13
A Relação entre Leitor e Texto Literário Uma abordagem psicanalítica

A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

  • Upload
    dominh

  • View
    220

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A Relação entre Leitor e Texto Literário

Uma abordagem psicanalítica

Page 2: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

z ZagodoniEditora

A Relação entre Leitor e Texto Literário

Uma abordagem psicanalítica

Débora Moraes

Page 3: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

Copyright © 2012 by Débora Ferreira Leite de Moraes

Todos os direitos desta edição reservados à Zagodoni Editora Ltda. Ne nhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida,

seja qual for o meio, sem a permissão prévia da Editora.

RevisãoMichelle R. Z. Freitas

Diagramação e capaUli M. Z. Fernandes

Foto da autoraKelly Petraglia

EditorAdriano Zago

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M819r Moraes, Débora Ferreira Leite de A relação entre leitor e texto literário : uma abordagem psicanalítica / Débora Moraes. - São Paulo : Zagodoni, 2012.

144 p. : 21 cm

Inclui bibliografia ISBN 978-85-64250-49-9

1. Psicanálise e literatura 2. Psicanálise 3. Leitura. 4. Clarice Lispector. I. Título.

12-8092. CDD: 154.22 CDU: 159.923.2

[2012]Zagodoni Editora Ltda.Rua Brig. Jordão, 84804210-000 – São Paulo – SPTel.: (11) 2334-6327contato@zagodonieditora.com.brwww.zagodonieditora.com.br

Para Tiago

Page 4: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

Agradecimentos

Este livro se origina da minha dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Psicologia

da Universidade de São Paulo em junho de 2011, sob orientação da Profa. Dra. Ana Maria Loffredo. Devo à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-soal de Nível Superior (CAPES) o financiamento da pesquisa.

Meus especiais agradecimentos serão expos-tos por meio de citações de Clarice Lispector.

Agradeço ao Tiago, com quem aprendi uma das respostas possíveis para o enigma: “amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si” (LISPECTOR, 1999a, p. 418).

Aos meus pais, que estão descobrindo a impor-tância das minhas escolhas: “É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos” (LISPECTOR, 1999a, p. 101).

À minha irmã: “Que felicidade podemos en-contrar um dia num coração que pulse junto ao nosso, irmanados nas doçuras e agruras da vida” (LISPECTOR, 1999b, p. 66).

Page 5: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o8

Prefácio

À Simone, interlocutora de textos narrados, minha analista, a quem devo a abertura para as possibilidades imprevisíveis e sur-preendentes, nem sempre fáceis, da vida: “O jeito foi eu ficar sendo eu própria” (LISPECTOR, 1999a, p. 87).

À minha orientadora e amiga, prof. Dra. Ana Maria Loffredo, que me mostrou, deixando-me livre para escrever meu percurso, que “para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós” (LISPECTOR, 1999a, p. 101).

Aos meus amigos, presentes nos prazeres, nas alegrias, nas angústias e dores deste trajeto: “Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu!” (LISPECTOR, 1999a. p. 118) – vocês estiveram sempre ao meu lado: Adriana, La-erte, Vinícius, Daniela, Márcio, Nanô.

Um especial agradecimento aos meus “co-orientadores”: Ao José Mindlin, in memoriam, por permitir que minha voz in-

termediasse seu prazer com os livros, por proporcionar a experiên-cia que fez com que eu mudasse definitivamente os rumos desta pesquisa.

Aos meus alunos do grupo de estudo, da graduação e do curso de especialização; aos orientandos da Ana e à Vanessa; ao Luís Hen-rique Amaral, um grande amigo que me apresentou importantes autores.

À Yudith Rosenbaum e Nelson da Silva Junior que foram gene-rosos, cuidadosos e de grande importância no esclarecimento de algumas questões que puderam direcionar o que lhes será apre-sentado a seguir.

Você que me lê que me ajude a nascer”, pede a narradora de Água Viva, de Clarice Lispector. Esse apelo continua a reverberar em seus leito-

res, convocados por uma escrita visceral que busca criar a si mesma e a quem se deixa tocar por ela. A empreitada exige coragem e entrega, sobretudo por se tratar de uma autora que não nos poupa da dor de existir, do desamparo de estar no mundo sem garantias e sem certezas. Poderá o texto Água Viva gestar consigo um leitor capaz de parir, em co-munhão com a autora, a escrita que o inclui?

Esta é a pergunta matriz proposta pelo belo estudo de Débora Moraes. Munida de um duplo instrumental – a Psicanálise, sua área de atuação e pesquisa, e a crítica literária, saber no qual se de-bruçou para habitar essa interface –, a autora sabe adentrar um território minado, evitando reducio-nismos e a leitura patologizante, seja do escritor, seja da obra. Em suas palavras: “Abandonando o paradigma da psicanálise aplicada à literatura, a in-terpretação não será do texto nem da autora, mas

Page 6: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o10 11P r e f á c i o

da experiência de leitura a partir do que foi denominado, neste es-tudo, como campo transferencial entre leitor e texto literário.”

Para compreender o efeito do texto no leitor, Moraes percorre com rigor e clareza as teses de Wolfgang Iser, H. R. Jauss e Umberto Eco, aproveitando de cada uma delas suas melhores contribuições ao tema. Do ponto de vista das questões psicanalíticas suscitadas, os estudos de André Green fornecem aportes importantes para a autora, que considera a singularidade da experiência de leitura “ri-gorosamente a única alternativa possível”. O analista, como quer Green, transforma-se no analisado do texto. Ao “escutar” o texto – termo importado do setting analítico para a crítica literária – o sujeito que lê também é escutado por ele, tornando-se simulta-neamente intérprete e interpretado.

Na esteira da teoria de Fabio Herrmann, o conceito de “ruptura de campo” articula o efeito desse encontro fecundo entre leitor e texto – no caso, o romance Água Viva – com a ideia do ato interpre-tativo na sessão de análise. A abertura de sentidos se dá justamen-te pela incongruência e estranheza da interpretação no campo transferencial, deslocada em relação à expectativa do analisando, tal como o alcance da palavra clariciana ao tocar o leitor. Para Dé-bora Moraes, esse efeito disruptivo da interpretação analítica, traz afinidades profundas com o impacto da leitura de Água Viva, uma vez que a força do texto de Lispector, “tecido multifacetado de sen-tidos”, segundo expressão de Moraes, consiste em romper com as referências conhecidas do leitor, levá-lo a confrontar-se com o que nele é da ordem do irrepresentável. Por essa via, o texto é potente para criar novas significações, movendo-se para além do campo fa-miliar e habitual.

Como decorrência natural dessa posição subjetivante do in-térprete frente ao seu objeto, a própria pesquisadora não sai imune desse mergulho e se compromete também como alvo de sua leitu-ra. Tal como um bumerangue lançado e que retorna ao sujeito lei-tor, o olhar crítico da ensaísta se revela simultaneamente produtor e produto de sua inextricável relação com a obra estudada.

Quando Freud, em Moisés, de Michelangelo, afirma que o escul-tor buscou despertar “em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar”, a noção de recepção da obra de arte ganha um lugar central nos ensaios de estética freudianos. Com base nessa formulação, Débora conclui:

“Isto quer dizer que estamos incluindo os movimentos do desejo do leitor como condição necessária para a leitura.” Trata-se, portan-to, de um jogo duplo em que texto e leitor transformam-se mutua-mente, pois nem um nem outro seriam tábulas rasas ou passivas, e sim polaridades dinâmicas que se interferem reciprocamente.

E o que Débora Moraes “escuta” do texto Água Viva quando se debruça sobre ele no último capítulo, munida de todas as resso-nâncias teóricas e metodológicas construídas nas reflexões ante-riores?

O corpo a corpo com a obra de Lispector proporciona à ensaís-ta uma série de insights interessantes. A ampla pesquisa da fortuna crítica da escritora forneceu as balizas de um entendimento rigo-roso das matrizes da escrita clariciana, mas o salto interpretativo é fruto de uma compreensão íntima e original do texto. Convencida do poder desordenador da linguagem de Clarice, Moraes recorre à categoria grega do pharmakós, que faz coincidir veneno e remédio na formulação curativa dos elementos. Por esse viés, haveria, em suas palavras, “um efeito de envenenamento criativo” no contato do leitor com a obra. O “dilúvio de palavras” que invade o mundo do leitor também pode promover crescimento, entendido como processo de despertar para a consciência do limite e da finitude. Segundo Débora: “É necessário cobrir-se da película de morte, su-portar o arrebatamento desorganizador, os silêncios, o lançamento ao abismo do irrepresentável”, para nascer-se outro dessa experi-ência radical.

Se a narrativa clariciana nos alerta de que a vida vista de per-to é intolerável, resta-nos o amparo de seus textos como vias de acesso, sempre oblíquo, ao indizível. Mas também ganhamos, com o livro de Débora Moraes, um rico instrumento de leitura, capaz de levar-nos bem perto da potência ficcional de Clarice e ajudar-nos – não mais como ficção e sim como saber analítico – a nascer outra vez.

Yudith Rosenbaum

Professora Doutora da Universidade de São Paulo na Área de Literatura Brasileira

Page 7: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

Prólogo

A vocação da criação poética para um acesso privilegiado à compreensão da vida psíquica é

legitimada por Freud desde os primórdios da cons-tituição do campo psicanalítico. As características de romance de seus relatos clínicos, reconhecidas desde os Estudos sobre a histeria, já anunciavam a estreita articulação entre estilo e método de inves-tigação e assinalavam definitivamente que a rela-ção da Psicanálise com a tradição literária não teria nada de trivial, apontando para uma peculiaridade epistemológica da nova disciplina.

Se o tratamento da subjetividade empreendi-do pela produção literária foi fonte de inspiração para a construção de ficções teóricas fundamen-tais da arquitetura metapsicológica, essa afinidade também atravessa o cerne da operação das regras técnicas que sustentam o método psicanalítico. De modo que a relação entre Psicanálise e Literatura, que, justamente, deve ser entendida como radical, se expressa no parentesco enfatizado pelo próprio Freud, em A interpretação dos sonhos, entre o es-

Page 8: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o14 15P r ó l o g o

tado psíquico que se espera favorecer na situação analítica, por meio do livre associar, e as condições inerentes à criação poética. Não poderia mesmo ser de outro modo, em função do jogo de in-terferências recíprocas entre método e criação teórica, desde que o fio condutor subjacente à investigação psicanalítica é a concepção da estrita sobredeterminação das ocorrências psíquicas.

Não deve nos surpreender, portanto, que esses laços de vizi-nhança da Psicanálise com a Literatura se desdobrem em um inte-resse recorrente, no campo da pesquisa em Psicanálise, pelas suti-lezas que resvalam nas fronteiras entre ambas. Perspectiva que se concretiza em uma pluralidade de estudos que gravitam em torno dessa temática.

É nesse contexto que se insere este belo trabalho de Débora Ferreira Leite de Moraes, fruto de sua pesquisa de mestrado no Ins-tituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em que se pode navegar nos inquietantes murmúrios soprados pelo casamento sempre surpreendente entre a paixão e a razão no processo de produção de conhecimento.

O que está em questão é uma dinâmica sutil de arranjos e de-sarranjos entre invenção e descoberta, se considerarmos que:

A zona de eficácia veritativa no processo de criação não se en-contra exatamente em I, na invenção, nem em D, na descoberta, mas no meio dos dois: I / V / D. Verdade (V), nesse sentido, não se confunde com confirmação, é promessa de nova produção de saber, possibilidade antecipada. (Herrmann, 2004)

É assim que as palavras de Clarice Lispector, cuja obra é a ins-piração maior para este livro, enunciam uma espécie de princípio metodológico, ao qual a autora se manteve fiel durante todo o seu intenso percurso, em sintonia com a pluralidade de sentidos que, por princípio, o método psicanalítico espera promover: “Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso” (Lispector, 1998).

No estudo da relação entre o leitor e o texto literário, o tra-balho criou condições para o encaminhamento de uma metapsi-cologia do leitor, alinhando-se no horizonte de uma psicanálise implicada (Fraize-Pereira, 2005), sendo então possível formular a seguinte questão: “que implicações haverá em uma pesquisa em que o leitor investigado é o próprio pesquisador?”

De modo que a hipótese de uma espécie de campo transfe-

rencial presente na leitura se desdobra em uma perspectiva teóri-co-metodológica fundamental, descortinada pela rede argumen-tativa: a emergência de um leitor que, de intérprete, se faz simulta-neamente interpretado no encontro com a obra.

Em analogia à criação literária escrita, a proposta de uma cria-ção literária da leitura remete para um aspecto promissor do ponto de vista metapsicológico: a questão da dupla face da sublimação, em termos de sua vinculação às duas modalidades de pulsão, no contexto da ameaça de desamparo propiciada tanto pela escrita como pela leitura.

Esse quadro teórico permite observar como o exame do efeito da leitura a partir de uma obra de Clarice Lispector ilustra de modo exuberante essas contraditórias vicissitudes pulsionais e encena de modo radical, como, nas palavras da autora: “O texto literário pode ajudar a nascer um outro leitor, que já não será o mesmo depois de ter submergido na água viva do texto ficcional.”

Espero que a vitalidade e a consistência deste livro, que ex-pressa o entusiasmo da autora pelas instigantes relações que a Psicanálise mantém com a Literatura, estimulem o leitor para que empreenda a sua própria aventura nos caminhos da pesquisa em Psicanálise.

Ana Maria Loffredo

Psicanalista e Professora Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP

Referências bibliográficas

FRAIZE-PEREIRA, J.A. Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

HERRMANN, F. Da clínica extensa à alta teoria. Meditações clínicas. Quar-ta Meditação: a intimidade da Clínica. São Paulo: Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, pp.12-13 (material de aula), 2004.

LISPECTOR, C. Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Page 9: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

Sumário

Apresentação ................................................................... 19

1 O leitor na tessitura do texto: o ponto de vista da crítica literária ................................... 25Recepção, o ponto de vista histórico-sociológico ..........28Efeito, o ponto de vista teorético-textual .........................32Cooperação interpretativa, o ponto de vista de uma intervenção inevitável do leitor ...........................................37Leitor-sujeito-desejante, o ponto de vista da Psicanálise ...............................................................................42

2 Psicanálise e Literatura: uma conversa “estranho-íntima” .................................................... 49Atravessando as fronteiras e reconhecendo os limites ........................................................................................49Freud, leitor crítico: a literatura como objeto ..................54

3 Interpretação – o método psicanalítico ......... 63Afinando os instrumentos, o meio, o método .................63Abrindo o psiquismo para novos sentidos ......................65Articulando com a ficcionalidade.........................................77Campo transferencial ...............................................................81

Page 10: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o18

Apresentação

4 À luz da interpretação, o método deste trabalho: é possível escutar textos? ......................................................................................... 89Considerações de cunho metodológico ...............................................................89Escutar um texto e/ou ser escutado por ele? .....................................................92

5 Clarice de mãos dadas com o leitor ................................................ 95O trânsito entre a vida e a escrita ............................................................................96Reescrita do nascimento ............................................................................................99Escrita do indizível ..................................................................................................... 103

6 O leitor mergulhado em água... viva ............................................111Preliminares ................................................................................................................. 111O encontro ................................................................................................................... 113

7 O duplo efeito de Clarice ..................................................................123A dupla faceta da sublimação................................................................................ 128O remédio e o veneno de Clarice ........................................................................ 132

Referências bibliográficas..........................................................................135Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico cons-ciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.

(LISPECTOR, 1999a, p. 254)

A dificuldade do começo reside na escolha das palavras que darão início ao deslizamento do

leitor por entre as linhas que se constituem aos poucos. Diante da tela em branco, como uma ar-tista com seu pincel entre os dedos, tenho a tarefa de limitar à representação aquilo que constituiu, até o momento, este estudo que lhes apresento. Implicada neste processo, eu teço uma teia com palavras e espero encontrar nelas aliadas neste ca-minho de construção e reconstrução contínua que usará como um dos instrumentos meu próprio in-consciente. Pois que alguns contornos possam ser feitos antes de o leitor entrelaçar-se neste novelo.

Page 11: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o20 A p r e s e n t a ç ã o 21

Primeiro contorno: o objeto de investigação, que é a relação entre o leitor e o texto literário de um ponto de vista psicanalítico. Apresentarei, de um lado, a Literatura, mais precisamente apon-tamentos que emanam da crítica literária; de outro, a Psicanálise, mais especificamente o método de investigação freudiano.

No âmbito da Literatura há na crítica literária, a partir do final da década de 1960, uma acentuada ênfase nos estudos sobre o lei-tor, o efeito estético e a recepção da obra. Esse modo de conceber o leitor consolidará a introdução deste livro. É importante ressaltar que não é minha intenção inventariar todos os autores que inves-tigaram essa questão, portanto, breves considerações serão expos-tas nessa ponta do diálogo que se refere à crítica literária.

A partir desse recorte sucinto, pretendo pensar o leitor e sua relação com o texto literário segundo o ponto de vista psicanalítico, mais especificamente no âmbito da metapsicologia freudiana. Essa condição é de extrema importância de ser mencionada por dois motivos principais. Primeiro porque há que se delimitar o alcance do que será dito a partir da consideração do solo das proposições como sendo o psicanalítico e, segundo, porque é para essa área de saber que direciono, mais evidentemente, as averiguações que ti-veram espaço na minha pesquisa. Delimitado o alcance, é também válido ressaltar que não versarei sobre o encontro do leitor com o texto qualquer que seja o texto. Um dos limites sobre as conside-rações que se seguirão é que não vou explorar o processo de qual-quer leitura; refiro-me especificamente à leitura de textos ficcionais e à relação estabelecida entre o leitor e o texto ficcional.

Para tal empreitada, vou me valer de uma leitura do texto de Clarice Lispector, Água Viva. Por que a Clarice e qual Clarice serão elucidações que encontrarão espaço no capítulo que se refere a essa escolha; o porquê desse texto também será abordado. Adian-tando o que virá a seguir, a convocação feita pelo texto clariciano escolhido, o chamado explícito para a participação do leitor, cons-titui em parte a opção feita.

O segundo contorno, o método, que será exposto em suas es-pecificidades em momento oportuno, inspira-se no próprio méto-do freudiano da interpretação – um processo que permitirá que a interpretação não seja do texto, mas com o texto. No que concer-ne às considerações de cunho metodológico, mais questões que respostas se apresentarão. A interação entre o leitor proposto pela

Clarice em Água Viva e a minha implicação como leitora darão mar-gem para essas questões. Não pretendo adiantar neste momento de que maneira isso ocorrerá, mas no decorrer destas páginas algu-mas ressalvas serão necessárias.

Uma primeira aproximação sobre a relação entre leitor e texto literário poderá ser abordada do ponto de vista da Psicanálise – e aqui, o último contorno: o objetivo. Almejo tecer linhas que pos-sam contribuir para um estudo do encontro entre leitor e texto fic-cional.

Para que possamos adentrar o texto que será redigido tendo em vista esses contornos feitos, apresento a vocês, leitores deste percurso, uma espécie de esboço do que será esta trajetória entre a Psicanálise e a Literatura. Entre a Psicanálise e a Leitura. Entre o Leitor e o Texto. Uma trajetória que começou, transformou-se ao longo do caminho, e que pretende aproveitar desse para chegar ao seu destino final. O trajeto foi longo para chegar até aqui, contou com mudanças de rota, de ventos e até de embarcação. Pois que possamos também nos deleitar da viagem e não só da chegada, porque certamente esta será partida para outra.

A seguir, por meio de considerações resumidas, os capítulos deste livro.

O capítulo introdutório apresenta um recorte do que já se acu-mulou em termos de estudos sobre o leitor: O leitor na tessitura do texto: o ponto de vista da crítica literária. É como introdutória e breve a apresentação que faço do arcabouço crítico literário que se cons-tituiu acerca do leitor e de sua relação com o texto. Alguns aponta-mentos são feitos neste âmbito para que depois eu possa mergu-lhar no campo psicanalítico. Jauss (1994), Iser (1996) e Eco (2008) são os autores contemplados nesta seção, que pretende mostrar ao leitor deste estudo os estudos que já foram realizados sobre o leitor. Sem a pretensão de aprofundar este assunto do ponto de vista do que interessa à Literatura, volto-me aos estudos realiza-dos por Holland (1968) – teórico da Crítica Literária que toma como base para suas investigações a Psicanálise. Aproximações e afasta-mentos serão apontados para delimitar o que vislumbro pesquisar. Introdução concluída e já teremos em uma das mãos uma série de formulações e investigações feitas sobre um leitor “a priorístico” – aquele que faz parte da tessitura do próprio texto literário; na outra mão uma série de perguntas sobre um leitor que efetivamente lê

Page 12: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o22 A p r e s e n t a ç ã o 23

o texto, convidado por este papel ou por este lugar já pré-concebi-do. É justamente este aspecto que nos interessará de um ponto de vista psicanalítico – uma relação que é constituída no processo da leitura, entre o leitor e o texto literário.

O segundo capítulo dá continuidade às questões levantadas no capítulo 1: a legitimação de um diálogo. Em Psicanálise e Lite-ratura: uma conversa “estranho-íntima” o leitor irá se deparar com a Literatura envolvida e envolvendo a Psicanálise desde os seus primórdios – na constituição mesmo de seu método de trabalho e campo epistemológico. O diálogo com a Literatura foi de fun-damental importância para Freud. Essa aproximação do discurso poético e afastamento do discurso médico, que me interessa es-sencialmente no âmbito da metodologia, será parte também deste capítulo. Os textos freudianos que abordam textos literários serão também visitados nesta seção.

Na sequência, nos aproximaremos do Método. Não ainda da-quele que foi escolhido como instrumento para o desenvolvimen-to deste trabalho, mas do método psicanalítico – aquele que serviu de inspiração para tal. Já tendo legitimado uma relação entre Psica-nálise e Literatura por meio de seu método de investigação, cabe-rá, em Interpretação, o método psicanalítico, explorar, mesmo que brevemente, a densidade metodológica dessa forma de conceber a hermenêutica. O sonho, paradigma na teoria freudiana para a prática do método psicanalítico, nos servirá de modelo e analogia neste capítulo. Também nesta seção, levando em consideração que o que acontece na clínica psicanalítica é um processo interpretati-vo e que esta condição é dependente de um campo transferencial, passaremos ao subcapítulo Campo transferencial entre leitor e texto literário. Abordaremos, brevemente, notas freudianas sobre a trans-ferência e avançaremos nessa vertente com o conceito de campo transferencial e ruptura de campo de Fábio Herrmann (2001). É por meio dessa condição que vou arriscar chamar de transferencial o campo que se forma entre leitor e texto literário. Essa consideração nos direcionará para uma das hipóteses norteadoras deste traba-lho: o leitor, diante do texto literário, poderá ser visto como intérprete e interpretado.

Depois de visitar o método psicanalítico e inspirada por ele, chega a hora de formular e formalizar questões de cunho metodo-lógico mais especificamente referentes ao estudo que lhes ofereço.

Para este efeito é necessário tomar posição – falar de que lugar eu falo e para quem discurso o que aqui se apresenta. No quarto ca-pítulo, À luz da interpretação, o método deste trabalho: é possível es-cutar textos?, é o lugar de psicanalista e a delimitação do contexto do leitor que será feita. Serão duas as interrogações: um questio-namento teórico sobre a possibilidade de o leitor escutar um texto, ou de, talvez, ser escutado por ele; e uma indagação metodológica: que implicações haverá em uma pesquisa em que o leitor investi-gado é o próprio pesquisador? Aqui se coloca a questão dos limites deste trabalho.

Depois de termos visitado o campo da Literatura para tirar do que se acumulou em termos de Crítica Literária aquilo que nos ser-ve como ponto de partida; depois de termos dado espaço para o método psicanalítico e para a transferência como alicerces inspi-radores deste estudo; após nos debruçarmos sobre os limites do método que se pretende neste exercício de investigação, podemos enfim nos aproximar do veículo que será usado para as questões que se mostraram até aqui pertinentes. Clarice de mãos dadas com o leitor dá nome ao quinto capítulo deste livro. Especificidades des-sa autora e particularidades da escrita clariciana irão compor o con-vite feito e o papel oferecido pelo texto clariciano ao leitor.

O leitor mergulhado em Água... Viva é um capítulo no qual se encontra a proposição de uma leitura do livro Água Viva (1998a) e considerações que emergiram dessa experiência entre leitor e tex-to. “Você que me lê que me ajude a nascer” (LISPECTOR, 1998a, p. 33) – citação que servirá de pedra angular para os apontamentos feitos neste capítulo. De fato, se completa, se infere a palavra para ajudar a nascer o texto clariciano. Pensaremos sobre a condição de desamparo do leitor. Se há um apelo de ajuda para nascer o texto, como um pedido para uma mãe que ajuda seu bebê a ler o mundo, que o nomeia, que o auxilia a tornar-se sujeito, é porque também o texto, neste espaço relacional, pode ajudar a nascer o leitor, um outro leitor, que já não será o mesmo depois de ter se deleitado nas linhas de um tecido que funciona também para ele como esse outro que o subjetiva.

No capítulo O duplo efeito de Clarice é abordada a ambivalên-cia da leitura. Para sustentar a dupla faceta do ponto de vista teóri-co, discutiremos a sublimação à luz da segunda teoria freudiana do conflito pulsional. Para ilustrar os efeitos benéficos e nefastos do

Page 13: A Relação entre Leitor e Texto Literário - larpsi.com.br · das respostas possíveis para o enigma: ... “Que felicidade podemos en- ... E o que Débora Moraes “escuta” do

A r e l a ç ã o e n t r e l e i t o r e t e x t o l i t e r á r i o24

1ponto de vista da experiência, voltaremos aos textos de Clarice Lis-pector. O termo pharmakon será proposto por abranger ambos os lados deste campo semântico ambivalente: aquilo que pode curar ou matar.

É provável sairmos deste novelo tecido, com mais perguntas que respostas, com outras linhas para serem traçadas. “Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso” (LISPECTOR, 1998a, p. 25).

O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações pró-prias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor.

(LISPECTOR, 1999a, p. 79)

O leitor na tessitura do texto: o ponto de vista da

crítica literária

Penso que o escritor deve dirigir-se à liberdade de seus leitores, integrados ou não na mesma situação histórica e para quem as realidades descritas sejam ou não alheias. E, ao fazê-lo, o escritor deve mobilizá-los a uma identificação, questionamento ou possível resposta.

(LISPECTOR apud Borelli, 1981, p. 73)

Para dar início ao mergulho no campo da Críti-ca Literária que investiga o papel e implicações

do leitor na sua relação com o texto, pretendo re-correr a três autores: Jauss (1994), Iser (1996) e Eco (2008).

É importante ressaltar que para essa área do saber, para a crítica literária, o leitor referido tratar-se-á do leitor que está pressuposto na tessitura do texto ficcional, na trama de palavras que contém o leitor quase como uma de suas personagens1. O

1 Pretendo discorrer sobre essa afirmação quando chegar ao texto de Clarice Lispector.