradicional de literatura não é necessariamente o cânone

literário . Este é pautado numa série histórica de recepções que o consagram e o

ressignificam nas várias épocas. Dessa forma, Machado de Assis é literatura sim,

não porque alguém disse que é, mitificando-o, mas porque uma série de leitores

(inclusive vários de meus alunos)6, pautados em critérios estéticos e ideológicos

diferenciados, o elegem como referencial.

Essas idéias se ancoram na teoria da estética da recepção, sobretudo com

Hans Robert Jauss, o mesmo estudioso citado mais acima e que, naquele contexto,

falava em revisão do cânone . Mas essa revisão se pauta na idéia de que a qualidade

6 Gosto muito de exemplificar uma aluna que tive ano passado. Apaixonada por José de Alencar, até então ela já havia lido O Guarani, no original, cerca de dezessete vezes.

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estética não se resume em termos de processo ou evolução, mas renova seus efeitos à

medida que sua importância (da obra) cresce ou diminui no tempo, determinando a

revisão das épocas passadas em relação à percepção suscitada por ela no presente

(ZILBERMAN, 1989, p. 37). Assim, determinados autores podem ser desconsiderados

ou reconsiderados a cada geração, numa interação que varia através da representação

da realidade concreta a partir da realidade metafórica do texto literário.

O que é preciso considerar, de acordo com essas afirmações, é que, no ato da

leitura literária, o leitor coloca-se historicamente em diálogo com outros leitores, à

medida que os juízos estéticos são diferenciados a cada época. A interpretação da obra,

dessa maneira, se ancora na percepção estética e no diálogo histórico ao mesmo tempo.

Posto que a história passa a ser vista de forma viva e ativada pela consciência de que

histórico não é o que passou, mas o que ficou na consciência do leitor (BOSI, 2002,

p.53).

Decorre daí uma série de imbricações que nos aproximam de outras

dicotomias. Uma forte questão que se coloca para o ensino, por exemplo, é o problema

do conteúdo. Taxada de conteudista, a escola tradicional brasileira (incluindo muitas

particulares preparadoras para o vestibular) reclama a ausência de materialidade (falta

de assunto) num modelo moderno de educação. De fato, tanto as tendências

pedagógicas liberais, quanto a construtivista, a sócio-interacionista e a libertadora não

se concentram no o que, mas no como se deve ensinar. Ou seja: sem esquecer o

conteúdo, importa mais o método com o qual o sujeito debruça-se sobre ele.

No caso da história literária, a escola tradicional lhe considera como a única

abordagem concreta (objetiva e mensurável) para o ensino de literatura. Desse modo, a

historiografia positivista serve de apoio a um modelo pedagógico viciado em fórmulas

e informatividade sem reflexão. Ocorre uma espécie de mitificação do texto tido como

canônico , que é chamado assim sem questionamento. Por outro lado, algumas das

idéias que orientam a primeira versão dos PCNEM relativizam a concepção de texto

literário, propondo uma espécie de ritualização do processo de leitura.

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De acordo com essa perspectiva, o aluno-leitor passa a ter voz sobre o que

seja o fenômeno literário, pois na seleção de textos, a sua opinião passa a ser

considerada. Porém, se para esse aluno, a seleção textual for apenas aquilo que não se

confronta com seu horizonte de expectativas, a leitura não estará contribuindo

satisfatoriamente com a sua formação. Como Bordini e Aguiar muito bem discutem:

Se a obra corrobora o sistema de valores e normas do leitor, o horizonte de expectativas desse permanece inalterado e sua posição psicológica é de conforto. Não admira que a literatura de massas, pré-fabricada, para satisfazer a concepção que o leitor tem do mundo dentro uma certa classe social, alcance altos níveis de aceitabilidade. Por outro lado, obras literárias que desafiam a compreensão, por se afastarem do que é esperado e admissível pelo leitor, freqüentemente o repelem, ao exigirem um esforço de interação demasiado conflitivo com seu sistema de referências vitais. Todavia, a obra emancipatória perdura mais no tempo do que a conformadora, devendo haver uma justificação para o investimento de energias na comunicação que estabelece com o sujeito (1987, p. 84).

Dessa maneira, as atividades de estímulo à leitura devem visar à criação do

horizonte de expectativa em torno de uma obra, como motivação. Porém, a leitura da

obra em si deve se constituir como ruptura desse horizonte de expectativa para o

posterior estabelecimento de um novo horizonte, numa atividade em que o leitor está

em processo de diálogo cada vez mais profundo com o texto. Se essa ruptura não

acontecer, não haverá, portanto, uma renovação do seu horizonte de expectativas e,

dessa maneira, o aprendizado da leitura pode não se concretizar como em um

processo.

Daí, não podemos nos deixar enganar pelo virtuoso discurso de que é

preciso ouvir a voz do aluno , ou de que o aluno deve encontrar prazer ao ler o texto

literário . Se a dimensão prática dessa perspectiva for a de facilitar ou simplificar o

discurso literário com adaptações e recontextualizações que manifestem uma

simplificação da linguagem, a leitura literária acontecerá em fragmentos. E os

mesmos preconceitos que se afirma de que os historicistas tradicionais pratiquem tanto,

também estarão sendo cometidos pelos defensores da leitura como processo.

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Felizmente, uma nova versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio já tem procurado revisar as posturas anteriores de apagamento dos

conteúdos tradicionais de literatura, sem necessariamente desconsiderar todos os

aspectos daquela proposta. Segundo esse novo documento:

Nesse mundo dominado pela mercadoria, colocam-se as artes inventando alegriazinha , isto é, como meio de educação da sensibilidade; como meio

de atingir um conhecimento tão importante quanto o científico

embora se faça por outros caminhos; como meio de pôr em questão (fazendo-se crítica, pois) o que parece ser ocorrência/decorrência natural; como meio de transcender o simplesmente dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis reservados às artes, de cuja apropriação todos têm direito. Diríamos mesmo que têm mais direito aqueles que têm sido, por um mecanismo ideologicamente perverso, sistematicamente mais expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por si mesmos (BRASIL, 2006, p. 52-3, grifos nossos).

Dessa forma, colocar os conteúdos de literatura (sejam eles tradicionais ou

não) em um segundo plano significa a possibilidade de excluir do jovem o seu direito

ao pensamento livre e ao acesso ao patrimônio cultural historicamente construído e que

é, também, uma das inportantes fontes de reflexão sobre o Brasil e nossa formação

enquanto sociedade. Negar essa possibilidade do trabalho com a Literatura em nome

do argumento de que o aluno não tem prazer com o cânone literário (seja porque é

obrigado a receber esse conhecimento, seja porque está aparentemente distante de sua

realidade), é não aceitar a idéia de que o prazer estético é propriedade inseparável do

esforço intelectual, além de não aceitar a capacidade do fenômeno literário de

aproximar pessoas tão distantes na linha do tempo. E se o aluno ainda não percebe essa

relação, a culpa não é necessariamente de um ou outro escritor ou poeta secular, mas

do processo de mediação entre o texto desse autor e o jovem leitor.

Vejamos, como dado representativo, como se posicionam os alunos quando

o assunto é ler por obrigação. Perguntamos: Como você se comporta ao ter de ler um

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livro por obrigação?7 Pergunta para a qual registramos que cerca de 43% de alunos

lêem quando são obrigados, mas não gostam do que estão lendo. Outros 40%

afirmaram ler sem se interessar pela obrigação. Os outros alunos (menos de 18%)

responderam que só lêem se forem obrigados e/ou que sentem muita dificuldade

quando têm de ler qualquer coisa por obrigação. Esses números mostram uma visão de

mundo pautada na necessidade da maioria de aprender pelo prazer, já que, muitas

vezes, os alunos já se manifestam cansados dos mesmos modelos de trabalho dos

repetidos anos pela escola (SOUSA, 2005, p. 5).

Ocorre, porém, que a dimensão do prazer na leitura, mesmo que precise ser

entendido como essencial, também esconde suas falácias. Nas palavras de Hélder

Pinheiro: Só há prazer quando há descobertas de sentidos e só há descoberta de

sentidos quando somos capazes, diante da obra, de nos emocionarmos, nos irritarmos,

nos incomodarmos, enfim, ficarmos inquietos (PINHEIRO, 2001, p. 22). Idéias que

corroboram a nova versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais:

Estamos entendendo por experiência literária o contato efetivo com o texto. Só assim será possível experimentar a sensação de estranhamento que a elaboração peculiar do texto literário, pelo uso incomum de linguagem, consegue produzir no leitor, o qual, por sua vez, estimulado, contribui com sua própria visão de mundo para a fruição estética. A experiência construída a partir dessa troca de significados possibilita, pois, a ampliação de horizontes, o questionamento do já dado, o encontro da sensibilidade, a reflexão, enfim, um tipo de conhecimento diferente do científico, já que objetivamente não pode ser medido. O prazer estético é, então, compreendido aqui como conhecimento, participação, fruição (op cit., p. 55).

Identifiquemos a presença da inquietação e fruição na representação de uma

aluna sobre o romance O Seminarista, de Bernardo Guimarães:

O Seminarista é um livro que você olha e não dá muito por ele não, mas eu sei que é uma história bem massa. É a história de Eugênio e Margarida. Eles viviam no interior de Minas e eles foram sempre criados juntos. O pai de Eugênio era dono de uma fazenda e Margarida morava no arredor dessa fazenda. Eles cresceram como amigos, dividiam uma porção de coisas... era

7 E vale ressaltar que obrigação é outro equívoco quando se pensa no esforço. Ler por obrigação realmente demanda uma dificuldade, mas não necessariamente toda dificuldade de leitura advém dessa obrigação. Podemos ter prazer ao ler um livro obrigatório, e podemos detestar um livro lido por conta própria.

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como se fosse irmãos. Aí aconteceu um dia um episódio em que, numa festa, numa festa dessas de interior, uma cobra... uma jibóia pegou e se enroscou em Margarida. Eles tinham uns seis anos. Aí Eugênio ficou apreensivo, ficou desesperado, imagina: a irmãzinha dele ameaçada por uma cobra... aí ficou gritando. Quando os pais deles chegaram e viram a cobra lá ao redor dela e não sabiam o que fazer: se faziam movimento e a cobra picava ela ou se tentava tirar a cobra e ela podia atacar alguém. A mãe dela começou a ficar desesperada, quase desmaiou e ela ficou lá só brincando com a cobra até que a cobra se cansou, se cansou dela e foi embora. Nisso a mãe de Eugênio ficou preocupada com aquilo, porque ela acreditava muito em superstição e ela pensou: não alguma coisa tá errada com essa menina... uma cobra ... e ela pensou logo no conto de Adão e Eva, da serpente...e passou o tempo todo assim... E então eles foram crescendo, ele saiu de casa pra estudar na cidade mais próxima... e foi passando... Até que um dia ... a mãe dele era muito católica, ela avisou que ia mandar ele para o seminário pra virar padre. Ele pegou e... tá certo ... gostava muito daquilo e quando chegou a hora ele ficou com muito, muito, muito, muita depressão, porque eles iam se separar. Só que quando ele chegou no seminário ele gostou muito, só que ele fazia poemas assim... como criança... poeminha besta... dedicados para Margarida, assim com um sentimento fraternal. Aí um dia um padre pegou encontrou os poemas, aí disse esculhambação, disse que o menino não prestava, que ele era falso, que ele soubesse o que era realmente o que era que ele queria da vida dele. Aí, fizeram um estardalhaço tão grande, tão grande, que ele era um menino que não podia ser um padre apaixonado, que ele acabou se apaixonando por ela. Aí ele volta e ... começa... cada vez se apaixonando mais, o tempo vai passando e ele volta pra lá. Depois de muitos anos e ele vê que realmente tão apaixonados. Aí começa a se encontrar às escondidas... Ele mente, ele chega a mentir pro pai, dizendo visitar um doente e vai pra casa dela. Aí os pais descobrem e empurram Margarida para um outro cara. Aí inventam que Margarida se casou. Aí ele volta pro seminário... ele entra em depressão... ele fica muito triste a ponto de morrer. Aí o tempo foi passando e ele foi crescendo até que ele... agora vira padre e chega na cidade para virar padre. Mas eu também não posso contar o final dessa história porque só tem graça se você ler o livro (BALBÚRDIOS NA SALA, PEDIDOS PARA QUE ELA CONTE). Mas assim ninguém dá nada pelo livro. Eu passei um mês pra ler o livro, mas quando comecei a ler, não deu vontade de parar. (PALMAS)

Percebemos logo pelo início da fala que o romance surpreende a leitora, pois

ela não esperava muito dele . Isso, por si só, já representa um horizonte de

expectativas rompido para dar lugar a outra representação sobre o texto. Vemos, aí, um

texto ser tomado em sua relação de prazer com a leitora para, conseqüentemente,

instalar-se como referencial e ativado pelas significações históricas. Também podemos

perceber a dificuldade em transpor os limites da linguagem à medida que foi gasto um

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longo tempo para a leitura, o que representa uma ação que superou percalços para

construir sentidos.

Destaque-se ainda que a leitora percebe uma matriz do romance que seria a

inocência (mesmo que sem uma enunciação acentuada) com que o amor surge nas

atitudes ingênuas das personagens. Como também os percalços desse amor aparecem

nas interpretações de quem não se considera ingênuo na história (a mãe, o padre).

Assim, apesar do fato da obra lida estar historicamente distante da leitora,

representar um momento da tradição literária brasileira e não possuir uma linguagem

plenamente acessível aos leitores do século XXI, houve uma confirmação do cânone

pela jovem, o que de todo modo faz o valor estético do texto ressoar por novas épocas.

Mas se a experiência com o texto literário for intermediada por um suporte

facilitador? Ou então, se a vivência ocorrer através do livro didático que apresenta o

texto em fragmentos para justificar uma simples informatividade da história da

literatura? Se o suporte do texto muda? Se a linguagem ali expressa muda de contexto

com finalidades outras? E que finalidades são essas? Discutiremos esses aspectos a

seguir.

1.2. A estranha voz cristalizada

Em 1965, Osman Lins publicava alguns dos primeiros importantes trabalhos

analíticos sobre a composição das obras didáticas de língua portuguesa em circulação

no Brasil, preocupado principalmente com os aspectos da concepção sobre o cânone

literário brasileiro e a abordagem crítica feita aos escritores de até então. Na obra Do

Ideal e Da Glória: Problemas Inculturais Brasileiros (1977), reúnem-se vários artigos

de crítica à composição dos volumes, à desvalorização do escritor, à (de-) formação do

professor, à situação caótica da leitura no Brasil (inclusive na universidade) e aos

interesses editoriais na manipulação e adoção dos títulos.

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Reflexo de uma sociedade que ainda não encontrou a democracia, o ensino

de nossa literatura até hoje enfrenta tais problemas, revelando a atualidade das idéias

de Osman Lins. Dizia o escritor que os autores de livros didáticos não lêem a nossa

literatura contemporânea; que os mesmos estabelecem precários juízos de valor quando

se referem mesmo a autores consagrados; que as ilustrações e a forma como esses

autores se dirigem ao estudante configuram a natureza desse livro como um bem de

consumo; daí que Osman alerta para a perigosa visão do aluno como consumidor,

nunca necessariamente pensado como um leitor real e, inclusive, um pensador em

potencial da cultura brasileira (mais um ângulo de essencialidade dos estudos

literários). E arremata:

Todos os brasileiros que ultrapassam os primeiros anos de escola passam anos às voltas com os seus manuais de Comunicação e Expressão; e dificilmente, vê-se pela amostra, terão a sorte de estudar em compêndios feitos com inteligência, sensibilidade, respeito, zelo e, principalmente, por mestres que conheçam e amem a nossa literatura. Note-se que, para a imensa maioria dos alunos, como já escrevia, são esses textos os primeiros e até, às vezes, os únicos que vêm a conhecer. Pode ser, não discuto, que esses livros ensinem Português com eficiência. Mas os que neles estudam, fatalmente, a não ser por um milagre, passarão a considerar a literatura, esse importante produto do espírito humano, como algo desprezível e secundário. E se tal situação não for modificada, seremos, até o fim dos tempos, um povo avesso à leitura, continuando a ignorar, como ignora, os seus próprios escritores. Um povo surdo à sua própria alma (LINS, 1977, p. 143-4, grifo nosso).

Nesses últimos quarenta anos, em que há uma espécie de encantamento com

a redemocratização e globalização, o ensino de língua assistiu a uma espécie de

modernização, em que aqueles erros outrora descritos são cada vez mais execráveis.

Professores parecem ter uma formação mais teórica e o acesso à leitura se amplia com

a internet. A disciplina agora se chama Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, como

vimos. Existe um maior controle, inclusive governamental, dos livros didáticos que

circulam, no sentido de reprová-los em suas informações de ordem cientificamente

ultrapassadas ou mesmo ideologicamente irresponsáveis. Contudo, os meios de

manipulação econômica do saber continuam se desenvolvendo de vento em popa.

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O livro não deixou de ser objeto do consumo, agora com seus autores e

editores aproveitando-se da avaliação governamental para estampar em suas capas

propagandas como de acordo com os PCN , ou altamente recomendável - PNLD .

Como forma de, muitas vezes, se esquivar da avaliação dos órgãos governamentais, ou

mesmo lucrar mais com esse produto, muitas instituições de ensino adotam o sistema

de apostilas, tornando muito difícil uma observação crítica do trabalho didático e dos

efeitos desses materiais.

Paralelamente, assiste-se, como há já muito tempo, a uma enxurrada de

propostas teóricas que alugam os espaços das salas de aula, como um desfile de moda

(LIMA, 1981), em que cada grife se autodenomina aplicável do ponto de vista

metodológico. Trata-se, como vimos, de algumas idéias que orientam a primeira versão

dos PCNEM, chegando mesmo a desconhecer a importância da literatura para o ensino

e a formação do povo brasileiro, defendendo uma prioridade da leitura de todos os

gêneros de circulação social, pela perspectiva da língua em uso . Perspectiva que

também se aplica à literatura, mas esta normalmente acaba sendo mal-vista e até

entendida como atividade de iniciados e diletantes. Nesse caso, ocorreu uma

simplificação ou até mesmo redução da linguagem literária à mera manipulação de

enunciados em sentido conotativo. De acordo com Socorro Barbosa:

Uma última observação sobre a Denotação/Conotação diz respeito ao fato de que a maneira como se encontra discriminada nos PCNEM+ (2002) é idêntica àquela com que os autores dos LD costumam utilizá-la. Chamada a auxiliar no conceito do que seja a linguagem literária, a conotação deixa de ser utilizada nas análises e compreensão dos textos da literatura e passa a se constituir como matéria de memorização. Eis porque, a literatura deve ser compreendida como processo de interação social, linguagem estruturada sobre relações sociais, que materializam simbolicamente aspectos históricos, culturais e psicológicos, dos sujeitos participantes dessa prática social (VILAR, 2004, p. 120-1).

Muitas podem ser as posturas sobre esses problemas da Literatura no ensino,

mas enquanto a academia se digladia em teorias muitas vezes importadas ou mal

interpretadas (LIMA, op cit.), os nossos estudantes continuam a consumir o

conhecimento e a leitura de acordo com interesses comerciais e editoriais. Continuam

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32

se deparando com livros que mudaram na forma, se modernizaram nas informações,

mas, por insólito que pareça, como profetizava Osman Lins, continuam não formando

leitores. Principalmente leitores literários.

Nosso trabalho consiste em analisar apenas um aspecto dessa não-formação:

a fragmentação do texto literário por esses compêndios, discutindo como sua

informatividade continua superficial, atendendo a interesses mercantis e, por vezes,

autoritários. De acordo com Cyana Leahy-Dios:

Os conteúdos nos livros didáticos geralmente são organizados em unidades menores de controle do tempo; assim, espera-se evitar o desperdício de informações a serem dominadas . Com isso, professores são levados a crer que fragmentos e retalhos de informação literária disfarçados como conhecimento literário, do tipo que enche as páginas dos livros didáticos de literatura, é tudo o que realmente interessa, de modo a alcançar o fim maior, que é o maior número de aprovações nos vestibulares. A prática docente dos fragmentos e retalhos, vista abertamente nas salas de aula inglesas, assume na escola brasileira, a forma de poemas esparsos, fragmentos de jornal, excertos de contos adicionados aos programas (LEAHY-DIOS, 2004, p. 170).

Pela reflexão da autora, o problema da fragmentação não é apenas da

realidade brasileira. No ensino britânico, mais pautado pela tradição, o conteúdo

história da literatura também é fortemente visto como informação. Dessa forma, o

texto literário deve ser um exemplo, uma ilustração do estilo de um autor. E esse autor

deve ser considerado um modelo a ser seguido, se não no comportamento, pelo menos

nas idéias. Idéias estas que acabam sendo, ainda por cima, vistas sob a forma de uma

cadeia evolutiva e temporal, mas não necessariamente histórica. Recorremos

novamente a Socorro Barbosa:

Neste trabalho de arrolar todos os autores que aqui produziram ao longo de quinhentos anos de história, criou-se uma exigência de tomar a abordagem dos textos no sentido diacrônico. Talvez por termos uma história tão curta, a tradição dos estudos da literatura brasileira obriga os alunos do Ensino Médio a tomarem conhecimento da existência de autores e títulos de algumas obras que ele só chega a conhecer através de pequenos trechos, descontextualizados de suas condições de produção. Se em qualquer ato de linguagem, o objetivo principal é a produção de sentido, ler um texto literário, como qualquer outro, deve portanto incluir o leitor na produção desse sentido. Isso significa retirar os estudos literários dos sentidos

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previamente dados, como os que são apresentados pela História da Literatura e sua classificação em escolas literárias (VILAR, op cit. p. 124-5, grifo nosso).

Dessa forma, para o texto literário ser histórico, ele precisa se realizar junto

a uma recepção, um leitor, que o atualiza no que ele possuir de mais dialógico para os

variados momentos históricos. É o que é preciso fazer, por exemplo, com os textos de

Osman Lins: exercitar o olhar sobre suas percepções mais radicais, observando a força

do que elas têm de novo. É por isso que, em literatura, o novo não é necessariamente

contemporâneo, mas é, sobretudo, radical. De acordo com Luiz Costa Lima:

A permanência do objeto estético está diretamente ligada à variabilidade da sua recepção. A obra que é permanente permanece diferenciando-se. O que nela se mantém é o homem captado no seu núcleo, a que ela acompanha no seu devir com ele também se transformando (1969, p. 33).

Cabe aqui um diálogo e ao mesmo tempo retomada: quando Osman Lins

falava que a ausência da literatura em nossa formação é um caso de surdez, afirmando

que nós somos um povo surdo à sua própria alma , não estava buscando defender o

que Costa Lima ressalta ao falar do homem captado no seu núcleo ? Daí que não

podemos nos contentar com posturas didáticas superficiais sobre o texto literário. Nem

tampouco com propostas metodológicas simplificadoras da importância dessa leitura.

Os textos significativos da literatura brasileira nos surgem como essenciais pelo seu

poder de construção da identidade deste povo, porque só naqueles é que podemos nos

ver representados.

Portanto, em se tratando de ensino de literatura, nossa atenção deve ser

redobrada sobre a informatividade superficial dos livros didáticos. Como bem

salientava Socorro Barbosa em sua afirmação anterior, o texto literário é visto

descontextualizado e em trechos, ocasionando em uma sacralização do texto e do

autor para o aluno, sobretudo do Ensino Médio, que às vezes por não entender porque

tal autor é reverenciado, não consegue produzir mínima simpatia por sua produção.

Assim, não é raro encontrarmos os autores mais citados dos livros didáticos (Machado

de Assis e José de Alencar na ficção; Carlos Drummond de Andrade e Manuel

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Bandeira na poesia) sendo considerados como os mais chatos entre muitos alunos.

Porém não podemos atribuir uma responsabilidade dessa fragmentação superficial

somente ao conteúdo de história da literatura. É preciso, de fato, repensá-lo, mas não

excluí-lo. A nova versão dos PCNEM comenta os pontos positivos e negativos dessa

articulação do conteúdo:

Podem-se destacar alguns pontos positivos e simultaneamente negativos da adoção da história da Literatura no ensino tal qual se tem cristalizado: 1. resolve o problema da seleção de obras, pois constitui um corpus definido e nacionalmente instituído, mas elimina as peculiaridades regionais; 2. resolve o problema da falta de preparação e de conhecimento literário que possa existir entre os professores, já que esses lidam com a reprodução de uma crítica institucionalizada, porém esse procedimento impede o professor de ser ele próprio um leitor crítico e estabelecer suas próprias hipóteses de leitura para abraçar as investidas mais livres de seus alunos na leitura; 3. permite cobrir um tempo extenso, numa linha que vai do século XII ao século XXI, destacando momentos reconhecidos da tradição literária, porém tal extensão torna-se matéria para simplesmente decorar, e características barrocas, românticas, naturalistas, etc. confundem-se freneticamente, sem nada ensinar; 4. permite tomar conhecimento de um grande número de títulos e autores, mas, em virtude da quantidade e variedade, a leitura do livro é inviabilizada e entendida como secundária; e 5. permite ao aluno o reconhecimento de características comuns a um grande número de obras, porém obriga a obra a se ajustar às peculiaridades da crítica e não o contrário (2006, p. 76).

Como forma de aproveitamento, a História da Literatura permite uma forma

ampla de abordagem do conjunto literário da sociedade, mas de fato, da forma como

vem sendo trabalhada, não nos ajuda a formar leitores, simplifica a maioria dos textos

e conduz a uma visão harmônica

das características de estilo e de ideologia dos

autores. Mas é bom perguntar se esse prejuízo estaria mesmo no conteúdo. Na verdade,

o que vemos como prejudicial talvez se encontre nos portadores e expositores do

conteúdo (o livro, a escola, as avaliações, o professor). Se adotássemos, por exemplo,

uma antologia com um mínimo de poemas e trechos de romances, contos e peças de

vários dos significativos autores nacionais e regionais, estaríamos negando ao aluno a

possibilidade de construir seus próprios sentidos sobre o texto, reduzindo essa

literatura?

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Pensamos que é possível ver o texto literário em seu contexto histórico, sim.

Concordamos com a nova versão dos Parâmetros de que é preciso reverter a ordem e

deixar o estudo das condições de produção subordinado à apreensão do discurso

literário

(op. Cit., p. 77). Porém, acreditamos que devemos começar desconstruindo o

manual didático, esse antilivro, mal necessário8. Nas palavras de Lígia Chiappini:

uma ilusão enciclopédica de que ele pode conter todo o saber, de que a pessoa, lendo

aquele livro, não precisa buscar outros. Um livro para fazer isso, para colocar o saber

ao alcance da mão, tem que comprimir, diluir, homogeneizar, congelar,

desistoricizar o saber

(2005, p. 111-2, grifo nosso).

Esse, o contexto histórico que determina as condições concretas do nosso

trabalho. É ele a que recorremos para analisar a realidade de nossa experiência.

Comecemos por procurar os textos no livro didático adotado pela escola em que

leciono. Utilizo aqui alguns critérios estabelecidos em trabalho anterior (DIAS, 2004)

sobre o modo como o manual apresenta e aborda o texto literário.

O aspecto geral do livro, de autoria dos professores Carlos Faraco e

Francisco Moura (2001), é a abordagem, em volume único, de Gramática, Literatura e

Redação, mas com foco central nas informações literárias. Deve-se dizer

informações porque é essa a prioridade do livro. Informar ao estudante a presença de

determinados autores e obras da nossa literatura, bem como mostrar alguns textos ou

trechos representativos desses autores. Curiosamente ao contrário dos livros de ensino

fundamental, é natural que o texto em verso apareça com mais freqüência do que o em

prosa, pela sua extensão e, muitas vezes, possibilidades de interpretação que podem ser

discutidas no espaço de tempo de uma aula. Busquemos os poemas.

Através de um critério de apresentação, observamos que o manual

concentra-se em apresentar um poema ou trecho de cada poeta até o século XIX,

ampliando esse número quando o conteúdo toca o modernismo. Essa é uma tendência

comum em livros didáticos, o que revela uma atitude de privilégio para com certos

8 Instrumento de uma política de democratização do conhecimento, é preciso que o livro didático continue sendo distribuído, mas não da forma massificada com a qual atende mais a interesses editoriais do que à própria estruturação da escola e preparação dos nossos jovens.

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autores, considerando-os segundo critérios que não são esclarecidos para o aluno. Não

é o caso aqui de criticar gratuitamente o fato de que o livro traz apenas um trecho de

um poema de Castro Alves ou um soneto de Augusto dos Anjos, etc., mas ressaltar (e

caberia questionar os motivos), em comparação, que os poetas mais citados são Carlos

Drummond de Andrade (o manual traz dez poemas, sendo cinco em fragmentos) e

Manuel Bandeira (cinco poemas, sendo dois fragmentados), seguidos de Vinícius de

Moraes (quatro poemas, um fragmentado), Murilo Mendes (quatro poemas inteiros) e

Cecília Meireles (três poemas, sendo 1 fragmentado).

Procuremos entender um possível critério de seleção: a cristalização pela

recepção, que apresenta não só os textos mais conhecidos dos poetas, mas também

aqueles que representam para a crítica os momentos mais significativos dos autores.

Porém, esse argumento, que é considerável, embuça a realidade do livro

didático, que já vimos discutindo: o excesso de informatividade, acrescido de um

exacerbado historicismo, o que desvia a atenção do estudante do texto para um

contexto empobrecido em que as prioridades são: o movimento ou estilo de época;

depois a vida do autor e seus livros publicados; e, em última instância, os temas

mais trabalhados pelo escritor.

Daí que, mesmo com relação a autores mais conhecidos e mais estudados, os

poemas são vistos como um detalhe que deve ser apenas reconhecido (no sentido de

ser admitido como legítimo), mas não necessariamente conhecido. Segundo Hélder

Pinheiro:

Enquanto não se compreender que a poesia tem um valor, que não se trata apenas de um joguinho ingênuo com palavras, ela continuará a ser tratada como gênero menor e, pior ainda, continuará a ser um dos gêneros literários menos apreciados no espaço escolar (2002, p.62).

Vale acrescentar que aqui estamos tratando de um objeto lingüístico e

estético, o que requer, acima de tudo, as faculdades interpenetráveis da interpretação e

da sensibilidade. Por sua vez, exigem que o leitor reconheça tanto os constituintes

contextuais que o formaram quanto os elementos textuais que o enformam. Alfredo

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Bosi nos propõe uma base analítica que reconheça justamente os elementos formais e

os determinantes sócio-psicanalíticos de um texto poético:

Na invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas (que nomeamos com os termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer e princípio de morte) e correntes culturais não menos ativas que orientam os valores ideológicos, os padrões de gosto e os modelos de desempenho formal (BOSI, 2003, p. 461, grifos do autor).

É esse diálogo do intrínseco e do extrínseco que nossos alunos devem

aprender a compreender. É por isso que a avaliação da abordagem do poema pelo livro

didático requer nossa atenção. Não pode haver perspectivas reducionistas por parte dos

autores, como o fazem várias vezes Faraco e Moura, o que tentarei mostrar sobretudo

no segundo capítulo. Já que estamos partindo do mais geral (nossa realidade escolar e

os sujeitos a quem nos dedicamos) para o mais específico (a abordagem de poemas no

livro didático), verificaremos como se dá a abordagem de poemas de Manuel Bandeira,

utilizando, como referencial teórico os estudos de Estética da Recepção, que a seguir

explicitaremos.

1.3. A recepção e o efeito da leitura e da história da literatura

A teoria da Estética da Recepção vem valorizar, em diálogo com as idéias

estruturalistas e formalistas e com a contribuição da hermenêutica de Hans Georg

Gadamer, a presença implícita do leitor na composição do texto, bem como a

valorização do seu papel na construção dos sentidos. Essa construção é trabalhada

através das categorias do efeito e da historicidade do texto literário.

Vem, por conseguinte, repensar toda a tradição da história da literatura, não

colocando um ponto final nas afirmações teóricas, mas resgatando-as como esforço de

interpretação dentro dos movimentos ideológicos da história. Não se trata de manter os

estudos de literatura como estudos de história da literatura. Pelo contrário, um dos

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38

principais teóricos dessa corrente, Hans Robert Jauss, se opõe veementemente aos

historiadores da literatura que até então (e podemos dizer até hoje) prevalecem na

tradição dos estudos e que, conseqüentemente, têm suas concepções predominantes no

currículo escolar.

Essa tradição, marcada exclusivamente por abordagens extrínsecas,

relaciona autores e obras numa composição cronológica pautada no ideal positivista de

objetividade. Afirma Jauss que o historiador da literatura prefere ajustar-se ao ideal da

objetividade descritiva, que tem de comprovar explicando apenas como sucederam os

fatos e as coisas (1974, p. 12). Bem de acordo com o teor enciclopédico dos nossos

manuais didáticos, como já questionado acima.

Para além dessa tradição, as duas correntes dominantes nos estudos literários

durante o século XX

os marxismos e os formalismos

ensaiaram outras

possibilidades de análise dos fenômenos literários que, cada uma a seu modo, foram

enriquecidas ou negadas pelas elaborações da estética da recepção. Para Jauss, esses

paradigmas teóricos ampliaram a distância entre o poético e sua relação com a história.

Se vários estudiosos marxistas procuraram ver a literatura dentro de uma inserção

global na história (a da luta de classes), limitaram-na, não vendo as especificidades da

arte como um produto da subjetividade que não somente é determinada pela condição

sócio-histórica, mas também a determina. E se outros tantos formalistas observaram a

arte literária do ponto de vista funcional, subjugaram a poética a um mero fazer

comunicativo e, para alguns, desnecessário de sua relação com o contexto histórico

para realizar-se. Pelas palavras de Jauss:

Para a escola formalista, o leitor não é nada mais que o indivíduo que percepciona, que, segundo as instruções que lhe dá o texto, distingue as formas ou descobre a técnica. Impõe-lhe a introspecção do filólogo que, tendo um maior conhecimento dos instrumentos artísticos, poderá atingir uma reflexão mais profunda. A escola marxista, por sua parte, identifica a percepção espontânea com o interesse científico do materialismo histórico de verificar as relações entre superestrutura e base da obra literária. Temos que dar-nos conta de que nunca nenhum texto foi escrito para ser submetido a uma interpretação filológica, nem tampouco a uma interpretação histórica. Nenhum destes dois métodos realiza a função própria do leitor, que é igualmente indispensável para a exatidão dos

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conhecimentos estéticos e históricos: o leitor é o primeiro destinatário da obra literária (1974, p. 38, grifos do autor).

Estamos, portanto, trabalhando com um referencial teórico que realiza uma

síntese dialética entre o empirismo formalista e o historicismo marxista. A chave para

esse diálogo estaria, não no texto, nem no autor, mas no leitor. Essa consideração

teórica só se torna possível a partir das elaborações semióticas sobre o processo de

comunicação, seus elementos e funções. Jan Mukarovsky, um dos principais

formalistas russos, já antevia a relação entre uma função estética da obra de arte e a

estrutura de apelo do texto. Pelas suas palavras:

Toda obra poética é, pelo menos virtualmente, uma representação, uma expressão e um apelo. Essas funções práticas adquirem relevo numa obra de arte, como, por exemplo, a função representativa no romance e a função expressiva na poesia lírica. Por outro lado, nenhuma ação prática é de todo desprovida da função estética. Podemos dizer, ao menos potencialmente, em todo ato humano (1978, p. 162, grifos nossos).

A caracterização estética da obra literária, portanto, é uma responsabilidade

do receptor, aquele para quem o texto se dirige. Esse texto, portanto, possui estruturas

internas voltadas para o leitor, que nesse caso, evidencia-se como essencial na

determinação do valor artístico. Wolfgang Iser, outro importante teórico da estética da

recepção, é quem retoma essa presença do leitor na estrutura textual para formular o

importante conceito de leitor implícito frente aos pouco-elucidativos estudos que até

então não conseguiam compreender esse sujeito do texto. Em seu livro O Ato da

Leitura, Iser reflete sobre vários conceitos de leitor, dentro e fora de sua corrente

teórica, trabalhando com o seguinte problema: podemos estudar o leitor de forma

concreta ou só é possível idealizar a sua presença no processo de leitura? Dentro da

estética da recepção, essa questão formula duas possibilidades teórico-metodológicas,

que são, ao mesmo tempo, distintas e complementares:

A recepção, no sentido estrito da palavra, diz respeito à assimilação documentada de textos e é, por conseguinte, extremamente dependente de testemunhos, nos quais atitudes e reações se manifestam enquanto fatores que condicionam a apreensão de textos. Ao mesmo tempo, porém, o próprio texto é a prefiguração da recepção , tendo com isso um potencial de efeito

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cujas estruturas põem a assimilação em curso e a controlam até certo ponto (ISER, 1996, p.7).

Dessa forma, Iser propõe uma análise do leitor subscrito ao texto, através de

métodos teorético-textuais, na descrição do fenômeno literário em busca de seu efeito.

Segundo o mesmo, a modernidade e o movimento estudantil pressionaram por uma

mudança na observação teórica que antes se pautava no critério clássico da

significação, e que, por sua vez, já não dava conta de uma dimensão fundamental da

arte moderna, posto que esta agora se centralizava no impacto que poderia ser causado

no observador (op. Cit., p. 10).

Já Jauss deseja, através de um método histórico-sociológico, resgatar a

historicidade da literatura partindo do prisma da história da recepção dos textos

literários por parte dos leitores e formadores de opinião das mais variadas épocas. No

Brasil, Antônio Candido, à sua maneira, também expressa esse posicionamento

valorizador da recepção nesta definição:

A literatura é, pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo (MELLO e SOUZA 2000, p.74).

Nessa fala, o mestre brasileiro ilustra as duas posições de leitura como um

processo em que o leitor interage com o texto, mergulhando (ou aceitando ) em suas

instâncias fictícias. Realiza, dessa forma, uma suspensão da realidade (ISER, op. Cit.,

p. 77). Mas nenhum leitor (a não ser que estejamos falando do mais alto grau de

alienação) realiza essa suspensão sem voltar-se para sua experiência anterior à

leitura, relacionando o lido com sua visão de mundo prévia, comparando,

acrescentando ou negando. E, no diálogo com outros leitores, cada um há de construir

uma infinitude de sentidos sobre a obra que não necessariamente responderão aos

interesses de leitura de outras pessoas em outros momentos históricos.

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Portanto, a grande contribuição desses suportes teóricos (a focalização do

sentido em um receptor), vem participar da consolidação das modernas posições

lingüísticas e pedagógicas sobre leitura. O leitor é, segundo essas disciplinas, um

sujeito da aprendizagem e, portanto, um construtor de significados. Tal posição se

enriquece nas palavras de Maria do Rosário Magnani:

Sob o olhar interacionista, (a leitura) é um processo de construção de sentido. Oscilando numa tensão constante entre paráfrase (reprodução de significados) e polissemia (produção de novos significados), ela se constitui num processo de interação homem/ mundo, através de uma relação dialógica entre leitor e texto(...) (MAGNANI, 1989, p. 34).

Uma teoria poética que tenha relevância para o ensino de literatura não

pode, portanto, concentrar-se somente nas propriedades internas do texto literário. Não

se trata de ser indiferente à mímese (que se manifesta sobretudo na obra de arte), mas

acrescentar à ela a importância da katharsis, da poíesis e de outro conceito retomado

pela hermenêutica: a aisthesis. Essas três últimas funções evidenciam a

interacionalidade da natureza literária. Explicamos a seguir a relevância de tais

conceitos.

A mimese é a faculdade que a arte possui de representar a realidade. Parte do

princípio de que a arte imita a vida e é condição primeira da perspectiva marxista. A

mímese não é objeto de interesse de Jauss porque este se concentra na importância do

leitor para a constituição da obra literária, razão porque dá ênfase à katharsis.

Entendida como a concretização de um processo de identificação que leva o

espectador a assumir novas normas de comportamento social, numa retomada de idéias

expostas anteriormente (ZILBERMAN, 1989, p. 57), a katharsis é, em última

instância, um potencial da literatura para a emancipação, porque expande a

compreensão que o ser humano possui do mundo dentro do indescritível espaço do

instante, que responde intimamente à sensação de prazer. Assim Jauss nos explicita:

O espectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis). Esta descoberta e justificação do prazer catártico, com a

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qual Aristóteles corrigia o mecanismo do efeito direto , sobre o qual Platão apoiara sua condenação da arte, é por certo a herança mais provocante da teoria antiga do poético (JAUSS, 1979, p. 87)

Dito dessa maneira, qualquer elaboração teórica sobre o prazer, porém, corre

o risco de ser confundida com a defesa indiscriminada da fruição na leitura. Essa

eventualidade constitui grande debate desde Platão, que via como perigosa a atividade

dos poetas, pois eles teriam o poder, através das palavras, de iludir, ludibriar e, para

usar um termo mais atual, alienar. Já no século XX, Adorno condenava esse mesmo

aspecto alienante do prazer da leitura, ressaltando sua adequabilidade à sociedade

burguesa. É necessário considerar essa ponderação, posto que o fenômeno da leitura de

consumo se coloca como cada vez mais evidente.

Mas o prazer estético também possui outras dimensões intrínsecas ao status

de humanidade. Antônio Candido, por exemplo, aponta, entre as funções

humanizadoras da literatura a fantasia (1972). Jauss, por sua vez, resgata em Freud o

caráter de alteridade que há no prazer estético: o prazer estético da identificação

possibilita participarmos de experiências alheias, coisa de que, em nossa realidade

cotidiana, não nos julgaríamos capazes (1979, p. 99).

Dentro do processo de identificação que se compõe como katharsis, estão

inseridas a poíesis e a aisthesis. A primeira, segundo Jauss, é uma espécie de

presença implícita do leitor na constituição da obra, para o qual, o autor tenciona

realizar uma transformação lingüística e filosófica nos padrões literários vigentes.

Assim, por esse princípio também se pode compor a noção de vanguarda. Já a aisthesis

compõe-se como experiência do efeito que a obra de arte pode provocar no leitor,

assim como a capacidade que a mesma tem de renovar a forma de percepção do

indivíduo sobre a realidade. Explica-nos Regina Zilberman:

Como a poíesis, também a aisthesis justifica a orientação da arte contemporânea. Atribuindo a ela a finalidade de renovar a percepção, já que sempre foi uma das funções da arte descobrir novos modos de experiência

na realidade mutável ou propor alternativas para ela

(ZILBERMAN, 1989, p. 56).

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Das propriedades da literatura e da arte expostas acima, desdobram-se

alguns dos mais importantes conceitos metodológicos para os estudos de recepção. É

nesse momento da formulação teórica que a Estética se aproxima da Hermenêutica

enquanto possibilidade de análise conjunta. Toda a base metodológica resultante dessa

aproximação consiste em três ações, a saber: Compreensão, Interpretação e

Aplicação. De tais ações, desdobram-se as três etapas do chamado processo de leitura,

como nos esclarece Jauss:

As três etapas de minha interpretação (...) estão fundamentadas na teoria de que o processo hermenêutico deve ser compreendido como uma unidade dos três momentos da compreensão (intelligere), da interpretação (interpretare) e da aplicação (applicare). (JAUSS, 2002, p. 875).

O momento da compreensão deve ser entendido como horizonte de

primeira leitura, no qual o leitor se depara com o texto literário e o percebe como

objeto estético. É, dessa forma, o momento em que é possível perceber os efeitos

provocados pelo texto no receptor. Como o caráter do objeto estético também é

composto pelo prazer, é na primeira leitura que se pode observar se o texto literário

mobiliza as estruturas afetivas do leitor:

Estruturas afetivas compreendem a atitude geral face à leitura e aos interesses desenvolvidos pelo leitor. Fora de qualquer situação concreta de leitura, o indivíduo sente atração, indiferença ou repulsa pela leitura. Esta atitude geral manifestar-se-á de cada vez que o indivíduo for confrontado com uma atividade que põe em jogo a compreensão de um texto (GIASSON, 2000, p. 31).

É na investigação sobre a identificação do aluno com textos literários que

devemos sentir necessidade de avaliar e propor práticas sob a ótica do gosto pela

leitura. Não se trata apenas de avaliar se uma atividade pode causar ou não o prazer.

Trata-se também de perceber que, sendo sujeito da sua recepção, o nosso aluno

constrói, através da compreensão, o insaciável prazer de aprender e aprender a pensar

com o texto literário. Segundo Regina Zilberman:

Jauss não acredita que o significado de uma criação artística possa ser alcançado, sem ter sido vivenciado esteticamente: não há conhecimento sem

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prazer, nem a recíproca, levando-o a formular um par de conceitos que acompanham suas reflexões posteriores: os de fruição compreensiva (verstehendes geniessen) e compreensão fruidora (geniessendes verstehen), processos que ocorrem simultaneamente e indicam como só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia. (ZILBERMAN, 1989, p.53, grifo nosso).

Além da instauração da perspectiva fruidora (da leitura que se realiza pelo

prazer que o leitor manifesta), o horizonte de primeira leitura também compreende a

percepção formal do texto literário. Aqui, Jauss parte de princípios estruturalistas, mas

os inverte:

O texto poético se torna compreensível na sua função estética apenas no momento em que as estruturas poéticas, reconhecidas como características no objeto estético acabado, são retransportadas, a partir da objetivação da descrição, para o processo da experiência com o texto, a qual permite ao leitor participar da gênese do objeto estético. Em outras palavras(...): doravante o texto, descrito pela poética estrutural como ponto final e soma dos meios nele realizados, deve ser considerado o ponto de partida de seu efeito estético. Este deve ser examinado na seqüência dos pré-dados da recepção, os quais orientam o processo da percepção estética e assim limitam a arbitrariedade da leitura apenas supostamente objetiva (JAUSS, 2002, p. 876-7, grifos nossos).

O professor Alfredo Bosi traduz tal idéia de objetivação da descrição das

estruturas poéticas no processo de experiência com o texto através da formulação do

que chama de andamento, que é um efeito móvel da compreensão. Modo sonoro pelo

qual se dá a empatia entre o leitor e o texto. Nele se conjugam fôlego, intenção,

duração. Dele dependem, na leitura e na execução musical, as medidas internas do

ritmo (BOSI, 2000, p. 105, grifo nosso).

Dessa forma, essa leitura de compreensão se sucede na etapa de

interpretação (segundo horizonte de leitura), hermeneuticamente complementar à

primeira. Na verdade, enquanto a primeira etapa desse processo metodológico faz uma

busca dos constituintes formais do texto, juntamente com um sentido geral do que

está sendo dito, a segunda leitura, a interpretativa, fará um retorno do fim ao início,

do todo para as partes , agora em busca do sentido global, como nos explica Jauss:

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Agora a mudança de horizonte entre a primeira e a segunda leitura pode ser descrita da seguinte maneira: o leitor que realizou receptivamente, verso por verso, a partitura do texto e chegou ao final, antecipando constantemente, a partir do detalhe, a virtualidade do todo de forma e significado, apercebendo-se da forma plena da poesia, mas ainda não do seu significado igualmente pleno, quanto menos do seu sentido global (...)A partir da forma realizada, o leitor agora irá procurar e produzir o significado ainda incompleto por meio de uma leitura retrospectiva, voltando do fim ao início, do todo ao particular (JAUSS, 2002, p. 880-1. Grifos nossos).

Todo e partes se articulam simultaneamente no processo, solicitando

respostas do leitor às perguntas que ele mesmo tece durante o seu primeiro contato

com o texto, e às quais supõe-se cada vez mais aproximadas das questões que

motivaram a origem do texto. O que se espera, então, é que o leitor seja uma espécie de

investigador dos sentidos, realizando constantemente a busca de coerência entres as

partes integradas no todo. É preciso considerar, pois, que o processo de leitura não se

dá de forma linear. Trata-se de um movimento cíclico, como podemos perceber em

Bosi um diálogo com as idéias de Jauss, supracitadas:

O sentido para onde se move um poema não é obtido pela soma de fonemas e morfemas incluídos serialmente no texto. A hipótese do círculo filológico, elaborada por Leo Spitzer, na esteira de Schleiermacher e Dilthey, já desfazia o equívoco dessa técnica rudimentar e recomendava um ir-e-vir do todo às partes, e das partes ao todo: uma prática intelectual que solda na mesma operação as tarefas do analista e do intérprete (BOSI, 2003, p. 471. Grifo nosso).

Eis porque, através de teorias que se debruçam sobre a recepção, podemos

comprovar a falência de uma atividade de leitura que se paute em um texto

fragmentado. Não há processo cíclico e, por conseguinte, interpretação, sem que haja a

percepção do todo manifestado em cada parte. Jauss também valoriza o pormenor

porque sabe que sem sua presença na estrutura textual, impossibilitam-se os meios para

o leitor realizar sua interação com o texto.

A amplitude dessa interação se manifesta no terceiro horizonte de leitura,

em que se realizará a reconstrução dos condicionantes históricos do texto. O leitor

pode fazer, portanto, através da lógica da pergunta e da resposta , a tentativa de

compreensão do texto no momento em que ele foi concebido, como também pode

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analisar a recepção do mesmo texto em vários outros momentos históricos. Regina

Zilberman ressalta a importância desse momento: este gesto hermenêutico faz com

que o texto, até então mudo, volte a falar, ou seja, resgata o diálogo original a que ele

se propunha (ZILBERMAN, 1989, p. 68). É por isso que a perspectiva do leitor é tão

revolucionária para os estudos de teoria literária. Por que somente através dele se

poderá enxergar o texto no verdadeiro movimento histórico que determina a literatura.

A etapa da aplicação é indispensável, porque durante a leitura reconstrutiva o

intérprete verifica seu lugar na cadeia temporal (ZILBERMAN, 1989, p. 69).

Mas é necessário especificar melhor o que se estabeleceu por lógica da

pergunta e da resposta. Jauss cita uma frase de R. G. Collingwood, que corrobora seu

programa de ação: compreende-se o texto, quando se compreendeu a pergunta a que

ele dá resposta (ZILBERMAN, 1989, p. 37). Assim, fica possível a interpretação de

um texto pela reconstituição do diálogo entre seu público original e o subseqüente.

(ZILBERMAN, 1989, p. 114).

A retomada do horizonte de compreensão é conseqüência natural do terceiro

horizonte, pois quando o leitor se reporta às condições de recepção das várias épocas

em que o texto reanimou-se, reativa os problemas de sua própria recepção e dialoga

ideologicamente com a cultura em si:

Ao reformular a resposta tradicionalmente admitida pelo autor, em busca, de uma significação que não se encontrava no texto e que a recepção lhe deu, tão-somente a mudança do horizonte de experiência estética faz com que a questão implicada nesta resposta incorpore respostas que se ampliam com as marcas de cada época, ou seja, não necessariamente a mesma da origem do texto, mas aquela outra que se situa entre o passado e o presente (CORDEIRO, 2003, p. 40).

Como podemos ver, os três horizontes de leitura não ocorrem de maneira

estática, isolados um do outro. Eles se interpenetram e, muitas vezes, são

imperceptíveis. Como novamente fica claro com Regina Zilberman:

Reconhecendo as etapas mencionadas, (Jauss) chama a atenção para a interpenetração que acontece entre os diferentes momentos: na compreensão já está o início da interpretação e a interpretação é, portanto, a forma explícita da compreensão . Como a compreensão deflagra o processo

Page 48: A Recepção de Manuel Bandeira Na Sala de Aula: entre a

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inteiro, a explicitação desse começa por aí, fundamentada na lógica da pergunta e da resposta (ZILBERMAN, 1989, p. 67).

Vemos, portanto, que a lógica da pergunta e da resposta, chave da estética

da recepção, é um evento dialógico que parte da idéia de que o texto é sempre a

manifestação de uma resposta a uma pergunta. Compreender essa pergunta faz parte

da compreensão do texto. Mas se a pergunta é mutável? Se não há simultaneidades no

encontro dos leitores e dos autores? Como viver essa fusão de horizontes? E se quem

porta o texto o manipula, descontextualizando e fragmentando, na falsa pretensão de

compor uma história?

Nos capítulos a seguir, analiso situações concretas dessa manipulação

informativa, o que interfere no efeito estético.

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2º CAPÍTULO

A LEITURA DE MANUEL BANDEIRA ENTRE A FRAGMENTAÇÃO E A

LIBERTAÇÃO DO LIRISMO

Assim, imitaríamos os retóricos de nosso tempo, que se acham deuses por usarem duas línguas, como as sanguessugas, e consideram uma maravilha inserir em seu latim alguns pequenos vocábulos gregos, mosaico amiúde fora de propósito. Se as palavras estrangeiras lhes faltam, arrancam de bolorentos pergaminhos quatro ou cinco expressões arcaicas que deitam poeira nos olhos do leitor, de maneira que os que os entendem se pavoneiam, e os que não os entendem os admiram ainda mais. As pessoas, realmente, encontram um prazer supremo no que lhes é supremamente estranho. Sua vaidade tem parte nisso; riem, aplaudem, mexem a orelha como os asnos, para mostrar que compreenderam bem; é isso, é isso mesmo!

Erasmo de Roterdam. Elogio da Loucura

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2.1. Lendo Manuel Bandeira. Libertando o lirismo.

A leitura literária que neste capítulo se busca é uma leitura que envolva

vários contextos, de acordo com as realidades intermediadas pelos textos e pelos

suportes de que dispomos. Em primeiro lugar, temos a leitura dos poemas por si sós,

eles próprios como uma realidade codificada em linguagem. Contudo, deles emerge

uma realidade que se reflete, uma vida, um mundo de descobertas e representações

líricas. Em terceiro lugar, o foco deste trabalho exige uma leitura do suporte didático

que procura intermediar o aluno e o poema. Embora muito abrangentes, esses modos

de ler se complementarão para chegarmos a uma visão ampla, ainda que parcial, da

representação da poesia de Manuel Bandeira em um livro didático.

No manual dos professores Carlos Emílio Faraco e Francisco Moura, a vida

do São João Batista do modernismo é apresentada em linhas gerais: nasceu em

Pernambuco; estudou no sudeste; teve tuberculose; tratou-se na Suíça; na Suíça

conheceu vários poetas simbolistas. Em seguida é apresentado o poema

Pneumotórax

(do livro Libertinagem, 1930). Aí vem outra informação da sua vida:

Voltando ao Brasil, Bandeira passou o resto da vida no Rio de Janeiro, onde morreu

(FARACO e MOURA, 2001, p. 336).

Da forma como se dispõe o poema junto das informações, parece que o

poeta compôs Pneumotórax quando de seu tratamento na Suíça, o que não é verdade.

Outra ressalva que precisa ser feita é na forma como se apresenta a vida do poeta. Já

que se está falando de informações biográficas, que sejam apresentadas de maneira a

contribuírem de fato com a compreensão do poema. No caso de Manuel Bandeira, seu

tratamento na Suíça lhe aproximou de todo um arcabouço simbolista que se

manifestaria, sobretudo, nos seus primeiros livros, Cinza das Horas (1917) e Carnaval

(1919). Nesse primeiro momento, o tema da tuberculose se manifesta de maneira

melancólica e até mesmo trágica, visto que a doença arrebata de seu convívio sua mãe,

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50

sua irmã e logo em seguida seu pai. Tais informações são importantes, mas não são

apresentadas pelos autores didáticos.

A partir de seu terceiro livro, Ritmo Dissoluto (1924), o poeta inicia uma

outra forma de manifestação do tema da morte e da tuberculose (já tão trabalhado por

todo o século anterior), como nos ressalta Davi Arrigucci Júnior:

Quando se imagina a situação de um poeta moderno como Bandeira, cuja obra lírica nasce diante da circunstância dramática da ameaça da morte iminente, como se preenchesse o vazio de uma existência condenada pela doença fatal, na obrigada espera do desfecho iniludível, pode-se avaliar a importância não só do aproveitamento de um tema como esse, casado à condição básica da experiência poética bandeiriana, mas também de toda a linha de reflexão que ele envolve como um fator essencial para a compreensão do sentido mesmo da poesia na existência desse poeta. O aproveitamento levado a cabo por Bandeira representa uma renovação profunda do tópico, pela sabedoria construtiva com que soube inseri-lo numa nova situação histórica e pessoal, particular e concreta, para ele extrair sua mais íntima experiência, configurando, através da dicção humilde que lhe é característica, apoiado no lastro cotidiano de sua própria infância, uma atitude fundamental diante da morte (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1990, p. 225, grifo do autor).

Essa atitude fundamental diante da morte justifica o modo irônico com

que o poeta trata a doença em Pneumotórax . Pela mesma linha de raciocínio,

também se deve notar o tom de naturalidade e pureza com que outros poemas abordam

o mesmo assunto: O Menino Doente , Felicidade , Os Sinos , Anjo da Guarda ,

Profundamente , entre vários outros. Trata-se da concretização de um discurso

humilde composto no/do/sobre o cotidiano e a memória com que o poeta prepara-se

para a morte. É nesse mesmo sentido que Faraco e Moura afirmam: muito

provavelmente por causa da doença, a perspectiva da morte se exacerba na vida do

poeta bem como em sua obra. Um de seus mais conhecidos poemas trata disso

(op.

Cit., p. 337). Em seguida apresentam Consoada , sobre o qual poder-se-ia trabalhar

fortemente as determinações do cotidiano como uma forma de enfrentar a Indesejada

das gentes . Lição que pode ser enriquecida com a seguinte declaração de Ribeiro

Couto:

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Tendo atingido o máximo de angústia pessoal com a enfermidade, a perda iterativa dos entes mais caros e talvez outros dramas, sua desesperança assumiu uma forma violenta de falso cinismo, desenvolvendo assim o sarcasmo que já era patente em muitos dos seus versos. A partir desse tempo (que se pode fixar mais ou menos entre 1920 e 1922), ele realizará uma espécie de integração no natural. Sua poesia se enche do quotidiano, o quotidiano que às vezes é comovente, às vezes é ridículo. É quando nos falará de sua humanidade irônica de tísico . Todas as confissões de amargura passarão para a ordem indireta: ele as fará através das coisas, o córrego que chora como a voz da noite , o balão que cai nas águas puras do mar alto (...) Essa incorporação da vida cósmica que o cercava era um esforço para a libertação daquela queixa, daquele tormento obscuro e impressentido , seu leitmotif (COUTO, 1980, p. 49-50, grifo nosso).

A ânsia para libertação é, de fato, um foco central na obra poética de Manuel

Bandeira, mas é também o eixo das oposições (porque não falar em contradições?) que

sustentam seus poemas. É o que choca em Momento num Café , quando é a matéria

que está liberta para sempre da alma extinta , ou quando só o corpo pode se

comunicar em Arte de Amar . Também é o que enternece em Na Rua do Sabão ,

posto que nosso desejo mais imediato e sincero é que aquele balão, sendo uma dupla

representação (representa o menino que o fez e também o próprio poeta, ambos

tísicos), ganhe os mais altos espaços, mesmo sabendo que fatalmente cairá. Outros

efeitos do eixo-libertação podem ser: aquilo que provoca fortes exclamações em Boi

Morto ; a sublimação e o erotismo em poemas de Carnaval e outros como Estrela da

Manhã . A evasão para outras realidades, como em Vou-me Embora pra Pasárgada ;

ou ainda a desconstrução de uma linguagem poética obsoleta e a conseqüente

necessidade de novos princípios para a construção do verso, como é o caso dos tão

distintos Os Sapos

e Poética . Estes três últimos, sem dúvida, os mais encontrados

nas antologias escolares para o ensino médio.

Temos aí uma possibilidade para fazer um belíssimo trabalho no ensino

médio. Mostrar, por exemplo, como Manuel Bandeira busca uma libertação e a

constrói em seu lirismo de maneira a também libertar a forma do poema. Qual jovem

leitor imaginaria que uma declaração de amor, sempre construída com a clássica

idealização da pessoa amada poderia ser feita como em Madrigal tão Engraçadinho ,

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em que o verso e as relações sintáticas só são livres porque a declaração de amor

também o é:

Teresa, você é a coisa mais bonita que já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos. (BANDEIRA, 1993, p. 140)

Eis aí um poema que, assim como Namorados

e Teresa , deve constar

naturalmente em qualquer antologia escolar, porque rompe com uma tradição,

libertando o modo de ver a realidade através do atributo da impertinência (termo de

COHEN, 1978)

importante motivo para estudarmos a poesia9. Trata-se de poemas

bem conhecidos, mas, curiosamente, não os encontro em várias edições didáticas dos

mais diversos e conhecidos autores e editoras10. Enfim, não se pode esperar uma

totalidade de abordagens, principalmente de um poeta marcado pela unidade na

variedade , como diria Sérgio Buarque de Holanda (1987).

Procuremos, então, no material em que estamos detidos, uma abordagem

que se possa dizer mínima. Tratemos da versão fragmentada de Poética .

O poema vem antecedido por esta frase: um poema metalingüístico de

Bandeira sintetiza sua proposta literária: (FARACO e MOURA, op. Cit., p. 337). Seja

ela, então, nosso horizonte de expectativas. Vejamos agora como o texto se apresenta

ao aluno:

Poética

Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

[protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no [dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

9 Segundo Adorno, a lírica se mostra mais profundamente assegurada, em termos sociais, ali onde não fala conforme o gosto da sociedade, ali onde não comunica nada, mas sim, onde o sujeito, alcançando a expressão feliz, chega a uma sintonia com a própria linguagem, seguindo o caminho que ela mesma gostaria de seguir (2003, p. 74) 10 como exemplo, posso citar, nas suas várias edições: FARACO e MOURA; TERRA e NICOLA; INFANTE; CEREJA e MAGALHÃES, pra ficar entre os mais adotados.

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............................

Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

O título Poética

aponta de fato para um poema que se queira

metalingüístico, posto que consolida uma proposta literária e que pode ser resumida

nos versos a serem lidos. Por que a proposta literária de Manuel Bandeira se resume

nesse texto? Eis aí uma primeira questão ao nosso horizonte de expectativas. Nossa

análise tentará apontar possíveis respostas. Comecemos pela percepção dos elementos

formais.

É o verso livre que primeiro chama a atenção, mas certamente isso não torna

o poema livre de significância. Pelo contrário, esta opção pela ausência de métrica

aponta ritmos que darão o tom do poema. Também não há rimas, levando-nos a recuar

em nossa procura pelos efeitos sonoros que sempre nos encantam. Outras

possibilidades? Assonâncias? Aliterações? Não se mostram. Mas na estrutura geral do

poema, já observando a construção sintática dos enunciados, identificamos um

poderoso recurso capaz de prender nossa atenção: o paralelismo. Eis aí um dado formal

relevante que há de integrar nossos sentidos. A expressão estou farto se repete, mas

também se oculta, ocasionando um zeugma. Isso também ocorre com a expressão

quero antes . Tais recursos estabelecem com o leitor uma sensação de conforto, tão

mais comum nos textos em prosa, em que o sentido apresenta-se mais denotativo11.

Isso parece ser intencional, posto que encontramos versos de grande extensão na

primeira parte do poema, num gesto de aproximação programática da poesia para a

prosa.

11 Diz-nos Jean Cohen: A função da prosa é denotativa, a função da poesia é conotativa. A teoria conotativa da linguagem poética não é nova. A bem dizer, atualmente, encontramo-la em toda parte (op. Cit., p. 165).

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Na verdade, apenas esses elementos formais já nos permitem a dedução

tonal do poema12.Trata-se de um manifesto, em que se enuncia uma formulação crítica

sobre uma realidade literária e, paralelamente, propõe-se uma nova forma de fazer

poético. Segundo Gilberto Mendonça Teles, o manifesto compõe-se de linguagem

poética e linguagem crítica, numa fusão das intencionalidades metalingüística, poética

e conativa, culminando num gênero novo, múltiplo e paralelo. Pelas suas próprias

palavras:

A diversidade desses manifestos, às vezes também em forma de prefácio ou de poema, põe em cena um desdobrado horizonte de atitudes programáticas que estruturam o que se pode denominar de ideologia do novo, da qual não se foge impunemente. É dentro desse contexto ideológico que se percebem melhor as relações do jogo literário e o (des)contínuo movimento das idéias e das formas em disponibilidade para a obra literária (TELES, 1997, p. 10).

A leitura de Poética , portanto, deve ser feita em tom de proposição firme

de uma ideologia do novo , enfatizando o que não se quer, ressaltando o que se

precisa para mudar o que aí está. Essa solução sonora intensifica o sentido textual

expresso pelo seu conteúdo central ( estou farto ). Mas o que não se quer? O que deve

ser evitado para se construir um poema novo? Um lirismo novo?

Na versão fragmentada que estamos abordando, o poema está dividido em

duas partes. É na primeira que Bandeira relaciona o que não quer. Não quer o lirismo

comedido, característica que ele retoma um verso depois como bem comportado .

Para Bandeira, então, será importante que o comportamento dos poetas (metonímia de

lirismo) não esteja de acordo com padrões pré-estabelecidos. No terceiro verso, inicia-

se um elenco desses padrões que precisam ser alterados classificando o lirismo de

funcionário público . E acrescenta: com livro de ponto expediente e manifestações

de apreço ao sr. diretor . Assim, está deflagrada a crítica a toda postura clientelista

praticada pelos homens de letras da época. Nessa seqüência prosaica, porém sem

vírgulas e totalmente nominal (o que subverte o próprio prosaísmo da estrutura), o

poeta subverte a gramática e cria imagens que se acrescentam à idéia adjetiva inicial

12 Segundo a orientação de Alfredo Bosi: Se o leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao poema, ele já terá feito uma boa interpretação, isto é, uma leitura afinada com o espírito do texto (op. Cit. p. 469).

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( funcionário público ). Não se trata apenas de um modo lírico próprio de funcionários

públicos, mas de toda forma de produzir o conteúdo lírico a partir do burocrático (livro

de ponto e expediente) e do bajulatório (as manifestações de apreço). Estas afirmações

convergem com as de um brilhante ensaio de Roberto de Oliveira Brandão (1987), que

acrescenta:

Trata-se, pois de um lirismo que tem seu centro motivador fora do sujeito, modo subserviente e subalterno de proceder. É necessário apontar também, embora apenas de passagem, que ao empregar uma enumeração sem a separação das vírgulas, o poeta desorganiza e subverte, ao nível da linguagem, aquilo que está pressuposto na imagem do lirismo que ele recusa: a ordem e a mesmice como procedimentos mecânicos que destroem a originalidade (BRANDÃO, 1987, p. 24).

A estrutura de Poética

afina-se com as idéias manipuladas pelo discurso,

numa concretização da ânsia de libertação que já foi dita logo acima. Assim, Manuel

Bandeira liberta a forma do poema bem como tenciona libertar também os

constituintes mais profundos dos sentidos poéticos.

O que busca, então, esse poeta? O quarto verso antecipa, mesmo que mais

uma vez negando. Quando se critica um poeta que surta o momento da criação na

busca de uma palavra dicionarizada (ou seja, estática, não dinâmica porque não

utilizada nos movimentos do dia-a-dia), está-se procurando estabelecer a necessidade

do criar poeticamente pela inspiração, ou seja, pelo mergulho dentro de si. E

aprofundando: é o instante poético que está em jogo. No mergulho que busca, através

da visão, a cristalização de uma experiência pela linguagem, não há tempo que flua

naturalmente, horizontal como a prosa. O tempo da experiência poética é vertical,

instantâneo e reúne em si uma ruptura com a naturalidade das outras pessoas, das

coisas e da vida em geral (BACHELARD, 1994).

A criação poética carece, portanto, de instantes que se descompassam do

mundo. É por isso que o poeta é, muitas vezes, relacionado aos loucos. É por isso

mesmo que Bandeira enumera na segunda parte do poema uma necessidade do lirismo

dos loucos, dos bêbados e dos clowns. Posto que estes não acompanham o correr

natural (social, habitual) das horas e refazem na experiência marginal (ou

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marginalizada, na forma apassivada), o percurso fenomenológico da (re-)descoberta

das coisas13.

É o percurso marginal de descoberta uma maneira de estabelecer uma

libertação do lirismo. E o poeta sintetiza isso com o último verso: Não quero mais

saber do lirismo que não é libertação . Esta última palavra fecha o poema, deixando

claro o que se quer, mas só aparentemente visível a totalidade da proposta. Se o tom do

poema é o de um manifesto, ele se exalta com esse verso, o que é característica

marcante da poesia de Bandeira, segundo Alcides Villaça (1987). Ainda de acordo com

este, há vários versos conclusivos de poemas bandeirianos que são versos em que o

espírito, tendo atravessado o alvoroço da inquietação poética, parece encontrar

repouso. Catarse discreta em que, se fica ainda uma certa amargura, não permanece

ressentimento (p. 32).

O modo da exaltação e da catarse acha-se em uma dupla negação (não

querer o lirismo que não é) que contém em si a radicalidade da afirmação (querer o

lirismo que é) mantida pela insatisfação. Esta idéia deve-se novamente a Brandão, o

que não custa citar diretamente:

A dupla negação projeta para fora de si o seu oposto positivo, sem perder, contudo, a raiz da negatividade que o alimenta. Do interior da negação surge a forma ambicionada, não como coisa cristalizada, pois o sentido que é apenas sugerido e evocado conserva uma disponibilidade permanente, fonte do eterno lirismo. Atualizar a forma sugerida, isto é, dizer, por exemplo, que o último verso do poema tem o sentido de apenas quero o lirismo que é libertação seria eliminar aquilo que ele tem de mais significativo, que é a sua insatisfação, sua incompletude, componentes que perpassam toda a poesia de Bandeira (op. Cit., p. 28. grifo nosso).

Voltemos ao nosso horizonte de expectativas, aquele dado prévio do livro

didático de Faraco e Moura: Um poema metalingüístico que sintetiza a proposta

literária de Manuel Bandeira . As considerações levantadas sobre todo o trecho lido

13 O próprio Bachelard receia, por vezes, fazer uma leitura mais profunda (potencializada pelo instante) do poema O Corvo, de Edgar Alan Poe, porque afirma não poder romper tanto com o mundo e a realidade, e cria uma grande imagem ao fim deste depoimento: Raras são as noites em que tenho coragem de ir ao fundo(...) Então retorno ao tempo plano; eu acorrento, volto para junto dos vivos, para a vida. Para viver é preciso trair fantasmas . (op. Cit., p. 187, grifo nosso)

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apontam realmente para uma síntese, pelo título e pelas negações que são levadas ao

extremo, de uma proposta poética pautada na incompletude e na amargura .

Vejamos, porém, o que faltou para Faraco e Moura nos apresentarem:

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de

cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Se o trecho a que tivemos acesso nos trazia muitos elementos para analisar,

esses versos do interior do poema que foram ocultados do leitor nos acrescentam muito

mais. A reiteração não é um recurso desnecessário. Se os versos ocultados confirmam

o já dito, não necessariamente a repetição das idéias e da estrutura compõe algo que

pode ser esquecido. A lição de Alfredo Bosi nos ensina com clareza:

Entre a primeira e a segunda aparição do signo correu o tempo. O tempo que faz crescer a árvore, rebentar o botão, dourar o fruto. A volta não reconhece apenas o aspecto das coisas que voltam: abre-nos também, o caminho para sentir o seu ser. A palavra que retorna pode dar à imagem a aura do mito. A volta é um passo adiante na ordem da conotação, logo na ordem do valor (BOSI, 2000, p. 42).

Quando o eu-lírico afirma que está farto , está evocando uma sensação que

será potencializada justamente pela repetição. É preciso que a expressão não apenas

evoque o cansaço. É preciso que ela canse. Eis aí, portanto, uma sensação constante no

poema. Atestamos o cansaço não somente pela reiteração do estou farto , mas

também pelos versos de ritmos inumeráveis com os quais já nos deparamos. E até

mesmo a rima esdrúxula ( político, raquítico, sifilítico ) é capaz de cansar. Já que a

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enumeração explicita as causas do enfraquecimento de um lirismo rotinizado à

exaustão (GARBUGLIO, 1987, p. 36).

Na verdade, o poema busca a exaustão justamente quando atribui

qualificativos para o lirismo. Defender um lirismo político, ou namorador, etc. é pensar

numa forma de expressão lírica que dependa de um motivo para existir. Como se

pudesse haver uma fórmula para expressar os sentimentos, e o amante exemplar

pudesse delegar a um secretário essa incumbência que já não cabe mais em sua

atividade. O lirismo, dessa maneira, está à margem. Daí que, quando se manifesta

preferência pelo lirismo dos marginais (loucos, clowns e bêbados) apenas se estará

buscando o lirismo onde ele realmente se encontra, pra onde o mandaram. É o que

Roberto de Oliveira Brandão antecipou, como interpretação, ao afirmar que o lirismo

criticado é aquele que possui seu centro fora de si. Mas o próprio poema diz isso num

verso que não é apresentado pelo livro didático: De todo lirismo que capitula ao que

quer que seja fora de si mesmo .

Dessa forma, o livro didático ocultou do aluno um importante verso que,

dentro do contexto, ajuda-nos a compreender o próprio caráter libertador (ou libertário)

da poesia lírica. É que apenas no mergulho dentro de si é possível realizar a observação

individual da realidade, aquela que não é regida por nenhuma ordem, nenhuma regra

social, nenhum motivo pra existir. Existe por que não é possível ao homem livre a não-

criação. Faz parte de sua própria natureza e quando há essa busca, o homem encontra-

se em sua raiz, que só existe mediante a linguagem. Essa raiz também se vincula ao

mito. Porém, cada vez perdemos mais essa noção à medida que a tecnocracia

capitalista e burguesa rotinizou a comunicação, banalizou a imagem, esvaziou o

símbolo e fetichizou o ser. Tais considerações se acrescentam às de Alfredo Bosi:

A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a auto-desarticulação, o silêncio. O canto deve ser um grito de alarme , era a exigência de Schönberg (...) A poesia moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si a substância vital! Ó indigência extrema, canto ao avesso, metalinguagem! (BOSI, 2000, p. 165-6, grifo nosso).

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Eis que a metalinguagem em Bandeira configura-se como um uso literário

de resistência. O mesmo recurso que pode fechar também pode abrir as possibilidades

do poema. Se a expressão purista da metalinguagem parnasiana exclui o homem do

poema, Manuel Bandeira faz uso do recurso para libertar esse homem para o poema. E

novamente nos respaldamos em Alfredo Bosi:

Toda vez que por metalinguagem entendo o domínio antecipado e vinculante de um código, estou diante de um estágio avançado de reificação do fazer poético: é a ideologia acadêmica que, já na fase tecnicista, põe a nu o seu know-how. No entanto, posso entender por metalinguagem não a ostensão positiva e eufórica do código; não a norma, a regra abstrata do jogo, mas exatamente o contrário; o momento vivo da consciência que me aponta os resíduos mortos de toda retórica, antiga ou moderna; e com a paródia ou com a pura e irônica citação, me alerta para que eu não caia na ratoeira da frase feita ou do trocadilho compulsivo. Aqui a consciência trava mais uma luta e cumpre mais um ato de resistência a essa forma insinuante de ideologia que se chama gosto (op. Cit., p. 172-3).

A negação dos gostos líricos determinados pelas convenções sociais é o que

está manifesto no poema, o dito. Porém, segundo Naief Sáfady (1980), a expressão

lírica é enunciado e sugestão: Lirismo é tudo que sugere e diz simultaneamente, num

todo estrutural compacto

(p. 293). O que Poética

nos sugere através do discurso

metalingüístico é a necessidade de trazer para dentro do poema aquilo que está fora, ao

mesmo tempo que criticando aqueles que se julgam puramente dentro de um lirismo

que está voltado para fora de si mesmo.

Na mesma expressão dessa matriz centro-margem, se encontra o poema Os

Sapos que analisaremos a seguir.

2.2. Marginalizando do

texto o que está retratado no texto como marginal.

Faraco e Moura apresentam o poema Os Sapos da seguinte forma:

A principal característica formal da obra de Bandeira é o emprego do verso livre.

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Bandeira não participou diretamente da Semana de Arte Moderna, mas seu poema Os Sapos , lido por Ronald de Carvalho, provocou reações radicais na platéia da segunda noite da Semana.

Os sapos

1. Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.

2. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - "Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

3. O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado.

.....................................

O ataque aos parnasianos configurava, mais uma vez, a disposição dos participantes da Semana de provocar uma ruptura com a arte do passado (FARACO e MOURA, 2001, p. 336-7).

Neste duplo diálogo que estamos realizando (diálogo com o poema e com os

autores Faraco e Moura), cumpre primeiramente perguntar: Os Sapos ilustra o verso

livre como principal característica de Manuel Bandeira? Se há aí uma utilização de

um verso metrificado, como e porque Bandeira o utiliza? Porque Bandeira não

participou da Semana de Arte Moderna? Manuel Bandeira escreveu o poema Os

Sapos

somente para criticar os parnasianos? Temos aí apenas uma disputa entre

poetas tradicionais e novos poetas? Porque a leitura do poema provocou reações

radicais (terá sido só ele?)?

Várias outras perguntas podem ser feitas sobre o trecho lido e as

informações prestadas pelos autores, sobretudo se considerarmos a sala de aula um

espaço de imprevisibilidade. Porém, será que o trecho do poema que foi apresentado

pode gerar sentidos que não precisem da confirmação na totalidade do poema? É justo

que o professor ou o autor do livro didático retirem do aluno o seu direito de construir

seus próprios sentidos sobre o texto?

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61

Assim procedendo, dialoguemos diretamente com o poema. Eis aqui sua

continuidade:

4. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos.

5. O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio.

6. Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A formas a forma.

7. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas..."

8. Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei!" - "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

9. Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro.

10. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo".

11. Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

12. Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Verte a sombra imensa;

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13. Lá, fugido ao mundo,

Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é

14. Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio... (BANDEIRA, 1993, p. 80-1).

No conjunto do poema, alguns elementos nos fazem acreditar que seu

discurso é evidente e, nesse caso, pode assumir também um tom de manifesto, bem ao

estilo próprio da Semana de Arte Moderna. É verdade que foi uma boa escolha para

realizar as críticas que a cultura belle époque precisava ouvir. Porém, é preciso atentar

para os elementos da própria forma do poema para aprofundar nossa percepção dessas

críticas.

Segundo percebemos, o poema se divide em duas partes, de acordo com o

foco retratado pelo eu-lírico: a primeira é predominante e vai até a estrofe 11. A

segunda é regida por um novo olhar, uma nova descrição, levantados nas três últimas

estrofes. A rigor, não há diferença formal entre as duas partes: todas as estrofes do

poema são quadras de redondilhas menores (versos de cinco sílabas), e com variação

rítmica. Ora têm-se a cadência nas sílabas 3 e 5, ora 1 e 5, ora 2 e 5. Pode parecer

pouco, mas isso já é uma novidade para a época. Como afirma Norma Goldstein:

Dentre as inovações rítmicas do segundo livro (intitulado Carnaval), há inúmeros

casos de deslocamento de acento. Como no tão comentado Os Sapos (1987, p. 17).

Assim, pode-se perceber que mudanças na composição formal dos poemas

não eram muito comuns para a época dessa publicação, em 1918. Não obstante,

Manuel Bandeira produz um expressivo poema através de recursos já bastante

utilizados até então, e, assim como vimos em Poética , até abusa de fórmulas que

parecem surgir para provocar cansaço e enfado. Como exemplos, vejamos o uso das

aliterações e assonâncias. Na primeira estrofe, temos uma repetição das consoantes

oclusivas bilabiais surdas

/b/ e /p/

para gerar os sons da algazarra dos sapos.

Fórmula comum, essa sugestibilidade já não era nada nova para uma época tão

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63

acostumada com a palavra-símbolo e sua musicalidade. Mas Onestaldo de Pennafort

(1980, p. 106) já nos mostra que o poema surpreende com uma antítese a partir da

assonância das vogais /a/ (sugere claridade) e /u/ (sugere escuridão), que se tornam

evidentes se percebidas principalmente nas sílabas tônicas dos primeiros versos.

Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.

Já como elemento de representação, esse dado sonoro nos ajuda a localizar o

jogo de oposições do poema. Os sapos são seres de ambiência noturna, mas desejam

ardentemente aquilo que não podem ter

a luz. São criaturas da noite, mas se

encantam com o dia. Há aqui uma direta ligação entre a forma poética (as assonâncias

e aliterações), seu sentido imediato (as sugestões pela antítese luz X escuridão), e os

seres aí representados metaforicamente. E se já temos, como horizonte de expectativa,

o fato de que os sapos estão aí representando poetas, já antecipamos como conclusão

que os poetas representados são de uma esfera de aparências, voltados para algo que

não lhes é real.

Pois bem, saem da penumbra . E então vão cantar ou coaxar? A seleção

vocabular nesse caso é primorosa: Berram , dizem , urram , bradam , falam

pelas tripas ... soluça . As ações oratórias dos sapos são atividades representativas

dos estados humanos. São, então, metáforas de uma condição antes de tudo social:

agem pelo grito para se impor, se mostrar. O grito é disputa de atenções num espaço

onde não há quem queira dar atenção, como o único recurso existente para aquele

grupo existir naquele lugar.

E o que gritam os tais sapos? O que desejam expor em tal algazarra? A auto-

proclamação de seus méritos por títulos, parentescos e posses (inclusive de saberes). O

sapo-tanoeiro pinta-se como grande poeta, de versos puros ( frumento sem joio ),

rimas raras ( com consoantes de apoio e com palavras não-cognatas) e proximidade

ao trabalho dos artistas plásticos. É o sapo mais representativo do grupo, já que é o que

fala mais. É também aquele que podemos distinguir mais facilmente entre as pessoas

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criticadas pelo poema, já que seu discurso parafraseia a Profissão de Fé , de Olavo

Bilac, poema considerado como o hino da arte pela arte.

Os outros sapos descritos na primeira parte do poema são menos

identificáveis e aparecem como co-adjuvantes do tanoeiro, mas ilustram posturas

sociais definidas. O sapo-boi canta seus títulos de parentesco. Os sapos-pipas

batem palmas, como na postura descrita por Erasmo de Rotterdam, na epígrafe deste

capítulo: os que os entendem se pavoneiam, e os que não os entendem os admiram

ainda mais (op cit.)14.

Mas é no festival de vaidades que o poema está concentrado? O poema se

encerra nessa visível antítese (a mediocridade de quem se declara superior)? Se fosse

apenas isso, talvez pudéssemos até nos contentar com as três primeiras estrofes, como

aparecem no livro didático. Mas, como em uma pintura, em que o centro nunca é

necessariamente o ponto geométrico mediatriz, mas o foco de luz advindo da relação

claro-escuro, a segunda e menor parte dOs Sapos

reserva-se como o seu centro. E

ainda em antítese: o centro é aquele que está na periferia, na margem, na beira do

rio , é o Sapo-Cururu , em cuja sonoridade se concentram todas as sugestões de

inferioridade pela vogal /u/.

A propósito dessas sugestões fonéticas, Alfredo Bosi já nos adverte com

toda a tradição estilística que o que desnorteia os que buscam uma relação constante e

congruente entre tal som e tal sentido é a maleabilidade infinita com que o homem

trabalha a matéria fonética

(2000, p. 75). Portanto, a palavra cururu parece ter ganho

em nossa cultura um aspecto de escuridão, tristeza, mal-aventurança, negatividade (op

cit. p. 56-61), mas, potencializado no poema, Manuel Bandeira o torna o centro das

14 A título de curiosidade e em acréscimo a essas informações, procuramos no dicionário Aurélio Eletrônico, as particularidades dessas espécies. Sapo-Tanoeiro é a chamada perereca; Sapo-Boi é também conhecido como sapo gigante, um dos maiores do mundo. Sapo-pipa vive na água e não tem língua. O interessante dessa busca, na verdade, é a etimologia dos termos: tanoeiro vem do gaulês tanoer , indicando aquele que faz tonéis, trabalho minucioso, boi vem do latim e pipa vem do latim vulgar. Cururu, o sapo mais comum no Brasil, seria o único etmo propriamente brasileiro, vindo do tupi. Esse não nos parece ser um dado de todo irrelevante.

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atenções, remotivando a vogal /u/ para a claridade antitética já prevista no quarto verso

da primeira estrofe (A luz os deslumbra), sobre o qual já dizia Onestaldo de Pennafort:

Encontra representação magnífica a ambiência noturna e, pois, batraquial, da poesia, mercê, talvez da assonância da quinta vogal e quem sabe também da encantação operada pela sugestão latinizante lux-lumbra das suas duas palavras tônicas, em curiosa antilogia. Esse quarto verso do poema, unido ao contexto, com o qual contrasta artisticamente, no sentido como nos seus veículos expressionais, produz uma admirável impressão de contemplativo alumbramento noturno (op cit. p. 106-7).

Essa sugestão de Pennafort serve-nos de pista para a oposição básica no

nível discursivo do poema: As relações central-marginal do plano de conteúdo

relacionadas com a sonoridade plástica (plano do enunciado) que sugere iluminação-

escuridão.

Daí que não podemos acomodar nossa leitura literária sobre Manuel

Bandeira com as três primeiras estrofes dOs Sapos . Esquecer as três últimas estrofes

é esquecer uma das matrizes do texto, a que trata justamente de quem é esquecido no

Brasil, quem está à margem, na obscuridade de uma noite imensa .

2.3. O sorriso e a exclusão da sociedade na história da literatura

Até aqui pudemos observar como os poemas manifestam um jogo de

exclusão social representado pela oposição entre centro e margem, refletindo uma

realidade do início do século XX, sendo fácil, até certo ponto, identificar os atores

daquela sociedade em questão. Também temos aí uma boa oportunidade de

compreender em que aspectos a escola parnasiana é um alvo imediato do poema, à

medida que, na voz preferencial de um sapo-poeta, distingue-se uma doutrina que

privilegia a forma, exclui a emoção, tende a reduzir o conceito de beleza estética com

teorias e acaba matando o lirismo. A única coisa que ainda conseguia criar eram

convenções. E aqui cabem as considerações de José Carlos Garbuglio:

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Convenção em arte é igual a convenção em sociedade. Ambas têm a finalidade de guiar conforme o uso, devido ou indevido. Ao corroer a convenção poética pelo espírito satírico do poema, Bandeira está ao mesmo tempo se insurgindo contra a prática social que lhe dá sustento. Rebelar-se contra a poética e suas convenções significa investir contra a ordem social responsável pelas formas gerais do aprisionamento e ao mesmo tempo orientar a linguagem para a libertação (op. Cit., p. 35).

E libertação é uma tônica do modernismo que não implica somente em

novas formas de escrita, o que indica que o fazer literário é um agir dentro da vida. Era

e ainda é

preciso, pois, compreender o modo de vida, os interesses e as relações

sociais implicados nas posturas literárias para poder haver uma efetiva libertação.

Neste caso, o que se convencionou chamar de parnasianismo é mais do que o nome

pode expressar. Se o nome designa os cultores da forma e da objetividade como

processos de construção poética, seguindo os modelos franceses a partir de Baudelaire

e Leconte de Lisle, o grupo em si é a opulência de uma burguesia pós-colonial

envolvida por um clima de ostentação urbana. Se o ideal da arte pela arte representa

um conjunto de poemas descritivos sobre vasos, paisagens e jóias, essa pregação é o

pleno consumo. Pelas palavras de Antônio Candido:

É possível mesmo perguntar se a visão luxuosa dos parnasianos (e de alguns simbolistas), a sua descrição de vasos de porcelana, salas de mármore, metais preciosos, jóias, tecidos raros não representava para as classes dominantes uma espécie de correlativo da prosperidade material, e, para o comum dos leitores, uma miragem compensadora que dava conforto. Essa visão externa e opulenta aparece também no tratamento que os parnasianos deram ao corpo feminino, descrevendo-o com extrema sensualidade como se fosse estátua viva

portanto (numa leitura desmistificadora) reduzida ao nível dos objetos preciosos (2004, p. 75-6).

Em complemento, Alfredo Bosi nos esclarece que:

Baudelaire falava em moral das coisas , o que não significava impassibilidade, mas objetividade. Desta última, mal-entendida, passou-se em pouco tempo, ao fetichismo do objeto, à reificação, de que fala a crítica dialética ao analisar o espírito da sociedade burguesa nos seus aspectos autofruidores (1999, p. 221).

Assim, o parnasianismo configura-se como uma arte de e para uma classe

específica no Brasil, mas serve-nos historicamente como observação das raízes de um

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comportamento colonial resistente ao tempo. Justamente por ser colonial, é que se

trata, no dizer de Luiz Costa Lima, de uma cultura voltada para fora (1981, p. 20), em

que não havia um público formado para a palavra escrita, contentando-se com o

discurso oralizado (e não oral), ou mesmo lido, o que gerou uma ênfase na palavra

embelezada, mas não necessariamente entendida. Ainda com Luiz costa Lima:

O efeito de impacto produzido consistia em impressionar o auditório, em esmagar a sua capacidade dialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante a perícia verbal e a teatralização gesticulatória, maneiras de rapidamente subjugar o auditório. Pois a cultura auditiva15 é profundamente uma cultura de persuasão. Mas de persuasão sem o entendimento (op cit., p. 16).

À palavra, então, refém de uma cultura de dominação pela dimensão da

ostentação, só restava a exclusão de sua significância. Não precisava, no contexto aqui

descrito, haver compreensão, mas beleza. Não precisava haver poesia, mas artes

poéticas. Ao poeta, restava a aceitação da fôrma. E expressar-se liricamente, expor

uma motivação subjetiva, representaria banimento, esquecimento, a margem.

A realização da crítica aos cultores da forma (comumente identificados pelo

nome de parnasianos) por parte do poema Os Sapos

é, em conclusão a essa incursão

histórica, realização de uma crítica de classe, à medida que, paralelamente, concretiza-

se uma operação de solidariedade ao excluído, que é, certa maneira, identificação de

classe. É claro que não podemos negar a origem aristocrática de Manuel Bandeira, mas

suas experiências de vida, expressas na sua poesia de circunstâncias e desabafos ,

revelam-nos um homem inserido num violento processo de perdas e descobertas, num

caminho em que seus pares são os meninos carvoeiros, o menino tísico José de Na rua

do sabão , Irene, João Gostoso, entre outras personagens de alguns dos seus poemas

mais famosos.

É assim que Os Sapos

pode também ser entendido como um prenúncio do

que virá com a cristalização do modernismo

já muito claro em Ritmo Dissoluto e

incontestável em Libertinagem. Não se trata somente da libertação das amarras

15 Luiz Costa Lima não se refere com esse termo a uma cultura oral. Pelo contrário, diferencia cultura auditiva de cultura oral, atribuído àquela um sentido de dominação pela palavra escrita.

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parnasiano-simbolistas. Trata-se mais propriamente da valorização do estilo humilde,

modo poético que reflete a escolha temática da pobreza vista e vivida pelo poeta em

sua permanência carioca pós-tratamento de tuberculose. Segundo Davi Arrigucci Jr:

Os exemplos esparsos de emoção social do poeta , na verdade, são poemas em que a pobreza aparece como objeto da representação literária, isto é, como um assunto a que não se pode furtar um poeta com os olhos voltados para a realidade brasileira, onde a miséria é o prato de cada dia. Mas não é como tema que a pobreza, aqui importa. É essencialmente no modo de representação que se afirma sua importância fundamental: concebida como um valor ético de base, um modo de ser exemplar, a humildade se converte ainda num princípio formal do estilo (1983, p. 113).

Dessa forma, Manuel Bandeira concretizará um processo estilístico de

simplicidade da forma refletindo a simplicidade da vida. É assim que se apresentam os

poemas Na Rua do Sabão

e Meninos Carvoeiros , por exemplo, em que o verso

livre é uma exigência dos sentidos atingidos.

Os Sapos é anterior a isso, não possui verso livre, demonstra preocupação

formal de formação simbolista, mas não pode deixar de ser percebido como um ponto

de partida desse processo de formação do estilo humilde. Já aqui se representa a tensão

entre centro X margem e, em acréscimo: pompa dos sapos X humildade do cururu.

Há, portanto, uma profunda identificação do poeta com o sapo excluído, que é, por sua

vez, metáfora

pela sonoridade e etimologia

de várias parcelas da população

brasileira, sofridas como Manuel Bandeira (guardadas as devidas distinções). E essa

percepção fica bela novamente nas palavras de Arrigucci:

Neste confronto entre a ameaça inevitável de destruição e a fragilidade da resistência humana, pelo trabalho cotidiano e humilde, Bandeira de certo resgata um sentido de sua própria arte poética: a função social de sua palavra fraterna, solidária com a pobreza. Nisto sua poesia parece encontrar sua razão de ser, pois o poeta se sente amparado na experiência comum com os outros homens e pode reconhecer na força da fraqueza um poder paradoxal de expressão (op cit. p. 122, grifo nosso).

Esse poder vivo e constante do estilo de Manuel Bandeira pode e deve ser

entendido como essencialidade de sua obra. Por isso lutou, mesmo sem participar

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ativamente da Semana de 22, pela libertação da palavra dos modelos pré-estabelecidos.

Não verso-livre, mas verso-libertação.

E é nesse sentido que o poema nos impõe uma questão à historicidade do

texto literário, para a qual esperamos estar respondendo: se Os Sapos

enforma uma

realidade da convencionalidade poética dos parnasianos e se o mesmo representa um

manifesto contra o parnasianismo, qual a sua contemporaneidade, visto que aquela

realidade descrita não é a nossa realidade atual?

A pergunta acima põe em cheque a importância da leitura do poema, ou seja,

sua significância16, se, abordado da forma como é feita por Faraco e Moura, essa

leitura me serve apenas como fonte de conhecimento, ou melhor, de informação.

Porque para obter uma informação sobre a literatura, talvez não seja preciso mesmo o

poema, e apenas seus trechos sejam suficientes. Contudo, é somente conhecimento

sobre a literatura o que nos interessa? Apenas esse conhecimento é capaz de formar

leitores? Forma, em conseqüência, pensadores da cultura brasileira, já que, pela mais

importante lição de Paulo Freire, ler é, antes de tudo, ler a realidade?

Não podemos conceber como história da literatura uma postura que

fragmenta o texto ao nível da informatividade, regulando o que o estudante deve

conhecer sobre o texto literário e simplificando sua significância.

A realidade descrita no poema Os Sapos é a realidade de uma exclusão, de

dominação da cultura por uma classe. E não nos consta que a realidade brasileira tenha

deixado de ser assim. Assunto que parece um tanto silenciado (ou mascarado) na

escola.

É possível concretizar interpretações de outras ordens sobre esses tão

expressivos (e ao mesmo tempo sui generis) poemas de Manuel Bandeira. Mas o

percurso realizado até aqui já ilustra o propósito central deste capitulo, qual seja, a

16 Conceito estabelecido por Rifaterre, que nos diz: todo constituinte do poema que dirige nossa atenção para outra coisa significada será então uma constante e, como tal, será perfeitamente possível de a distinguir da mimese. Esta unidade formal e semântica que contém os índices de obliqüidade, chamá-la-ei, de agora em diante, de significância. Reservarei o termo sentido para a informação fornecida pelo texto ao nível mimético. Do ponto de vista do sentido, o texto é uma formação linear de unidades informativas. Do ponto de vista da significância, o texto é um todo semântico unificado (1989, p. 97-8).

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demonstração de que o texto fragmentado pelo livro didático pode até permitir uma

compreensão do dito, estabelecido na superfície mais imediata do poema. Porém,

outros elementos a que o jovem leitor não tem acesso acrescentam possibilidades de

interpretação das sugestões do texto, o que deve ser a nossa meta como professores.

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3º CAPÍTULO

POSSIBILIDADES E LIMITES

Há três classes de leitores: o primeiro, o que goza sem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, o intermédio, que julga gozando e goza julgando, é o que propriamente recria a obra de arte. Johan Wolfgang Goethe Apud JAUSS, 1979, p. 103.

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3.1. No espaço instituído

Depois dos estudos teórico e a análise literária, procedi com a aplicação dos

poemas Os Sapos e Poética em salas de aula do terceiro ano do ensino médio em

setembro de 2006. Essa aplicação relevou todos os aspectos institucionais da

escolarização do texto literário. Em primeiro lugar, obedeci ao currículo oficial e que

também concerne ao programa vestibular, que especifica o assunto modernismo e

Manuel Bandeira para a última série do programa escolar, de acordo com o critério

historicista17. Por conseguinte, as aulas foram trabalhadas em consonância com o

planejamento do professor regular de literatura para aquelas turmas da escola18. Foram

aproveitadas as suas aulas em cada uma das turmas de terceiro ano, perfazendo sete

aulas, sendo uma como observação livre dos procedimentos do professor, cinco dentro

do próprio planejamento de aplicação desta pesquisa e uma última aula ministrada em

conjunto (o professor e eu).

Em razão da oficialidade dos conteúdos e do ritmo de aulas do terceiro ano

da escola particular, só foi possível realizar a aplicação dentro desse espaço de tempo,

ou seja, uma aula em cada turma. Esse fato marcou sobremaneira a experiência, pois,

apesar de já conhecer aqueles alunos (fui professor deles dois anos antes), o espaço de

diálogo e de conhecimento prévio não foi tão positivo para mim quanto evidentemente

é para o professor estabelecido no dia-a-dia das turmas. De maneira que não foi

possível realizar observações do ponto de vista da participação. Assim, creio que as

reflexões que levantarei aqui podem ser relevadas apenas de maneira geral e talvez

contribuam mais como teorização do que como metodologia de ensino, embora saiba

que ambas são complementares.

17 Mesmo tendo em vista um crescente movimento de mudança dessa perspectiva, bem de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, vários vestibulares e, mais recentemente publicados, os Referenciais Curriculares da Paraíba. 18 Aliás, a participação desse professor abriu várias possibilidades para o encaminhamento das aulas.

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Os conteúdos e objetivos das aulas seguiram o historicismo19 que já foi

enfatizado nos capítulos anteriores. A intenção era observar como o parnasianismo era

discutido e criticado em Poética e Os Sapos , bem ao modelo que muito

observamos nos livros didáticos. Por isso, os poemas foram apresentados aos alunos da

forma como estavam, manipulados pelo material indicado pela escola, ilustrando os

conteúdos da 1ª Geração Modernista e a crítica ao parnasianismo.

Na seqüência, o plano previa que depois da leitura e discussão dos poemas

fragmentados, seriam apresentados os trechos que faltavam através de retroprojetor. A

intenção era, de acordo com a proposta recepcional de Bordini e Aguiar (1987),

estabelecer uma leitura no nível da compreensão do texto (primeiro horizonte de

leitura), de maneira a satisfazer o horizonte de expectativa dos alunos com os poemas

em seus trechos. Em seguida, era preciso questionar esse horizonte de maneira a

estabelecer uma procura por aspectos que ficaram em aberto com o trecho. Assim, a

interpretação e a fusão de horizontes (segunda e terceira leituras) só poderiam ser

concretizadas com o trecho complementar. Essa concretização é que seria responsável

pelo alargamento do horizonte de expectativas dos leitores. Segundo as mesmas

autoras:

O processo de recepção se completa quando o leitor, tendo comparado a obra emancipatória ou conformadora com a tradição e os elementos de sua cultura e seu tempo, a inclui ou não como componente de horizonte de expectativas, mantendo-o como era ou preparando-o para novas leituras de mesma ordem, para novas experiências de ruptura com os esquemas estabelecidos (p. 85, grifo nosso).

Segundo planejava, esses esquemas poderiam se estabelecer durante a

própria dimensão da aula, à medida que os alunos discutiam os aspectos do texto

fragmentado e esperavam mais dele. A possibilidade de trabalhar com poemas

fragmentados residia nessa perspectiva de usar o próprio trecho como proposição do

horizonte de expectativa e o complemento do poema como ruptura. Conheceria o

horizonte de expectativas à medida que, dialogando sobre a crítica modernista, seria

19 Ressalte-se que a intenção de trabalhar com o historicismo não necessariamente o nega ou defende, mas acima de tudo procura refletir didaticamente sobre suas possibilidades.

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possível saber o que os alunos pré-viam como básico conhecimento dos poemas

propostos. Atenderíamos ao horizonte de expectativas quando fosse dada aos alunos a

estrutura fragmentada dos poemas para satisfazer o conhecimento de que eles

estabelecem críticas aos poetas parnasianos. Supunha uma ruptura com o horizonte

expectativas quando propuséssemos a leitura dos complementos dos poemas. E

estaríamos questionando e ampliando o horizonte de expectativas à medida que fossem

levantadas com os alunos outras possibilidades de leitura a partir dos fragmentos

ocultados.

Eu contava que o trecho do livro didático se revelaria insuficiente,

principalmente para o poema Os Sapos ; que os alunos iriam demonstrar seus

horizontes de expectativas quando imediatamente questionados; que expressariam

incertezas no momento da leitura; e que poderiam se surpreender com os trechos dos

poemas que não lhes foram apresentados de início.

Contudo, o que se sucedeu foi, em boa parte do tempo, um silenciamento

pouco produtivo no que tange às falas de alunos. Por vários momentos eu fazia

perguntas e esperava, em vão, por respostas que, quando vinham, diziam pouco sobre o

que de fato aqueles jovens leitores poderiam estar elaborando sobre os textos20. Mesmo

assim, o silêncio não é necessariamente pouco significativo em uma pesquisa de

aplicação de poemas em sala de aula.

Num primeiro momento eu pensei que aquela situação era plausível, pois se

tratam de alunos que estão na etapa final de um processo silenciador, já que o caráter

da escola (e da maioria do sistema escolar, de forma geral) é conteudista e informador.

Pensei ainda que a necessidade imediata que aqueles jovens tinham era de esquemas

facilitadores que pudessem resumir as idéias gerais dos poemas. Além do mais,

acreditei que, se Manuel Bandeira não estava listado entre os autores indicados pro

20 Algumas hipóteses podem ser levantadas para a pouca participação dos alunos. Por exemplo: as diferenças de turmas por interesses das áreas do vestibular (humanas, exatas, biomédicas); alguns alunos talvez não simpatizassem com minha figura ou subestimassem minha capacidade em comparação com a do professor (que certamente possuía muito carisma entre os alunos); foi avisado desde o começo que aquelas aulas seriam gravadas. Enfim, muitas podem ser as variáveis que determinam a participação, sobre as quais não podemos nos concentrar.

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vestibular da Universidade Federal da Paraíba (principal interesse da maioria), não

haveria motivação de muitos dos alunos para assistir àquela aula.

Essas primeiras reflexões, de certa maneira intuitivas e apenas preliminares,

somavam-se com o levantamento que fiz paralelamente às aulas. Com um

questionário, eu procurei levantar as preferências de leitura dos alunos. O quadro a

seguir mostra os poetas que mais despertaram o interesse dos alunos durante sua

passagem na escola. Por ordem de vezes em que foram citados:

Mais citados: nº de vezes Augusto dos Anjos 31

Castro Alves 19

Carlos Drummond de Andrade 11

Mário Quintana 11

Gregório de Matos 9

Vinícius de Moraes 7

Cecília Meireles 5

Manuel Bandeira 5

Álvares de Azevedo 4

Olavo Bilac 3

Ronaldo cunha Lima 3

Aluísio Azevedo 2

Ariano Suassuna 2

Machado de Assis 2

Mário de Andrade 2

Cartola 1

Cruz e Sousa 1

Fernando Pessoa 1

Francisca Júlia 1

Giordano Fontes 1

Gonçalves Dias 1

Graciliano Ramos 1

Guimarães Rosa 1

Luiz Fernando Veríssimo 1

Lupicínio Rodrigues 1

Maiakóvsky 1

Modestino de arruda fontes 1

Paulo Coelho 1

Pixinguinha 1

Renato Russo 1

Shakespeare 1

Tomás Antônio Gonzaga 1

Nº total de questionados: 175

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À primeira vista esse quadro me indicava que os poetas que foram mais bem

recebidos pelos jovens (à exceção de Augusto dos Anjos) eram aqueles que estavam na

lista do vestibular da UFPB (primeira opção de vestibular em João Pessoa) durante sua

passagem pelo ensino médio (poetas em negrito). Estaria, dessa forma, explicado o

desinteresse pela aula sobre Manuel Bandeira que eu estava ministrando, já que ele não

constava entre as leituras obrigatórias que tão comumente fazem os alunos clamarem

por resumos?

Não posso me satisfazer com essa leitura simplista, mesmo que ela apresente

argumentos até certo ponto verdadeiros. Também preciso observar que a maioria dos

alunos que responderam ao questionário não gostam de ler poesia, o que leva a outras

reflexões sobre o processo inteiro de sua formação. Por isso, preciso refletir também

onde eu estava me equivocando no encaminhamento daquelas aulas. Por exemplo, em

nenhum momento eu dei aos alunos a oportunidade de ler os textos. Era sempre eu

quem os lia e dava a minha realização sonora. Por sua vez, os alunos, talvez

habituados, não chegaram a pedir para ler, o que oportunizaria experiências de

interpretação pela entonação das palavras no decorrer da enunciação, já que, com

Alfredo Bosi, sabemos que se o leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao

poema, ele já terá feito uma boa interpretação, isto é, uma leitura afinada com o

espírito do texto

(2003a, p.469).

Eram constantes as perguntas que eu fazia e para as quais esperava respostas

específicas. Não ouvindo as respostas, então, repetia as mesmas perguntas do mesmo

modo, o que aumentava a tensão da aula. Estaria eu fazendo as perguntas adequadas ou

estimulantes? Para as questões que eu levantava, aceitaria outra resposta que não fosse

a que eu pré-concebia?

Um exemplo disso se deu, mesmo em uma discussão sobre vocabulário,

quando eu perguntava: gente, o que quer dizer capitular? que aparece no verso de

todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. Uma aluna

respondeu: é se render . Não considerando suficientemente o que dizia a aluna,

procedi com a explicação que eu julgava mais cabível à idéia do verso: capitular vem

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de capítulo, que por sua vez vem de cabeça, ou seja, o lirismo que centraliza-se em

tudo que está fora de si mesmo . Mas porque não podia ter aceitado a resposta da

aluna? No momento eu não considerei que a idéia de se render aplicava-se no verso, o

que tem relevante sentido.

Percebo então, em uma simples situação de vocabulário, como podemos,

inconscientemente, contribuir com uma cultura de silêncio imposta à juventude,

marcada pela imposição de uma voz que poucas vezes deixa de ser a nossa e a do livro

didático. E vejo hoje, com a teoria, que essa voz é sempre nossa porque muitas vezes

não temos suficiente autocrítica que seja baseada em uma suficiente concepção teórica.

No caso da leitura literária, é preciso compreender a dimensão da nossa real tarefa ao

levar o poema para a sala de aula. Para que poesia? Por que ler um poeta de

determinada escola literária e outro não? Tais reflexões envolvem as questões de

formação do cânone e conduzirão a um certo relativismo, mas que precisa fazer algum

sentido para quem participa das nossas aulas.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que em boa parte das nossas

experiências ainda manifestam modelos teóricos há muito tempo questionados, mas

que, pela própria natureza do processo de mudança, ainda persistem. Um exemplo é a

explication de texte que, segundo Alfredo Bosi (2003b), parecia uma técnica estreita

saída de uma tradição escolar em que a raison raisonnante levara sempre a melhor

sobre a intuição e o sentimento (p. 18-9). Essa perspectiva pressupunha o texto como

uma unidade de idéias que se concretiza totalmente na organização dos enunciados.

Concebia-se, dessa forma, o trabalho da leitura literária apenas como uma ação

racional, em que a interpretação nada mais seria do que uma explicação (por isso o

nome) do que o texto (ou autor) está querendo dizer. Mesmo com suas vantagens21, a

explication não abre possibilidades para a experimentação das sonoridades e das

imagens. Além disso, a observação da historicidade do texto fica comprometida, pois o

máximo que o professor pode discutir em sala é o contexto histórico em que ele foi

21 Às vezes, esse modelo me ajuda a compreender, junto com os alunos, alguns poemas que me deixavam mudo. Posso dizer que sou mesmo levado a percepções reveladoras. Acontece-me bastante com Camões, por exemplo.

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78

criado. Ainda segundo Bosi, para que a imbricação de texto e contexto se efetuasse

com rigor metodológico, seria necessário que o explicador primeiro relativisasse suas

categorias de análise em vez de assumi-las como critérios de valor (op. Cit., p. 21,

grifo nosso).

Essa oportuna fala de Bosi identifica bem a situação em que nos

encontramos, ainda que a explication de texte não seja mais a única instância

engessada na tradição escolar. Na verdade, interessa bastante aqui a questão da

relativização das categorias de análise , além do uso do termo explicador . Com esta

palavra, ficam bem aproximadas as figuras do crítico e do professor como indivíduos

que precisam ter uma leitura em quantidade e qualidade acima da média, e

normalmente utilizam esse atributo para desvendar os mistérios do texto. Segundo Ivan

Teixeira, uma visão comum e superficial que se tem do crítico é de que ele seja o

indivíduo que lê melhor do que a média das pessoas, e sua função primordial seria

transmitir noções que orientassem a leitura, o estudo, a análise, a interpretação e a

avaliação de uma obra de arte literária (1998, p. 37).

Na verdade, pensarmo-nos como explicadores significa uma tarefa de

observar os dados discursivos do texto em toda a sua amplitude, simplificando-os para

um outro leitor que, por motivos tão variados quanto desconsiderados, hipoteticamente

não têm uma leitura tão apurada quanto a nossa. A prova incontestável dessa visão do

professor como explicador é a existência do resumo, que já aparece até como uma

exigência de muitos alunos.

Dessa forma, ser explicador é ser uma espécie de portador do sentido do

texto literário, de maneira que, sem esse sujeito, a leitura se processa pobremente.

Wolfgang Iser, em O Ato da Leitura, desmistifica essa perspectiva, colocando em

xeque o trabalho desse crítico (que aqui aproximamos do professor) como o intérprete

portador do sentido:

Page 80: A Recepção de Manuel Bandeira Na Sala de Aula: entre a

79

Se o autor sofre uma perda através da significação desvelada pelo crítico (...) então o sentido é algo que pode ser subtraído do texto. Ao extrair o sentido, enquanto núcleo próprio da obra, esta se esvazia; por isso, a interpretação coincide com a consumptibilidade da literatura. Tal esvaziamento, contudo, não é apenas fatal para o texto, pois é suscitada a pergunta: em que se pode fundar ainda propriamente a função da interpretação, se ela, através da significação tirada da obra, a abandona como uma casca vazia? (1996, p. 25-6).

Em outras palavras: se for possível a um explicador a capacidade de

explicar um texto literário por completo, ou seja, resumir todo o seu conteúdo e

facilitar isso a alguém, de que servirá a esse alguém a leitura da obra em si? Para que

ler um texto que já está decifrado? Portanto, essa perspectiva na Estética da Recepção

questiona, na raiz, o trabalho de interpretar, posto que, se compreendido como

intermediador ou explicador , o intérprete se estabelece soberbamente dentro do

modus operandi da comunicação atual, pois a pragmática das relações nesta realidade

orienta para a explicação imediata, avessa a viagens , onde o texto literário deve ser

acessível. E entenda-se por acessibilidade a referencialidade do significado. Não é

precisamente isso que muitos alunos pedem quando querem um resumo ou um bizu

para o vestibular?

É aqui que vejo um contraste entre o ensino de literatura e a realidade

educacional em que estamos. Já que o sentido não é redutível a um significado

referencial e o significado não se deixa reduzir a uma coisa (op. Cit., p. 29), a procura

pela explicação da obra literária não pode se fundamentar na descoberta de um

sentido oculto , um segredo que o autor escondeu nas malhas do texto. De acordo

com essa mesma proposição, a leitura do texto literário vai além da relação Sujeito-

Objeto, pois o sentido de uma obra nunca é somente um objeto a ser assimilado pela

consciência de um sujeito. Na verdade, todo leitor, sendo sujeito de uma relação de

comunicação com a obra, deve satisfazer a um estado de suspensão da realidade que

a obra propõe. Esse jogo de adentramento ao texto requer que o seu sentido seja antes

uma imagem do que uma idéia ou conhecimento referencial. Sendo assim, o sentido

não é mais algo a ser explicado, mas sim um efeito a ser experimentado (op. Cit., p.

34, grifo nosso).

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80

Por essas considerações, concluímos que o ato intelectivo do crítico ou do

professor de explicar o sentido da obra pode esvaziar o possível efeito que ela provoca

no leitor. Isso certamente derruba o trabalho de uma grande variedade de professores

que preparam suas aulas na expectativa de fazer com que os alunos compreendam o

sentido do texto que estiver posto em questão. Desmistifica também muitos materiais

didáticos que se concentram na apresentação de um conteúdo, uma informação sobre

algo, sendo esse algo precisamente o texto literário, ou pior, sobre o autor. Mas então,

diante dessa realidade, o que nos resta fazer?

Se o papel do professor não é necessariamente orientar a leitura, o estudo, a

análise, a interpretação e a avaliação de uma obra de arte (ainda que muitas vezes seja

preciso realizar esse esforço porque o horizonte de expectativas do jovem leitor pode

não entrar em sintonia com a obra e ele acaba por rejeitá-la); se também não podemos,

como critiquei no primeiro capítulo, resumir nossos conteúdos no historicismo e nos

fragmentos confirmadores das características das escolas, uma forma de enfrentar o

impasse pode ser a adoção da postura de que o professor é, antes de tudo, um ser

humano debruçado sobre uma realidade. Ou seja, não se trata de um profissional do

acúmulo do saber; nem tampouco se espera que seja um intérprete de voz superior à

das outras pessoas.

Contudo, podemos perceber que muitos alunos estão acostumados com essa

visão do professor, bem como com a concepção historicista do conteúdo, que por sua

vez é o acúmulo de saber a que me referi. Tanto que, na hora de interpretar Os

Sapos , por exemplo, alguns alunos de uma turma internalizaram ao poema

exatamente uma concepção dos embates entre as escolas literárias que eles tanto se

acostumaram a ver no ensino médio. Quando perguntados sobre o sapo-cururu que o

poema destaca, pensavam que ele poderia ser um poeta romântico ou mesmo

modernista, desde que não estivesse incluído no grupo dos poetas parnasianos ou

simbolistas, os alvos do poema. Em outra ocasião da mesma turma, um aluno

afirmou que entendia que a luz que está dita no quarto verso da primeira estrofe ( a luz

os deslumbra ) poderia ser, metaforicamente, a luz da modernidade, da novidade. Ele

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não percebera que os poetas parnasianos não podiam se deslumbrar com aquilo que

eles preferiam ignorar. De toda forma, também era válida a leitura desse aluno, já que

ele destacava uma poderosa metáfora do texto, à qual nos referimos no segundo

capítulo. Dentro da estética da recepção, podemos dizer que ele compreendeu, mas não

interpretou. Infelizmente não aproveitei essa percepção, já que estava mais preocupado

com o tempo da aula.

É importante considerar as questões históricas determinantes ao texto, mas

por outro lado é essencial que a análise se paute nos elementos internos a ele,

primeiramente de dentro pra fora. Já na ordem oposta, de fora pra dentro, a história da

literatura há de ajudar, no caso de leitura aqui estudado, para compreender situações

descritas e metáforas que projetem a realidade e as condições de produção do texto.

Ivanda Martins afirma que ensinar literatura não é apenas elencar uma série

de textos e autores e classificá-los num determinado período literário, mas sim revelar

ao aluno um caráter atemporal, bem como a função simbólica e social da obra literária

(2006, p. 91, grifo nosso). De fato, repensar o conteúdo é importante (e é o que

fizemos no primeiro capítulo), mas também precisamos repensar as atitudes do

professor. Penso que se apenas revelarmos as significâncias simbólicas, históricas e

sociais de uma obra aos alunos, estaremos ainda satisfazendo a transmissão de

conteúdos, porque os portadores do saber ainda seremos nós. Talvez, em vez de

revelar

a professora devesse dizer, nesse caso, discutir , ou possibilitar que os

alunos tenham revelações sobre o texto .

Estou convencido de que o papel do professor é, tomando uma posição

coerente entre as correntes ideológicas do seu tempo, dedicar-se à análise dos

contextos e de como a obra encerra essa realidade dentro de si. Buscar a pergunta

original a que o texto responde, para de posse do problema, compartilhá-lo com o

aluno, e deixar que ele busque suas respostas, usando a leitura como metodologia

essencial, num gesto de pesquisa filosófica tão contrário às tecnologias da informação.

Evidenciam-se aqui, em diálogo, as perspectivas: sociológica de Antônio Candido; e a

valorização do leitor, com a estética da recepção.

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Em suma, nosso trabalho é problematizar a realidade. Como dizia o

grande educador:

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada (FREIRE, 1987, p. 70).

E problematizar a realidade não significa optar por uma ação sociológica em

detrimento do texto e da formação de analista da linguagem. Pelo contrário, quanto

mais possibilitarmos que o aluno assuma também a posição de um analista da

linguagem, mais aprenderemos e nos aproximaremos da posição defendida por Paulo

Freire, que é sermos educandos-educadores. Além disso, é preciso deixar o aluno

realizar com o texto a sua própria problematização da realidade para, em seguida,

discutir coletivamente os problemas da linguagem ali manifestados, porque a

compreensão dos sujeitos no processo vai se tornando crescentemente crítica .

De fato, parece que nessa perspectiva de debater linguagem e realidade

numa manifestação coesa (ou seja, debater como a realidade que se enforma no texto

se relaciona com a realidade externa a ele) pode ser possível vincular Literatura e

Educação, pois se o professor atua como crítico explicador , estará assumindo apenas

seu sistema de valores e os impondo aos alunos, trabalhando assim com um conceito

absoluto (e falho) de verdade. Estará, conseqüentemente, alimentando uma educação

bancária que, como identificada por Paulo Freire, é aquela em que o educador é o

sujeito, e o conhecimento é um produto, exato e quantificável.

Nesse conjunto de desencontros é que ocorre, conseqüentemente, o

desencontro de maiores proporções: entre o jovem e a poesia. Pelo questionário que foi

aplicado com as turmas de terceiro ano, pude observar a aversão pelo gênero, ainda

que a maioria dos alunos manifestasse que gostam de ler e que, saindo do ensino

médio, continuarão lendo literatura:

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83

Já discutimos várias noções do que leva a esse desencontro: livro didático,

sala de aula, provas, leituras obrigatórias, exercícios pouco inspiradores, etc. Mas é

difícil precisar no dia-a-dia o que fazem a escola, ou os professores, ou a teoria

literária, para que o jovem não afirme tanto interesse pelo texto poético. Segundo

pesquisa de Euda de Araújo Cordeiro (2003), que entrevistou alunos e professores da

1ª série do ensino médio de escolas públicas e particulares de Campina Grande (PB) no

ano 2000, um dos fatores determinantes desse problema era a metodologia de muitos

professores, centrada quase sempre no roteiro oficial da história da literatura,

respaldada pelo vestibular. Segundo a estudiosa, também amparada na estética da

recepção, a seleção do texto literário que deve ser trabalhado deve dialogar com os

interesses dos alunos, dialogando com sua realidade.

Essa perspectiva, já aqui discutida, serve de argumento para a segunda

experiência desta pesquisa, que é a reversão do conteúdo já discutido (Manuel

Bandeira), sendo aplicado, agora, para a primeira série do ensino médio, procurando-se

obedecer ao princípio de que é preciso ouvir a voz do aluno.

1. Dimensão do interesse independente pela leitura Pergunta: Ao término dos seus estudos de Ensino Médio, você

procurará fazer habitualmente a leitura de textos literários?

(sim) 111

63,30%

(não) 59

34,70%

Total 170

100%

2. Dimensão do interesse por poesia Pergunta: Você gosta de ler poesia?

(sim) 67

38,30% (não) 108

61,70% Total 175

100% 1 aluno enfatizou que odeia poesia; 1 não soube opinar e 2

disseram que gostam de poesia mas não a entendem.

Page 85: A Recepção de Manuel Bandeira Na Sala de Aula: entre a

84

3.2. Outro espaço. Outras leituras

Iniciei o ano de 2007 com minhas turmas de primeiro ano discutindo

algumas relações básicas entre literatura, arte e realidade. Uma das questões que foram

postas desde o princípio era a dimensão do gosto e sua formação. Perguntava aos

alunos se é possível discutir os gostos pessoais das pessoas, atrelando a essa discussão

o próprio status do que seja o fenômeno artístico ou literário. Muitos diziam que

questão de gosto não se discute e que gostar ou não de uma obra depende sempre do

ponto de vista . Procurei não fechar essas discussões, já que elas são a base da estética

e da hermenêutica, mas propus uma reflexão sobre como a formação de nosso gosto é

inconclusa, e que discutindo-o, compomos novos gostos, já que ninguém nasce com

seus interesses pré-definidos22.

Essas perspectivas culturalistas e estéticas constituíram, de certa maneira, o

método de aplicação dos poemas de Manuel Bandeira àquelas turmas. Além disso, eu

procurava pensar, segundo as propostas de Pinheiro (2001), dos PCNEM (2006) e de

outros estudiosos, que era preciso partir da realidade dos alunos e privilegiar a leitura

das obras, possibilitando, mais do que decorar as características dos estilos de época,

compreender, a partir do contato com os diferentes gêneros literários, o seu efeito.

Manuel Bandeira parecia um bom autor para essa perspectiva, por sua produção ser tão

diversa e tão formalmente refletida.

Essa diversidade foi um dos primeiros critérios para a seleção dos textos que

deveriam ser apresentados. Por isso, compus a antologia inicialmente com

Desencanto , poema que enforma um modo tradicional de versificação, bem como

tematiza e conceitua o lirismo por uma comum idéia de que a poesia se constrói com a

dor, pelo menos para Bandeira e para uma grande variedade de poetas. Além disso,

poderia trabalhar também alguns conteúdos tradicionais como rimas, metrificação e

ritmos. A intenção não era priorizar essas dimensões formais, mas observar a maior ou

menor aceitação, pelos alunos, dessa formatação do texto poético. Com essa

22 No momento das aulas, intui essa dimensão, à qual ainda não tinha dado conta.

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observação, eu me propunha a identificar o horizonte de expectativas dos jovens, o

que serviria de base para realizar as discussões posteriores.

Outro conteúdo que se fez necessário como pressuposição a essa experiência

foi o de funções da linguagem, que em vários contextos utilizamos para evidenciar as

dimensões objetivas das várias manifestações discursivas. Nesse caso, o meu trabalho

se concentrou em, após explicar as funções referencial, emotiva, conativa, fática e

metalingüística, evidenciar a desbanalização 23 das mensagens cotidianas através da

função poética da linguagem. Para isso, usei como exemplo a música Eu te amo , de

Vinícius de Moraes e Chico Buarque, o que provocou bastante prazer nos alunos, que

apenas me ouviram recitando, mas logo pediram fontes para ouvir com calma a

música. Nesse caso, um ponto alto do poema, identificado pelos alunos, era o verso

teus seios inda estão nas minhas mãos , que causou certa agitação entre os jovens de

ambos os sexos. Outro ponto do horizonte de expectativas se delimitava aí.

Para observar como Manuel Bandeira construía a função poética pela

desbanalização da linguagem, listei na seqüência da antologia os poemas Madrigal tão

engraçadinho , Porquinho-da-Índia e Namorados . Dessa forma, eu esperava uma

ruptura com o horizonte de expectativas, já que também ocorre nesses textos uma

manifestação de concepções amorosas bastante intrigantes, além da ruptura formal

(verso-livre) e da tão rara (até a época em que os poemas foram lançados) presença do

humor.

Depois de toda essa preparação é que julgava que poderia ser interessante a

leitura de Os Sapos e Poética (dessa vez vistos sem a fragmentação) com aquele

público. Não queria realizar muitas discussões de caráter historicista no decorrer do

23 Esse foi, apesar de criado no calor da aula, o melhor termo que surgiu para, na linguagem dos alunos, explicar o estranhamento e a quebra de expectativas que a poesia moderna carece para transformar a realidade transformando a linguagem. Pelas próprias palavras de um poeta:

Na linguagem prosaica as palavras se tornam imperceptíveis porque estão ajustadas a uma ordem habitual; o poeta introduz entropia (desordem) na linguagem e assim revela de novo as palavras. Há certa verdade nisto: o poeta de fato bagunça um pouco o coreto da linguagem. Mas não para que as palavras se tornem perceptíveis. Desarruma-o para romper a crosta verbal que impede o aflorar, na linguagem, da experiência viva (GULLAR, 1989, p. 42).

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trabalho, por isso, o material apresentado aos alunos foi todo composto sem

explicações ou comentários para que, diretamente apresentada aos poemas, qualquer

pessoa pudesse fazer suas observações e, se possível, pelo tempo e pelo

encaminhamento das aulas, construir seus próprios significados sobre a leitura. O

pressuposto desse encontro do respeito à construção dos alunos com a vontade de

experimentar coisas novas deveria evidenciar o prazer da leitura literária como está

dito na epígrafe deste capítulo

no intermédio entre o julgar sem gozar e o gozar sem

julgar, ou seja, recriando a obra de arte através da fruição crítica sobre o texto.

Assim, eu também teria que realizar um trabalho muito forte comigo

mesmo, no sentido de que aqueles jovens leitores deveriam se expressar o máximo que

quisessem, e a minha voz não deveria se impor como uma autoridade inquestionável

(como discutido no item anterior). Isso também pedia uma contrapartida dos alunos, já

que seria preciso que eles ainda não fossem totalmente moldados ao ensino bancário,

esperando que eu lhes desse respostas e informações prontas para eles decorarem.

3.2.1. Identificação e ruptura com o Horizonte de Expectativas

Para iniciar as discussões sobre o lirismo manifesto nos poemas de Manuel

Bandeira, recorri a saberes tradicionais, como por exemplo: gênero lírico vêm da

palavra lira , que era um instrumento musical da Antigüidade, usado no

acompanhamento das canções sentimentais da época. Com o desenvolvimento das

artes, sobretudo no Renascimento, a música e a poesia começam a ser cultivadas

separadamente e as duas se tornam manifestações artísticas independentes, mas a

poesia vai guardar muitos recursos musicais em sua estrutura... 24 Então comentava

didaticamente que os recursos do texto poético podem ser, de forma geral, de

composição sonora, sintática, semântica ou visual. Mas não queria fazer uma lista de

24 Hênio Tavares elenca, entre outros, vários poetas e críticos que definem a poesia a partir de sua relação com a música. Cf. 1974, p. 162.

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figuras de linguagem ou outros recursos. Na verdade, procurei discutir tais recursos à

medida que cada um aparecesse nos poemas que fôssemos lendo.

Durante as discussões sobre o poema Madrigal tão engraçadinho , eu

perguntava se os alunos consideravam aquele texto um poema. Aprofundaremos essas

reflexões adiante, mas agora é oportuno comentar que algumas respostas dos alunos

declaravam com convicção que faltava àquele texto as rimas, a estruturação em

estrofes e o falar de amor e sentimentos profundos . Essas colocações nos ajudam a

conhecer o horizonte de expectativas dos jovens, que eu pressupunha que indicariam

como elementos essenciais: a musicalidade como forma e o sentimentalismo como

tema. Por isso é que iniciei as leituras com Desencanto :

Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca.

Eu faço versos como quem morre. (BANDEIRA, 1993, p. 43)

Após a leitura silenciosa do texto, senti didaticamente que a primeira coisa

que precisava ser feita era o reconhecimento do vocabulário. Depois disso visto pelos

próprios alunos com a ajuda do dicionário, partimos para a leitura em voz alta do

poema. Houve turmas em que alguns alunos não se concentraram, ou alguns até

mesmo riam enquanto liam. Não chamei atenção ou desvalorizei a tentativa, mas vejo

hoje que essa postura de alguns dificulta sobremaneira qualquer contato de prazer com

o texto, já que é preciso que ocorra uma identificação. Segundo Jauss, o prazer

estético da identificação possibilita participarmos de experiências alheias, coisa que,

em nossa realidade cotidiana, não nos julgaríamos capazes (2002a, p. 99).

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A pouca identificação me parece justificada pela pouca convivência

daqueles jovens com as dores descritas no poema, seja por sua idade, por sua classe

social ou mesmo pelas vivências que têm na atualidade. O sofrimento de Manuel

Bandeira, ocasionado por tantas perdas familiares e pela doença mortal da época

a

tuberculose , não se aproximam, de modo geral, da realidade da juventude do século

XXI. Quando perguntados se gostaram, a maioria expressava duas respostas: que

gostavam porque é um poema profundo ; ou que não gostavam porque era muito

triste . Com isso, cheguei a pensar que aquela não tinha sido uma boa escolha para a

percepção do horizonte de expectativas.

Contudo, pelo aspecto formal, a experiência pôde ser válida pela aceitação

irrestrita daquele poema como belo e sua enunciação como totalmente poética. Daí que

trabalhei um pouco como conteúdo25 o jogo de rimas do poema (classificando-as como

alternadas), a metrificação e o ritmo (com a explicação do conceito de cesura e sua

clara identificação no texto, depois da quinta sílaba de todos os versos, que eu somente

percebi quando ministrava as primeiras aulas). Apesar da maioria já ter visto os dois

primeiros assuntos no ano anterior, manifestaram interesse por inclusive praticar no

quadro a separação de sílabas poéticas.

Mas em algumas salas pudemos ir além dessas observações tradicionais. Por

exemplo, a aluna Rosa26 (turma A) questionou curiosamente o porquê da presença do

travessão no final do poema, elemento sintático que até então não fazia diferença

nenhuma pra mim e me deixou naquele momento sem resposta. Assim, devolvi a

questão para a turma, acrescentando que não parecia haver ali uma espécie de outra

fala, como comumente é visto no texto ficcional. A aluna Dália respondeu que o

travessão t aí pra dar ênfase . Outra aluna, Margarida foi ainda mais longe, ao

perceber que o último verso é uma espécie de síntese de todas as formas de fazer

25 Considero inevitável trabalhar esse e outros conteúdos, já que ele emerge da situação de leitura e a dimensão avaliativa que nos cerca exige alguma cobrança. 26 Este e todos os nomes de alunos e alunas foram substituídos por nomes fictícios, baseados em pássaros e flores, para preservação da identidade.

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poético que foram enunciadas no decorrer do poema27, no que teve sua opinião

totalmente aceita pela turma. Procurei valorizar as duas possibilidades, posto que são

plausíveis à construção dos sentidos.

Dessa forma, a capacidade interpretativa dos jovens leitores pode ir se

ampliando no decorrer da leitura e do questionamento aos seus olhares. Quando são

problematizados alguns aspectos sobre os quais o professor não tem respostas fica

instaurada a dimensão do desafio de que Paulo Freire falava. E daí podem surgir

percepções muito interessantes sobre a obra.

Outra fala interessante sobre o mesmo poema demonstrava uma leitura

comparativista de Desencanto com os outros poemas da antologia. O aluno Acauã

(turma A) não concordava com a seguinte afirmação de uma questão de verdadeiro-

falso que propus sobre o poema: A poesia é a manifestação dos sentimentos mais

profundos. Ela se manifesta para Manuel Bandeira principalmente através da tristeza e

da solidão . Ele argumentava que essa relação da poesia com a tristeza e a solidão não

se aplica totalmente a Manuel Bandeira porque essa perspectiva não se manifesta nos

outros poemas da antologia.

Tal comentário demanda paciência no trabalho de análise, já que seria

preciso analisar coletivamente cada um dos textos seguintes para reconhecer ou não se

a tristeza e a solidão são constantes ou não da poética de Manuel Bandeira. O que

conseguimos construir, de acordo com o comentário da leitura dos poemas a seguir, é

que o humor bandeiriano se revela como uma resposta madura e com um estilo

humilde à ameaça da morte iminente.

Daí que avançar o estudo de Manuel Bandeira para a leitura de Madrigal

tão engraçadinho , vários anos distante de Desencanto , pode se configurar

simultaneamente como quebra e como conseqüência. Se ao final das aulas essa

duplicidade ficasse exposta aos alunos pelas suas próprias percepções, já estaríamos

construindo muitas significações interessantes.

27 Seria interessante reproduzir a fala da aluna e outras diretamente aqui, porém, as condições das gravações não foram suficientes para que as falas fossem coletadas integralmente. O melhor que eu podia fazer era repetir com o máximo de fidelidade a fala de cada um para a sala toda ouvir e para garantir o registro.

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Assim foi que prosseguimos, com a leitura de Madrigal tão engraçadinho :

Teresa, você é a coisa mais bonita que já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos. (BANDEIRA, op.cit., p. 140)

Grandes exclamações e interrogações causou este poema: esse homem é

retardado! ; comparar a mulher com um porquinho-da-índia é imoral! ; muito inútil,

não tem graça, não rima, não tem sentido! ; por que esses poemas todos tronchos

podem ser considerados poemas? ; eu dava uma tapa se ouvisse uma coisa dessas!

só tem uma bobagem! ; é uma droga! . Exatamente como eu esperava, não tinha

possibilidade do horizonte de expectativas não ser quebrado com esse poema. O

desafio agora era estabelecer uma aceitação mínima do texto, tentando acima de tudo

não impor nenhuma perspectiva injustificada. Ou seja, o processo tinha que garantir

algum re-encantamento, ou estaria em jogo a imagem do poeta Manuel Bandeira (uma

aluna falou: Eu acho que ele fez porque ele é Manuel Bandeira. Só porque é dele,

ninguém questiona ) junto àqueles jovens leitores.

Em algumas turmas, isso foi possibilitado por deixas que os próprios alunos

deram: eu acho que ele pode não ter rima, não ter nada, mas ele é engraçado! ; ele

pode estar falando de alguma coisa que a gente não entendeu . Era aí que eu poderia

começar o jogo de análise, perguntando por pontos mais específicos do texto ou

aproveitando perguntas dessa natureza que eles fizessem. Quando, em uma sala, um

aluno perguntou: o que é um madrigal? , aproveitei a presença do dicionário e

iniciamos a análise por esse elemento indefinidor.

Segundo o dicionário Aurélio, Madrigal é uma composição poética e

galante; galanteio dirigido às damas (1993). Segundo Hênio Tavares, desde o século

XVI, o madrigal é uma forma poética que não possui regras pré-fixadas de

versificação, mas consiste tematicamente na sutileza da declaração amorosa (1991, p.

288). Era preciso, então, levar os alunos à percepção das sutilezas do poema.

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Um dos elementos do poema que eles mais perceberam foi a comparação,

com a qual alguns se equivocaram ao achar que o porquinho-da-índia era parecido com

Teresa. Uma aluna chegou a dizer que Teresa deve ser gorda , confundindo inclusive

a idéia de porquinho-da-índia com um porco. Não compreenderam de imediato que

havia ali um comparativo de superioridade para Teresa. Ou seja, Manuel Bandeira

desvia o olhar do leitor para o porquinho-da-índia, fazendo esse leitor esquecer

momentaneamente que a pessoa que está sendo galanteada no poema não deixou de ser

a coisa mais bonita que já foi vista.

Uma atitude necessária para o encaminhamento da análise foi a divisão do

texto em duas partes. A primeira seria: Teresa, você é a coisa mais bonita que já vi até

hoje na minha vida. Sobre ela a aluna Violeta (turma H) afirma que até quando ele diz

minha vida o texto é lindo, depois é que fica feio! . Procurei fazer algumas reflexões

observando a aparente banalidade da frase. De fato, cumpriu perguntar o que há de

especial num enunciado tão comum, embora considerado bonito pela aluna. Tão bonito

e tão comum que qualquer pessoa pode dizer. Ou seja, banalizando a mensagem,

banaliza-se também o sentimento que ela manifesta. É como se não dizer as coisas da

forma como todo mundo diz implicasse numa avaliação mais apurada daquilo que

realmente sentimos.

Procurei fazer com que concordassem com esse raciocínio para demonstrar a

função poética manifestada no contraste entre a primeira e a segunda parte do texto

(inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos). É só aqui

que Manuel Bandeira impõe ao nosso olhar a equivalência do eixo da seleção sobre o

eixo da combinação (JAKOBSON, 1995, p. 130), marcando o fenômeno poético

como um jogo de escolhas. Para exemplificar essa explicação dentro da linguagem dos

alunos, identificamos dois recursos marcantes nesse texto.

Sintática e semanticamente, a seleção do termo inclusive marca o enunciado

porque não há correlação direta da idéia de incluir o porquinho-da-índia no ato

comparativo entre Teresa e todas coisas que o eu-lírico já viu. É necessário, portanto,

reconhecer um termo elíptico para que essa inclusão possa acontecer. A ausência de

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mais bonita que (ficando inclusive mais bonita que

o porquinho-da-índia... ) é a

base do estranhamento que tem seu ápice na imagem do bichinho de estimação.

Esse termo ( estranhamento ) foi diretamente usado para ressaltar aos

alunos a função poética presente no texto, rompendo com a idéia clássica de que o

discurso poético deve ser antes de tudo, engenhoso. Segundo Roman Jakobson, a

poeticidade não consiste em acrescentar ao discurso ornamentos retóricos; implica,

antes, numa total reavaliação do discurso e de todos os seus componentes, quaisquer

que sejam (op. Cit., p. 161). No caso do Madrigal tão engraçadinho , o discurso

reavaliado consegue se apresentar ao leitor como desprovido de qualquer recurso,

numa forte manifestação do estilo humilde de que Davi Arrigucci Jr. (1990) nos fala

tão enfaticamente.

No caso do Madrigal tão engraçadinho, a escolha da composição textual em

um só verso, mesmo apresentando duas informações bem distintas que poderiam ser

separadas em mais de uma linha, aproximando-se da prosa, pode ter também um

caráter visual até hoje pouco percebido. Esse elemento foi identificado pelo aluno

Pardal (turma D):

Se a gente olhar bem o poema, ele tá apontando ó. Com a mão apontando... Se fosse pro futuro, ele estaria apontando pra onde? Pra direita. Aqui ele tá apontando pra onde? Pra esquerda, pro passado... Se a gente perceber que ele tá falando do porquinho-da-índia, ele tá o quê, lembrando do passado... direita o futuro, esquerda o passado.

Apesar de ter causado grande celeuma na turma, a declaração do aluno não

se rejeita. Alguns disseram que ele foi na lua duas vezes e voltou ou que ele me

venceu . O que era preciso fazer? Reconhecer a contribuição do jovem e levar a

turma a uma ponderação coletiva. Defendi que, se estávamos vendo uma coisa nova

sobre o poema, quem estava ganhando era eu28. Além disso, essa interpretação não

28 Muito refleti sobre essa idéia de ganhar ou perder para o aluno. Se as novas gerações são capazes de ver o texto mais do que eu e os meus antecessores, é sinal de avanço, o que é altamente positivo. Em outras circunstâncias e com outros professores talvez não houvesse esse diálogo pela natureza do saber como posse que se acumula: Eu sei mais, portanto você está errado!

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nega nenhum aspecto semântico do poema. Consideração esta que se enriquece quando

compreendemos o conceito de isotopia:

A isotopia, que se define como a redundância de traços semânticos que vinculam as diversas figuras e temas espalhadas pelo texto, é o fator responsável pela coerência semântica. Situada no nível do discurso, a isotopia permite solucionar a questão das várias possibilidades de leitura que um mesmo texto traz, dissolvendo ambigüidades locais a partir do confronto entre as diversas unidades do discurso, indicando os planos de leitura que se encontram inscritos no próprio texto. A noção de isotopia oferece, portanto, ao professor uma base segura para o controle e a avaliação das interpretações realizadas... (GOMES, 1996, p.134).

A fala de Pardal não nega sob hipótese alguma a construção temática e

figurativa que estávamos construindo conjuntamente. Pelo contrário, confirma-se

dentro do jogo isotópico e coloca em evidência a importância do diálogo na sala de

aula como fundamento da literatura, pois, como nos esclarece Vincent Jouve, se a

isotopia como fenômeno semântico, é fornecida pelo texto, ela só pode ser percebida,

entretanto, graças às hipóteses interpretativas do leitor (2002, p. 74). E a única

instância interpretativa que está sendo confirmada aí é a isotopia do retorno à infância.

Assim, começava a se evidenciar essa dimensão do retorno à infância como

tema recorrente da poética de Manuel Bandeira. Contudo, não foi evidenciada por

nenhum sujeito (inclusive eu) em aula alguma o caráter irônico que há entre o título e a

enunciação poética, o que aproxima construção literária do adulto com a

aparentemente distante profusão lírica da criança eternamente procurada por Bandeira.

De acordo com Telê Porto Ancona Lopez:

A ironia, voltada para a própria obra, tomava, inclusive, palavra fora do vocabulário do leitor comum, em contraste com a simplicidade do madrigal. Na refusão feita, título e texto se adequam, crescendo o lirismo na união das experiências do adulto e da criança, percebidas pela consciência estrutural e estilística que bem distingue cada qual (1987, p. 171).

Esse lirismo resultante da união das experiências foi buscado também no

poema Porquinho-da-índia , que vários alunos inferiram de imediato que era

precedente ao Madrigal tão engraçadinho , e que o explicava sobremaneira, de forma

que um poema não parece poder ser lido sem a presença do outro. A fala a seguir, da

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aluna Papoula (turma B), sobre o madrigal, demonstra que o leitor precisa dessa

contextualização:

Muita gente não gostou porque achou que comparar a menina com o porquinho-da-índia ia tá desvalorizando a menina ... Mas se ele tivesse comparado ela a um espelho, ao mar, ou à Lua ... nada disso pra ele tem um valor grande demais, porque no dia que tiver ausente dele, ele não vai morrer por isso. Mas o porquinho-da-índia tinha um valor sentimental importante pra ele. Era uma coisa que, pra ele era especial, embora não fosse pros outros. Pra quem vê o poema, não acha graça... mas pras pessoas que perderam, o porquinho-da-índia é importante. (...)

Ao olhar de Papoula, essa aproximação de um bichinho tão específico com o

ser humano pode ser algo natural, de acordo com o cuidado, o afeto e a memória. Essas

dimensões podem ajudar o leitor a receber melhor o poema à medida que ele

desenvolve sua capacidade de alteridade ( pras pessoas que perderam ),

compreendendo o jogo de retomada do passado do poeta. Tal passado é mais

concretamente recuperado pelo poema que preferi discutir na seqüência do madrigal,

para causar alguma expectativa pela continuidade:

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele pra sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .

O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada. (BANDEIRA, op. Cit., p. 130)

Também dividimos este poema em dois segmentos para discutirmos o

contraste entre a referencialidade/emotividade da primeira parte (do primeiro ao

penúltimo verso) e o evidente estranhamento da metáfora na segunda parte. Foi com

este poema que o trabalho com a discussão textual mostrou-se mais emergente, pois

entraram em choque as estruturas do texto com as visões de mundo dos leitores. Por

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exemplo, Pintassilgo (turma H) falou instintivamente após a leitura do poema: Já vi

até com uma garrafa, mas com um porco-espinho é a primeira vez... no interior é com

bode . Apesar de ser um simples gracejo de um aluno querendo chamar atenção, não

deixa de ser interessante uma observação dessa fala. Ela ilustra a leitura mecânica do

jovem, que no reconhecimento visual dos caracteres da palavra porco , seguidos de

uma designação hifenizada, processou imediatamente porco-espinho . Além disso,

projetou a imagem de namorada como as primeiras aventuras sexuais. Esse

comentário, mesmo sendo levado na esportiva por mim e por toda a turma, ajudou a

construir outra aceitação do poema, já que expôs o exagero de uma interpretação que

entendesse primeira namorada como as primeiras relações íntimas entre dois seres

humanos. Nesse momento, ficou visível a todos que namorada estava metaforizada,

o que retira o leitor de uma visão imediata, exigindo-lhe uma segunda leitura.

A questão dessa leitura do poema, então, se concentrou em, após uma

definição de metáfora, interpretar a idéia de primeira namorada para o eu-lírico. Já

que à primeira vista a namorada foi percebida apenas como objeto do carinho do poeta

(que é uma leitura plausível), foi preciso conduzir os alunos para além, a partir do

verso não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . Esse retorno essencial é que

pode projetar uma interpretação do humor bandeiriano, baseado na simplicidade do

enunciado metafórico, e que ilustra namorada como aquela que não retribui o carinho e

a atenção que recebe.

Construir essa visão de namorada era ir além de uma leitura imediata, a qual

era responsável pelo pouco reconhecimento daquele texto como poema. Assim como

no anterior, a aluna Malmequer (turma G) considerou que esse homem é um louco.

Ele não deve ter tido nunca uma namorada, então deve ser um amor platônico. Porque

eu também gosto muito do meu cágado e nem por isso vou pensar dessa maneira .

Mesmo depois de discutida a metáfora, a aluna não abstraiu as relações.

Na outra ponta dessas interpretações, o aluno Bicudo (turma D) viajou na

imagem do fogão, pensando que ele poderia ser uma metonímia de mãe. A essa visão

Pardal (o mesmo que viu a forma da mão apontando no madrigal) acrescentou outras

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idéias quando interpretou que a relação entre o eu-lírico e o porquinho-da-índia era de

pureza versus indecência, sendo o fogão um elemento metafórico que representa a

sujeira e o indevido, correspondendo ao oposto das boas intenções do menino

( ternurinhas e todas as formas tratamento em diminutivo). Entre uma fala e outra,

concluíram que o porquinho-da-índia poderia ser, de fato, uma namorada metaforizada

que queria levar o eu-lírico para o mau caminho 29.

De forma geral, essas opiniões foram veementemente refutadas pela turma.

De minha parte, procurei não negá-las radicalmente, mas argumentei pela idéia de

namorada como aquela que não corresponde à dedicação, o que talvez não possa

aceitar a idéia de uma pessoa querendo levar o eu-lírico para lugar algum. Além disso,

é preciso ler o poema com a constante idéia da aproximação do adulto à criança e,

além do mais, estamos falando de uma infância no fim do século XIX, ou seja, há uma

enorme distância cultural entre a experiência narrada, a fala do narrador e a elaboração

do leitor. A fusão de horizontes já se evidencia aqui e começa a fechar um ciclo de

leituras.

Reiterando o trabalho até aí realizado, começamos a discussão de

Namorados , mesmo sabendo que a concentração de muitos jovens pede novidades e

que muitos já começavam a querer outras perspectivas30. A reprodução a seguir do

poema já contempla a marcação do tom que dois alunos da turma B construíram no

decorrer de sua leitura:

NAMORADOS

O rapaz chegou-se para junto da moça_ e disse: - Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo,_ com a sua cara.

A moça olhou de lado_ e esperou.

- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

29 Como essas falas causaram grande impacto no resto da turma, a balbúrdia não possibilitou seu registro. 30 Até então já contávamos mais ou menos 5 aulas, dependendo da turma.

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A moça se lembrava: - A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu_ com muita doçura:

- Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:

- Antônia, você é engraçada,_ você parece louca. (BANDEIRA, op. Cit., p. 142-3)31

Nessa turma o trabalho de realização da leitura foi vivido intensamente.

Tanto que os alunos logo aplaudiram ao perceber a diferença dada pela leitura de

Orquídea e Curió. O destaque principal aí se deu no verso A meninice brincou de

novo

nos olhos dela , em que a aluna demonstrou compreender bem a dimensão de

retorno à infância que o poema pede. Empolgado nessa entrada de Orquídea, Curió

entoou bem o verso seguinte, fazendo ressoar a intensidade com que o rapaz expunha

sua doçura. Essa intensificação da doçura contrasta fortemente com a declaração

sucessiva ( -Antônia, você parece uma lagarta listada ).

Graças à leitura motivadora, essa foi uma das turmas que melhor receberam

o poema, compreendendo a comparação esdrúxula dentro da já discutida quebra de

expectativas. Daí que foi mais tranqüilo trabalhar a dimensão de resgate constante da

simplicidade e da infância dentro da poética de Manuel Bandeira, inclusive pondo em

diálogo os três poemas em bloco ( Madrigal tão engraçadinho , Porquinho-da-índia

e Namorados )32.

31 O que está em negrito indica o aumento do volume de voz dos leitores, para destacar; O subscrito ( _ ) orienta as palavras que foram lidas mais lentamente; o traço sobrescrito ( ) marca as palavras que foram pronunciadas com rapidez. 32 Confesso que não esperava tanto de Namorados e dos poemas em conjunto, tendo somente como princípio de trabalho a necessidade da quebra do horizonte de expectativas para preparar a leitura de Os Sapos e Poética . Por isso é que pensava que poderia trabalhar os três textos em no máximo duas aulas. Acabei levando

três a quatro aulas e descobri muita coisa da poética de Manuel Bandeira que ainda não tinha descoberto.

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Levando algumas reflexões de uma sala para outra, fui enriquecendo esse

trabalho com algumas informações mais bibliográficas de Manuel Bandeira,

apresentando o livro em que ambos os textos foram publicados

Libertinagem, de

1930

e discutindo, a partir desse título, o clima geral da literatura brasileira naquela

época. Perguntei pelo significado da palavra libertinagem , projetando com os alunos

a idéia de liberdade excessiva, molecagem . Essa perspectiva moldou tanto forma

com o verso livre

quanto tema

com o retorno à infância. De um lado, era preciso

romper com as amarras parnasianas que se contentavam em descrever com perfeição

vasos, estátuas e paisagens, e do outro era preciso propor uma temática e um estilo que

trouxessem o ser humano para o centro do poema.

Acredito que tal contextualização histórica só ampliou as possibilidades de

leitura do poema, mas da forma como trabalhamos

colocando-a como informação

que ajuda, e não que determina

pudemos construir um perfil geral de

reconhecimento do estilo de Manuel Bandeira. Mas essas questões eram mais

enfatizadas onde a recepção dos alunos se fechava na idéia de que tais poemas eram

sem graça .

Na mesma turma B, quase não foram destacados esses pontos históricos,

visto que vários alunos estavam mais empolgados nas comparações dos três poemas,

percebendo coisas que eu ainda não tinha dado atenção. Por exemplo, os três poemas

concretizam comparações entre seres humanos e bichos pouco comuns, configurando

um tom cômico às relações amorosas. Essa comicidade se evidencia na volta à infância

como a recuperação das descobertas. O aluno Sabiá, respondendo à questão do porquê

de não estar explicado o fato de Antônia parecer uma lagarta listada , ressaltou que

antes que houvesse a comparação, o rapaz restaurou na moça um olhar de surpresa que

ela possuía na infância, ao olhar pela primeira vez para uma lagarta listrada. Em

ampliação (não sei se reflexão continuada do rapaz ou independente), a aluna Papoula

pensou que o parecer uma lagarta listrada era uma declaração de surpresa do

próprio rapaz, como se ele estivesse dizendo: vejo você como quando eu vi uma

lagarta listrada pela primeira vez . Empolguei-me com essa percepção, porque ela

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confirma a perspectiva do discurso humilde de Bandeira e da utilização, própria do

modernismo, de elementos comuns da fala (cheias de elipses) das pessoas.

E foi então que um poema começou a puxar outro. E quando um aluno

reforçou o verso ainda não me acostumei com seu corpo, com sua cara , refletindo na

surpresa cada vez mais clara, lembrei-me de apresentar para a turma o famoso poema

Teresa :

A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada Os céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. (BANDEIRA, op. Cit., p.136)

Na turma C este poema já foi mais bem recebido do que os anteriores,

inclusive pela sincera aluna que havia dito que eram retardados . Essa mesma e os

seus colegas gostaram ainda mais quando a discussão de infância me lembrou de

apresentar O Impossível Carinho :

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo Quero apenas contar-te a minha ternura Ah se em troca de tanta felicidade que me dás Eu te pudesse repor - Eu soubesse repor - No coração despedaçado As mais puras alegrias de tua infância! (BANDEIRA, op. Cit., p. 144)

Sem dúvida, esse foi um gran finalle para a discussão dos três poemas

retardados . Na verdade, concluímos juntos que eles buscam construir uma espécie de

alegria retardada (pensando essa palavra no sentido de atrasada)

ou melhor dizendo:

nostalgia

porque saltam ao nosso olhar reflexões do simples que se converte em

especial e, conseqüentemente, grandioso, como uma lagarta que se converte em

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borboleta, transformando-se, mas sendo o mesmo ser, só que agora outro aos olhos dos

outros. Aliás, essa visão de metamorfose da lagarta para a borboleta foi percebida em

Namorados por um aluno na turma H, o que enriqueceu sobremaneira a análise do

poema.

Assim, entre protestos e surpresas, muitos alunos e alunas reconheceram

novas perspectivas de composição literária sem a presença dos recursos tradicionais,

como rima, métrica, ritmo, etc. Outros preferiram fechar-se na opinião de que tais

textos não possuíam valor, chegando mesmo a dizer que já odiavam o tal porquinho-

da-índia, embora eu não tenha ouvido de ninguém um certo enjôo por Manuel

Bandeira. Era necessário, assim, mudar o rumo dos debates e do método, para que os

poemas Os Sapos e Poética não tivessem a sua aceitação previamente recusada

pelas turmas.

3.2.2. O retorno da historicidade e as barreiras da metalinguagem

A proposta era fazer uma leitura dinâmica e bem humorada de Os Sapos ,

numa atividade que proporcionasse um contato mais leve dos adolescentes junto a esse

poema. Já que a categoria central da experiência não era a história da literatura, mas a

diversidade das expressões líricas, as vozes dos sapos do poema tinham que ser de

responsabilidade dos próprios alunos. Assim, era necessário um contato muito paciente

dos leitores, além de uma organização muito esclarecedora de como o poema deveria

ser lido.

É imperativo que a primeira leitura seja silenciosa, e que os alunos possam

tirar todas as suas dúvidas sobre a enunciação. Por isso, foi preciso gastar bastante

tempo com o vocabulário do poema, que acabou mostrando-se quase inacessível.

Praticamente todos os versos possuíam palavras desconhecidas para uns e outros

jovens, fazendo com que o reconhecimento de caracteres dificultasse o processamento

do texto. Com paciência, tentei deixar os alunos à vontade, mas num universo de

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cinqüenta sujeitos é difícil que todos ou a maioria se concentrem quando a superfície

textual representa barreiras à sua leitura.

De todo modo, procuramos reconhecer as vozes do texto, um trabalho

importante nesse momento do encontro, para só em seguida realizar uma leitura

coletiva do poema. Em algumas salas eu não atentei para esse detalhe e conduzi a

leitura coletiva antes de discutir as vozes, causando maior dificuldade no trabalho.

Dessa forma, a polifonia construída na superfície de Os Sapos , sobre a qual eu tinha

dado pouca atenção na minha análise prévia, se mostrou um elemento essencial

durante a sua didatização, pois a representação que a obra propõe é o que permite que

o leitor mergulhe no jogo de contrários (centroXmargem; soberbaXhumildade) que

todo discurso possui, mas que Os Sapos oculta ao mesmo tempo que evidencia.

Os alunos problematizaram bastante essas vozes, perguntando pelas falas

dos sapos, sobre as quais eu identifiquei na maioria das vezes, facilitando assim um

trabalho que era deles, mas que, para contemplar o tempo das aulas, precisava ser

simplificado. Daí que a leitura coletiva não fluiu como poderia e, conseqüentemente,

esse poema oportunizou poucas sensações (conseqüentemente, poucos efeitos) em sala

de aula.

Quando perguntados acerca de seus gostos pelo poema, vários alunos

responderam que não gostaram porque não entenderam . Contudo, alguns perceberam

com clareza elementos que o texto põe em evidência. Mélia (turma B) ressaltou que o

poema ilustra uma situação de presunção e de arrogância, em que os sapos são pessoas

que menosprezam a arte . Na mesma sala, Curió observou uma certa hierarquia

entre os sapos. Ambas as falas mostram que os alunos percebem desde o princípio que

o poema realiza representações sociais, em que os seus personagens possuem

comportamentos divergentes (sobretudo entre o cururu e o sapo-tanoeiro), além de

terem posições diferentes com relação à arte.

Daí então nos dedicamos a descrever esses sapos, com os alunos destacando

o sapo-boi como orgulhoso, o tanoeiro como presunçoso, os pipas como medíocres e o

cururu como excluído. Mas essas relações não ficaram tão claras em todas as turmas,

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sendo necessário muita discussão para chegar a tal ponto, que foi o máximo que

conseguimos realizar com Os Sapos dentro do tempo que tínhamos.

As poucas contribuições que alguns alunos deram como avanço a esses

sentidos principiavam por compreender o texto dentro dos seus determinantes

históricos. Tulipa (turma B) percebeu que Manuel Bandeira queria colocar em

evidência para o leitor a diversidade dos estilos daquela época. E Sabiá acrescentou

que não há para o leitor um objetivo direto sobre o que é que está sendo comparado no

poema, ficando muito livre a interpretação desses sapos.

Essas considerações ressaltam a necessidade de conhecimentos da história

da literatura e dos estilos de época para realizar um avanço na compreensão do poema.

Dialogando aqui com a estética da recepção, é como se a leitura ficasse estanque e sem

profundidade, pois as três etapas do processo hermenêutico (compreensão,

interpretação e aplicação) não têm como se completar. O máximo que naquela situação

era possível concretizar era uma compreensão das situações representadas no texto,

com alguma sinalização interpretativa sobre o jogo de oposições do poema.

Os próprios leitores, qualquer que fossem as suas idades, careciam da

compreensão da dinâmica histórica que envolvia as condições de produção daquele

poema. A aula precisava contemplar, portanto, o horizonte de terceira leitura, que é o

momento em que o leitor reconstitui os aspectos contextuais que condicionaram a

gênese e o efeito da obra e que, por outro lado, limita a interpretação do leitor

contemporâneo (JAUSS, 2002, p. 881). Isso articularia melhor a leitura em que Sabiá

percebia o poema como livre e sem objetivos . Mostraria-lhe, dessa forma, a

metaforização das dimensões da sociedade de 1918, realidade em que Os Sapos

foi

publicado.

Não se trata de fechar a significação do poema a uma só leitura determinada

pelos condicionamentos históricos, mas limitar os sentidos às estruturas enunciativas

que a obra carrega, o que inclui o seu contexto.

Dessa maneira, a leitura, quando oportunizada de maneira dialógica e

coletiva, conduz o leitor por questões que desenbocam, menor ou maior grau, na

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historicidade da obra. Melhor dizendo: não é o texto que necessita de um aparato

histórico para ter sua compreensão realizada, mas o leitor e o processo de sua leitura

que conduzem a dimensão histórica da obra.

Dessa forma, já aqui é possível iniciar as conclusões desta experiência, que

procura dialogar: o processo estético e a análise das estruturas textuais a que todo texto

deve ser submetido com a historicidade que a natureza literária comporta em sua

contextualização. Segundo Jauss:

O caráter estético dos textos (...) é a condição para a compreensão histórica da arte, além da distância no tempo. (...) Por causa disso, o caráter estético deve ser introduzido como premissa hermenêutica na realização da interpretação. No entanto, reciprocamente, também a compreensão e interpretação estética necessitam da função controladora da leitura de reconstrução histórica. Esta evita que o texto do passado seja adaptado ingenuamente aos preconceitos e às expectativas de significado de nossa época (op. Cit., 881-2).

Segundo Jauss, a chave para esse diálogo é uma interpretação do texto

como resposta , de maneira que os sentidos produzidos aproximem as questões que

enformaram a obra quando de sua criação com as questões que levam o texto a dizer

algo para mim e que me levam a dizer algo sobre o texto (op. cit.). O próprio Jauss

reconhece as dificuldades desse trabalho de reformulação, à medida que ele requer

uma forte dimensão de alteridade a partir da superação das distâncias históricas entre

leitor e obra. Sem isso, a leitura não se concretiza nem de maneira histórica, nem

estética. E não fará diferença para o leitor. Ou como disse uma aluna: esse poema,

para mim, não fede nem cheira .

Essas colocações mais diretas e gerais foram colhidas em torno de Poética .

Pela carência do tempo, foi preciso pôr o poema numa avaliação, sem discussão prévia

em sala de aula. Na verdade, houve uma aula-extra para dar orientações gerais sobre

como seria a tal prova, aula para a qual compareceram um quarto de todos os alunos do

primeiro ano (cerca de cem jovens). Em meio a tamanho público, o diálogo não pôde

ser produtivo, de maneira que expus uma visão geral do poema, seu caráter de

manifesto, as funções da linguagem predominantes, os recursos trabalhados e as idéias

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centrais. Foi basicamente isso o que avaliei na prova (ver anexo 5), esperando que tais

informações predominassem nas respostas.

Para emitir nota, quantificando o valor das respostas (fato inexorável no

contexto), estabeleci que: a manifestação do gosto justificado valeria 0,5; a

interpretação das idéias do poema valeria 0,8; e a identificação dos recursos utilizados

valeria 0,7; perfazendo uma nota máxima igual a 2,0. No entanto, identifiquei respostas

que superavam o esforço de manifestar gostos e identificar recursos e idéias, para as

quais eu valorizei com pontuação que chegava a 2,5.

Como esperava, a maioria das respostas concentrava-se em exclusivamente

reproduzir por escrito as informações que eu havia ministrado na aula-extra

preparatória. Poucos alunos revelaram um ir além do que o professor explicou. Ou

seja, utilizaram o dado prévio como informação, como produto, mas não como

instrumento para sua própria leitura. É claro que isto é uma constatação, um

diagnóstico, que não revela uma crítica aos jovens leitores, posto que estão em

formação. Na verdade, a reflexão é fundamentalmente centrada no caráter informativo

que estamos impondo em nossas avaliações para essa juventude. Afinal, os alunos

apenas cumpriram com seu dever bancário, e nisso foram bem sucedidos.

Ocorre, porém, que o espaço preparado para a resolução da questão sobre o

Poética também abria para a livre manifestação de leituras. Entre as respostas mais

diferenciadas, selecionamos algumas e reproduzimos nos anexos 6 a 11, de acordo com

as concepções gerais da maioria das respostas. Assim, selecionamos: respostas que

desaprovam o poema por que ele manifesta uma linguagem difícil (anexo 6);

respostas que desaprovam o poema porque seus autores discordam de Manuel

Bandeira (anexo 7); respostas que desaprovam o poema porque seus autores preferem

as formas tradicionais de versificação (anexo 8); respostas que aprovam o poema

(anexo 9); respostas que ensejam certa originalidade das idéias (anexo 10); respostas

em que há uma má interpretação das idéias do poema (anexo 11).

Mesmo compondo um instrumento bancário e tendo sido pouco discutido

previamente, a questão totalmente aberta sobre Poética permitiu algumas respostas

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interessantes e originais. Como no caso de Orquídea (turma B), que percebeu o jogo de

contrários do poema e se expressa muito bem com relação a isso:

O poema Poética é bem interessante pois ele mostra o seu gosto, as suas queixas, mostra também os tipos do lirismo e suas várias formas. O eu-lírico faz uma crítica ao lirismo forçado e defende o lirismo natural e espontâneo. O mais interessante é que ele gosta do mais simples e deixa o sofisticado ou apurado de lado! (ver anexo 10)

Embora nem todas as pessoas tenham tido essa percepção, ela demonstra

que um leitor jovem tem plena capacidade de compreender aspectos não tão claros dos

poemas. Bacurau (turma C) afirma que há essa clareza no poema:

Achei interessante pois o autor volta para as raízes da poesia, para o ser humano com uma poesia clara e objetiva. Acredito que seja uma manifestação do movimento de libertação e critica o clássico que usa palavras excêntricas, que tem quase sempre recorrer ao dicionário para entendê-las. O poema é completamente não-simétrico, para quebrar o protocolo do clássico e dá mais ênfase ao sentido de libertação (ver anexo 10)

Embora seja uma voz singular, o aluno entende que as mensagens do texto

se manifestaram de uma maneira mais prosaica, pois compreende a natureza de

manifesto do poema. Utilizando termos bem selecionados (por exemplo, quebrar o

protocolo do clássico ), Bacurau percebe a matriz geradora do sentido, quando afirma

a Ênfase ao sentido de libertação , que se concentra em voltar para as raízes da

poesia .

Mas nem todos os alunos puderam visualizar tais idéias. Na verdade, uma

boa parte das soluções evidencia somente as informações dadas na aula anterior à

prova. Pude observar também que, na maioria das respostas, os alunos comentavam o

poema em sua forma geral, sem focalizar maiores detalhes, não reconhecendo as visões

gerais do todo manifestando-se nas partes. Mas ao falar em lirismo, tocavam

exclusivamente um aspecto relacionado em um ou outro verso específico. Como

exemplo, vejamos esta resposta de Colibri (turma C):

Não gostei deste poema, pois ele repete muitas palavras, como por exemplo lirismo. Também por que ele critica muito o lirismo dos namoradores, políticos, etc. (ver anexo 8)

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Ou nesta resposta de Bromélia (turma E), cuja observação serve também

para várias outras reflexões:

Não gostei do poema pelo fato do poeta ter usado um vocabulário difícil, no qual temos que averiguar no dicionário em todos os seus versos. O poeta fala que está cansado do lirismo que tem ficar parando em todo verso para olhar o significado da palavra no dicionário, mas ele comete o mesmo erro, e nós também estamos fartos disso. Ele defende o lirismo dos loucos, o lirismo dos palhaços que não falam de Shakespeare, mas não seria um bom poema se não fizessem a gente rir ou mexessem com nossos sentimentos. Não há rimas, nem comparações, não há metáfora, nem antítese, não foram utilizados recursos. Digamos que é poema sem graça (ver anexo 6).

Nessa total reprovação que a aluna faz de Poética , ressalto inicialmente

uma compreensão problemática dos clowns de Shakespeare , como se o eu-lírico

estivesse criticando o bardo inglês. Já que foi dada a informação de que clown é um

palhaço que não fala, então, ela concluiu que não fala de Shakespeare , ou seja, o

nega. O fato é que estamos tratando de um verso cuja análise é bastante evitada. Ainda

não li nenhum estudo em que se procure discutir essa imagem. Se pensarmos que as

personagens do poeta em questão tinham muitas falas monológicas e altamente bem

elaboradas, as personagens mudas não se destacam. Portanto, valorizar os clowns de

Shakespeare pode mesmo significar uma preferência pelo personagem marginalizado

entre os que possuem tantas falas eloqüentes, criticando um estilo clássico de

composição.

Outra questão da fala supracitada que merece destaque é que ela acredita que

ali se manifesta uma contradição do poeta. Pensa a jovem que o poeta critica os que

usam vocabulário difícil, mas ele próprio também utiliza. Ora, uma coisa é vocabulário

difícil para mim, outra é vocabulário difícil para um adolescente daqui a noventa anos.

Tal relatividade não é levada em conta. Além disso, é preciso construir com os jovens

a idéia de que o poeta não está criticando o uso de palavras difíceis. Ele na verdade

problematiza a construção poética que prioriza a palavra rara para demonstrar

erudição, sem um compromisso real com o verdadeiro lirismo. Vale acrescentar aqui as

palavras de Jorge Koshiyama:

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107

O lirismo em si mesmo é aquela experiência com a linguagem, em que se funda, para nós e para os outros, a lembrança e a possibilidade de uma comunhão autêntica. E o canto, que é feito da mediação entre vida, mundo, linguagem, da escolha nossa, é palavra de um vivente (2003, p. 90)

No entanto, vários alunos interpretaram que esse lirismo que precisa

compor-se de uma comunhão não ocorre nem a partir de Manuel Bandeira por causa

dessa questão de acesso ao vocabulário. Na fala a seguir, essa mesma dimensão fica

reafirmada:

eu não gostei do texto pois ele usa palavras difíceis , como se estivesse querendo ridicularizar as pessoas que não estudavam o suficiente ou por algum outro motivo não

conseguem interpretá-lo sem a ajuda de um dicionário ou coisa parecida (Canário, turma C ver anexo 6).

Para o rapaz, o uso de palavras difíceis demonstra uma certa soberba, a

mesma que Bandeira criticava nos poetas de sua época. Nessa leitura, ele é quem

encarna essa posição elitista. Fato irônico, para não dizer triste, já que estamos falando

do poeta que buscou na simplicidade a sua grande força expressiva.

Pensando um pouco mais sobre tal situação, reflito: às vezes, na nossa ânsia

de sermos modernos , parece que trabalhar vocabulário se tornou uma atividade

anacrônica e tradicional, sobretudo no ensino médio. Se cotejarmos vários livros

didáticos, acharemos poucas atividades que visem a essa dimensão. Mas, sem esse

trabalho, que deve ser cada vez mais contextualizado, todo o resto poderá soar

incompleto e o jovem poderá ser levado a ver um aparente intelectualismo que o

afasta.

Isso ilustra uma forte dificuldade em trabalhar a metalinguagem com essa

faixa etária. Desavisados, os alunos demonstram pouca compreensão da necessidade de

tratar da própria linguagem, como na fala a seguir:

Para mim, o poema nem fede nem cheira , pois não me comove ou me enraivesse, não há nada nele que me chame atenção. A raiva, a repugnação do autor é evidente mas isso é problema dele. Não sou poetisa ou autora para que isso mude algo em mim. Pois, além de tudo, concordo com o autor, também sou a favor dos gêneros em que foge-se da regra, mesmo que um pouco mas sem perder a lógica e o rumo, é claro (Copo de Leite, turma D ver anexo 7)

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Da mesma maneira se manifesta Pintagol (turma H):

Eu não gostei desse poema, pois ele não me apresentou interesse em seu conteúdo além de falar que está farto do lirismo comportado e nisso eu não concordo pois o lirismo tem sim que ser comportado para que qualquer pessoa o leia e se sinta bem com aquilo que ele leu. Esse poema também não apresenta rimas nem métrica, formando um poema feio (ver anexo 7).

Uma variedade de falas como essas afirmaram que o poema fica feio, ou

sem graça, se não tiver rimas nem métrica. Prevalecendo, ainda, e mesmo depois do

trabalho de quebra do horizonte de expectativas, a preferência pelo verso tradicional. É

natural que um trabalho no início da primeira série do ensino médio não seja capaz, por

si só, de estabelecer uma ampliação dos interesses de leitura.

A atmosfera dos interesses da juventude mostra-se, então, avessa a

abstrações que dificultam seu progresso na leitura33. Daí a importância da seleção

apurada da antologia por parte do professor, que deve ter uma noção bastante ampla do

que pode agradar e do que pode desagradar seu público, planejando, também, uma

média de tempo para análise que se concentre em uma aula por poema, já que a

juventude muitas vezes quer novidade. Mas não se trata somente de agir conforme os

interesses da juventude, pois muitas vezes ocorre o agrado por aquilo que for mais

fácil. Trata-se, antes, de cuidar para que o poema que há de representar desafios à

recepção seja minimamente trabalhado, priorizando o questionamento do todo em suas

partes, contextualizando vocabulário, refletindo a historicidade e, sobretudo, ouvindo o

aluno.

Isso significa também repensar o cânone no sentido de rever o que a

recepção anterior à nossa época marcou como o mais importante de cada autor. Na

verdade, bom mesmo seria desconstruir o pseudo-cânone que os livros didáticos

impõem ao nosso cotidiano, apresentando o que seus autores acham que seja

superficial, e que superficializam muitas vezes com pura informação sobre fragmentos

33 No segundo capítulo, discuti a partir de Bosi as questões ideológicas da metalinguagem, como um uso da linguagem voltado à dominação tecnocrática e elitista. Porém, a modernidade (e Poética é um exemplo disso) demonstrou que a metalinguagem também é um uso de resistência, tornando-se necessária à compreensão das questões sociais imbricadas nas obras literárias do século XX.

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descontextualizados. Se sem contextualização, Poética lido integralmente foi pouco

apreciado, que dirá em trechos. Daí a importância de uma formação de qualidade que o

professor deve ter, para que conheça e coloque em diálogo: com profundidade o

cânone; com curiosidade o que não é cânone; e com humildade o que seus alunos

gostariam que se tornasse cânone.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na escola, a disciplina língua portuguesa situa-se entre estranhas dicotomias,

por exemplo: prazer versus conhecer; ler versus estudar; cronologia versus

historicidade; especificidade e permanência da literatura versus interdependência dos

discursos. Digo dicotomias , pois o que é muitas vezes tratado como divergente na

verdade deve ser visto como complementar. Creio que, quaisquer que sejam as

abordagens e os métodos, podemos buscar um objetivo comum para o nosso trabalho

em sala de aula: proporcionar cada vez mais interesse pela leitura, pois com ela o leitor

poderá aprender com crescente independência, sem esperar que alguém lhe apresente

um conteúdo que lhe possibilite compreender esta ou aquela realidade.

Estou pensando em um conjunto de experiências de leitura que

ressignifiquem a cada instante, contrariando de certa maneira, uma tendência que nós

temos de querer que os outros sejam leitores como nós (talvez essa seja uma motivação

minha, mas não acho que seja só minha). É preciso compor nossos currículos pensando

no método tanto quanto pensamos no conteúdo. Mas a premissa básica desse método

deve ser a possibilidade de integração das vozes da juventude, realizando um diálogo

de infinitas e incomensuráveis conseqüências.

Em se tratando da disciplina literatura, esse diálogo certamente faz repensar

o cânone, mas com cautela, para não correr o risco da simplificação e cair numa

armadilha representada por uma palavra muito usada atualmente: facilitação. Essa

perspectiva encontra uma dimensão muito clara, por exemplo, quando observamos os

livros didáticos: a fragmentação. Ela coloca a informação como uma prioridade e

mistifica o texto literário, podendo torná-lo inacessível.

Não podemos ser facilitadores. Temos que ser problematizadores da

realidade. E a poesia pode ser um importante instrumento nesse processo.

Mas, segundo dados aqui colhidos e vários outros já relatados por tantos

estudos, a poesia ainda não conseguiu ecoar numa grande parcela da juventude. Isso

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111

por causa da metodologia, como também da pouca vontade dos vários professores de

experimentar novas possibilidades. Como foram significativas algumas aulas em que

levei poemas que até então não entendia nada, mas aprendi tanto durante a discussão

em sala!

Não surpreende que os alunos cheguem ao final dos seus estudos sem

sentimentos por esse gênero literário. Para eles, salvas as exceções construídas com a

leitura intensa e cotidiana, a obra literária é um objeto irreal, em que pesam as

elaborações do professor. É como se, para o aluno, o professor fosse um leitor ideal

(superreader). E como leitor ideal, diz-nos Iser, o professor (na visão do aluno

acostumado à abordagem tradicional):

Não deveria só realizar o potencial de sentido do texto independentemente de sua própria situação histórica, mas também deveria esgotá-lo. Se ele consegue isso, o texto é consumido nesse ato

o que seria uma idealidade fatídica para a literatura. Mas há textos que podem ser consumidos dessa maneira, como é comprovado com a literatura de consumo (1996, p. 66).

Essa perspectiva tira do aluno o seu status de leitor, confere ao professor

uma imagem sacralizada e falsa (mas que a muitos satisfaz) e se afina com os

interesses do mercado tanto o editorial quanto o de preparação para o vestibular.

Busquei compreender como essa realidade se plasma no livro didático,

analisando uma abordagem de Manuel Bandeira por um livro de circulação ampla.

Mostro um prejuízo da fragmentação: a impossibilidade do leitor reconhecer a matriz

centroXmargem nos poemas Os Sapos e Poética , pois aí manifestava-se tanto o

estilo humilde do poeta menor quanto a tentativa de libertar o lirismo de uma série

de amarras (as convenções sociais, as falsas motivações poéticas, etc).

Levar os poemas de Manuel Bandeira para a sala de aula compôs um

desafio, pois eu não poderia repetir o discurso comum do livro didático. Adotei como

método de aplicação as perspectivas da estética da recepção, compondo duas

experiências diferentes.

No espaço instituído em que Manuel Bandeira é estudado (terceiro ano),

procurei utilizar a fragmentação como estratégia para o percurso de formação de novos

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112

horizontes de leitura, problematizando os trechos para ampliar o horizonte de

expectativas dos alunos. Apesar de a proposta ter possibilidades interessantes, não foi

possível obter um número significativo de falas dos alunos, marcando uma aula

monológica, o que se justifica pelo fato do terceiro ano ter muitas vezes uma dimensão

informativa da preparação pro vestibular.

Na tentativa de composição de um outro espaço para estudar Manuel

Bandeira, busquei levar os mesmos poemas ( Os Sapos e Poética ) antecedidos por

outros ( Desencanto , Madrigal tão engraçadinho , Porquinho-da-Índia e

Namorados ) para que as discussões pudessem demonstrar o alargamento do

horizonte de expectativas. Nessa experiência, foram necessárias informações sobre o

conjunto da obra e a historicidade veio à tona com mais naturalidade. Em oposição, os

adolescentes (15 anos, em média) mostraram-se pouco afeitos à dimensão

metalingüística da poesia moderna.

Mas o principal ganho dessa experiência foi a observação do efeito da leitura

dos poemas que causaram impacto na juventude. Os humildes poemas de estilo

humilde de Manuel Bandeira revelaram sua complexidade à medida que se chocaram

com as concepções de mundo dos alunos e colocaram-nos em situação perturbadora

(marcando-se por perguntas como: Por que esses textos podem ser considerados

poemas? ). Ou seja, houve um forte exercício de crítica, em que as idéias construídas

nasciam da manifestação livre dos gostos, do como se lê e da aceitação das

experiências descritas no poema.

Acredito que estas experiências nos ajudam a construir um outro caminho de

leituras no ensino médio, sem procurar romper com o conteúdo de história da

literatura, mas colocando o texto poético como prioridade e valorizando mais a voz do

aluno na construção da aula.

Em síntese, procurei compreender alguns aspectos escolares da formação de

leitores já em sua fase adolescente. Com as realidades descritas, a abordagem literária

e a aplicação didática, as categorias que pareciam diversas agora contextualizam um

diagnóstico abrangente: a fragmentação e o historicismo nas aulas de literatura são

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manifestações da educação bancária que prioriza informação e resultado nos

vestibulares. Não parece que devemos evitar totalmente essa realidade, mas refletir

sobre o que deve ser prioritário dentro dela: a leitura é que deve ser o principal

instrumento de nossas aulas, pois nela, já estão contempladas a informatividade e uma

dimensão histórica. Mas se os alunos não têm o prazer de ler?

Vejo que o prazer estético (mola para impulsionar a leitura) só se forma

com o próprio ato da leitura. Até a que for obrigatória. Daí que na sondagem perguntei

quais poetas despertaram mais o gosto na leitura dos nossos alunos durante o ensino

médio. As respostas mais observadas centralizam aqueles autores que, pelo peso da

cobrança no vestibular, foram trabalhados mais verticalmente (Gregório de Matos que

viram comigo no 1º ano, Mário Quintana, Castro Alves, etc). Isso talvez se configure

em uma obviedade (a pessoa gosta mais daquilo com que trava mais contato), mas se

pensarmos nesse óbvio com humildade, perceberemos uma conclusão interessante: a

leitura mais significativa para os alunos é aquela em que os textos (não só um, mas

vários) são trabalhados com constância e esforço. Daí que é possível formar leitores

com os conteúdos de história da literatura sim (mesmo sabendo que talvez não seja

formar todos os leitores, porque nunca devemos crer em unanimidades).

Posto que o termo aí utilizado é formação, temos que atentar ainda para o

caráter indefinido desse processo: formar-se não é o mesmo que educar-se.

Educar é um processo programático que segue métodos e estabelece

conhecimentos que o indivíduo precisa adquirir para o viver em sociedade. Formar-se

é freqüentar um processo global de vivências, valores e conhecimentos (inclusive

educacionais-escolares, ou curriculares) cujo resultado eu creio que não seja possível

pré-ver. Um programa educativo de literatura pode, desta feita, dotar os alunos de

informação literária e, até, de acordo com uma série de variáveis indefinidas (ou

infinitas

a família, a leitura externa, o cinema, os colegas, o trabalho, uma novela,

músicas, um(a) namorado(a), etc), pode resultar esporadicamente em leitores

formados. Só um programa formativo de leitura literária, creio, pode fornecer

informação e ir além, buscando incessantemente, pela ativação de estímulos sensoriais,

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pragmáticos, filosóficos, religiosos, lúdicos, etc. preparar o sujeito à selva escura , à

descoberta autônoma do mundo representado no texto literário

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115

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ANEXOS

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Anexo 1: Plano de Aplicação Didática - 3º ano do Ensino Médio

Objetivos da aula:

Praticar a leitura e a compreensão da poética de Manuel Bandeira;

Observar a representação do parnasianismo nos poemas Poética e Os Sapos;

Ampliar os horizontes de expectativas dos alunos no que se refere ao poeta Manuel Bandeira e à crítica ao parnasianismo tida como constante nos poetas da 1ª geração modernista.

Conteúdo previsto:

1ª Geração Modernista;

Representação do Parnasianismo e sua crítica;

Metalinguagem como instrumento de libertação e exclusão.

Metodologia:

Esta aula toma por base teórico-metodológica a Estética da Recepção. Utilizando como referência as propostas das professoras Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, construiremos a leitura dos poemas citados de Manuel Bandeira. Tendo como foco o conteúdo de história literária, nosso primeiro passo será identificar os horizontes de expectativas dos alunos, isto é, suas representações e conhecimentos prévios sobre o modernismo, Manuel Bandeira e a crítica aos poetas parnasianos. Pela leitura efetiva dos poemas Os Sapos e Poética, fragmentados pelo livro didático, realizaremos leituras no nível da compreensão e procuraremos chegar a uma interpretação (segundo nível de leitura, de acordo com Hans Robert Jauss). Na seqüência da compreensão que esperamos mínima, procuraremos apresentar aos alunos os complementos dos poemas que o livro didático não apresenta. Esperamos construir, com essa atitude, um eficaz nível interpretativo de leitura e, se permitido pelos limites do tempo, ler também num terceiro nível, que é o do diálogo histórico com outros leitores.

Esperamos, dessa forma, realizar as etapas propostas por Bordini e Aguiar, no que diz respeito ao conhecimento, atendimento, ruptura, questionamento e ampliação do horizonte de expectativas dos alunos. Conheceremos o horizonte de expectativas à medida que dialogando sobre a crítica modernista, poderemos saber o que os alunos pré-vêem como básico conhecimento dos poemas propostos. Atenderemos ao horizonte de expectativas quando dermos aos alunos a estrutura fragmentada dos poemas para satisfazer o conhecimento de que eles estabelecem críticas aos poetas parnasianos. Romperemos com o horizonte expectativas quando propusermos a leitura dos complementos dos poemas. E estaremos questionando e ampliando o horizonte de expectativas à medida que levantarmos com os alunos outras possibilidades de leitura a partir dos fragmentos ocultados.

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Anexo 2: Material didático extraído do livro Português (Faraco & Moura) - Série Novo Ensino Médio.

Manuel Bandeira (1886-1968)

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Recife (PE). Estudou no Rio e em São Paulo, tendo abandonado o curso da Escola Politécnica em virtude da tuberculose que o acometeu. Viajou para a Suíça em busca de cura para a doença e lá conheceu alguns importantes poetas do pós-simbolismo francês. A tuberculose marcaria, de fato, sua vida ...

Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três ... trinta e três ... trinta e três ... - Respire. ....................................................

- o senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Voltando ao Brasil, Bandeira passou o resto da vida no Rio de Janeiro, onde morreu.

Obra

Poesia:A cinza das horas (1917); Carnaval (1919); O ritmo dissoluto (1924); Libertinagem (1930); Estrela da manhã (1936); Lira dos cinqüent'anos (1940); Estrela da tarde (1963); Estrela da vida inteira (1966).

Prosa: Crônicas da província do Brasil (1937); Guia de Ouro Preto (1938); I tinerário de Pasárgada (1954).

A principal característica formal da obra de Bandeira é o emprego do verso livre. Bandeira não participou diretamente da Semana de Arte Moderna, mas seu poema "Os sapos",

lido por Ronald de Carvalho, provocou reações radicais na platéia da segunda noite da Semana.

Os sapos

Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - "Meu pai foi à guerra!"

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- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"

o sapo-tanoeiro, Pamasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado."

Vocabulário: enfunar: inflar. inchar. sapo-tanoeiro: sapo cujo coaxar lembra o som do bater de ferro contra ferro.

O ataque aos parnasianos configurava, mais uma vez, a disposição dos participantes da Semana de provocar uma ruptura com a arte do passado.

Muito provavelmente por causa da doença, a perspectiva da morte se exacerba na vida do poeta bem como em sua obra. Um de seus mais conhecidos poemas trata disso.

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar.

Vocabulário: consoada: pequena refeição noturna, em dia de jejum. caroável: meigo, carinhoso. sortilégio: trama; mistério; bruxaria.

Um poema metalingüístico de Bandeira sintetiza sua proposta literária:

Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

manifestações de [apreço ao senhor diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo.

................................

Quero antes o lirismo dos loucos

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O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Vocabulário: vernáculo: linguagem correta, pura. clown: palhaço, bufão. pungente: comovente, doloroso.

Responda:

1. Que estilo de época é repudiado no poema? Justifique.

2. Quando o eu-lírico invoca o lirismo dos loucos, dos bêbados e dos palhaços, de que estilo de época da vanguarda européia se aproxima? Explique.

3. O emprego do verso livre é uma das características da poesia de Bandeira. Identifique no poema a ocorrência de verso livre.

Outra característica marcante da poesia de Bandeira é a incorporação de fatos do cotidiano bem como da notícia de jornal.

Totalmente extraído do livro: FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco

Marto de. Português (Faraco & Moura) - Série Novo Ensino Médio.

São Paulo: Ática, 2001.

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Anexo 3: Plano de Aplicação Didática - 1º ano do Ensino Médio

Objetivos das aulas:

Conhecer variedades da expressão lírica através de poemas de Manuel Bandeira;

Discutir os aspectos formais do gênero lírico e seus sentidos constituintes (com o poema Desencanto);

Construir, questionar e reconstruir o horizonte de expectativas sobre as concepções de eu-lírico e amor tão comuns ao gênero lírico (com os poemas Madrigal Tão Engraçadinho, Porquinho-da-índia e Namorados), notabilizando o humor do poeta;

Praticar o jogo dramático e os potenciais lúdicos que podem se manifestar no gênero lírico (com o poema Os Sapos)

Refletir sobre as concepções sociais que podem ser veiculadas pelo poema (com o poema O Bicho);

Concluir o trabalho construindo reflexões gerais sobre lirismo e sua presença na formação do ser humano (com Poética)

Conteúdo previsto:

Gênero Lírico;

Poética de Manuel Bandeira;

Ludismo da leitura literária;

Metalinguagem como instrumento de libertação e exclusão.

Tempo Necessário:

3 aulas

Metodologia:

Nessa seqüência didática, o assunto Gênero Lírico ganha destaque, à medida que, a partir da leitura prioritária dos poemas de Manuel Bandeira, serão estabelecidos vários modos de ler, conhecer, conceber e pronunciar a poesia de Manuel Bandeira. A ordem em que os textos se encontram no td é proposital, posto que pretendo partir do possível Horizonte de Expectativa dos alunos (o poema Desalento, de estrutura clássica, metrificado, rimado, falando do eu e seus sentimentos) para romper com essa visão de mundo prévia (com os poemas Namorados, Madrigal Tão Engraçadinho e Porquinho-da-Índia), despertando para o humor e para o lúdico dos textos (com Os Sapos). A finalidade última do trabalho se concentra na formação de uma nova concepção de poesia e fazer poético, a partir do olhar para o social e a exclusão (com os poemas O bicho e Poética).

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Anexo 4: Antologia aplicada ao 1º ano do Ensino Médio

O Gênero Lírico com Manuel Bandeira

DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. Eu faço versos como quem morre.

MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO

Teresa, você é a coisa mais bonita que já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos.

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele pra sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . .

O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

NAMORADOS

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse: - Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou.

- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:

- A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura: - Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu: - Antônia, você é engraçada, você parece louca.

OS SAPOS

Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - "Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado.

Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos.

O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma.

Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas..."

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Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei!"- "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é

Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio...

O BICHO

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto

expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja

fora de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Todos os poemas foram retirados de: Manuel Bandeira. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

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Anexo 5: Questão proposta em prova de 1º ano sobre Poética

O POEMA A SEGUIR DEVE SER ANALISADO NA QUESTÃO 8.

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante

exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

1. Esta é a questão mais importante da avaliação porque pretende estimular e desenvolver sua capacidade crítica. Ela vale 2,0 (dois pontos) . Para respondê-la, você deve elaborar uma pequena e organizada redação (com no mínimo 5 linhas) , em que comente: 1) seu gosto (ou não) pelo poema (e os porquês); 2) as idéias centrais do texto (assunto; se nele há críticas; se ele defende opiniões; os

sentimentos manifestados; além de tudo que você achar interessante); 3) os recursos (sonoros, sintáticos, de sentido, ou visuais) que foram utilizados.

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Vocabulário: Poética: regras da versificação que podem variar a cada poeta, a cada estilo ou cada época Comedido: prudente; moderado Vernáculo: o que é próprio da nossa língua; puro e correto nos padrões cultos Barbarismo: o que não é próprio da língua, estrangeiro Sintaxe de exceção: construção frasal que não se adequa às leis da gramática Raquítico: franzino; inexpressivo Sifilítico: que tem sífilis, doença sexualmente transmissível Capitula: do verbo capitular: render-se, entregar-se, ceder Clowns: palhaço que não fala

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Anexo 6: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque o poema apresenta linguagem difícil

Resposta de Canário, turma C, em que se destaca: eu não gostei do texto pois ele usa palavras difíceis , como se estivesse querendo ridicularizar as pessoas que não estudavam o suficiente ou por algum outro motivo não

conseguem interpretá-lo sem a ajuda de um dicionário ou coisa parecida .

Resposta de Calêndula, turma C, em que se destaca: é um poema um pouco difícil de compreender, pois nele foi usada uma linguagem formal .

Resposta de Bromélia, turma E, em que se destaca: Não gostei do poema pelo fato do poeta ter usado um vocabulário difícil, no qual temos que

averiguar no dicionário em todos os seus versos. O poeta fala que está cansado do lirismo que tem ficar parando em todo verso para olhar o significado da palavra no dicionário, mas ele comete o mesmo erro, e nós também estamos fartos disso. Ele defende o lirismo dos loucos, o lirismo dos palhaços que não falam de Shakespeare, mas não seria um bom poema se não fizessem a gente rir ou mexessem com nossos sentimentos. Não há rimas, nem comparações, não há metáfora, nem antítese, não foram utilizados recursos. Digamos que é poema sem graça . Também é possível observar uma interpretação indevida das idéias do poema.

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Anexo 7: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque discordam da opinião do poeta/eu-lírico

Resposta de Tucano, turma B, em que se destaca: Para compreender este poema é necessário analisá-lo com cautela. Não gostei do poema,

porque o eu-lírico parece estar revoltado e faz da poesia, uma forma de se manifestar. Quando se fala de poesia, já vem à cabeça uma imagem boa, da pessoa amada, e não de revolta, manifesto

Resposta de Crisântemo, turma C, em que se destaca: O poema é muito confuso, ele critica muito regras que não dá para mudar e todo seu conjunto é

criticado e quer ser mudado, ele deseja um lirismo livre, dos loucos, mas sem as regras sem um certo como teremos modelo de algo para podermos fazer corretamente? .

Resposta de Copo de Leite, turma D, em que se destaca: Para mim, o poema nem fede nem cheira , pois não me comove ou me enraivesse, não há nada

nele que me chame atenção. A raiva, a repugnação do autor é evidente mas isso é problema dele. Não sou poetisa ou autora para que isso mude algo em mim. Pois, além de tudo, concordo com o autor, também sou a favor dos gêneros em que foge-se da regra, mesmo que um pouco mas sem perder a lógica e o rumo, é claro . Note-se alguns trechos pouco claros, mas sobretudo num nível sintático.

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Resposta de Papagaio, turma H, em que se destaca: A maneira de como esse poema foi organizado me parece um tanto quanto irracional .

Resposta de Pintagol, turma H, em que se destaca: Eu não gostei desse poema, pois ele não me apresentou interesse em seu conteúdo além de falar

que está farto do lirismo comportado e nisso eu não concordo pois o lirismo tem sim que ser comportado para que qualquer pessoa o leia e se sinta bem com aquilo ele leu. Esse poema também não apresenta rimas nem métrica formando um poema feio .

Resposta de Beija-Flor (turma H), em que se destaca: Este poema não me agrada, pois o autor está farto de tudo, acho que uma pessoa não pode ser

contrário a tudo, temos que concordar com a nossa sociedade, já que está difícil de mudá-la, acho que tanto minha opinião quanto a do autor não estão muito certas . Note-se a dialética desta opinião.

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Anexo 8: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua desaprovação porque preferem formas tradicionais de versificação

Resposta de Fogo-apagou, turma C, em que se destaca: Não gostei muito porque prefiro os poemas com rima e inteligência entrelinhas. Ele faz um

poema criticando os outros poemas, isso é um poema só mais crítico, não tem beleza poética .

Resposta de Colibri, turma C, em que se destaca: Não gostei deste poema, pois ele repete muitas palavras, como por exemplo lirismo. Também

por que ele critica muito o lirismo dos namoradores, políticos, etc. Ele só se concentra em um assunto o lirismo , já não agüento mais falar em lirismo. E se, pelo menos ele rimasse poderia ser até melhor, pois poema sem rima é muito feio .

Resposta de Bem-te-vi, turma E, em que se destaca: Não gostei do poema pelo simples fato de não haver nenhum recurso que tenha chamado minha

atenção pra idéia central de que o autor está farto do lirismo onde são respeitados todos os recursos gramaticais e que não se liberta da idéia convencional de lirismo .

Resposta de Flor-de-Lótus, turma E, em que se destaca sua construção em rimas.

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Anexo 9: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando sua aprovação do poema

Resposta de Gerânio, turma C, em que se destaca: Pela primeira vez eu gostei de um poema. Antes eu achava que todos os poemas eram idiotas,

mas dessa vez eu concordo com o ponto de vista do escritor... O mais interessante desse texto é quando ele fala do lirismo dos bêbados, deve ser sensacional ouvir histórias malucas de um lirismo que expressa libertação .

Resposta de Magnólia, turma G, em que se destaca: O poema é bem interessante, porque apresenta um estilo e estrutura bastante diferentes dos

poemas comuns. Ele desperta a curiosidade do leitor (...) defende o poema feito sem motivação (...)

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Resposta de Flor-de-lis, turma A, em que se destaca: O poema Poética me agradou bastante. Pois ele é totalmente subjetivo, isto é, o autor revela

suas opiniões pessoais, o que neste caso está relacionado ao lirismo. Ele é um tipo de manifestação, o autor faz críticas no que se diz respeito ao lirismo que todos estão acostumados . Utiliza, em seus versos, informações que visam chocar quem o lê. Faz uso também de recursos como elipse e zeugma, por exemplo, na maioria dos verbos ele repete o mesmo conectivo com o objetivo de dar ênfase, intensificar o choque . Em relação aos recursos visuais, ele os estrutura em versos que vão quebrando-se ao transcorrer da leitura .

Resposta de Acácia, turma A, em que se destaca: No poema ele critica a preocupação dos poetas com o fato de que tudo deve estar corretamente

bem colocado, sem erros, sem distorção, sem defeitos. O que acaba tornando o poema sem emoção, sem graça .

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Anexo 10: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando respostas originais sobre o poema

Resposta de Orquídea, turma B, em que se destaca: O poema Poética é bem interessante pois ele mostra o seu gosto, as suas queixas, mostra também os tipos do lirismo e suas várias formas. O eu-lírico faz uma crítica ao lirismo forçado e defende o lirismo natural e espontâneo. O mais interessante é que ele gosta do mais simples e deixa o sofisticado ou apurado de lado! .

Resposta de Aleli, turma E, em que se destaca: É possível sentir o mesmo que o eu-lírico sente em meio ao mundo em que vivemos, onde os

que seguem o modelo ganham elogios e os que inovam (poucos) são considerados estranhos. Ele diz que quer liberdade e inovação, quer que as pessoas se desprendam dos modelos .

Resposta de Bacurau, turma C, em que se destaca: Achei interessantes pois o autor volta para as raízes da poesia, para o ser humano com uma

poesia clara e objetiva. Acredito que seja uma manifestação do movimento de libertação e critica o clássico que usa palavras excêntricas, que tem quase sempre recorrer ao dicionário para entendê-las. O poema é completamente não-simétrico, para quebrar o protocolo do clássico e dá mais ênfase ao sentido de libertação .

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Resposta de Pica-pau, turma D, em que se destaca: Gostei do poema como poema, mas não há nele nada que me edifique, nada que divida a

história da minha vida em duas partes: antes de lê-lo e depois disso. Aliás, é impressionante a habilidade da literatura de transformar qualquer pensamento vil em um grande relógio, o qual não conhecemos o funcionamento, mas precisamos analisá-lo . A temática do texto fala da importância da liberdade de composição para que a literatura

produza, de fato, textos literários, espontâneos. Aliás, a rebelião contra incoerência é sempre bem vinda. Como podemos produzir textos literários, que devem ser espontâneos, dentro de fôrmas que não conduzem com a nossa maneira de escrever?

Resposta de Pardal, turma D, em que se destaca: Cansei de lirismo bem comportado, desse mundo de boa aparência, mas que por dentro é todo

incorreto, desestruturado, o que explica a desorganização do poema (...) O que o autor quer realmente é um mundo, um lirismo atrapalhado por fora, mas que por dentro exprime a organização do estado de espírito das pessoas e do eu-lírico

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Anexo 11: Registros avaliativos de alunos do 1º ano sobre Poética, destacando a má interpretação das idéias

Resposta de Fura-buxo, turma G, em que se destaca: O autor expõe suas idéias sobre estarmos utilizando palavras estrangeiras em nosso cotidiano,

aceitando como nossas é um absurdo, ele também expressa seu sentimento de revolta, utilizando a rima para isso

Resposta de Paturi, turma G, em que se destaca: Ele trata com o lirismo que parece um ser humano e até namorada tem e diferencia o lirismo

com cálculos matemáticos, que relaciona o lirismo louco, bêbado, e que depois ele desiste do lirismo e diz que o lirismo não é libertação .

Resposta de Patativa, turma A, em que se destaca: Ele prefere o lirismo dos marginais do que o lirismo que faz bem para a sociedade. Pois suas

idéias centrais é: critica a bajulação, critica o lirismo puro e correto nos padrões cultos. Ele prefere o lirismo dos marginais

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Resposta de Sanhaçu, turma B, em que se destaca: Passa a mensagem que está cansado dessa vida sofrida no país e dessa mesma sofrida e

cansativa rotina de todos os dias, ele quer virar louco bêbado e ter uma vida de prazeres e diversões .

Resposta de Alfazema, turma C, em que se destaca: O poema fala que o escritor está cansado de leitores que só sabe namorar, falar de Shakespeare,

raquítico, que os leitores para ler o texto tem que ficar olhando no dicionário. Fala também que para agradar as mulheres é muito complicado, tem que escrever uma coisa do dia-a-dia para agradar as mulheres .

Resposta de Artemísia, turma D, em que se destaca: O poema fala que estamos acostumados a aceitar tudo que nos é proposto. Ele faz crítica a

política, mas também condena as pessoas com doenças sexualmente transmissíveis. Concordo em condenar os bandidos, mas as pessoas tem que ser tratadas de forma igual, seja ela portador de uma doença ou não .