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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ DANIELE DIAS MARTINS A RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUAS IMPLICAÇÕES CURITIBA 2009

A RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO … DIAS... · A eficácia dos direitos fundamentais : uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed

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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ

DANIELE DIAS MARTINS

A RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUAS IMPLICAÇÕES

CURITIBA

2009

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DANIELE DIAS MARTINS

A RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUAS IMPLICAÇÕES

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, na área de concentração em Direito Constitucional, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná – FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. Orientadora: Profª. Mestre Cibele Fernandes Dias Knoerr.

CURITIBA

2009

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TERMO DE APROVAÇÃO

DANIELE DIAS MARTINS

A RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUAS IMPLICAÇÕES

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no

curso de Pós-Graduação em Ministério Público – Estado Democrático de Direito,

Fundação Escola do Ministério Público do Paraná – FEMPAR, Faculdades Integradas

do Brasil – UniBrasil, examinada pela Professora Orientadora Cibele Fernandes Dias

Knoerr.

Profª Mestre Cibele Fernandes Dias Knoerr

Orientadora

Curitiba, de de 2010.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................06

1. BREVES APONTAMENTOS ACERCA DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS E SEUS PRINCIPAIS ATRIBUTOS ........................................09

1.1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..........................................09

1.1.1 Os Direitos Fundamentais de Primeira Geração ..................................................10

1.1.2 Os Direitos Fundamentais de Segunda Geração ..................................................12

1.1.3 Os Direitos Fundamentais de Terceira Geração ...................................................13

1.1.4 Os Direitos Fundamentais de Quarta e de Quinta Geração..................................16

1.2 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS....17

1.2.1 Irrenunciabilidade.................................................................................................18

1.2.2 Inalienabilidade ....................................................................................................19

1.2.3 Imprescritibilidade................................................................................................19

1.2.4 Universalidade ......................................................................................................20

1.2.5 Relatividade ..........................................................................................................21

2. COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS MÉTODOS PARA SUA

RESOLUÇÃO ..............................................................................................................23

2.1 DA DIGNIDADE HUMANA .................................................................................24

2.2 DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE....................................29

2.2.1 Do Devido Processo Legal em Sentido Material .................................................34

2.3 DA RESERVA DO POSSÍVEL E INTERESSE PÚBLICO ...................................35

3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE

DIREITOS FUNDAMENTAIS ATRAVÉS DA DEFESA DOS DIREITOS

COLETIVOS E INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS .................................................38

3.1 A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA PROPOSIÇÃO DA AÇÃO

CIVIL PÚBLICA...........................................................................................................41

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3.2 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES DE

INCONSTITUCIONALIDADE....................................................................................46

CONCLUSÃO...............................................................................................................51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................54

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RESUMO

O presente estudo visa demonstrar a relatividade dos direitos fundamentais e suas implicações no Estado Democrático de Direito. Por não serem absolutos e por possuírem a mesma hierarquia constitucional, os direitos fundamentais frequentemente entram em colisão, entre si ou com o interesse público, o que requer o domínio de métodos capazes de solucionar os conflitos de maneira eficaz. No decorrer deste trabalho de pesquisa serão apresentados os métodos a serem observados pelos aplicadores do Direito para resolução de embates entre os direitos fundamentais. O Ministério Público, enquanto instituição incumbida constitucionalmente da defesa dos interesses sociais, dos interesses individuais indisponíveis, bem como dos interesses difusos e coletivos, em muito contribui para a solução dos referidos conflitos, razão pela qual serão abordadas as principais formas de atuação do Ministério Público nesta seara, expondo-se situações em que o Órgão Ministerial deverá aplicar os métodos em questão para que seja possível solucionar situações de conflitos concretos sem ofensa à dignidade humana.

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INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil proclama e garante várias

categorias de direitos fundamentais, além de agasalhar os direitos e garantias

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais

em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Considerando tal diversidade de direitos, todos possuindo como núcleo

essencial a dignidade da pessoa humana, constantemente nos deparamos com colisões

entre os direitos fundamentais ou entre estes e o interesse público, o que demanda o

conhecimento de métodos capazes de transpor tais conflitos para solucionar os casos

concretos.

Conforme teremos a oportunidade de analisar, nenhum direito fundamental é

absoluto, ao contrário, os direitos fundamentais possuem como característica intrínseca

a relatividade, o que faz com que, diante do caso concreto, um direito se sobreponha

ao outro, sem, contudo, eliminá-lo, por meio da aplicação do princípio da

proporcionalidade e sempre com vistas ao respeito à dignidade humana.

A coexistência de diretos e garantias fundamentais aparentemente conflitantes

requer ponderação e concessões recíprocas, pois não existe hierarquia entre estes

direitos, todos são proclamados e garantidos pela Carta Constitucional, de forma que,

o peso e a prevalência de cada um deles só podem ser aferidos diante da situação de

fato a ser solucionada.

Relevante se faz, portanto, uma análise crítica acerca da relatividade dos

direitos fundamentais e a efetividade destes direitos, sobretudo quando se encontram

em situação de embate, ocasião em que caberá aos órgãos estatais a aplicação de

medidas restritivas aos direitos e garantias individuais a fim de apaziguar a ordem

pública preservando, no entanto, o núcleo essencial dos direitos envolvidos, qual seja,

a dignidade da pessoa humana.

Inicialmente faremos uma breve incursão na evolução dos direitos

fundamentais, passando por cada uma das dimensões doutrinariamente reconhecidas e

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pelo contexto histórico no qual surgiram. Após, aprofundaremos a análise no que se

refere às principais características desses direitos, quais sejam: irrenunciabilidade,

imprescritibilidade, inalienabilidade, universalidade e relatividade.

O segundo e principal passo será a exposição dos métodos que se prestam à

resolução das colisões entre os direitos fundamentais. Abordaremos os princípios que

deverão ser aplicados nas situações de conflito, dentre os quais se destacam o princípio

da dignidade humana, da proporcionalidade e da razoabilidade, do devido processo

legal em sentido material, a reserva do possível e o interesse público.

Conforme será possível constatar, referidos princípios, que permeiam a

efetivação dos direitos fundamentais, são complementares uns aos outros e incidirão

de acordo com a situação de fato, visando a preservação do melhor interesse dos

sujeitos de direito envolvidos no conflito, com a ponderação dos bens jurídicos em

jogo.

Por fim, traremos a lume a função do Ministério Público na solução dos

conflitos entre direitos fundamentais, através de suas atribuições constitucionalmente

estabelecidas.

Ao Ministério Público, enquanto instituição permanente e essencial à função

jurisdicional do Estado, cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis. Ao exercer tais incumbências, que lhes

foram reservadas pelo legislador constituinte, o Ministério Público participa

ativamente da resolução de colisões entre os direitos fundamentais, defendendo

judicial ou extrajudicialmente o seu posicionamento, formado após a aplicação dos

métodos disponíveis para interpretação de tais conflitos.

Veremos que através do exercício da ação civil pública, da instauração do

inquérito civil ou através da sua atuação nas ações de inconstitucionalidade, o Órgão

Ministerial dispõe de meios eficazes para a solução das situações aparentemente

intransponíveis, que colocam em choque direitos de mesma hierarquia jurídica, mas

que precisam ceder reciprocamente nas situações concretas.

Na República Federativa do Brasil, que se constitui em Estado Democrático de

Direito, o Ministério Público recebeu os instrumentos necessários para defesa dos

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interesses da sociedade e deve estar preparado para cumprimento de sua função

constitucional, o que implica em conhecer e aplicar meios eficazes para garantia dos

direitos fundamentais.

O objetivo do presente trabalho consiste em demonstrar a relatividade

dos direitos fundamentais, enfatizando os métodos disponíveis aos intérpretes e

aplicadores do Direito, sobretudo ao Ministério Público, para decidir, diante do caso

concreto, qual direito irá prevalecer e qual deverá ceder, ainda que parcialmente.

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1. BREVES APONTAMENTOS ACERCA DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS E SEUS PRINCIPAIS ATRIBUTOS

São chamados direitos fundamentais aqueles que possuem como

fundamentalidade material a dignidade da pessoa humana, assim como os direitos

humanos, sendo que a diferença entre eles reside no aspecto formal, pois, ao passo que

os direitos fundamentais estão positivados na Constituição Federal, os direitos

humanos se originam em tratados internacionais, podendo, posteriormente, serem

incorporados pela Lei Maior.

A Constituição da República Federativa do Brasil proclama e garante várias

categorias de direitos fundamentais, a saber: direitos e garantias individuais e

coletivos, direitos sociais, direitos relativos à nacionalidade, direitos políticos, direitos

relativos à organização e participação em partidos políticos.

Além destes, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 2º, agasalha,

ainda, os direitos e garantias “decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,

ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

1.1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Tradicionalmente os direitos fundamentais vêm sendo classificados em

gerações, também chamadas dimensões, que objetivam demonstrar a evolução do

surgimento destes direitos, frutos da conquista dos povos ao longo da História. Tratam-

se, portanto, de direitos construídos e não de direitos naturais meramente

reconhecidos.

É certo que as gerações não são estanques, da mesma forma que não se

excluem mutuamente. As gerações se sucedem, mas os novos direitos positivados não

eliminam direitos de uma geração anterior, apenas aumentam a amplitude de proteção

da dignidade do ser humano, conforme disserta Ingo Wolfgang SARLET:

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Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno “Direito Internacional dos Direitos Humanos”.1

Alguns autores, como Antonio Augusto Cançado TRINDADE, criticam a

divisão dos direitos fundamentais em gerações, por causar fragmentação, gerando a

falsa ideia de que uma geração substitui a outra à medida que vão surgindo. Para

Cançado TRINDADE, a “tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento

jurídico, nem na realidade. Essa teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de

maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à realidade”2.

Não obstante uma eventual confusão que a terminologia possa causar, o fato é

que a classificação dos direitos fundamentais em dimensões ou gerações é didática e

facilita a assimilação e entendimento da conquista histórica dos povos, desde que não

se olvide que tal classificação não torna os grupos de direitos fundamentais isolados

uns dos outros, e nem tampouco faz uns superiores aos outros.

Passamos, assim, à análise breve das já consagradas dimensões de direitos

fundamentais, deixando claro que usaremos as expressões “geração” e “dimensão”

como sinônimas.

1.1.1 Os Direitos Fundamentais de Primeira Geração

Os direitos fundamentais de primeira geração são aqueles que giram em torno

do valor “liberdade”. Foram positivados nas Constituições no século XVIII, durante o

Estado Liberal-burguês, como forma de defesa do cidadão em face do Estado.

No contexto histórico do surgimento da primeira geração de direitos

1 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos

direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 46.

2 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos das mulheres: a proteção internacional. Palestra proferida na Câmara dos Deputados, Brasília, 25 maio 2000. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm> Acesso em: 24 jan. 2010.

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fundamentais, o povo busca a proteção de suas liberdades individuais e da autonomia

privada, restringindo a intervenção do Estado.

Por isso são chamados de “liberdades negativas” ou “liberdades públicas”,

pois a forma encontrada para preservação dos direitos individuais foi exigir a

abstenção do Estado na violação desses direitos.

Ao dissertar sobre as funções dos direitos fundamentais, Zulmar FACHIN

ressalta a função de defesa ou de liberdade:

(...) nesta direção, impõem-se ao Estado a abstenção de prejudicar, ou seja, o dever de respeitar os atributos que compõem a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, a função de defesa ou de liberdade dos direitos fundamentais limita o poder estatal (ele não pode editar leis retroativas, por exemplo), mas também atribui dever ao Estado (impõe-lhe, por exemplo, o dever de impedir a violação da privacidade).3

Tais direitos, civis e políticos, nascem com o movimento constitucionalista,

Revoluções Inglesas e Revolução Francesa, e encontram espaço na Declaração de

Direitos do Bom Povo da Virgínia, em 1776, e na Declaração Francesa do Homem e

do Cidadão, de 1789.

Podemos citar, como direitos integrantes desta primeira geração, o direito à

vida, à liberdade, à igualdade formal e à propriedade, posteriormente complementados

pelas liberdades de expressão coletiva e pelos direitos de participação política, tais

como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva4.

Flávia PIOVESAN explica a busca da igualdade formal nesta geração,

asseverando que “o temor à diferença é fator que permite compreender a primeira fase

de proteção dos direitos humanos, marcada pela tônica da proteção geral e abstrata,

com base na igualdade formal – eis que o legado do nazismo pautou-se na diferença

como base para as políticas de extermínio, sob o lema da prevalência e superioridade

da raça pura ariana e da eliminação das demais”5.

3 FACHIN, Zulmar. Funções dos direitos fundamentais. Cadernos jurídicos, Curitiba, n. 6,

p. 06-08, set. 2009. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia..., p. 47. 5 PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas global e

regional. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e

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Garantias processuais como habeas corpus e mandado de segurança também

fazem parte da primeira dimensão dos direitos fundamentais.

1.1.2 Os Direitos Fundamentais de Segunda Geração

Os direitos fundamentais de segunda geração estão relacionados ao valor

“igualdade”, mas não à igualdade formal da primeira geração, mas sim à igualdade

material, consistente em tratar desigualmente os desiguais na medida de suas

desigualdades, buscando-se, com isso, reduzir as desigualdades sociais.

Surgem com o Estado Social, entre os séculos XIX e XX, como Estado do

Bem Estar Social, após a Primeira Guerra, positivados na Constituição de Weimar, em

1919, e na Constituição do México de 1917.

Cibele Fernandes Dias KNOERR cita o contexto histórico do nascimento da

segunda dimensão de direitos fundamentais:

Marcos históricos da 2ª Geração: Manifesto Comunista de Marx e Engels, a Encíclica Rerum Novarum do Vaticano e a Declaração dos Direitos do Homem Trabalhador e Explorado da Revolução Soviética, positivação nas Constituições do princípio de século XX (como a Constituição de Weimar). No Brasil: CLT e a Lei Elói Chaves – Estado Social.6 (Destaque original)

Nesta segunda dimensão de direitos fundamentais o papel do Estado deixa de

ser unicamente de abstenção para ser também de ação, na promoção do bem-estar dos

cidadãos, por isso são também chamados de “liberdades positivas”, já que exigem do

Estado uma prestação.

Encontram-se albergados pela segunda dimensão os direitos sociais,

econômicos e culturais, tais como o direito à saúde, à educação, direitos

previdenciários, direitos do consumidor, direito ao trabalho e, mais recentemente, o

direito à alimentação, acrescentado pela Emenda Constitucional 64/2010. São direitos estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora (Co-edição), 2009, p. 294-322.

6 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Direito constitucional didático: questões do exame da ordem comentadas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 37.

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que podem ser garantidos pelo mandado de segurança coletivo.

As “liberdades sociais” encontram-se na esfera da geração em comento,

conforme exemplos citados por Ingo Wolfgang SARLET:

(...) as assim denominadas 'liberdades sociais', do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais representativos.7

Assim, verifica-se que a segunda dimensão alavanca a igualdade e a liberdade

em seus aspectos materiais, na medida em que busca efetivar a prestação social dos

direitos fundamentais e a realização da justiça social, pois o mero reconhecimento da

igualdade formal não bastou para propiciar a todos os indivíduos a fruição integral de

seus direitos.

1.1.3 Os Direitos Fundamentais de Terceira Geração

Com a terceira geração, chega-se aos direitos que gravitam ao redor da

solidariedade e da fraternidade, moldados a partir da Segunda Guerra Mundial. Nesta

geração, os direitos transcendem o indivíduo e passam a ter titularidade coletiva.

Os marcos históricos da terceira geração, de acordo com a doutrinadora Cibele

Fernandes Dias KNOERR, são:

Período que vai do Pós-Segunda Guerra Mundial – Várias declarações internacionais: Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948; Declaração dos Direitos da Criança (1959); Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952); Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial (1963); Declaração sobre a Concessão de Independência dos Países e Povos Coloniais (1960); Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos (1966); Convenção para Repressão do Genocídio (1958); Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher (1967); Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971).8

7 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia..., p. 48. 8 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Op. cit., p. 37.

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Da análise das declarações internacionais acima citadas verifica-se que os

direitos fundamentais de terceira geração transcendem também o âmbito interno dos

países, pois pertencem a toda a humanidade.

Como exemplos de direitos de terceira geração, podemos citar o direito à paz,

ao desenvolvimento, autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, ao patrimônio

comum da humanidade, à qualidade de vida.

O Supremo Tribunal Federal, pelo seu Ministro Celso de MELLO, já se

manifestou acerca das principais características das dimensões dos direitos

fundamentais. Vejamos:

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade.9

Na Constituição da República Federativa do Brasil muitos destes direitos

encontram-se tipificados no artigo 4º, como princípios que devem reger as relações

internacionais:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

9 Mandado de Segurança 22.164. Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento em 30-10-1995,

Plenário. DJ de 17-11-1995.

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Há, porém, direitos de terceira dimensão tipificados em locais esparsos da

Constituição Federal, como o direito ao meio ambiente, que é reconhecidamente um

direito de terceira dimensão, consoante já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Meio ambiente — Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225) — Prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade — Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado da solidariedade — Necessidade de impedir que a transgressão a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeneracionais — Espaços territoriais especialmente protegidos (CF, art. 225, § 1º, III) — Alteração e supressão do regime jurídico a eles pertinente — Medidas sujeitas ao princípio constitucional da reserva de lei — Supressão de vegetação em área de preservação permanente — Possibilidade de a Administração Pública, cumpridas as exigências legais, autorizar, licenciar ou permitir obras e/ou atividades nos espaços territoriais protegidos, desde que respeitada, quanto a estes, a integridade dos atributos justificadores do regime de proteção especial — Relações entre economia (CF, art. 3º, II, c/c o art. 170, VI) e ecologia (CF, art. 225) — Colisão de direitos fundamentais — Critérios de superação desse estado de tensão entre valores constitucionais relevantes — Os direitos básicos da pessoa humana e as sucessivas gerações (fases ou dimensões) de direitos (RTJ 164/158, 160-161) — A questão da precedência do direito à preservação do meio ambiente: uma limitação constitucional explícita à atividade econômica (CF, art. 170, VI) — Decisão não referendada — conseqüente indeferimento do pedido de medida cautelar. A preservação da integridade do meio ambiente: expressão constitucional de um direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas.10 (Destaque nosso)

Não se pode olvidar, noutro passo, que “a maior parte destes direitos

fundamentais de terceira dimensão ainda (inobstante cada vez mais) não encontrou seu

reconhecimento na seara do direito constitucional, estando, por outro lado, em fase de

consagração no âmbito do direito internacional”11.

Sendo de titularidade difusa ou coletiva, os direitos fundamentais de terceira

geração são garantidos pela ação popular, pela ação civil pública, pelo controle de

constitucionalidade, pela ação de descumprimento de preceito fundamental.

Encontramos aqui forte atuação do Ministério Público, assim como na proteção

dos direitos fundamentais de segunda geração, pois a Constituição Federal, artigo 127,

caput, incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme teremos a oportunidade de

explorar mais adiante.

10 Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.540-MC. Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento

em 1º-9-2005. DJ de 3-2-2006. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia..., p. 49.

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1.1.4 Os Direitos Fundamentais de Quarta e de Quinta Geração

Muito já se tem falado acerca da existência de uma quarta e até mesmo de uma

quinta dimensão de direitos fundamentais, mas ainda não se tratam de dimensões

reconhecidas e aceitas por toda doutrina.

No Brasil, Paulo BONAVIDES sustenta a existência de uma quarta geração

formada pelos direitos relativos à democracia participativa, à informação e ao

pluralismo. Segundo o autor, “deles depende a concretização da sociedade aberta do

futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo

inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”12.

Outros autores, dentre os quais Norberto BOBBIO13, indicam como integrantes

da quarta geração os direitos relacionados às novas tecnologias, informática,

clonagem, manipulação genética, questões relacionadas à mudança de sexo.

Assim, diferentemente do que ocorre em relação à primeira, segunda e terceira

gerações, não há unanimidade doutrinária acerca do conteúdo da quarta geração de

direitos fundamentais. Aliás, nem há consenso acerca da própria existência desta

quarta geração.

Com a quinta geração não é diferente. Paulo BONAVIDES14 classifica o

direito à paz como sendo de quinta dimensão dos direitos humanos. Seria a paz em seu

sentido mais amplo, de âmbito interno e externo dos países, condição para a

democracia e desenvolvimento das nações, a paz indispensável para a concretização de

todos os demais direitos da pessoa humana.

Consoante já afirmou Norberto BOBBIO, “direitos do homem, democracia e

paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do

homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem

as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos”15.

O reconhecimento da existência de uma quinta dimensão dos direitos

12 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13 ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros Editores, 2003, p. 571. 13 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 10 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 14 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. 15 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 1.

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fundamentais albergando unicamente a paz é passível de críticas, haja vista a

subjetividade que permeia o conceito de paz, direito este que já estaria inserido na

terceira geração, vinculado à fraternidade e à solidariedade.

Nesse sentido dissertam Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS:

Esses problemas se encontram com maior intensidade nos casos dos direitos à paz e ao desenvolvimento econômico, os quais envolvem decisões de política mundial e nacional e cuja finalidade não permite identificar nem titulares nem mesmo sujeitos passivos claramente definidos. Na realidade, está-se diante de propósitos e objetivos políticos da atividade estatal e não de direitos fundamentais no sentido clássico e consolidado do termo. Mas, a partir do momento em que o constituinte brasileiro decidiu configurá-los como direitos fundamentais, coloca-se um problema dogmático que a doutrina não pode ignorar, nem resolver de forma simples, propondo terminologias sem a devida elaboração teórica.16

Em que pesem as críticas, o fato é que todos os direitos fundamentais estão, de

certa forma, vinculados aos direitos de primeira dimensão, quais sejam, a vida,

liberdade, igualdade e propriedade.

A evolução da sociedade, os avanços científicos e tecnológicos, a garantia de

amplo acesso à justiça e a conscientização dos homens acerca do resgate e manutenção

da dignidade acabam por exigir o reconhecimento de facetas cada vez mais específicas

das liberdades positivas e negativas mais amplas, aumentando, assim, as dimensões

dos direitos fundamentais.

1.2 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Veremos aqui, as características mais relevantes dos direitos fundamentais,

com exclusão da historicidade, a qual nada mais é do que a já tratada evolução

histórica dos direitos e a classificação em gerações. Assim, nos pautaremos nas

características de irrenunciabilidade, inalienabilidade, imprescritibilidade,

16 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Definições e características dos direitos

fundamentais. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora (Co-edição), 2009, p. 118-136.

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18

universalidade e, por fim, a relatividade.

1.2.1 Irrenunciabilidade

Trata-se de uma característica não absoluta, assim como veremos que os

próprios direitos fundamentais não são absolutos. A princípio, ao titular de um direito

fundamental não é dado a faculdade de renunciar tal direito.

É preciso distinguir a titularidade do direito e o exercício do mesmo direito.

Assim, a pessoa não pode abrir mão de ser titular de um dado direito fundamental, no

entanto, pode, livremente, optar por não exercê-lo, através de uma renúncia expressa.

Conforme bem se posiciona Cibele Fernandes Dias KNOERR, “a

irrenunciabilidade é uma regra que admite exceções em hipóteses expressamente

previstas na Constituição Federal (art. 7º, VI, XIII e XIV)”17. Os exemplos citados são:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; (...) XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; (...)

Ninguém discute, portanto, que os direitos dos trabalhadores são

irrenunciáveis, no entanto, ninguém os obriga a litigar judicialmente pela

concretização de tais direitos, trata-se de uma opção pessoal do titular do direito

violado.

Além disso, conforme dispositivos constitucionais acima transcritos, a própria

Constituição da República prevê a possibilidade de renúncia à integralidade de certos

direitos dos trabalhadores, como a irredutibilidade dos salários, que pode ser mitigada

17 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Op. cit., p. 38.

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19

por acordo ou convenção coletiva de trabalho.

A irrenunciabilidade, na verdade, é atributo da titularidade do direito, porém é

cabível a renúncia em relação ao seu exercício.

1.2.2 Inalienabilidade

Qualquer negócio jurídico que se pretenda fazer para transferência da

titularidade de um direito fundamental seria absolutamente nulo, por ilicitude de

objeto.

Conforme já vimos, o conteúdo material dos direitos fundamentais é a

dignidade da pessoa humana. Desta forma, alienar um direito fundamental significaria

abrir mão da própria dignidade.

Neste sentido temos lição de Ingo Wolfgang SARLET:

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferimos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.18

Os direitos fundamentais e a dignidade humana são indissociáveis, as pessoas

não podem alienar, por qualquer forma, valores tão intrínsecos que compõem a própria

essência humana. Ainda que o titular não pretenda exercer o seu direito, não poderá

transferi-lo a outrem.

1.2.3 Imprescritibilidade

A imprescritibilidade é a regra, “admitindo-se exceções em hipóteses previstas

18 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988. 7. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 94.

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20

na Constituição, como é o caso do art. 7º, inc. XXIX”19

Referido dispositivo legal trata da ação relativa aos créditos resultantes das

relações de trabalho, fixando um prazo prescricional de cinco anos para que os

trabalhadores urbanos e rurais ingressem em juízo pleiteando seus direitos, até o limite

de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.

A preocupação do constituinte, ao definir um prazo prescricional para o

exercício do direito de ação, certamente foi a preservação da segurança jurídica e não

se trata de prescrição do direito fundamental do trabalhador, mas sim do exercício do

direito de ação quanto a esses direitos.

Outro exemplo refere-se ao direito a alimentos, disciplinado pelo Código

Civil. Ao mesmo tempo em que o direito a alimentos não prescreve, a pretensão para

haver prestações alimentares prescreve em dois anos a partir da data em que se

vencerem.

1.2.4 Universalidade

Universalidade significa dizer que os direitos fundamentais pertencem a todas

as pessoas, são universais, inerentes à condição humana. Pela Constituição da

República, artigo 5º, caput, todas as pessoas são iguais perante a lei, não podendo

haver distinção de qualquer natureza, garantindo-se a todos os brasileiros e também a

estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade e toda a gama de direitos fundamentais

dispostos na Constituição, assim como aqueles provenientes de Tratados

Internacionais.

19 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Op. cit., p. 38.

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21

1.2.5 Relatividade

Chegamos, enfim, à característica dos direitos fundamentais que embasa o

tema do presente trabalho de pesquisa. Trata-se da relatividade, pois embora sejam

irrenunciáveis e inalienáveis, os direitos fundamentais não são, contudo, absolutos.

Alexandre de MORAES20 nos ensina que os direitos fundamentais

consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, vez que encontram limites

nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna, o que o autor chama de

princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas.

No mesmo sentido dispõe Cibele Fernandes Dias KNOERR, ao afirmar que,

“os direitos fundamentais admitem limitação seja em face de outros direitos

fundamentais (numa situação de colisão) ou em face do interesse público. Logo, não

são direitos absolutos”21.

Assim, em verdade, inexiste uma hierarquia positivada entre os direitos

fundamentais. Muito embora seja natural julgarmos o direito à vida como sendo o

principal de todos os direitos, já que sem vida não haveria liberdade, igualdade,

segurança ou propriedade, a quem possa afirmar que a liberdade é o primeiro dentre

todos os direitos, pois de nada valeria a vida, a segurança, a igualdade e a propriedade,

sem a liberdade.

O Constituinte dispensou aos direitos fundamentais a mesma importância e a

mesma hierarquia constitucional. Portanto, tudo dependerá do caso concreto e dos

valores pessoais envolvidos. Os direitos irão se sobrepor uns aos outros de acordo com

as circunstâncias, que definirão o peso de cada um, em cada caso.

Diante da ausência de uma ordem de prevalência pré-fixada entre os direitos

fundamentais, a concorrência e o conflito entre eles ocorre em grande escala, cabendo

ao intérprete, ao aplicador do Direito, ponderá-los, a fim de que nenhum deles se perca

totalmente em função do outro.

20 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 63. 21 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Op. cit., p. 37.

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22

Pode-se considerar uma exceção à relatividade dos direitos fundamentais, o

posicionamento que tem o Supremo Tribunal Federal em relação ao princípio-garantia

da “inadmissibilidade das provas ilícitas”, tido como absoluto pela Corte

Constitucional, por considerar que ao vedar as provas ilícitas o próprio constituinte já

ponderou os valores envolvidos. Vejamos o posicionamento exposto pelo Ministro

Sepúlveda PERTENCE:

Objeção de princípio – em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal – à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou – em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal – pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte – salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável – a ponderação de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do domicílio não compete a posteriori ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe autorizar previamente a diligência.22 (Destaque nosso).

Afora a referida exceção, a regra é a de que os direitos fundamentais não são

absolutos, de forma que todos podem sofrer restrições em uma situação de fato na qual

haja colisão de direitos. Neste passo, surgem os métodos a serem utilizados para que se

possa definir qual dos direitos envolvidos deverá ceder para a prevalência do outro. É

o que passaremos a estudar.

22 Habeas Corpus 79.512. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 16-12-1999, Plenário. DJ de 16- 5-2003.

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23

2. COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS MÉTODOS PARA SUA

RESOLUÇÃO

Conforme visto, os direitos fundamentais não são absolutos, circunstância que

provoca constantes colisões entre eles, as quais precisam ser solucionadas de maneira

tal que um direito prevaleça sem, contudo, excluir totalmente o outro. Como bem

observam Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS:

O operador jurídico, que lida com conflitos entre direitos fundamentais, enfrenta particular dificuldade em encontrar a solução correta do ponto de vista jurídico-dogmático em casos complicados e política ou economicamente controvertidos. Tal dificuldade apresenta-se, em geral, na interpretação jurídica, mas se torna mais evidente nos conflitos relacionados aos direitos fundamentais, em que os indivíduos e os grupos com interesses contrários tentam fundamentar esses interesses na Constituição, procurando nela uma legitimação especial, na medida em que os apresentam como constitucionalmente tutelados.23

Optar, diante do caso concreto, pelo direito que irá se sobrepor não é tarefa

fácil. Para tanto, doutrina e jurisprudência têm sustentado métodos e princípios a

serem considerados para se alcançar a melhor solução possível para cada situação de

fato que se apresente.

Tais métodos devem ser exaustivamente conhecidos pelos aplicadores do

Direito, sobretudo pelos membros do Ministério Público, pois se constituem em

instrumentos na defesa dos diretos sociais e individuais indisponíveis.

A primeira questão a ser abordada será a defesa da dignidade humana, que

deve ser buscada com prioridade em casos de colisão de direitos fundamentais.

Trataremos também da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da ponderação

de bens, além do princípio do devido processo legal em sentido material.

Veremos, ainda, que a reserva do possível também se constitui em fator

relevante para decisão quanto aos conflitos de direitos fundamentais, da mesma forma

que o interesse público envolvido na questão, pois, conforme lição de Gilmar Ferreira

MENDES, “a doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido

amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos

23 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Op. cit., p. 135.

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fundamentais. As colisões em sentido amplo envolvem os direitos fundamentais e

outros princípios ou valores que tenham por escopo a proteção de interesses da

comunidade”24.

Lembramos, por importante, que os métodos ora abordados são de aplicação

conjunta e cumulativa e não de exclusão.

2.1 DA DIGNIDADE HUMANA

Não há dúvidas de que o tema, ora exposto, envolve o princípio da dignidade

da pessoa humana. Há que se admitir que sempre que o Estado intervém no direito de

escolha de seus cidadãos ou restringe seus direitos assume o risco de afrontar a

dignidade que lhes é inerente.

Conforme leciona Ana Paula de BARCELLOS, “a consagração constitucional

da dignidade, e da mesma forma das condições materiais que compõem o seu

conteúdo, teve e tem, sobretudo, o propósito de formular um limite à atuação, ou à

omissão, dos poderes constituídos, em garantia das minorias e de todo e qualquer

indivíduo”25.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana desdobra-se em

direitos fundamentais da sociedade que variam de acordo com as conjunturas. A nossa

vida privada, por exemplo, nunca esteve tão exposta como nos dias atuais, em que o

desenvolvimento da informática, dos meios audiovisuais, bem como da imprensa,

violam constantemente o direito à privacidade e, por conseguinte, a própria dignidade.

Jorge MIRANDA26 assevera que a dignidade pressupõe a autonomia vital da

pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas

e às outras pessoas.

24 MENDES, Gilmar Ferreira. Limitações dos direitos fundamentais. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 373-439.

25 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 192.

26 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 168/169.

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25

Alberto Vellozo MACHADO27, por sua vez, afirma que a dignidade é o

conjunto das definições que permitam à pessoa humana realizar-se íntima e

afetivamente.

Na lição de Alexandre de MORAES:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

28 (Destaque original)

No mesmo sentido é a lição de Ingo Wolfgang SARLET ao preceituar que

“como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve)

ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido

ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano

como algo que lhe é inerente.”29

Assim, sendo intrínseca e inerente à pessoa, a dignidade é irrenunciável e

inalienável, por ser qualificação essencial ao ser humano, de forma que um Estado que

não a promove e não a respeita não poderá jamais ser chamado de Estado Democrático

de Direito, pois não há Direito onde não existe respeito à dignidade dos cidadãos.

Na Constituição da República Federativa do Brasil, o legislador constituinte

fez previsão da dignidade da pessoa humana no artigo 1º, inciso III, dentre os

fundamentos da República:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

27 MACHADO, Alberto Vellozo. A lesão aos direitos da personalidade. Direito e Sociedade

Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, Curitiba, v. 2, n.1, p. 80, jan./jun. 2001. 28 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000,

p. 60. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade..., p. 41.

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26

V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Muito embora seja ela inerente ao ser humano, a sobrevivência e preservação

de tal qualidade essencial é também responsabilidade do Estado, pois cabe ao mesmo

abster-se de ofender a dignidade já existente, oferecendo condições para seu pleno

exercício, bem como promovê-la àqueles que não conseguem, por si só, manter suas

necessidades básicas, indispensáveis para que tenham uma vida digna.

É preciso não olvidar que cada pessoa tem suas próprias necessidades, seus

direitos e seus deveres e, principalmente, sentimentos e valores morais, sendo inegável

que todos estes elementos são próprios de cada ser humano e também variáveis de

acordo com as especificidades de cada grupo social, de cada cultura, de cada

comunidade.

Neste sentido, a concepção de dignidade jamais será homogênea e universal.

Enquanto determinada conduta pode ser ofensiva à dignidade dos integrantes de uma

certa comunidade, a mesma conduta pode ser insignificante para outro grupo social, de

forma que muitos atos que, a priori, seriam tidos como atentatórios à dignidade,

muitas vezes justificam-se pelas peculiaridades de cada comunidade.

Pode-se afirmar que ter dignidade implica no direito de exercer o livre arbítrio,

decidindo-se autonomamente sobre sua própria vida, sem interferência do Estado ou

de terceiros, buscando a realização pessoal e a felicidade que é o que todos almejam.

O dever de proteção à dignidade é imperativo e não se refere apenas ao poder

público, vez que a todos cabe respeitar sua própria dignidade, bem como a dignidade

do próximo. Neste sentido, inclui-se até mesmo a proteção da pessoa contra si mesma,

de tal sorte que o Estado encontra-se autorizado e obrigado a intervir em face de atos

de pessoas que, mesmo voluntariamente, atentem contra sua própria dignidade.30

Oportuno trazer a lume, para exemplificar a relevância da preservação da

dignidade humana na solução dos conflitos entre direitos fundamentais, o polêmico

caso das Testemunhas de Jeová, as quais, por motivo de crença, calcada no texto

30 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade... p. 120-128.

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Bíblico, não admitem submeter-se a transfusões sanguíneas, ainda que tal recusa

cause-lhes a morte.

Neste contexto, constranger uma Testemunha de Jeová à transfusão de sangue

poderia ser considerado forma legítima do Estado de preservar a dignidade da pessoa

humana ou, ao contrário, um ato atentatório à dignidade da pessoa, vez que se retira da

mesma a autonomia de decidir acerca de sua própria existência.

Acerca do embate entre a dignidade e a vida, reproduzimos o ensinamento de

Ingo Wolfgang SARLET:

Outro problema – que, de resto, tem sido objeto de amplo debate – diz com a já lembrada e possível contraposição dos valores dignidade e vida. Com efeito, pressuposto a existência de um direito à vida com dignidade e se tomando o caso de um doente em fase terminal, vítima de sofrimentos atrozes e sem qualquer esperança de recuperação, sempre se poderá indagar a respeito da legitimidade da prática da eutanásia ou do suicídio assistido, justificando-a com base no argumento de que vale mais morrer com dignidade ou então fazer prevalecer (mesmos contrariamente à vontade expressa do doente ou mesmo em flagrante violação de sua dignidade) o direito (e, nesta quadra, também dever) à vida, ou mesmo, na esteira de exemplo já referido, considerar que a dignidade engloba a necessidade de preservar e respeitar a vida humana, por mais sofrimento que se esteja a causar com tal medida. Em verdade, em se admitindo uma prioridade da vida (e não são poucos os que assim sustentam), no âmbito de uma hierarquização axiológica, estar-se-á fatalmente dando margem à eventual relativização e, neste passo, também admitindo (como decorrência lógica) uma ponderação da dignidade, de tal sorte que desde logo (embora não apenas por este motivo) merece ser encarado com certa reserva a assertiva de que a dignidade não se encontra sujeita, em hipótese alguma, a juízos de ponderação de interesses. No mínimo, parece-nos que a realidade da vida (e da dignidade), oferecem situações-limite, diante das quais dificilmente não se haverá de pelo menos questionar determinados entendimentos.31

Temos, assim, uma dicotomia. Por um lado, respeitar a opção do paciente de

não receber sangue pode ser visto como respeito à liberdade de escolha do mesmo, o

qual prefere morrer ao invés de receber a transfusão e sentir-se indigno pelo restante

de sua existência. De outra parte, há certamente quem defenda que preservar a

dignidade humana importa em sustentar a vida sob quaisquer circunstâncias.

A questão é deveras delicada e se mostra extremamente difícil apontar um ou

outro entendimento como correto.

Ao Estado cabe obstar a liberdade de escolha de um cidadão para preservar

sua dignidade de atos que possam vir a ser praticados pela própria pessoa. Mas, esta

31 Ibidem, p. 140-141.

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deve ser a última atitude a ser tomada pelo poder público, apenas quando esgotadas

todas as demais alternativas.

Para que a pessoa perca o direito de tomar as decisões conforme seu próprio

entendimento é necessário que a iminente ofensa à dignidade seja inequívoca. Não

restando comprovado que a decisão tomada pela pessoa seja potencialmente lesiva a

sua própria dignidade o Estado não terá respaldo para interferir na liberdade de

escolha, devendo prevalecer o in dubio pro libertate.

Deste modo, no caso das Testemunhas de Jeová, o constrangimento à

transfusão de sangue só deveria ocorrer nos casos em que tal tratamento fosse

comprovadamente o único capaz de manter a vida do paciente, pois, hoje os avanços

da medicina trazem inúmeros tratamentos alternativos à administração de sangue, não

havendo porque se obrigar o paciente a se submeter ao único que ele veementemente

rejeita.

Com isso desejamos mostrar que não é qualquer argumento que autoriza o

Estado a tomar decisões pelos seus cidadãos, é fundamental que o Estado consiga

provar, de maneira inconteste, que sua intervenção é única e exclusivamente para que

se preserve a dignidade do particular.

George Salomão LEITE levanta o debate acerca do conflito envolvendo o

direito à vida e o direito fundamental a uma morte digna. O autor assim se posiciona:

A Constituição Federal brasileira consagra a inviolabilidade do direito fundamental à vida. Desde logo, devemos deixar claro que o direito fundamental à vida não é absoluto, sendo objeto de relativização pela própria Lei Fundamental no art. 5º, XLVII, a, (...). Para um paciente terminal que pretende abdicar da vida, a sua manutenção constitui-se em uma verdadeira tortura, não só física, mas também psíquica. Trata-se de uma violação à integridade física e moral, compreendendo estas duas facetas: o direito de não sofrer tortura ou tratamento desumano ou degradante e o direito de não sofrer intervenções psíquicas ou físicas sem o seu consentimento.32

Assim, todo direito fundamental possui como conteúdo a dignidade humana,

constituindo-se em limite para a restrição do próprio direito, de forma que, “uma

32 LEITE, George Salomão. Direito fundamental a uma morte digna In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra (Co-edição), 2009, p. 137-162.

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violação do núcleo essencial – especialmente do conteúdo em dignidade da pessoa –

sempre e em qualquer caso será desproporcional”33.

Depreende-se, por conseguinte, que a solução de conflitos que envolvam

direitos fundamentais não pode se dar sem que seja considerada e respeitada a parcela

de dignidade humana integrante dos direitos envolvidos, a fim de que os respectivos

titulares não sejam despojados de sua condição existencial mínima.

2.2 DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE

O princípio da proporcionalidade não possui previsão expressa na

Constituição Federal, trata-se de princípio constitucional implícito que decorre do

princípio do devido processo legal em sentido material, consagrado no artigo 5º, inciso

LIV, o qual adiante estudaremos.

Neste sentido Gilmar Ferreira MENDES nos ensina:

Tem-se enfatizado, portanto, entre nós, que o fundamento do princípio da proporcionalidade situa-se no âmbito dos direitos fundamentais. Sob a Constituição de 1988 deu-se uma alteração no fundamento do princípio da proporcionalidade entre nós. Ao apreciar a arguição de inconstitucionalidade do art. 5º e seus parágrafos e incisos da Lei n. 8.713, de 30-9-1993, que disciplinava a participação de partidos políticos nas eleições, o Tribunal enfatizou a desproporcionalidade da lei tendo em vista o princípio do devido processo legal na sua acepção substantiva (CF, art. 5º, LIX).34 (sic)

A aplicação do princípio da proporcionalidade é indispensável para que evite a

perda total de um direito fundamental em função de outro, buscando-se um equilíbrio

entre os valores em conflito, sempre que possível, mediante concessões recíprocas.

O constitucionalista Paulo BONAVIDES35 assevera que uma das aplicações

mais proveitosas do princípio da proporcionalidade é como instrumento de

interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais.

A proporcionalidade também é usada como sinônimo de razoabilidade, no

33 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade... p. 130. 34 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 406-407. 35 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 425.

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entanto, é possível fazer uma distinção entre elas, embora estejam intimamente

ligadas. A razoabilidade evita que a aplicação da lei gere resultados absurdos, pois

nenhuma lei será pertinente se suas consequências extrapolarem o padrão de

normalidade. Já o princípio da proporcionalidade exige do aplicador do Direito a

adequação dos fins que objetiva atingir com os meios necessários para tanto. Em

outras palavras, o uso dos meios deve ter a intensidade necessária para o alcance dos

fins.

Roberto BARROSO apresenta o seguinte conceito para os princípios em

questão: “um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles

estão informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a

justiça”36.

Não se olvide que o princípio da proporcionalidade possui diferentes sentidos

a serem considerados, conforme leciona Cibele Fernandes Dias KNOERR:

(1) Mandado de justificação das distinções: ligado ao princípio da igualdade, veda discriminações desarrazoadas e exige uma justificação objetiva para tratamento diferenciado por parte do legislador ou da administração; (2) Proporcionalidade em sentido geral: serve de parâmetro para aferição do regular exercício do poder normativo do Estado, avaliando-se a necessidade, adequação e proporcionalidade da disciplina normativa como também: (a) coerência interna da lei (congruência ou vedação de excessos, racionalidade do legislador) – a lei tem de ter um fundamento lógico; (b) congruência ou adequação entre meios e fins - os meios escolhidos pelo legislador sejam idôneos para a realização dos fins propostos, (...); (3) proibição de excesso: a lei não pode impor uma conseqüência desproporcional em relação aos fins propostos, ou onerar demasiadamente as pessoas se analisada a relação custo-benefício (...); (4) correspondência com os fatos, com a realidade ou natureza das coisas, correspondência que deve existir entre a disciplina legal e os fatos ou situações por ela reguladas, razoabilidade ligada ao “senso comum”, à normalidade. (...); (4) justiça – fundamento moral (...). 37

Neste momento trataremos da proporcionalidade em sentido geral, pois o

aspecto da proporcionalidade que exige que as leis não sejam ilógicas, arbitrárias ou

incoerentes, bem como que os atos do Poder Público sejam razoáveis e proporcionais,

será estudado mais adiante quando tratarmos do devido processo legal em sentido

36 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo:

Saraiva, 1998, p. 204. 37 KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Op. cit., p. 56-57.

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31

material.

Em sentido geral a proporcionalidade é formada por três filtros pelos quais

deverá passar a situação de fato que envolva conflito de direitos fundamentais, quais

sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Pela adequação se verifica se a medida que se pretende adotar realmente é a

adequada para superação do conflito enfretado e obtenção do resultado que se busca.

Pela necessidade é preciso avaliar, entre as várias soluções possíveis, qual será a

menos gravosa para o titular dos direitos envolvidos. Por fim, pela proporcionalidade

serão aferidas as vantagens e as desvantagens de cada solução que se apresenta, sendo

certo que só estará autorizada a adoção daquela que traga mais bônus do que ônus aos

envolvidos.

Apenas se aprovada pelas três avaliações supra é que a solução escolhida para

a situação de conflito estará autorizada.

Não importa quais direitos fundamentais estão em conflito no caso concreto,

sempre será necessário a aplicação da proporcionalidade, pois, conforme já tivemos a

oportunidade de afirmar, não existe hierarquia entre os direitos fundamentais, todos

eles estão protegidos constitucionalmente com a mesma intensidade.

O princípio da unidade normativa da Constituição impede que uma norma que

possua status constitucional, ao ser aplicada, sacrifique inteiramente a outra de igual

patamar. A Constituição é um sistema unitário, de forma que a interpretação e

aplicação de suas normas devem ser sistemáticas.

Assim, não é possível afirmar de plano que a vida, por exemplo, deve ser

preservada a qualquer custo, em detrimento de qualquer outro direito fundamental,

pois só a aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto é que nos

apontará a solução adequada.

Walter Claudius ROTHENBURG, ao dissertar sobre a colisão e concorrência

dos princípios, assevera que “os diversos princípios podem apresentar peso diferente

em sua aplicação concreta, e essa aplicação representará então um tempero do(s)

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princípio(s) prevalente(s) pelos demais.”38

Para Alexandre de MORAES, a coordenação e a combinação de bens jurídicos

em conflito realiza-se através da aplicação do princípio da concordância prática ou da

harmonização, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, “realizando

uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos

princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do

texto constitucional com sua finalidade precípua”39.

O princípio da concordância prática, para BONAVIDES40, é uma projeção do

princípio da proporcionalidade, que se faz necessário considerando-se o princípio da

unidade da Constituição, mediante o qual nenhuma norma constitucional pode ser

interpretada em contradição com outra norma da Constituição, e atentando-se para o

rigor da regra de que não há formalmente graus distintos de hierarquia entre normas de

direitos fundamentais.

O autor Daniel SARMENTO, nos traz importante lição acerca da aplicação da

ponderação de bens. Vejamos:

O método da ponderação de bens é efetivado à luz das circunstâncias concretas do caso. Deve-se, primeiramente, interpretar os princípios em jogo, para verificar se há realmente colisão entre eles. Verificada a colisão, devem ser impostas restrições recíprocas aos bens jurídicos protegidos por cada princípio, de modo que cada um só sofra as limitações indispensáveis à salvaguarda do outro. A compressão a cada bem jurídico deve ser inversamente proporcional ao peso específico atribuído ao princípio que o tutela, e inversamente proporcional ao peso específico conferido ao princípio oposto.41

Daniel SARMENTO alerta, no entanto, para a cautela necessária por parte do

Judiciário no exercício da ponderação de bens, “para que tal método não se torne um

instrumento de imposição da ideologia pessoal do julgador, em detrimento dos valores

consagrados na Constituição”, pois, “o método da ponderação, embora conceda ao juiz

38 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris Editor, 1999, p. 37. 39 MORAES, Alexandre de. Direito..., p. 63. 40 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 425. 41 SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: TORRES,

Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 35-98.

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certa margem de discricionariedade, não é puramente subjetivo ou irracional”42.

Ao lecionar sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, Gilmar Ferreira MENDES ressalta que “o princípio da proporcionalidade vem

sendo utilizado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento para

solução de colisão entre direitos fundamentais.”43

Neste contexto, cumpre-nos acrescentar que no momento da ponderação dos

bens o aplicador do Direito necessariamente deverá considerar qual solução melhor

conservará também a dignidade da pessoa envolvida no conflito, consoante sustenta

Gilmar Ferreira MENDES, “devem ser levados em conta, em eventual juízo de

ponderação, os valores que constituem inequívoca expressão desse princípio

(inviolabilidade de pessoa humana, respeito à integridade física e moral,

inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade)”44 (Destaque original).

A relativização da igualdade, por exemplo, só poderá ser aceita e só será

razoável se o motivo que ensejar a discriminação for proporcional aos interesses que

se busca assegurar, pois causará ofensa à dignidade o tratamento desigual sem critérios

dotados de razoabilidade.

Conforme alerta José Herval SAMPAIO JÚNIOR:

As discriminações negativas a priori devem ser tidas como inconstitucionais, enquanto as positivas conformes à Constituição, contudo somente a análise em concreto, a par do princípio da proporcionalidade, é que legitimará atuação distintiva. O princípio da proporcionalidade tem estreita ligação como direito fundamental à igualdade na medida em que funciona como instrumento legitimador de algumas distinções, daí por que deve-se analisar a adequação, necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito da restrição ou ação discriminadora.45

Portanto, aplicar a proporcionalidade nada mais é do que efetuar a filtragem

do fato concreto pelos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade e ao

final verificar, se ainda assim, a solução proposta continuará sendo passível de

42 SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 35-98. 43 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 414. 44 Ibidem, p. 426. 45 SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Direito fundamental à igualdade. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora (Co-edição), 2009, p. 323-345.

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aplicação para solução do conflito entre direitos fundamentais, com vistas à promoção

da justiça e à conservação da dignidade humana.

2.2.1 Do Devido Processo Legal em Sentido Material

O princípio do devido processo legal encontra-se tipificado no artigo 5º, inciso

LIV da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou

de seus bens sem o devido processo legal”. Tal princípio pode ser lido sob dois

aspectos, quais sejam, o aspecto formal ou procedimental e o aspecto material ou

substancial.

O sentido formal diz respeito às garantias formais do processo. Já o sentido

material atinge o conteúdo do processo, o qual deverá ser revestido de justiça e

razoabilidade de acordo com o caso concreto.

Em seu sentido material o princípio do devido processo legal está

umbilicalmente ligado ao próprio princípio da razoabilidade, principalmente no que se

refere à igualdade material das partes no processo, à exigência de que as leis não sejam

ilógicas, arbitrárias ou incoerentes, bem como que os atos do Poder Público sejam

razoáveis e proporcionais.

Raquel Denize STUMM entende que é no princípio da proporcionalidade que

se encontra o fundamento para a aplicação do devido processo legal em seu aspecto

substantivo, pelo qual cabe ao Judiciário buscar a harmonização dos conflitos entre a

União e os Estados-membros e a proteção das liberdades civis e dos direitos

fundamentais. Segundo a autora “a fundamentação do princípio da proporcionalidade,

no nosso sistema, é realizada pelo princípio constitucional expresso do devido

processo legal. Importa aqui a sua ênfase substantiva, em que há a preocupação com a

igual proteção dos direitos do homem e os interesses da comunidade quando

confrontados.”46

46 STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade: no direito constitucional

brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 173.

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Cumpre, portanto, ao Poder Judiciário o controle do devido processo legal em

sentido material em relação aos atos do Poder Público, manifestando-se contra os atos

normativos que se mostrem desarrazoados ou incoerentes e destoantes do Estado

Democrático de Direito.

2.3 DA RESERVA DO POSSÍVEL E INTERESSE PÚBLICO

A reserva do possível foi consagrada pelo Supremo Tribunal Federal através da

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 45, que teve como

Relator o Ministro Celso de MELLO.

Discutia-se na referida ação a questão da legitimidade constitucional do

controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas

públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental, e a necessidade

de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo

caracterizador do “mínimo existencial”.

A “reserva do possível” é utilizada como forma de exoneração do Estado no

concernente àquelas prestações exigidas pelos particulares que não sejam consideradas

dentro das possibilidades do Poder Público.

Firmou-se, através do julgamento da ADPF nº 45, o entendimento de que o

Estado será compelido a efetuar a prestação mediante dois requisitos, conforme

exarado pelo Ministro Celso de MELLO:

(...) os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa

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ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos.47

Obviamente que a utilização da “reserva do possível” não pode ser banalizada,

pois o Estado tem obrigações constitucionais das quais não pode se desonerar, sob

pena de impossibilitar o exercício de direitos fundamentais constitucionalmente

garantidos aos cidadãos dentro do Estado Democrático de Direito.

Assim sendo, a pretensão individual só poderá ser negada pelo Estado se for

uma pretensão desarrazoada ou se o Estado objetivamente demonstrar que não possui

recursos financeiros para fazer frente à demanda. Neste sentido, é certo que o Poder

Judiciário pode intervir na decisão estatal sempre que constatar que a escusa do Estado

está comprometendo o mínimo existencial do indivíduo, restringindo a própria

dignidade.

Vejamos entendimento do doutrinador SARLET:

(...) em que pese eventual divergência a respeito da fundamentalidade dos direitos sociais de um modo geral e dos limites de sua exigibilidade em Juízo, constata-se – pelo menos entre nós e em expressiva parcela da doutrina (mas também, embora talvez ainda com menor ênfase) da jurisprudência – um crescente consenso no que diz com a plena justiciabilidade da dimensão negativa (defensiva) dos direitos sociais em geral e da possibilidade de se exigir em Juízo pelo menos a satisfação daquelas prestações vinculadas ao mínimo existencial, de tal sorte que também nesta esfera a dignidade da pessoa humana (notadamente quando conectada com o direito à vida) assume condição de metacritário para as soluções tomadas no caso concreto, (...)48

Gustavo AMARAL exemplifica a questão:

A Administração Pública é, por definição, a gestão de meios escassos para atender a necessidades ilimitadas. Há nela, intrinsecamente, uma constante escolha. Ora, suponha-se que em uma dada ocasião o Poder Público se veja ante um dilema: dispõe de um volume de recursos suficientes ou para tratar milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza ou para tratar pequeno número de doentes terminais de doenças raras ou de cura improvável. Nessa situação, não seria possível deslocar a apreciação para o Judiciário, pois a legitimidade da pretensão das duas categorias de doente é igualmente legítima, mas são faticamente

47 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45. Rel. Min. Celso de Mello.

Julgamento em 29-04-2004. DJ 04-05-2004. 48 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade... p. 103.

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excludentes.49

Para o citado autor, o Judiciário não deve fazer a escolha entre os direitos

fundamentais em jogo, pois “a reserva do possível significa apenas que a concreção

pela via jurisdicional de tais direitos demandará uma escolha desproporcional,

imoderada ou não razoável por parte do Estado. Em termos práticos, teria o Estado

que demonstrar, judicialmente, que tem motivos fáticos razoáveis para deixar de

cumprir, concretamente, a norma constitucional assecuratória de prestações positivas.”

Ao Estado cabe, portanto, efetuar a escolha do bem jurídico a ser protegido em

detrimento daqueles que não se encontrariam dentro da reserva do possível. De outro

passo, cumpre ao Judiciário avaliar as razões apresentadas pelo Poder Público

identificando eventuais ilegalidades.

O princípio da indisponibilidade do interesse público igualmente ganha

relevância no momento em que o Estado precisa tomar sua decisão diante de um

conflito de interesses legítimos e acaba por desaguar na própria reserva do possível,

pois as restrições orçamentárias efetivamente existem e impossibilitam o atendimento

de todas as pretensões positivas que se constituem em direitos dos cidadãos.

Neste passo, para concluir, retoma-se a ideia de equilíbrio, proporcionalidade e

razoabilidade, na medida em que caberá ao Estado a manutenção do mínimo

existencial de todos seus cidadãos, ainda que para tanto tenha que deixar de atender

pretensões que estejam além deste mínimo, desde que haja justo motivo que possa ser

constatado de modo objetivo, pois, ao contrário, não é dado ao Estado permanecer

inerte diante da necessidade de promover direitos constitucionalmente estabelecidos.

49 AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e conflito entre poderes. In:

TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 99-120.

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38

3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE

DIREITOS FUNDAMENTAIS ATRAVÉS DA DEFESA DOS DIREITOS

COLETIVOS E INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS

O Ministério Público recebeu do Constituinte de 1988 o status de instituição

permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e a incumbência de defesa da

ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis, conforme artigo 127, caput, da Constituição Federal.

A Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, Lei Orgânica Nacional do Ministério

Público, em seu artigo 1º, repete referida norma Constitucional, in verbis: “O

Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do

Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Tal incumbência é complementada pelas funções institucionais do Ministério

Público arroladas no artigo 129 da Constituição Federal, quais sejam:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Não há Estado Democrático de Direito sem que haja instrumentos para que os

direitos fundamentais constitucionalmente prescritos sejam efetivados na ordem

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jurídica e social. Assim, a Constituição Cidadã legitimou o Ministério Público a fazer

uso de todos os instrumentos que se façam necessários para a defesa dos interesses

sociais, o que inclui a defesa da sociedade de ofensas que possam partir de seus

próprios membros ou do Poder Público.

Ao cumprir sua finalidade constitucionalmente estabelecida o Órgão

Ministerial estará contribuindo para solucionar conflitos de direitos fundamentais,

sobretudo quando movimenta o Judiciário em defesa dos interesses sociais, difusos e

coletivos, e também direitos individuais indisponíveis.

Assim, todos os métodos de solução de conflitos fundamentais utilizados pelo

Magistrado no momento de exarar suas decisões, são aplicados também pelo Promotor

de Justiça, seja no momento de mover a ação correspondente, seja em suas

manifestações enquanto fiscal da lei.

O Ministério Público executa a ponderação de bens no exercício de cada uma

de suas funções institucionais, como, verbi gracia, ao requisitar diligências

investigatórias, informações e documentos para instrução de processos judiciais e

administrativos.

Um dos conflitos comumente enfrentado pelo Ministério Público envolve o

direito à intimidade, previsto no artigo 5º, inciso X, da Constituição da República e a

requisição de determinadas informações, tais como as bancárias, que configuram

quebra de sigilo.

Sobre esta questão se manifesta o doutrinador Emerson GARCIA:

Além de estar autorizado a requisitar as informações que não estejam estrita e primordialmente relacionadas ao direito à intimidade, poderá o Ministério Público, indicando o fundamento de suas conclusões, realizar a ponderação dos valores envolvidos e ter acesso a informações consideradas sigilosas, desde que a Constituição não tenha limitado tal acesso ao Judiciário, como no caso das comunicações telefônicas (art. 5º, XII, da CR/88).50

Não há consenso acerca da possibilidade de o Ministério Público requisitar

diretamente quebra de sigilo bancário. Argumenta-se que como autor da ação penal o

Promotor de Justiça não teria a imparcialidade necessária para efetuar a ponderação

50 GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 298-299.

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dos direitos fundamentais envolvidos. Nesse sentindo temos decisão do Supremo

Tribunal Federal:

A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da CF, não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a CF consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.51

Porém, quando se trata de investigação que tenha por alvo a lesão ao erário

público, reconhece-se ao Ministério Público a legitimidade para requisitar diretamente

as informações bancárias necessárias, conforme disserta Emerson GARCIA:

Tratando-se de recursos públicos, no entanto, este óbice deve ser afastado. Com efeito, além de o Poder Público, na sua condição de mero instrumento destinado à consecução de uma atividade finalística de interesse público, não ter qualquer direito à privacidade ou à intimidade, seus atos, por força de imperativo constitucional (art. 37, caput), estão expressamente sujeitos ao princípio da publicidade, o que afasta qualquer possibilidade de sigilo em relação aos recursos públicos que tem o dever de gerenciar.52

Nestes termos também já decidiu o Supremo Tribunal Federal, pelo seu

Ministro Néri da SILVEIRA:

O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n. 75/1993. Não cabe ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo erário federal, sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art. 37 da Constituição.53

Também se manifestou o Supremo acerca da relatividade do direito à

51 Recurso Especial 215.301. Rel. Min. Carlos Velloso. Julgamento em 13-4-99. DJ de 28-5-

1999. 52 GARCIA, Emerson. Op. cit., p.307. 53 Mandado de Segurança 21.729. Rel. p/ o ac. Min. Néri da Silveira. Julgamento em 5-10-

1995. DJ de 19-10-2001.

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privacidade e do sigilo bancário, nestes termos: “O sigilo bancário, espécie de direito à

privacidade protegido pela Constituição de 1988, não é absoluto, pois deve ceder

diante dos interesses público, social e da Justiça. Assim, deve ceder também na forma

e com observância de procedimento legal e com respeito ao princípio da razoabilidade.

Precedentes."54

Passaremos a expor os principais meios de atuação do Ministério Público na

defesa de direitos fundamentais, através da ação civil pública e do controle de

constitucionalidade, e veremos, por exposição de decisões exaradas pela Corte

Constitucional, que nem sempre é fácil delimitar a natureza do direito envolvido na

questão concreta e definir a legitimidade do Órgão Ministerial.

3.1 A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA PROPOSIÇÃO DA

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Disciplinada pela Lei 7.347/1985, a ação civil pública é o principal

instrumento para defesa dos direitos coletivos, difusos e individuais indisponíveis

relativos: ao meio ambiente; aos consumidores; à ordem urbanística; bens e direitos de

valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; por infração da ordem

econômica e da economia popular; à ordem urbanística (artigo 1º, Lei 7.347/1985).

A legitimidade para a proposição da ação civil pública é concorrente, já que

além do Ministério Público há vários outros legitimados ativos legalmente previstos.

Porém, sempre que não figurar como autor da ação, a intervenção do Ministério

Público será obrigatória como fiscal da lei.

Ao contrário da ação civil pública, o inquérito civil é instrumento privativo do

Ministério Público e trata-se de processo administrativo destinado à apuração de fatos

passíveis de se constituírem em objeto de uma ação civil pública.

Além da Constituição Federal, que define como função institucional do

54Agravo de Instrumento 655.298-AgR. Rel. Min. Eros Grau. Julgamento em 4-9-2007, 2ª

Turma. DJ de 28-9-2007.

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Ministério Público promover o inquérito civil, a Lei 7.347/1985 disciplina tal

instrumento em seus artigos 8º e 9º, in verbis:

Art. 8º Para instruir a inicial, o interessado poderá requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15 (quinze) dias. § 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis. § 2º Somente nos casos em que a lei impuser sigilo, poderá ser negada certidão ou informação, hipótese em que a ação poderá ser proposta desacompanhada daqueles documentos, cabendo ao juiz requisitá-los. Art. 9º Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para a propositura da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente. § 1º Os autos do inquérito civil ou das peças de informação arquivadas serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta grave, no prazo de 3 (três) dias, ao Conselho Superior do Ministério Público. § 2º Até que, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão as associações legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados aos autos do inquérito ou anexados às peças de informação. § 3º A promoção de arquivamento será submetida a exame e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu Regimento. § 4º Deixando o Conselho Superior de homologar a promoção de arquivamento, designará, desde logo, outro órgão do Ministério Público para o ajuizamento da ação.

A instauração do inquérito civil presta-se, desta forma, para colher

informações, declarações, documentos, que esclareçam a situação investigada e

permitam a propositura de uma ação civil pública consistente, fundamentada e bem

instruída ou, ao contrário, indique a desnecessidade da propositura da ação, seja por

conta da inocorrência do fato apurado, seja pela solução da questão através de termo

de ajustamento de conduta.

Já a Lei 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor define quais interesses

podem ser defendidos coletivamente, a saber:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os

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transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Quanto à defesa dos direitos coletivos lato sensu não se discute acerca da

legitimidade do Ministério Público, pois a própria Constituição da República

incumbiu-lhe a defesa dos interesses sociais (artigo 127, caput) e imputou-lhe a função

de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio

público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (artigo

129, inciso III).

Noutro passo, no concernente à defesa dos direitos individuais homogêneos, a

legitimidade do Ministério Público é controversa, pois é necessário que tais direitos,

além de homogêneos, possuam reflexos para toda a coletividade, o que deverá ser

aferido em cada caso concreto.

Como o artigo 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público a

defesa dos direitos individuais indisponíveis e o artigo 129 arrolou como função do

Ministério Público a defesa de interesses difusos e coletivos, é possível concluir que a

legitimidade do Órgão existe sempre que o interesse, embora individual, seja

indisponível ou, sendo disponível, afete a ordem social.

Conforme lição de Hugo Nigro MAZZILLI, “desde que haja alguma

característica de indisponibilidade parcial ou absoluta de um interesse, ou desde que

a defesa de qualquer interesse, disponível ou não, convenha à coletividade como um

todo, será exigível a iniciativa ou a intervenção do Ministério Público junto ao Poder

Judiciário.”55 (Destaque original)

Especificamente sobre os direitos individuais, MAZZILLI assim se posiciona:

O zelo pela indisponibilidade do interesse normalmente está presente na atuação do Ministério Público. Embora seja essa uma regra geral, não chega, porém a constituir princípio absoluto, pois há interesses disponíveis cuja defesa pode convir à coletividade como um todo (como os interesses coletivos e individuais homogêneos que tenham larga

55 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao ministério público: à luz da reforma do

judiciário (emenda constitucional n. 45/2004). 5. ed.. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 64.

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dispersão social). (...) Assim, o Ministério Público: a) ou zela para que não haja disposição de interesse que a lei considera indisponível (ex.: o direito à vida, à liberdade, à educação, à saúde); b) ou, nos casos de indisponibilidade relativa, zela para que a disposição do interesse seja feita em conformidade com as exigências da lei (p. ex.: a fiscalização da venda de bem de incapaz); c) ou zela pela prevalência do bem comum, nos casos em que não haja indisponibilidade do interesse, nem absoluta nem relativa, mas esteja presente o interesse da

coletividade como um todo na solução da controvérsia (p. ex.: a defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos, se houver extraordinária dispersão dos lesados ou se for necessário assegurar o funcionamento de todo um sistema econômico, social ou jurídico).56 (Destaque original)

Como se vê, o critério que define a legitimidade do Ministério Público para

defesa daqueles interesses individuais que não sejam absolutamente indisponíveis

possui um considerável grau de subjetividade, “mediante o preenchimento valorativo

do conceito, decorrente da interpretação de atos, fatos e normas jurídicas, e à luz dos

valores e princípios consagrados no sistema jurídico, tudo sujeito ao crivo do Poder

Judiciário, a quem caberá a palavra final sobre a adequada legitimação.”57

O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela legitimidade do Ministério Público

na impugnação de mensalidades escolares abusivas e também para mover ação civil

pública tendo por objeto contratos de financiamento firmados no âmbito do Sistema

Brasileiro de Habitação:

A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua

56 Ibidem, p. 65-66. 57 ZAVASCKI, Teori Albino. O ministério público e a defesa de direitos individuais

homogêneos. Revista de Informação Legislativa, [S.l], v. 30, n. 117, p. 173-186, jan./mar. 1993.

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concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.58 (Destaque nosso) Legitimidade para a causa. Ativa. Caracterização. Ministério Público. Ação civil pública. Demanda sobre contratos de financiamento firmados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação-SFH. Tutela de diretos ou interesses individuais homogêneos. Matéria de alto relevo social. Pertinência ao perfil institucional do MP. Inteligência dos arts. 127 e 129, incs. III e IX, da CF. Precedentes. O Ministério público tem legitimação para ação civil pública em tutela de interesses individuais homogêneos dotados de alto relevo social, como os de mutuários em contratos de financiamento pelo Sistema Financeiro da Habitação.59 (Destaque nosso)

Já quando teve a oportunidade de decidir sobre a impugnação de pagamento de

IPTU e sobre questões provenientes de contratos de compromisso de compra e venda,

o Supremo entendeu que não estavam presentes os requisitos para legitimação ativa do

Ministério Público:

A ação civil pública presta-se a defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei n. 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei n. 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei n. 8.625, de 1993, art. 25. Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa. CF, art. 127, caput, e art. 129. O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto – no caso o IPTU – pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei n. 7.374/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei n. 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei n. 8.625/93, art. 25, IV; CF, art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com 'interesses sociais e individuais indisponíveis'.60 (Destaque nosso)

58 Recurso Especial 163.231. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 26-2-1997,

Plenário, DJ de 29-6-2001. 59 Recurso Especial 470.135-AgR-ED. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento em 22-5-2007.

DJ de 29-6-2007. 60 Recurso Especial 195.05., Rel. Min. Carlos Velloso. Julgamento em 9-12-1999. DJ de 30-

5-2003.

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Direitos individuais homogêneos, decorrentes de contratos de compromisso de compra e venda que não se identificam com 'interesses sociais e individuais indisponíveis'.61

Ao tentar solucionar o conflito entre o direito de livre escolha e o direito à

preservação da saúde, defendendo judicialmente a predominância deste último, o

Ministério Público foi impedido pelo Supremo Tribunal Federal, o qual decidiu que o

Órgão Ministerial não possui legitimidade para requerer a internação compulsória de

pessoa alcoólatra:

Ministério Público. Legitimidade ativa. Medida judicial para internação compulsória de pessoa vítima de alcoolismo. Ausência. O Ministério Público não tem legitimidade ativa ad causam para requerer a internação compulsória, para tratamento de saúde, de pessoa vítima de alcoolismo. Existindo Defensoria Pública organizada, tem ela competência para atuar nesses casos.62

As decisões acima transcritas demonstram que não são todos os casos

envolvendo direitos fundamentais que podem ser demandados pelo Ministério Público,

seja através de ações coletivas ou individuais, mas tão-somente aqueles que atinjam a

coletividade ou se tratem de direitos individuais indisponíveis.

Não há que se discutir a relevância que a instituição do Ministério Público

possui dentro do Estado Democrático de Direito para a interpretação das situações

sociais nas quais dois ou mais direitos fundamentais estejam em embate, ponderando

as possibilidades viáveis e subsidiando o Judiciário para a decisão definitiva.

3.2 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES DE

INCONSTITUCIONALIDADE

A Constituição Federal também investiu o Ministério Público de legitimidade

para proposição de ações que tenham por objeto o controle de constitucionalidade das

61 Recurso Especial 204.200-AgR. Rel. Min. Carlos Velloso. Julgamento em 8-10-02. DJ de

8-11-2002. 62 Recurso Especial 496.718. Rel. p/ o ac. Min. Menezes Direito. Julgamento em 12-8-2008.

DJE de 31-10-2008.

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leis, seja de forma concentrada – pela ação direta de constitucionalidade, ação

declaratória de inconstitucionalidade (artigo 103, CR), ação interventiva e a arguição

de descumprimento de preceito fundamental (artigo 102, § 1º, CR.) – ou difusa, que

pode ser dar pela própria ação penal e pelas ações civis públicas.

A respeito da arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF,

cumpre-nos ressaltar que esta ação não inaugura controle concreto, pois o Supremo

Tribunal Federal somente admite a ADPF como ação de controle abstrato, logo não se

admite a ADPF incidental.

Através de sua atuação nas ações de inconstitucionalidade o Ministério

Público também exerce influência prática na valoração de direitos fundamentais

aparentemente conflitantes, ainda que não seja o autor da ação.

Daniel SARMENTO argumenta que o princípio da proporcionalidade

desempenha papel extremamente relevante no controle de constitucionalidade dos atos

do poder público, “na medida em que permite de certa forma a penetração no mérito

do ato normativo, para aferição da sua razoabilidade e racionalidade, através da

verificação da relação custo-benefício da norma jurídica, e da análise da adequação

entre o seu conteúdo e a finalidade por ela perseguida.”63

Ao se manifestar em uma ação pela defesa ou repúdio de determinada lei que

diga respeito a direitos fundamentais, o Ministério Público efetua o confronto da

legislação infraconstitucional com os valores trazidos pela Carta Magna, concluindo

ou não pela constitucionalidade.

Um caso concreto que permite a visualização da intervenção do Ministério

Público na solução de conflitos entre direitos fundamentais é a ADPF nº 54.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental é uma ação direta

regulamentada pela Lei 9.882/1999, que possui por objeto ato do poder público,

normativo ou não normativo, que viole preceitos fundamentais da Constituição

Federal, utilizada de modo subsidiário em relação à ação direta de

inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde ajuizou a arguição de

63 SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 57.

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descumprimento de preceito fundamental – ADPF nº 54 perante o Supremo Tribunal

Federal requerendo a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos

124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, como impeditivos da antecipação

terapêutica do parto nas hipóteses de gravidez de fetos anencefálicos.

O caso ainda não foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, o qual decidiu,

até então, somente o pedido liminar concedendo o sobrestamento dos processos e

decisões não transitadas em julgado:

ADPF – Adequação – Interrupção da gravidez – Feto anencéfalo – Política judiciária – Macroprocesso. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental – como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade –, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF – Liminar – Anencefalia – Interrupção da gravidez – Glosa penal – Processos em curso – Suspensão. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF – Liminar – Anencefalia – Interrupção da gravidez – Glosa penal – Afastamento – Mitigação. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.64

No curso da ADPF em comento, o Ministério Público Federal apresentou

manifestação na qual aborda o conflito entre os direitos fundamentais envolvidos na

questão, ponderando-os e posicionando-se sobre os quais deverão prevalecer.

Neste sentido, ao confrontar o direito à vida do feto anencéfalo com o direito à

liberdade, à privacidade e à autonomia reprodutiva, a Procuradora-Geral da República,

Deborah Macedo Duprat de Britto PEREIRA, assim asseverou:

Portanto, a questão em debate nestes autos, envolve a autonomia reprodutiva da mulher, que tem fundamento constitucional nos direitos à dignidade, à liberdade e à privacidade. É evidente que esta autonomia não é de natureza absoluta. Entendo que a ordem constitucional também proporciona proteção à vida potencial do feto – embora não tão intensa quanto a tutela da vida após o nascimento - , que deve ser ponderada com os direitos humanos das gestantes para o correto equacionamento das questões complexas que envolvem o aborto.

64 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-QO. Rel. Min. Marco

Aurélio. Julgamento em 27-4-2005, Plenário. DJ de 31-8-2007.

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Contudo, quando não há qualquer possibilidade de vida extra-uterina, como ocorre na anencefalia, nada justifica, do ponto de vista dos interesses constitucionais envolvidos, uma restrição tão intensa ao direito à liberdade e à autonomia reprodutiva da mulher. Trata-se de uma restrição desproporcional e desarrazoada a um direito fundamental de elevada importância na escala de valores da Constituição, que não se sustenta juridicamente.65 (Destaque nosso).

O Ministério Público Federal também avaliou a questão diante do princípio da

dignidade humana e concluiu que impedir a antecipação terapêutica do parto de feto

anencéfalo gera uma violação injustificável na dignidade da mulher:

O princípio da dignidade da pessoa humana, que representa o epicentro axiológico da Constituição de 88, postula que cada indivíduo deve ser tratado pelo Estado e pelo Direito sempre como fim, e nunca como meio, de acordo com a conhecida máxima kantiana. Ora, quando o Estado impede uma gestante de um feto absolutamente inviável de interromper a gravidez, privando-a da sua autonomia decisória e impondo a ela um grave sofrimento, ele viola ostensivamente este mandamento constitucional. Na medida em que não existe, do outro lado, uma vida humana viável a ser protegida, só a promoção de ideais religiosos ou morais particulares explica a resistência contra a permissão concedida à mulher de decidir sobre a manutenção ou não da gestação, neste quadro específico.66 (Destaque nosso)

Quanto ao conflito entre o direito à saúde da mãe e a vida em potencial do feto

o Ministério Público se posicionou pela preservação da saúde da gestante:

O direito à saúde envolve também a higidez e o bem-estar psíquicos da pessoa humana. De acordo por o conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde, de aceitação universal, “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência

de doença ou enfermidade” (Preâmbulo do ato fundador da OMS, assinado em 22 de julho de 1946 por 61 Estados, dentre os quais o Brasil). Por isso, a causação desnecessária de angústia e sofrimento moral profundos às gestantes, por longo períodos de tempo, tem o condão de comprometer seriamente a sua saúde, violando os direitos fundamentais consagrados nos arts. 6º e 196 da Constituição.67

Para o Ministério Público Federal, no caso em comento, não há violação à vida

com a antecipação terapêutica do parto, pois não há vida potencial do feto anencéfalo.

Por esse mesmo argumento o MPF afasta a comparação entre a antecipação terapêutica

65 PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Britto. Manifestação do ministério público federal na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsfseqobjetoincidente= 2226954> Acesso em: 28 mar. 2010.

66 Idem. 67 Idem.

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do parto com o aborto eugênico, pois, neste último caso a vida do feto é viável, mas

ele apresenta alguma deficiência indesejável.

Prosseguindo, o Órgão Ministerial afirma que interrupção da gravidez

anencefálica é direito fundamental da gestante e constitui-se em conduta penalmente

atípica, por não violar o bem jurídico protegido pelos artigos 124 a 128 do Código

Penal, qual seja, a vida potencial do feto.

Por fim, a Procuradora-Geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto

PEREIRA assim conclui sua manifestação:

Diante do exposto, deve ser julgada integralmente procedente a presente ADPF, para que seja dada interpretação conforme à Constituição aos dispositivos do Código Penal indicados na petição inicial, de forma a declarar a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, da exegese de tais preceitos que impeça a realização voluntária de antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico, desde que a patologia seja diagnosticada por médico habilitado, reconhecendo-se o direito da gestante de se submeter a este procedimento sem a necessidade de prévia autorização judicial ou de qualquer outro órgão estatal.68

O caso ora analisado elucida perfeitamente a participação do Ministério

Público na resolução de colisão entre direitos constitucionalmente estabelecidos. Ao se

manifestar na ADPF nº 54 a Procuradoria-Geral da República fez a aplicação de vários

métodos disponíveis para solução dos conflitos, a saber: princípio da dignidade da

pessoa humana, princípio da proporcionalidade, da razoabilidade, ponderação de bens

e princípio de devido processo legal em sentido material.

Com isso, demonstramos a participação do Ministério Público, dentro do

Estado Democrático de Direito, na defesa e efetivação dos direitos fundamentais que

se encontrem ameaçados de violação ou de concretização, o que inclui a escolha entre

direitos em conflito, através da ponderação de valores, tentando-se evitar que um

direito se perca integralmente em função de outro, mas indicando um como superior ao

outro diante de cada caso concreto que se apresente.

68 Idem.

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CONCLUSÃO

Ao longo de sua História, os povos foram conquistando e construindo direitos

fundamentais que naturalmente agruparam-se em gerações, atualmente chamadas

dimensões. Diante de tudo que foi exposto durante o presente estudo, resta

evidenciado que um grave problema enfrentado na ordem jurídica é justamente o

conflito que se instaura entre os vários direitos fundamentais, já que todos eles são

igualmente garantidos pela Constituição da República.

A evolução das dimensões de direitos fundamentais, agregada à garantia de

acesso à justiça e à conscientização dos cidadãos acerca do que lhes é assegurado

dentro do Estado Democrático de Direito têm levado ao Judiciário, de maneira

crescente, situações que envolvem colisões de direitos fundamentais, além dos

conflitos entre estes direitos e o interesse público.

Neste passo, faz-se imprescindível a busca da coexistência harmônica dos

direitos e garantias individuais e coletivos, do atendimento ao interesse público e de

preservação da dignidade da pessoa humana, já que o princípio da unidade da

Constituição não admite que haja interpretações conflitantes entre as normas

constitucionais.

Por isso a necessidade premente de se conhecer os meios capazes de colocar

fim a conflitos que envolvam os direitos mais elementares dos seres humanos, os

quais, embora possam ser irrenunciáveis e inalienáveis, não são absolutos.

A primeira questão a ser considerada ao avaliar-se uma situação conflitante

entre direitos fundamentais é a preservação da dignidade da pessoa humana, presente

em cada um desses direitos. Desta forma, temos que obrigatoriamente considerar que a

dignidade da pessoa constitui-se no conjunto de valores mínimos que devem ser

mantidos para que o indivíduo não perca sua condição existencial.

Necessário, portanto, avaliar as condições de vida da pessoa, suas convicções,

sua cultura, suas crenças. Todos esses valores devem ser respeitados para definir no

caso concreto o melhor caminho para conservação da própria dignidade.

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Conjuntamente, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

possibilitam a filtragem da situação de conflito entre direitos fundamentais pelos

critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade para, então, definir se a

solução proposta será passível de aplicação sem ofensa à dignidade humana.

Além disso, o interesse público também tem influência na resolução dos

embates entre direitos fundamentais, pois, conforme visto, o Estado pode efetuar a

escolha do bem jurídico a ser protegido em detrimento daqueles bens que não se

encontram dentro da reserva do possível, desde que essa situação seja objetivamente

aferível.

Destaca-se, neste contexto, a relevância da participação do Ministério Público,

entidade que tem o poder-dever de executar suas funções institucionais em defesa dos

interesses sociais, individuais indisponíveis e também dos direitos individuais

homogêneos que possuam repercussão na coletividade.

Cabe ao Ministério Público zelar pelos direitos fundamentais da sociedade,

aplicando os métodos estudados no presente trabalho para apresentar ao Poder

Judiciário a solução mais razoável para a situação conflituosa, que melhor preserve a

dignidade humana ou que seja a ela menos gravosa.

Conhecer a evolução dos direitos fundamentais e compreendê-los enquanto

direitos não absolutos, mas sim relativos e muitas vezes concorrentes, é o primeiro

passo para que se possa chegar a soluções exitosas. Neste contexto, o Promotor de

Justiça tem papel fundamental, na medida em que possui a incumbência de defesa da

ordem jurídica, ordem esta na qual tais conflitos se instalam.

Não só como autor das ações que envolvam direitos fundamentais, mas

também como fiscal da lei, o Ministério Público tem a oportunidade de manifestar seu

entendimento sobre a situação de fato, sendo certo que tal entendimento deverá ser

resultado de uma reflexão pautada em métodos concretos de interpretação e nos

princípios que não podem ser apartados da aplicação dos direitos fundamentais, tais

como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

As colisões entre os direitos fundamentais não podem ser evitadas e não vão

deixar de ocorrer, pelo contrário, tendem a aumentar, pois são frutos da luta incessante

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da sociedade para conquista de novos direitos. Por outro lado, não restam dúvidas de

que as soluções existem e podem ser atingidas, muitas vezes sem que seja necessário

excluir um direito em função de outro, mas apenas restringindo a incidência de sua

eficácia. Este é o caminho a ser trilhando pelos aplicadores do Direito, sobretudo pelo

Ministério Público.

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