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A REFORMA DO JUDICIÁRIO E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ALGUMAS NOTAS SOBRE O NOVO § 3º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO Ingo Wolfgang Sarlet 1 RESUMO No presente ensaio, busca-se analisar as possíveis conseqüências da inserção do novo § 3° no art. 5° da Constituição Federal efetuada pela Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, versando sobre a incor- poração de tratados internacionais em matéria de direitos humanos ao sistema constitucional brasileiro. Para tanto, retomar-se-á a con- trovérsia sobre o regime jurídico dos direitos humanos (distinção em relação aos direitos fundamentais) na ordem jurídica brasileira an- tes da EC nº 45, partindo da discussão em torno do regime jurídico dos tratados anteriores ao novo dispositivo até problemas vinculados ao novo processo de incorporação e aspectos atinentes à hierarquia dos tratados incorporados pelo rito das emendas constitucionais. PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Tratados internacionais. Direi- tos humanos. 1 Pós-Doutorado em Direito (Universidade de Munique e Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional). Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/ RS. Professor da Escola Superior da Magistratura (AJURIS). Juiz de Direito (RS). revista_depoimentos_09.p65 17/7/2006, 16:15 11

A Reforma Do Judiciario e Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos - Ingo Sarlet

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A REFORMA DO JUDICIÁRIO EOS TRATADOS INTERNACIONAIS

DE DIREITOS HUMANOS:ALGUMAS NOTAS SOBRE O NOVO§ 3º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO

Ingo Wolfgang Sarlet1

RESUMONo presente ensaio, busca-se analisar as possíveis conseqüências dainserção do novo § 3° no art. 5° da Constituição Federal efetuadapela Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, versando sobre a incor-poração de tratados internacionais em matéria de direitos humanosao sistema constitucional brasileiro. Para tanto, retomar-se-á a con-trovérsia sobre o regime jurídico dos direitos humanos (distinção emrelação aos direitos fundamentais) na ordem jurídica brasileira an-tes da EC nº 45, partindo da discussão em torno do regime jurídicodos tratados anteriores ao novo dispositivo até problemas vinculadosao novo processo de incorporação e aspectos atinentes à hierarquiados tratados incorporados pelo rito das emendas constitucionais.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Tratados internacionais. Direi-tos humanos.

1 Pós-Doutorado em Direito (Universidade de Munique e Instituto Max-Planck de DireitoSocial Estrangeiro e Internacional). Professor Titular da Faculdade de Direito e dosCursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/RS. Professor da Escola Superior da Magistratura (AJURIS). Juiz de Direito (RS).

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ABSTRACTIn the present essay, we seek to analyze the possible consequences ofthe inclusion of the new 3rd paragraph in the 5th article of theBrazilian Federal Constitution that was taken by the 45th

Constitutional Amendment, in 2004, disposing about theincorporation of the human rights international treaties in theBrazilian constitutional system. To do so, we will retake thecontroversies about the juridical regime of the human rights (thedistinction in relation with the fundamental rights) in the in Brazilianjuridical order before the 45th Amendment, beginning with thediscussion about the juridical regime of the treaties taken before ofthe new dispositive and the problems related to the new process ofincorporation and some aspects linked to the hierarchy of the treatiesincorporated by the constitutional amendment procedure.

KEYWORDS: Constitution. International treaties. Human rights.

NOTAS INTRODUTÓRIAS

AEmenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004(doravante denominada EC 45), que implementou, após longa

e tormentosa tramitação no Congresso Nacional, a assim chamadaReforma do Poder Judiciário, introduziu várias disposições expres-samente relativas aos direitos humanos e fundamentais e outras –embora versando sobre diversos aspectos – com maior ou menor im-pacto sobre o sistema de direitos fundamentais da nossa Constitui-ção. O quanto cada uma das alterações e inserções efetivadas virá aatuar positiva ou negativamente em matéria de direitos fundamen-tais ainda está longe de poder ser avaliado com alguma segurança,considerando a necessidade de amadurecimento da discussão emnível doutrinário e jurisprudencial, visto que, a despeito do debate jáiniciado antes mesmo da promulgação da reforma, somente com asua entrada em vigor é que se está a refletir com base em texto efeti-vamente incorporado à Constituição, somente modificável por ou-tra reforma ou pela interpretação jurisdicional, que, de resto, poderáaté mesmo levar à declaração de inconstitucionalidade de algunspontos da EC 45. Aliás, não são poucas as manifestações sustentan-do a violação de cláusulas pétreas da Constituição, inclusive acom-

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panhadas de ações diretas de inconstitucionalidade, como foi o caso,por exemplo, da controvérsia em torno do controle externo da Ma-gistratura e do Ministério Publico (com decisão do Supremo Tribu-nal Federal em prol de sua constitucionalidade, no que diz com aforma e estrutura dos respectivos Conselhos Superiores) e dafederalização da competência para o julgamento dos casos de graveviolação dos direitos humanos, esta última ainda pendente de deci-são por parte do Supremo Tribunal Federal.

Nesta perspectiva, objetivando acima de tudo integrar o proces-so de discussão e contribuir para a reflexão sobre as alternativashermenêuticas mais afinadas com o mandamento da maximizaçãoda eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, tal qual consagra-do pelo art. 5°, § 1º, da Constituição Federal (na seqüência CF), onosso propósito é o de analisar as possíveis conseqüências da inserçãode um terceiro parágrafo no art. 5° da CF, versando sobre a incorpo-ração de tratados internacionais em matéria de direitos humanos aosistema constitucional, dispondo que “os tratados e convenções inter-nacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casado Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dosrespectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.O novo dispositivo, em princípio, veio para complementar o § 2° domesmo artigo, que consagrou expressamente a abertura material dosdireitos fundamentais no sistema constitucional nacional, de tal sorteque, antes mesmo de avaliar o sentido possível da alteração a ser dis-cutida, há que retomar a controvérsia sobre o regime jurídico dos di-reitos humanos na ordem jurídica brasileira antes da EC 45.

Considerando o teor do novo dispositivo, não é de se estranharque no âmbito da doutrina especializada tenha se instaurado inten-so debate, acompanhado de grande variedade de posicionamentos,que alcançam desde a discussão em torno do regime jurídico dostratados anteriores, até problemas vinculados ao novo processo deincorporação (por exemplo, o seu caráter facultativo ou cogente) easpectos atinentes à hierarquia dos tratados incorporados pelo ritodas emendas constitucionais, havendo até mesmo quem esteja a ques-tionar a legitimidade constitucional da inovação trazido pela EC 45neste particular. Diante deste quadro, é nosso propósito tecer algu-mas considerações sobre pelo menos parte das questões ventiladas

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no âmbito da controvérsia doutrinária, com o intuito de contribuirde algum modo para, se não um certo avanço nesta seara, pelomenos para alguma sistematização e sedimentação do debate, que,como já frisado, apenas iniciou, de vez que não houve, ainda, apro-vação de emenda constitucional incorporando tratado internacio-nal em matéria de direitos humanos, assim como ainda não houvepronunciamento dos Tribunais Superiores, notadamente do Supre-mo Tribunal Federal, sobre a matéria. O primeiro aspecto a ser des-tacado, todavia, é que o § 3° do art. 5º da CF veio a reforçar aposição de acordo com a qual é possível estabelecer uma distinçãoentre direitos humanos e direitos fundamentais.

2 NOTAS SOBRE O NOVO § 3° DO ART. 5° DACONSTITUIÇÃO E SEUS POSSÍVEIS REFLEXOSNO QUE DIZ COM A INCORPORAÇÃO EHIERARQUIA DOS DIREITOS COM SEDE EMTRATADOS INTERNACIONAIS

A EC 45, que cuidou da reforma do Poder Judiciário, acrescen-tou – como já frisado – um § 3° ao art. 5° da nossa Constituição. Se-gundo este dispositivo, “Os tratados e convenções internacionais so-bre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Con-gresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respec-tivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Talpreceito acabou por inserir no texto constitucional uma normaprocedimental dispondo sobre a forma de incorporação ao direito in-terno dos tratados em matéria de direitos humanos, que, interpretadaem sintonia com o art. 5°, § 2°, pode ser compreendida como assegu-rando – em princípio e em sendo adotado tal procedimento – a condiçãode direitos formal e materialmente constitucionais (e fundamentais)aos direitos consagrados no plano das convenções internacionais. Quetal exegese não é a única possível, e que, a teor do já anunciado naintrodução, tem sido suscitada uma série de pontos controversos emtorno do novo dispositivo constitucional e sua adequada interpreta-ção, constitui justamente o desafio que nos propomos a enfrentar comparticular atenção neste segmento, ainda que sem a pretensão de es-gotar as diversas alternativas hermenêuticas disponíveis.

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Em primeiro lugar, convém destacar que é pelo menos questio-nável o entendimento – por mais sedutor que seja – de que por forçada EC 45 todos os tratados em matéria de direitos humanos já incor-porados ao sistema jurídico brasileiro possam ser considerados comoequivalentes às emendas constitucionais, já que não há como aplicarneste caso o argumento da recepção quando se trata de procedimen-tos legislativos distintos, ainda que haja compatibilidade material,como se fosse possível transmutar um decreto legislativo aprovadopela maioria simples do Congresso Nacional em emenda constituci-onal que exige uma maioria reforçada de três quintos dos votos, semconsiderar os demais limites formais das emendas à Constituição2.Em sentido diverso, contudo, há quem advogue, fundado em respeitá-vel doutrina, a recepção dos tratados anteriores – naquilo que efetiva-mente versam sobre direitos humanos (no sentido de bens jurídicosindispensáveis à natureza humana ou à convivência social) – comose tivessem sido incorporados pelo rito mais rigoroso das emendasconstitucionais, assegurando-lhes a respectiva supremacia normativa,no âmbito do que se costuma designar de recepção material3. Talentendimento, como ainda teremos oportunidade de ver ao longoda exposição subseqüente, dificilmente se revela como sustentável4,considerando a incompatibilidade total de rito (e natureza) dos de-cretos legislativos e das emendas constitucionais. A comparação en-tre lei ordinária e lei complementar – ainda que pressuponha diferençade rito e quorum de aprovação distinto – não pode ser, salvo melhorjuízo, transposta automaticamente para os decretos legislativos eemendas constitucionais, já que tanto os decretos quanto as emen-das não cumprem a mesma função das leis (ordinárias e comple-mentares), isto sem falar na hierarquia constitucional das emendas,

2 Neste sentido, registra-se a posição de PIOVESAN, Flávia. Reforma do judiciário e direitoshumanos. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCON, Pietro de Jesus Lora(Orgs.). Reforma do judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 72.

3 Cf. TAVARES, André Ramos. Reforma do judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a justiça.Comentários completos à emenda constitucional n° 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 47-48; e,também, FRANCISCO, José Carlos. Bloco de constitucionalidade e recepção dos tratadosinternacionais. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCON, Pietro de JesusLora (Orgs.). Reforma do judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 103-105.

4 Ver, justamente neste sentido, o recente e enfático pronunciamento de PIOVESAN, op.cit., p. 72.

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que passam a integrar a Constituição, o que não ocorre com as leis.Em caráter alternativo – mas substancialmente diverso da tese darecepção –, há quem defenda a tese de que os tratados internacio-nais (que já são materialmente constitucionais) também poderão serformalmente constitucionais, caso forem aprovados, a qualquer mo-mento, pelo procedimento reforçado instituído pelo art. 5º, § 3º5.

Há que observar, neste contexto, que a recepção – com qualida-de de emenda constitucional – dos tratados anteriores acabaria sen-do, em determinadas circunstâncias, até menos vantajosa do que achancela de sua constitucionalidade e fundamentalidade em senti-do apenas material, já que, como voltaremos a discutir mais adiante,poderiam ser objeto de declaração de inconstitucionalidade pelo PoderJudiciário, se este vislumbrasse uma ofensa aos limites materiais àreforma constitucional. Assim, como afirma Flávia Piovesan, quantoaos tratados incorporados pelo rito mais rigoroso das emendas, emrelação a estes se estaria apenas (?) a reforçar – no plano formal – asua hierarquia constitucional material desde logo assegurada por for-ça do art. 5º, § 2º, da CF6. Que, de fato, tal interpretação talvez nãorepresente – se tomada isoladamente – um avanço significativo, bemcomo – bem adverte André Ramos Tavares – se revela problemática,se com isso se estiver pretendendo fundamentar a constitucionalidadedos tratados apenas no novo § 3º do art. 5º da CF e não – como deve-ria ser – já com base no § 2º do mesmo dispositivo, introduzido peloConstituinte de 19887, deve evidentemente ser levado em conta.

O fato é que independentemente do problema da hierarquia dostratados incorporados pelo sistema praticado até a EC 45 – do qualvoltaremos a nos ocupar mais adiante – resta, notadamente em fun-ção da redação do novo § 3º do art. 5º, uma série de questões a seremsolvidas e que aqui serão apenas anunciadas e analisadas em caráterilustrativo e essencialmente especulativo, visto que a doutrina e ajurisprudência apenas estão iniciando a discussão da temática. Aci-

5 Neste sentido, precisamente a conclusão de MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo §3° do art. 5° da Constituição e sua eficácia. Revista da Ajuris, v. 32, n. 98, Porto Alegre,jun. 2005, p. 321.

6 Cf. PIOVESAN, op. cit., p. 72.7 Cf. TAVARES, op. cit., p. 42.

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ma de tudo, nos parece relevante registrar, desde logo, que é possível– a despeito de todas as dificuldades – outorgar ao novo institutouma exegese que, no seu conjunto, não represente necessariamenteum retrocesso em relação ao entendimento hoje já majoritário noseio da doutrina, ao reconhecer a condição de direitos fundamentaisem sentido material aos direitos humanos constitucionalizados.

Assim, apontando já um aspecto positivo, afirma-se que com aadoção do procedimento previsto no art. 5º, § 3°, da CF, os tratadosem matéria de direitos humanos passariam a integrar o bloco deconstitucionalidade, que representa a reunião de diferentes diplo-mas normativos de cunho constitucional, que atuam, em seu con-junto, como parâmetro do controle de constitucionalidade, o queconfigura um avanço em relação à posição mais restritiva do nossoSupremo Tribunal Federal na matéria, que, por exemplo, não outor-ga força normativa superior ao Preâmbulo da Constituição8. A des-peito da correção do argumento, não se deve, contudo, perder devista que independentemente de sua incorporação à Constituiçãoformal, os direitos originários dos tratados internacionais, pelo me-nos para quem já vinha sustentando a sua condição de material-mente fundamentais (à luz do já analisado art. 5 º, § 2º) já seriamparte integrante do nosso bloco de constitucionalidade, que nãoabrange necessariamente apenas normas constitucionais embasadasem disposições expressas de textos com hierarquia constitucional.Além disso, há quem questione seriamente até mesmo a constitucio-nalidade do próprio § 3º do art. 5°, de modo que, a prevalecer esteentendimento e a posição ainda adotada pelo Supremo Tribunal Fe-deral – ao reconhecer a hierarquia apenas legal dos tratados – estesnão integrariam o bloco de constitucionalidade. Da mesma forma,argumenta-se que a inovação trazida pela EC 45 é inconstitucionalpor violar os limites materiais à reforma constitucional, no sentidode que se acabou dificultando o processo de incorporação dos trata-dos internacionais sobre direitos humanos e chancelando o entendi-mento de que os tratados não incorporados pelo rito das emendasconstitucionais teriam hierarquia meramente legal, de tal sorte que

8 Neste sentido, novamente, FRANCISCO, op. cit., p. 99-101.

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restou restringido, desta forma, o próprio regime jurídico-constituci-onal dos direitos fundamentais oriundos dos tratados9.

Outro aspecto digno de nota – e vinculado ao problema daalegada inconstitucionalidade da inovação – diz respeito ao carátercompulsório ou facultativo da adoção do procedimento mais rigoro-so das emendas constitucionais, especialmente em face da redaçãodo dispositivo (“os tratados que forem incorporados...”), que, nomínimo, dá ensejo a tal dúvida e sustenta a adoção do entendimentoque a incorporação mediante o procedimento das emendas poderiaser opcional. Tal argumento assume ainda maior relevo em se consi-derando que – sob o ponto de vista da forma – a incorporação dostratados em matéria de direitos humanos – consoante já apontado –se tornou mais dificultada, o que, em princípio, poderia ser conside-rado como contraditório, considerando a abertura material consa-grada no art. 5°, § 2°, e o princípio (fundamental) da prevalênciados direitos humanos no plano das relações internacionais do Brasilestabelecido no art. 4° da nossa Lei Fundamental.

Com relação a este aspecto, parece-nos que há sim pelo menosespaço para uma interpretação teleológica e sistemática em prol dacompulsoriedade do procedimento reforçado das emendas constitu-cionais. Com efeito, tendo em mente que a introdução do novo § 3°teve por objetivo (ao menos, cuida-se da interpretação mais afinadacom a ratio e o telos do § 2°) resolver – ainda que remanescentesalguns problemas – de modo substancial o problema da controvérsiasobre a hierarquia dos tratados em matéria de direitos humanos,antes incorporados por Decreto Legislativo e assegurar aos direitos

9 Neste sentido, mencionando a existência de um anacronismo e apontando para a “duvi-dosa constitucionalidade” da alteração efetuada pela EC nº 45/04, ver a opinião doadvogado criminalista e professor da Universidade de Brasília, COSTA, Aldo de Cam-pos. Direitos humanos. Disponível em: http://www.unb.br/fd/colunas_Prof/aldo_campos/aldo_01.htm. Acesso em: 12/02/06. De forma mais enfática, ver LOPES,Anselmo Henrique Cordeiro. A força normativa dos tratados internacionais de direitos huma-nos e a Emenda Constitucional n° 45/2004. Disponível em: http://www1.jus.com.br/dou-trina/texto.asp?id=6157. Acesso em: 12/02/06. Na mesma linha, SGARBOSSA, LuísFernando. A emenda constitucional n° 45/04 e o novo regime jurídico dos tratados internacionaisem matéria de direitos humanos. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6272. Acesso em: 11/02/06, condena o fato de ter havido frustração daintenção do Constituinte no sentido de assegurar a inclusão automática dos direitoshumanos no catálogo constitucional.

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neles consagrados um status jurídico diferenciado, compatível comsua fundamentalidade, poder-se-á sustentar que, a partir da promulga-ção da EC 45, a incorporação destes tratados deverá ocorrer pelo pro-cesso mais rigoroso das reformas constitucionais. Quanto à objeção deque com isso se estaria a dificultar a internalização dos tratados econvenções em matéria de direitos humanos (lembre-se que há os quesustentam até mesmo a dispensa de qualquer ato formal de incorpo-ração para além da ratificação) há como revidar com o argumento deque, além de assegurar aos direitos dos tratados pelo menos uma hie-rarquia constitucional equivalente às normas constitucionais do tipoderivado (para usar a terminologia mais habitual) resta enrobustecidaa legitimação democrática desses direitos, o que, por sua vez, concorrepara a sua maior força normativa – em suma, para uma pretensão deeficácia e efetividade reforçadas – indispensável também para refor-çar a posição do nosso país em face da comunidade internacional.

A importância de uma reforçada legitimidade democrática as-sume ainda maior relevo em se considerando que, uma vez incorpo-rados como emenda constitucional, os direitos (agora também for-malmente) agregados ao catálogo constitucional não apenas refor-mam a própria Constituição, mas também assumem a condição –pelo menos é isso que se advoga – de limites materiais à própria re-forma, sendo, após, insuscetíveis de supressão e esvaziamento, ain-da que por nova emenda constitucional. Com isso – é bom que sefrise –, não se está evidentemente a dizer que os direitos previstosnos tratados já incorporados antes da EC 45 não estejam jusfunda-mentalmente protegidos, visto que, embora não possam ser objetode abolição direta por uma emenda (de vez que materialmente cons-titucionais), reclamam proteção contra limitações e retrocessos detoda ordem, por conta de seu núcleo essencial e da incidência dosdemais limites às limitações de direitos fundamentais, no que cou-ber, temática que aqui, todavia, não poderá ser mais desenvolvida.

Também analisando a questão de modo crítico, Valério de Oli-veira Mazzuoli observa, todavia, que por meio da incorporação poremenda constitucional, a reforma constitucional daí resultante po-deria até mesmo piorar a proteção de direitos fundamentais,notadamente quando a nossa Constituição for mais benéfica, sendopreferível que se admitisse pura e simplesmente a condição de nor-

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ma constitucional (sem previsão do rito) de modo a sufragar a posi-ção de acordo com a qual deverá ser dada prevalência à norma maisfavorável à pessoa humana10. Tal argumentação, conquanto bemarticulada, há de ser tomada com certa reserva. Com efeito, se otratado resultar necessariamente (portanto, não sendo viável umainterpretação conforme a Constituição) em uma situação pior paraa pessoa humana do que a decorrente do nosso sistema constitucio-nal positivo, não haverá de se incorporar o tratado neste particular,já que violador de “cláusula pétrea” de nossa Constituição, não sen-do – no nosso sentir – juridicamente relevante o argumento de quetal análise demandaria demasiado trabalho (resultante de uma in-vestigação de todos os projetos tramitando no Congresso),notadamente pelo fato de que o juízo definitivo de constitucionali-dade (ou inconstitucionalidade) sempre ocorrerá no âmbito do con-trole jurisdicional repressivo (ou, em caráter excepcional, preventi-vo), sempre à luz de um determinado instrumento legislativo e ten-do por base a parametricidade da nossa Constituição. O que poderá– isto sim – resultar problemático é a hipótese em que a proteçãointernacional é mais favorável à pessoa, podendo, em tese, os órgãosjurisdicionais nacionais privilegiar o ordenamento constitucional,louvando-se no argumento das “cláusulas pétreas”, situação que,embora deva ser rara (atualmente segue assumindo relevo apenas aquestão da prisão civil do depositário infiel), não é de se excluir. Aquio problema, novamente, conecta-se com uma adequada exegese dosentido e alcance da inovação – sem dúvida problemática, como sepercebe – trazida pela EC 45. Como se cuida de tópico relativo àhierarquia dos tratados, voltaremos a nos manifestar a respeito.

Uma possível vantagem da incorporação pelo rito das emendasconstitucionais poderia residir no daí decorrente reforço do argumen-to – já sustentado com base no art. 5º, § 2º, da CF – de que impossível(mesmo por emenda constitucional, como leciona Valério de OliveiraMazzuoli) a denúncia do tratado por parte do Brasil, enrobustecendonão apenas a posição dos direitos humanos e agora também funda-mentais no âmbito interno (desde que, é claro, se adote uma exegese

10 Cf. MAZZUOLI, op. cit., p. 323.

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que privilegie a força normativa desses direitos), mas também avançano concernente ao plano externo, das relações internacionais,enfatizando as vinculações assumidas pelo Brasil nesta seara11.

Outro problema – este mais de ordem técnico-legislativo – dizcom a forma pelo qual o texto do tratado, uma vez incorporado pelorito das emendas, passaria a ser inserido no texto constitucional. Comefeito, considerando que em regra os tratados são ratificados e incor-porados na íntegra, resta saber se o texto aprovado seria inseridonos locais próprios da Constituição, se apenas os dispositivos queenunciam determinado direito seriam acrescidos ao catálogo consti-tucional (consoante a natureza do direito), se o texto do tratado se-ria simplesmente acrescido ao final da Constituição, ou mesmo se otexto incorporado pelo procedimento das emendas simplesmenterepresentaria um texto constitucional em separado. A indagação,que já seria no mínimo procedente em termos de técnica legislativa,também o é pelo fato de que a distinção entre constituição formal einstrumental viabiliza a existência de mais de um texto (instrumen-to) com status de direito constitucional em sentido formal, como po-derá ocorrer, a depender da técnica adotada, na hipótese de aplica-ção do novo regime de incorporação dos tratados.

Ainda no concernente ao procedimento, consoante percebidopor Valério de Oliveira Mazzuoli, existe questão relativa ao momen-to da incorporação pelo rito da emenda constitucional (se vier a ser ocaso), já que o novo § 3º do art. 5º não suprimiu a fase prevista noart. 49, inc. I, da CF, de tal sorte que a aprovação da emenda deincorporação deverá sempre ser posterior à ratificação (portanto,pressuposta também a celebração pelo Presidente da República, ateor do art. 84, inc. VIII, da CF) do tratado regularmente vigente noâmbito internacional12. Como igualmente bem aponta o referidoautor, compromete a segurança jurídica (nacional e internacional) eos princípios que regem as relações internacionais deixar ao alvedrio

11 Ver, dentre outras, a argumentação bem sustentada por MAZZUOLI, op. cit., p. 325 esegs., destacando, com perspicácia, que, uma vez incorporada pelo rito introduzido pelaEC 45, a denúncia passaria a acarretar (ao contrário do que poderia ocorrer no sistema doart. 5º, § 2º) a responsabilização do denunciante. No mesmo sentido, já discorrendosobre a EC 45, consultar TAVARES, op. cit., p. 44.

12 Cf. MAZZUOLI, op. cit., p. 316 e segs.

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do legislador nacional a escolha de optar, ou não, pela outorga dostatus de emenda constitucional aos tratados13, o que justamenteparece representar, no fundo (pelo menos legítimo o raciocínio), maisum argumento em prol da cogência do novo procedimento a partirda entrada em vigor da EC 45.

Além disso, agora no tocante ao problema da iniciativa legislativae da participação do Presidente da República no procedimento, im-põe-se, ainda, a ressalva – apontada por André Ramos Tavares14 –de que, justamente em virtude da sistemática própria dos tratados(que reclamam regular e prévia ratificação e que implica automáticasubmissão ao Congresso Nacional), de tal sorte que a iniciativa doprocesso de emenda constitucional, haverá de ser, no caso dos trata-dos em matéria de direitos humanos, sempre do Presidente da Repú-blica, que detém tanto a competência privativa para a celebração dotratado, quanto a prerrogativa (em regra não exclusiva, à exceção,agora, dos tratados de direitos humanos) da iniciativa das emendasconstitucionais (art. 60, inc. II, da CF), dispensada, por óbvio, a rati-ficação presidencial, de vez que as emendas entram em vigor a par-tir de sua promulgação pelo Congresso Nacional (art. 60, § 3º, daCF). Cumpre notar, todavia, que a exegese sugerida também pareceapontar para o caráter cogente da deliberação por meio do procedi-mento qualificado das emendas constitucionais.

À vista do exposto, percebe-se que a discussão em torno daobrigatoriedade ou facultatividade da adoção do rito qualificado dasemendas constitucionais a partir da vigência da EC 45 segue mere-cendo um pouco mais de atenção. Com efeito, a prevalecer o enten-dimento de Valério Mazzuoli, no sentido de que – a despeito dascríticas endereçadas contra esta sistemática pelo próprio autor – noconcernente à incorporação dos tratados de direitos humanos, pas-sou-se a ter um procedimento dúplice (prévia ratificação e, posteri-ormente, aprovação – ou não – por emenda constitucional) atramitação de um projeto de emenda constitucional poderia até mes-mo independer de uma iniciativa específica, pelo menos no sentidode um projeto formalmente e regularmente encaminhado nos ter-

13 Ibid., p. 319.14 Cf. TAVARES, op. cit., p. 45.

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mos do art. 60 da CF. Poderia, portanto, bastar que – uma vez apro-vado o Decreto Legislativo nos termos do art. 49, inc. I, da CF – estefosse encaminhado (e, neste sentido, transformado) em projeto deemenda constitucional, já no próprio Congresso, o que acaba porconflitar com a tese apresentada por André Tavares no sentido deque a iniciativa deveria sempre ser do Presidente da República. Isto,de fato, poderia ser o caso na hipótese de restar inalterada a atualposição do Supremo Tribunal Federal no que diz com a exigência deDecreto do Executivo para a incorporação definitiva dos tratados,inclusive no caso dos direitos humanos. Neste caso, haveria que seresolver o problema de eventual negativa por parte do Presidente daRepública em encaminhar o projeto de emenda constitucional (ou acomunicação formal impulsionando o procedimento) para viabilizar,nos termos do art. 5º, § 3º, da CF, a sua aprovação com status deemenda constitucional, de tal sorte que a posição em prol da iniciativaprivativa do Presidente nestes casos se torna ainda mais questionável.

Em favor da obrigatoriedade do novo procedimento das emen-das constitucionais, para além dos aspectos já ventilados, fala tam-bém uma (já referida) interpretação teleológico-sistemática a partirda combinação das diretrizes textuais e normativas dos arts. 5º, § 2º,e 5, § 3º, todos da CF. Note-se, nesta perspectiva, que, adotadas ascorreções hermenêuticas possíveis, com a deliberação uniformizadapelo rito qualificado das emendas à Constituição, evita-se, em pri-meiro lugar, a possibilidade de existirem tratados em matéria de di-reitos humanos submetidos a um processo de legitimação mais re-forçado e outros não, sem falar nas conseqüências jurídicas atrela-das a uma aprovação por emendas. A não aprovação do tratadocomo emenda constitucional, por sua vez, em virtude do procedi-mento dúplice (ratificação, com aprovação por Decreto Legislativo),não inviabilizaria – a não ser por força de manutenção da jurispru-dência equivocada do Supremo Tribunal Federal nesta seara – a pos-sibilidade de se lhes outorgar, nos termos do art. 5º, § 2º, hierarquiade normas constitucionais (e fundamentais) em sentido material, po-sição esta que, ao contrário do que tem sustentado parte da doutri-na, resulta reforçada e não diminuída para inserção do novo § 3º, jáque este – em que pese a sua formulação altamente problemática –apenas veio para afastar a possibilidade de o Supremo Tribunal Fe-

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deral, pelo menos nos casos de vir a ser promulgada a emenda cons-titucional relativa a tratado internacional de direitos humanos, ques-tionar a hierarquia constitucional dos mesmos, salvo a hipótese deconflito direto e insanável com as assim designadas cláusulas pétreasde nossa Constituição, que nos remete novamente ao problema dahierarquia normativa desses tratados na ordem interna.

Abordados os problemas selecionados e preponderantementeatinentes a questões formais (procedimentais) da incorporação, res-ta discorrer brevemente sobre a questão da hierarquia dos direitosfundamentais (já incorporados ao texto constitucional) em relaçãoao direito interno, constitucional e infraconstitucional.

No tocante a essa problemática, é possível afirmar que o novo §3° representou – neste sentido – um significativo avanço ao assegu-rar, desde que observado o procedimento nele estabelecido, uma hi-erarquia supralegal dos direitos consagrados nos tratados, impedin-do, nestes casos, a manutenção do princípio da paridade entre leiordinária e tratado ainda prevalente na jurisprudência do SupremoTribunal Federal e sustentado, embora cada vez menos, por parte dadoutrina. Também é correto afirmar que, com isso, ainda não foiresolvida (pelo menos não como tem anunciado alguns entusiasma-dos defensores da reforma) a questão da hierarquia constitucional,em se considerando as relações entre o tratado incorporado (equiva-lente às emendas) e o texto constitucional originário. Convémrelembrar, especialmente nesta quadra, que as emendas constitucio-nais podem sempre ser declaradas inconstitucionais em caso de con-flito com as assim designadas cláusulas pétreas da nossa Constitui-ção, que abrangem tanto os limites materiais explícitos (art. 60, § 4°),quanto os limites materiais implícitos, estes reconhecidos pela maio-ria da doutrina, ainda que não haja consenso quanto aos direitosque integram o rol dos limites materiais implícitos. Ainda que se par-ta do pressuposto de que uma eventual restrição ou ajuste do con-teúdo dos limites materiais não necessariamente enseja uma inconsti-tucionalidade da emenda (aplicando-se a tese da imunidade apenasdo núcleo essencial de cada princípio ou direito fundamental15) é

15 Sobre o ponto, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 406 e segs.

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certo que a possibilidade de conflito é real, já que inevitáveis inclusi-ve as colisões entre os próprios direitos fundamentais originariamenteassegurados pelo Constituinte, bastando relembrar aqui a tão discu-tida questão da prisão civil do depositário infiel e do duplo grau dejurisdição, entre outras possibilidades. No mínimo, não se pode dei-xar de admitir a possibilidade de uma interpretação que venha areconhecer um conflito insanável por uma interpretação conforme eque, por via de conseqüência, possa resultar em uma declaração deinconstitucionalidade de um ou mais aspectos do tratado (emenda)por violação das cláusulas pétreas.

Seguindo esta linha de raciocínio e em se partindo da premissade que não há necessariamente uma hierarquia abstrata entre nor-mas formalmente (e, em regra, também materialmente) constitucio-nais e normas apenas materialmente constitucionais, a própria in-corporação mediante emenda poderia até mesmo, a depender daexegese do novo § 3°, ser desvantajosa em relação ao sistema anteri-or, a não ser que o Supremo Tribunal Federal passasse a assegurar –como de há muito deveria tê-lo feito – a hierarquia constitucional(em sentido material) dos tratados em matéria de direitos humanos,ainda que incorporados por Decreto Legislativo. Neste caso, a solu-ção de eventual conflito entre os direitos da Constituição e os dostratados incorporados deveria observar, consoante já sustentado nosegmento anterior, os princípios hermenêuticos que regem os confli-tos entre os direitos e princípios originariamente reconhecidos peloConstituinte, portanto, que exigem uma exegese tópico-sistemática edirecionada por uma adequada ponderação dos interesses (valores)em pauta, sempre privilegiando, como destacado alhures, uma solu-ção mais favorável à garantia da dignidade da pessoa.

De qualquer modo, não nos parece correto argumentar – notada-mente em favor da inconstitucionalidade substancial do § 3º do art.5º – que o simples fato de os tratados posteriores à EC 45 poderem(ou deverem, a depender da posição adotada) ser aprovados poremenda constitucional, conduziria inexoravelmente a uma decisãoem prol da hierarquia meramente legal dos tratados anteriores. Notocante a este ponto, consideramos estar diante de um falso proble-ma, visto que, como já demonstrado, a nova disposição introduzidapela EC 45 pode ser compreendida como reforçando o entendimen-

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to de que os tratados anteriores, já por força do art. 5º, § 2º, da CF,possuem hierarquia materialmente constitucional, sem falar na in-terpretação – igualmente colacionada, mas aqui questionada – deacordo com a qual os tratados anteriores teriam sido recepcionadoscomo equivalentes às emendas constitucionais pelo novo § 3º do art.5º. Pelo menos, se em tese é possível que o entendimento adotadopelo Supremo Tribunal Federal seja o da manutenção de sua juris-prudência atual, no sentido da hierarquia legal dos tratados, não oserá necessariamente em virtude do teor do § 3º do art. 5º, já que atese da paridade entre lei e tratado é anterior.

Por outro lado, para afastar o argumento de que mesmo vindoa prevalecer (no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal) a teseda hierarquia constitucional, remanesceria problemática a situaçãode conflito entre os tratados incorporados por emenda e as cláusulaspétreas da Constituição, já que, nesta hipótese, poderia a nossa Cor-te Suprema declarar a inconstitucionalidade da emenda que incor-porou o tratado. Embora correto o argumento, igualmente não nosparece que esta seja a única conclusão possível, ainda mais em seprivilegiando uma exegese teleológico-sistemática, que parte do princí-pio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais(art. 4º, inc. II) e, de modo especial, de uma leitura conjugada doconteúdo normativo dos arts. 5º, § 2º, e 5º, § 3º, todos da CF. Nestesentido, há que destacar a tese de que a inovação trazida pela Refor-ma do Judiciário pode ser interpretada simplesmente como assegu-rando hierarquia pelo menos materialmente constitucional jusfunda-mental a todos os direitos fundamentais (já que, uma vez incorpora-dos, os direitos humanos passam também – e acima de tudo – a se-rem todos fundamentais) e, também, formalmente constitucional aostratados incorporados pelo rito de emenda constitucional16, que, deresto, receberiam (de vez que alguma diferenciação nos parece ine-vitável) um tratamento distinto (no sentido de mais reforçado) quantoao fato de se integrarem à Constituição textual e enrobustecerem atese da impossibilidade de uma posterior denúncia do tratado e daresponsabilização até mesmo interna se este vier a ocorrer. Com isso,

16 Neste sentido, a posição sustentada, entre outros, especialmente por PIOVESAN, op.cit., p. 72-73.

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mediante a chancela da posição de que sempre todos os direitos fun-damentais (incorporados, ou não, por emenda constitucional) possu-em status materialmente constitucional – compreendido sempre nosentido de uma igual dignidade constitucional – eventual situaçãoconflitiva (mesmo em se cuidando de contraste entre emenda e dispo-sições fundamentais da Constituição originária) haveria de se resol-ver, até mesmo para impedir um tratamento incoerente e inconsisten-te de tais conflitos no âmbito do sistema constitucional, pelas mesmasdiretrizes hermenêuticas, tendo como norte a solução mais afinadacom a máxima salvaguarda da dignidade da pessoa humana, mais deuma vez – e, convém que assim o seja – colacionada neste ensaio.

Assim, se é certo que comungamos do entendimento de que tal-vez melhor tivesse sido que o reformador constitucional tivesse re-nunciado a inserir um § 3º no art. 5º ou que (o que evidentementeteria sido bem melhor) em entendo de modo diverso, tivesse se limi-tado a expressamente chancelar a incorporação automática (apósprévia ratificação) e com hierarquia constitucional de todos os trata-dos em matéria de direitos humanos, com a ressalva de que no casode eventual conflito com direitos previstos pelo Constituinte de 1988,sempre deveria prevalecer a disposição mais benéfica para o ser hu-mano (proposta esta formulada, nestes termos, por Valério Mazzuoli),também é correto que vislumbramos no dispositivo ora analisadoum potencial positivo, no sentido de viabilizar alguns avanços con-cretos em relação à práxis ora vigente entre nós. Que uma posterioralteração do próprio § 3º, por força de nova emenda constitucional,resta sempre aberta, ainda mais se for para reforçar a proteção dosdireitos fundamentais oriundos dos tratados internacionais de direi-tos humanos, justamente nos parece servir de estímulo para um es-forço hermenêutico construtivo também nesta seara.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista de todo o exposto e cientes de que apenas tivemos con-dições de esgrimir alguns argumentos em torno de algumas das pos-sibilidades hermenêuticas suscitadas (e ainda por suscitar) em tornodo novo § 3º do art. 5º da CF, não se poderá olvidar que todas asalternativas referidas estarão sempre sujeitas ao crivo da jurispru-

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dência (vinculante!) do Supremo Tribunal Federal. Que isto tambémse aplica à eventual julgamento sobre a própria constitucionalidadedo § 3º resulta evidente, de tal sorte que, a despeito de algumas vo-zes a sustentar a tese da inconstitucionalidade substancial da inova-ção, não nos parece que seja esta necessariamente a melhor (e muitomenos a única) exegese possível, até mesmo pelo fato de que, se oargumento estiver calcado especialmente na resistência de (ainda)boa parte dos integrantes da nossa Corte Suprema em relação à hie-rarquia constitucional dos tratados em matéria de direitos humanos,também não se poderá esperar que esta mesma Corte, em eventual-mente se posicionando pela inconstitucionalidade (o que justamentenão nos parece provável), passasse a, de uma hora para outra,posicionar-se em favor da hierarquia constitucional destes tratados,na condição de materialmente constitucionais e fundamentais. Alémdo mais, o argumento de que com a inserção do novo § 3º no art. 5ºda CF teria ocorrido uma restrição do próprio regime dafundamentalidade dos direitos oriundos de tratados internacionaisrevela-se problemático pelo fato de que tal restrição, como já de-monstrado, não necessariamente resulta em violação do núcleo es-sencial do art. 5º, § 2º, da CF (já que presentes alternativasinterpretativas idôneas). Nesta mesma linha de entendimento, resul-ta pelo menos discutível a tese de que poderia haver uma inconstitu-cionalidade de emenda constitucional que estivesse em conflito comuma determinada interpretação a respeito do regime de direitos fun-damentais, ainda mais quando tal interpretação é objeto de impor-tante dissídio na doutrina e jurisprudência. Importa, portanto, quetambém neste contexto reste consignada a lição de Lenio Luiz Streck,no sentido de que ao intérprete não é conferida a possibilidade de“dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”17, já que sempre sujeitoaos limites textuais mínimos (explícitos e implícitos) estabelecidos pelosistema constitucional.

Assim, dadas as opções discutidas (que não voltarão aqui a serretomadas e avaliadas, até mesmo por não ser o nosso intuito enun-

17 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 5. ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2004, p. 310 e segs., bem analisando o cunho não-relativista da hermenêutica.

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ciar qualquer conclusão fechada em relação às mesmas), verifica-seque há como outorgar ao novo § 3º do art. 5º uma interpretação que,a despeito de alguns aspectos problemáticos, lhe assegura um senti-do útil e não necessariamente retrógrado, valorizando o regime jurí-dico-constitucional dos tratados de direitos humanos anteriores eposteriores à vigência da EC 45. De outra parte, também não se ha-verá de ver no novo dispositivo apenas uma “fórmula de compro-misso” destinada a resolver o problema da incorporação diferencia-da dos tratados internacionais de direitos humanos em relação aoutros documentos internacionais18. Que a ocorrência de um possí-vel avanço em termos substantivos, depende, em primeiro plano,dos esforços sérios e conjugados da doutrina e da própria jurispru-dência constitucional no plano do controle difuso, no sentido de tor-nar produtivo o princípio da interpretação conforme a Constituição,resulta evidente. O processo democrático – ainda que de modo distin-to do que ocorre com o legislativo e o executivo – também permeia omodo de produção do direito jurisprudencial, especialmente no quediz com o pluralismo que caracteriza o processo decisório nos órgãoscolegiados e com a possibilidade (mesmo que já mais restrita, em vir-tude da expansão do controle concentrado) de uma co-participaçãoativa de todos os órgãos jurisdicionais e da intervenção social,notadamente por meio das partes e seus representantes, assim comopor meio do Ministério Público (isto sem falar na figura salutar doamicus curiae no processo de controle abstrato) implica a valorizaçãoda concepção de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constitui-ção (Häberle) e a necessidade de se levar em conta eventuais involuções.

Por derradeiro, frise-se que a discussão recém retomada comoutro alento, até mesmo como decorrência das incongruências re-sultantes da fórmula adotada pelo reformador constitucional, nospossibilita buscar, também no que diz com a relevante problemáticada incorporação e força normativa dos direitos fundamentais oriun-

18 Neste sentido, ver as ponderações de MORAIS, José Luis Bolzan de. Artigo 5° - As crisesdo Judiciário e o acesso à justiça. In: AGRA, Walber de Moura (Org.). Comentários àreforma do poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 53, apontando para a possibi-lidade de se deduzir do novo § 3º do art. 5º uma espécie de “fórmula de compromisso”,mas questionando, com razão, a correção deste entendimento.

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dos dos tratados internacionais de direitos humanos, uma saída viá-vel para que – como bem advertiu Celso de Albuquerque Mello – nãopermaneçamos sendo “um país cristalizado na nossa miséria econô-mica, social e jurídica”19. Tal desafio constitui, por si só, um motivomais do que suficiente para seguir investindo no tema.

4 REFERÊNCIAS

COSTA, Aldo de Campos. Direitos humanos. Disponível em: http://www.unb.br/fd/colunas_Prof/aldo_campos/aldo_01.htm. Acesso em: 12/02/06.

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MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo § 3° do art. 5° da Constituição e suaeficácia. Revista da Ajuris, v. 32, n. 98, Porto Alegre, jun. 2005, p. 303-332.

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MORAIS, José Luis Bolzan de. Artigo 5° - As crises do Judiciário e o acesso àjustiça. In: AGRA, Walber de Moura (Org.). Comentários à reforma do poderjudiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Reforma do judiciário e direitos humanos. In: TAVARES,André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCON, Pietro de Jesus Lora (Orgs.). Reformado judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2005.

19 Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O § 2° do art. 5° da Constituição Federal. In:TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p. 29.

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SGARBOSSA, Luís Fernando. A emenda constitucional n° 45/04 e o novoregime jurídico dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos.Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6272.Acesso em: 11-02-2006.

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TAVARES, André Ramos. Reforma do judiciário no Brasil pós-88:(des)estruturando a justiça. Comentários completos à emenda constitucionaln° 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005.

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