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A religiosidade política e o culto popular a Baco na Grécia antiga 27/05/2015 Revista Espaço Acadêmico religiõesDionísio CARLOS RUSSO JR.* Na antiga civilização grega a religiosidade para ser compreendida necessita de que esqueçamos conceitos como “fé” e “crença” do modo como são entendidos nos nossos dias. Era uma religião grega que não tinha um livro, uma bíblia, ou uma Igreja. O sacerdócio era o apanágio de algumas famílias antigas, que gradualmente se transformaram em magistraturas, as quais, como outras funções cívicas, possuíam delegados eleitos pelo voto em assembleias realizadas na Ágora. Deste modo, jamais existiu a figura do corpo sacerdotal permanente, do profissional, do mesmo modo como não havia uma teologia, nem dogmas e muito menos credos. Nesse sentido, o “crer” do grego é inseparável do conjunto das relações sociais e das práticas sociais. Ou seja, entre o sagrado e o profano não existia uma oposição radical ou um corte rígido. Vernant¹ coloca a questão dessa crença dentro dos três elementos que constituem um sistema religioso: Os rituais: “crer é cumprir certo número comum de atividades durante o dia ou durante o ano, com festas que são fixadas rotineiramente pelo calendário”¹. Funcionam do mesmo modo como atos da vida cotidiana. Existem determinadas regras que englobam esses comportamentos e que também possuem um caráter religioso. Por exemplo, o sacrifício de animais é a um só tempo uma cerimônia religiosa, com seu ritual “preconizado pelos

A Religiosidade Política e o Culto Popular a Baco Na Grécia

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  • A religiosidade poltica e o culto popular a

    Baco na Grcia antiga 27/05/2015 Revista Espao Acadmico religiesDionsio

    CARLOS RUSSO JR.*

    Na antiga civilizao grega a religiosidade para ser compreendida necessita

    de que esqueamos conceitos como f e crena do modo como so

    entendidos nos nossos dias.

    Era uma religio grega que no tinha um livro, uma bblia, ou uma Igreja. O

    sacerdcio era o apangio de algumas famlias antigas, que gradualmente se

    transformaram em magistraturas, as quais, como outras funes cvicas,

    possuam delegados eleitos pelo voto em assembleias realizadas na gora.

    Deste modo, jamais existiu a figura do corpo sacerdotal permanente, do

    profissional, do mesmo modo como no havia uma teologia, nem dogmas e

    muito menos credos.

    Nesse sentido, o crer do grego inseparvel do conjunto das relaes

    sociais e das prticas sociais. Ou seja, entre o sagrado e o profano no

    existia uma oposio radical ou um corte rgido.

    Vernant coloca a questo dessa crena dentro dos trs elementos que

    constituem um sistema religioso:

    Os rituais: crer cumprir certo nmero comum de atividades durante o dia

    ou durante o ano, com festas que so fixadas rotineiramente pelo

    calendrio. Funcionam do mesmo modo como atos da vida cotidiana.

    Existem determinadas regras que englobam esses comportamentos e que

    tambm possuem um carter religioso. Por exemplo, o sacrifcio de animais

    a um s tempo uma cerimnia religiosa, com seu ritual preconizado pelos

  • deuses para que os homens se alimentem e os homenageiem e, ao mesmo

    tempo, uma cerimnia social que rene os cidados e que aumenta a

    phylia, a amizade, entre os mesmos.

    As figuras dos deuses, as imagens e os dolos: os dolos ou cones

    constituem as primeiras figuraes e normalmente pertencem aos guenos,

    s famlias. Gradualmente, a cidade como que sequestra esses dolos

    familiares e os transforma em pblicos.

    O mito: como a crena no sagrado no se esteia em livros, ela contada por

    meio de narrativas, que somente adquirem uma forma cannica no sculo

    VI a.C., a partir de Homero, Hesodo e dos poetas como Pndaro. As

    crianas e os jovens, no processo que os gregos denominavam paideia,

    iriam estudar esses versos narrativos e decor-los.

    Cremos que no havia um nico grego que pensasse que as coisas realmente

    haviam acontecido como os poetas as descreveram, mas isso no quer de

    forma alguma dizer que eles as considerassem como falsas. Acontece que a

    crena religiosa dos gregos no era dogmtica e o politesmo era flexvel o

    suficiente para adequar-se a verses mltiplas.

    Desse modo, a religio grega pode claramente ser definida como uma

    religio poltica. E isso significa que o religioso, por ser sociopoltico,

    muito mais uma forma de vida social e coletiva que uma forma de

    experincia pessoal e de relao pessoal com a divindade. Para os gregos, o

    amor que vai do homem aos deuses um amor exclusivamente utilitarista,

    pois amamos o que necessitamos ou o que nos privaram, sem nenhum tipo

    de contrapartida esperada dos deuses para com os homens.

    Os deuses, que se situam no nosso mundo, no o criaram, mas foram

    criados pelo mesmo processo cosmognico que deu origem ao universo e

    aos homens. Logo, eles somente so superiores aos homens por sua

    imortalidade, no envelhecerem e com isso deixarem de ser belos e

    saudveis. Finalmente, por seu poder em relao aos efmeros mortais.

  • De tal modo que a religiosidade cvica dos gregos jamais fechou sua religio

    a novas divindades. Eles esto sempre dispostos a aceitarem, desde que

    disso tirem proveito, os deuses estrangeiros.

    Isto porque os gregos antigos jamais incorporaram a viso de que sua

    crena representasse uma verdade absoluta, que precisasse conquistar

    novos povos para a verdade. Ou seja, exercitavam a tolerncia entre as

    diferentes crenas e valores. Existe nisso um relativismo intrnseco,

    utilitrio e complacente: os gregos esto convencidos de que para eles as

    coisas so assim, e entendem perfeitamente que para outros povos

    possam ser diferentes .

    A harmonizao do consciente e do inconsciente- O culto a Dionsio a

    ruptura do dando que se recebe.

    Dionsio uma dessas divindades de origem asitica, que foi astuta e

    resolutamente apropriada pelos gregos e terminou por incorporar-se sua

    religiosidade cvica. A abrangncia de seu culto progride ao mesmo tempo

    em que a aristocracia derrotada pelas tiranias e essas, substitudas pela

    democracia.

    Dionsio era o deus que aproximava o homem da natureza e liberava os

    instintos, mesmo os mais obscuros. Aqui o culto do deus mscara, com

    um forte significado de ruptura radical com os deuses mais antigos, quer os

    de Homero, quer os de Hesodo ou de Pndaro.

    Em seu culto, contrariamente aos olmpicos, esse deus no se contenta com

    momentos de piedade que para com ele tenham os homens, pois

    diferentemente de todos os outros, a Dionsio no bastam oraes e

    sacrifcios, pois na sua relao com os homens no h o dar e receber, no

    h moeda de troca, que era a tnica de toda a religiosidade vista at agora.

    Dionsio o deus que somente se satisfaz com o total arrebatamento, sua

    satisfao somente se esgota no abranger de todo o ser humano; ele permite

    o xtase, a ultrapassagem das medidas, sendo capaz de conduzir os mortais

    desde o mais profundo horror ao mais alto patamar da realizao da alma.

  • O deus-mscara, no incidentalmente, metamorfoseia-se em um humano e

    age como tal, de uma maneira diferente que os deuses homricos, dado que

    Dionsio assume-se como um homem divinizado ou um deus humanizado.

    Por isto Dionsio possui a habilidade de arrastar o ser humano felicidade e

    ao autoconhecimento supremo, assim como loucura e destruio.

    Portanto, nas festas dionsicas, mais conhecidas como bacanais, seu culto

    leva o homem a assumir-se enquanto instinto, enquanto natureza viva. O

    deus inventor do vinho- esta graa dada aos homens a seiva ntima da

    prpria natureza.

    Nietzsche assinala: sob a magia do dionsico torna a selar-se no somente o

    lao de pessoa a pessoa, mas tambm a natureza alheada, inamistosa ou

    subjugada volta a celebrar a festa de reconciliao com seu filho perdido, o

    homem.

    O culto a Dionsio e as bacanais foram se estendendo por toda a Grcia, no

    sem gerar reaes dos aristocratas, dos reis e governantes, que resistiam s

    orgias populares.

    As Bacantes, uma das derradeiras tragdias de Eurpedes, retrata a

    resistncia da aristocracia representada pelo rei Penteu- ao novo. No por

    acaso as bacantes eram mulheres, matronas e donzelas, a se libertarem

    momentaneamente de um mundo patriarcal pelo entusiasmo propiciado

    pelo vinho, em rituais de danas em contato ntimo e direto com a natureza.

    O culto a Dionsio rompe com o poder aristocrtico e agente

    transformador social, incorporando mulheres, servos e clientes.

    O dionisismo, desse modo, foi componente importante da prpria

    democracia no mbito cvico-religioso. E justo, nessa altura, acentuarmos

    o correto contraponto que a sophrosine ou o equilbrio grego o submetia.

    Pois enquanto muitos povos tiveram apenas e to somente seus libertadores

    do esprito e dos instintos, mesmo dos mais violentos e libertinos, que

    possibilitavam a mistura incontida de volpia e crueldade, para os gregos,

    no mesmo patamar de importncia de Dionsio, erguia-se a figura

    monumental e sbria de Apolo.

  • Voltando-se a Nietzsche, era o sonho se opondo embriaguez. O sonho de

    um mundo dirigido pela verdade, pelo logos da sabedoria, pela beleza

    fulgurante do sol, gerador da beleza do mundo onrico, formatado pela

    conscincia. Foi o deus dlfico Apolo quem restringiu-se a retirar de seu

    poderoso oponente, Dionsio, as armas destruidoras, mediante uma

    reconciliao concluda no seu devido tempo.

    Enquanto o carro que conduz Dionsio est coberto de flores e grinalda,

    puxado que pela pantera e pelo tigre, trazendo ao homem a liberdade,

    permitindo-lhe que viva e libere seus instintos e seu inconsciente, que

    busque seu extasis, caminha lado a lado outro carro, aquele do deus

    Apolo, rodeado por suas Musas a danar e a cantar ao ritmo ditado por uma

    ctera. Apolo, o prprio portador da harmonia, da beleza onrica, da

    verdade, do poder do logos, com a coroa de louros premonitria, doada

    por Dafne.

    E fruto desta unio, do conflito e da harmonizao entre Dionsio e Apolo,

    entre o consciente e o inconsciente, da natureza e da conscincia humana,

    que nasceu o melhor da arte grega e, qui, da arte de todos os tempos.

    Referncias:

    1. VERNANT, Jean-Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragdia na

    Grcia Antiga. So Paulo, Editora Perspectiva, 1999.

    2. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragdia. So Paulo, Companhia

    das Letras, 2007.

    3. LESKY, Albin. A Tragdia Grega. So Paulo, Editora Perspectiva, 2003.

    * CARLOS RUSSO JR. escritor, ensasta e professor, dedica-se ao

    ensino de Literatura e Mitologia, com militncia poltica na esfera dos

    Direitos Humanos. Blog: www.proust.net.br