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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ UFPI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPGEL) A REPRESENTAÇÃO DA METRÓPOLE PÓS-COLONIAL N’OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ Teresina, agosto de 2013

A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

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Versão preliminar de dissertação de mestrado versando sobre a espacialidade discursiva na literatura pós-colonial de língua inglesa.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPGEL)

A REPRESENTAÇÃO DA METRÓPOLE PÓS-COLONIAL N’OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE

ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ

Teresina, agosto de 2013

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Sob os auspícios do jubileu de prata da publicação d’Os versos satânicos, dedico este humilde trabalho ao mui estimado Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes que apresentou esta obra cuja inspiração tem iluminado a trajetória deste pesquisador.

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01 UM LUGAR VISÍVEL, MAS NÃO VISTO: A ESPACIALIDADE DISCURSIVA

N’OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE

Até bem pouco tempo o espaço era invisível. É certo que os homens viviam

em suas cidades ou quartos, mas em sua presença contínua, estes elementos se

tornavam transparentes, como se constituíssem um grande conjunto

indiferentemente evocado pelo termo “espaço”. A sensibilidade ao espaço, e sua

dimensão histórica e sociológica são uma conquista moderna, que veio na esteira

das aflições e crises identitárias características da condição pós-moderna. Entender

este fenômeno é tomar conta de um movimento ainda em processo em nossa

cultura. Desfazer os vínculos com a cosmovisão imperialista e autocêntrica que

secularmente dominou e estagnou o discurso ocidental sobre o espaço ainda deve

exigir tempo e perda de privilégios aos quais muitos indivíduos não estão dispostos

a abdicar. Mas imaginar que existe um problema e todo um contexto discursivo que

o ampara é o primeiro passo para alçá-lo, nas palavras de Friedrich Nietzsche:

“Quem alcança seu ideal, vai além dele” (NIETZSCHE, 2003, p. 89).

Neste sentido, se decidiu abordar o tema: a construção discursiva do espaço

n’Os versos satânicos. Não deixa de ser um assunto inesperado, conforme se

poderá observar no levantamento crítico feito adiante, desde as suas primeiras

análises, a recepção deste romance de Salman Rushdie tornou recorrentes alguns

caminhos teóricos, como o campo de produção, as filosofias pós-estruturalistas e as

pontos mais específicos dos estudos culturais e pós-coloniais como: nação,

hibridismo identitário, multiculturalismo, crítica anti-imperial etc. Apesar serem

inquestionavelmente temas presentes nesta obra, instigou o caminho percorrido por

boa parte das análises existentes neste paradigma: geralmente o ponto de partida

eram conceitos influenciados pelos eixos teóricos que lhe davam base: a filosofia, a

antropologia, a sociologia e assim por diante. Estabelecidos os conceitos, os

estudiosos passavam a selecionar passos, focados principalmente nos relatos das

ações de personagens (diegese accional) que lhes permitissem coadunar a narrativa

ao pensamento teórico selecionado.

Tal fenômeno levou a identificar uma significativa lacuna na crítica: a reflexão

sobre aspectos mais pontuais da obra de Rushdie, como tempo, espaço, estilo, etc.

O reconhecimento do hiato conduziu para um paradoxo teórico, as teorias existentes

na crítica literária para os citados aspectos estavam arraigados a uma tradição

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formalista e estruturalista, cujos resultados se limitavam quase que exclusivamente à

descrição e categorização de elementos isolados. O que gerou um problema de

mão-dupla o qual desenvolvemos na presente investigação: de um lado interpretar a

espacialidade n’Os versos satânicos como uma representação discursiva ampla e

entender como este regime complexo de discurso pode auxiliar a formação de um

modo diverso de entender o espaço ficcional. O seja ao mesmo tempo em que se

intentou apreender a obra, este projeto crítico foi elaborando uma linguagem

analítica que permitiu também um avanço na reflexão mais geral sobre o espaço na

narrativa.

Desde que os Versos Satânicos saíram a lume em setembro de 1988, o livro

ficou envolto numa das atmosferas editoriais mais tensas do século XX. Nunca uma

obra tinha causado tanta polêmica, tantos julgamentos extremados (em apoio ou

reprovação), tanta celeuma, tantas manchetes de primeira página. Esta mise en

scène encontrou seu ápice em 14 de Fevereiro de 1989, quando o Líder Máximo do

Estado Islâmico do Irã, o aiatolá Khomeini, leu na Rádio Estatal, a sentença (fatwa)

de culpa de Salman Rushdie, o condenando a penal capital por blasfêmia ao Islã:

“Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso”, entoou o anunciante. “Existe apenas um Deus, a quem devemos todos retornar” (2:46). Gostaria de informar a todos os valentes muçulmanos no mundo que o autor do livro intitulado Os versos satânicos, que foi escrito, impresso e publicado contra o Islã, o Profeta e o Alcorão, bem como os editores que estavam cientes do seu conteúdo, estão condenados à morte. Peço a todos os muçulmanos zelosos para executá-los rapidamente, onde quer que os encontre, de modo que ninguém se atreva a insultar os preceitos sagrados do Islã. Quem morrer por esta causa será considerado um mártir, se Deus quiser. Além disso, qualquer pessoa que tenha acesso ao autor do livro, mas não possui o poder de executá-lo, deverá encaminhá-lo ao povo para que ele possa ser punido por seus atos. A bênção de Deus esteja sobre todos vocês (KHOMEINI, 1989).

Daí por diante seguiram-se uma série de acontecimentos, que foram descritos

pelos veículos de comunicação ocidentais como “uma presença espalhada do

fundamentalismo islâmico” (NAZÁRIO, p. 44): exemplares eram queimados por fiéis

em praça pública em vários países (inclusive no Ocidente), as incontáveis ameaças

de morte, o crescimento da recompensa pela cabeça do autor, mais de trinta

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mudanças de endereço, uma contínua proteção policial... Passadas mais de duas

décadas de um inquestionável sucesso editorial, Os versos satânicos já apresentam,

apesar de sua recente data, uma alentada fortuna crítica, e um local entre as obras

mais recordadas do século XX.

Os versos satânicos relatam a trajetória de personagens que emigram para a

Inglaterra em busca de reconhecimento e realização identitária. O universo espacial

da trama de Rushdie movimenta-se entre mundos ricos em diversidades culturais e

ideológicas. Num misto entre crítica anti-imperial, humor e pastiche, o ficcionista

indiano compõe uma obra bastante peculiar na literatura contemporânea de língua

inglesa.

No presente estudo decidiu-se trilhar um caminho interdisciplinar: coadunando

a análise do texto à apreensão do caráter simbólico da espacialidade dentro do

discurso pós-colonial. Para tanto se adotaram propostas das seguintes abordagens:

Estudos Culturais da Escola Inglesa (Cultural Studies), Estudos Pós-coloniais e

Geografia Simbólica; em especial na adoção dos seguintes conceitos: terceiro-

espaço (BHABHA,1990), topofilia (TUAN, 1980), trialética da espacialidade (SOJA,

1996, 2000; LEFEBVRE, 1991), geografia simbólica (SAID, 2003, 2007) e não-lugar

(AUGÉ, 1995). De modo geral o estudo tem o propósito de identificar as diferentes

representações espaciais na narrativa, verificar a relação entre o discurso colonial e

o discurso pós-colonial, procurando observar como esta tensão articula os diversos

pontos de vista acerca da espacialidade na narrativa do romance de Salman

Rushdie.

A originalidade desta investigação se assenta no tratamento do espaço n’Os

versos satânicos, que é um aspecto pouco trabalhado em sua fortuna crítica. Tal

estudo tem ainda como escopo ampliar as pesquisas acadêmicas do Piauí versando

sobre a Literatura e Língua Estrangeiras, e especialmente as produções de matriz

pós-colonial de matriz inglesa que vem alcançando cada vez mais espaço na

bibliografia internacional especializada.

Um dos aspectos mais particulares da representação espacial em Os versos

satânicos trata-se da opção pela ambiente metropolitano, e principalmente pelo

espaço urbano de Londres. Tal escolha espacial está fundamentalmente associada

a dois caracteres particulares deste espaço geográfico: a metrópole é uma

espacialidade híbrida, isto é, tem sua paisagem marcada pela mistura de diferentes

usos arquitetônicos; e, principalmente pelo seu caráter cosmopolita, a cidade

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moderna é um modelo copiado e almejado como símbolo espacial da civilização

contemporânea.

Esta condição supranacional, supracultural da metrópole acaba por ressaltar

uma ambivalência que lhe é própria: a multiplicidade de horizontes referenciais e

possibilidades de usos consorciados a um número de desigualdades e dilemas

sociais. O caso de grandes cidades como Nova York, Londres, Rio de Janeiro, que

recebem todos os anos um alto fluxo de imigrantes em busca de melhores

condições de vida são amostras visuais desta contradição. Como ressalta Gyan

Pakrash (2010):

A aglomeração sem precedentes de pobreza produz o espetáculo de incessante desolação de um “planeta de favelas”. Monstruosas megacidades não prometem os prazeres da urbanidade, mas a miséria e conflito da selva hobbsiana. [...] A imagem da cidade moderna como uma identidade distinta e limitada está rompida bem como o mercado da globalização e saturação da mídia dissolve os limites entre centro e periferia. A partir das ruínas da cidade como um espaço de cidadãos urbanos aqui emerge, tal qual uma esfinge, um “Cidade Geral” de consumidores urbanos (PAKRASH, 2010, p. 1-2).

Neste quadro, os grandes núcleos urbanos são importantes vitrines dos

dilemas e conflitos gerados pela instabilidade social da contemporaneidade. Uma

vez sendo nas grandes cidades que se concentra o grosso da população mundial e

onde também se localizam os grandes núcleos da cultura de massa, das mídias, das

administrações político-econômicas. Acaba por ser o lugar onde se catalisam e

reverberam os complexos sociais da Pós-modernidade.

O conceito de cidade à primeira vista aparenta-se um dos mais simples no

que trata da espacialidade: uma forma de povoamento coletivo marcado pelo

acúmulo organizado de construções ou uma entidade geográfica oposta ao campo.

A urbanidade é um traço tão inerente da organização social e da vida moderna que

pensá-la para além da imediatez torna-se um complexo esforço de abstração. Essa

abordagem de espacialidade, por assim dizer, automatizada do espaço urbano

acaba por fixar sua configuração apenas ao caráter sensorial de sua paisagem.

Para ultrapassar este caráter estático e anacrônico da percepção da cidade, e

da espacialidade em geral nos apropriamos de uma discussão surgida nos estudos

da geografia humana, como reflexo da filosofia desconstrutivista de Jacques Derrida

e Michel Foucault: a virada espacial. Este movimento iniciado por geógrafos como

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David Harvey e Edward Soja reabilita o papel do espaço como elemento participante

da vivência social e cultural.

No capítulo Da topologia estrutural à espacialidade discursiva: os caminhos

da análise espacial nos estudos literários elaborou-se um panorama sobre o atual

estado da teoria do espaço dentro da crítica literária, evidenciando a existência de

um paradigma descritivista-classificatório, mais preocupado na criação de categorias

para elementos narrativos isolados que no entendimento da espacialidade como um

fenômeno global de significação. O levantamento e o exame crítico das

metodologias consagradas à análise espacial da ficção revelou que tais estavam

alicerçadas num discurso sobre o espaço consolidado no século XIX, atribuindo ao

espaço uma atmosfera de reificação e obviedade. O modelo espacial novecentista

decalcava os conceitos da geografia física e cartografia, reduzindo o espaço

ficcional a modelos formais e matematizados (tabelas, esquemas e mapas) que só

davam conta de uma pequena parte do fenômeno do espaço na ficção: a linguagem

e as suas possíveis referências concretas.

O reconhecimento desta contiguidade teórica exigiu uma reflexão

desconstrutivista da teoria do espaço, identificando os limites das abordagens mais

recorrentes na narratologia e propondo uma modificação de ordem metodológica:

partir da obra para a teoria e não de categorias pré-estabelecidas para classificar os

elementos narrativos. A assunção deste princípio levou a denominar este paradigma

de (des)construtivista em consonância com as teorias pós-estruturais e da

aprendizagem moderna. Para subsidiar a análise sugerida apropriou-se dos

conceitos inspirados na geografia simbólica e na virada cultural, em especial nos

trabalhos de Edward Said, Homi Bhabha para tratar da representação do discurso

pós-colonial e no modelo da trialética da espacialidade de Edward Soja que foi

sobremaneira relevante para sistematizar e descrever amplamente os dados

espaciais da própria narrativa d’Os versos satânicos.

No capítulo O lugar do espaço na fortuna crítica d’Os versos satânicos

investigou-se os modos o tema do espaço foi apreendido pela crítica literária do

romance de Salman Rushdie em três níveis: o espaço da produção, o espaço da

recepção e o espaço tematizado. De modo a organizar o volume das obras, foram

assumidos eixos temáticos que permitiram ressaltar a particularidade das análises

em cada um dos focos teóricos. O levantamento teórico ressaltou a lacuna das

investigações a tratar do espaço tematizado na citada, e uma necessidade de

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aprofundamento e de métodos específicos para tratar do espaço enquanto discurso

na narrativa ficcional.

No capítulo A representação da cidade n’os versos satânicos: do lugar ao

não-lugar, far-se-á a aplicação do modelo de análise (desconstrutivista) à narrativa

d’Os versos satânicos avaliando-a através da espacialidade da cidade. Tomando

como ponto de partida o modelo da trialética da espacialidade de Edward Soja e da

teoria narratológica Paul Ricoeur (2002), foi estabelecido um esquema de níveis da

espacialidade ficcional: a figuração, a configuração e o não lugar. De modo a

caracterizar os elementos espaciais descritivos da urbanidade adotaram-se as

seguintes categorias: espaços externos, espaços internos, os espaços naturais, os

espaços hierarquizados e os espaços de movência. Na seção dedicada ao não

lugar, será explorada a questão do exílio existencial, do sentimento de não

pertencimento e da alteridade com o nativo experimentados pelo imigrante no

contexto da metrópole pós-colonial.

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02 DA TOPOLOGIA ESTRUTURAL À ESPACIALIDADE DISCURSIVA: OS

CAMINHOS DA ANÁLISE ESPACIAL NOS ESTUDOS LITERÁRIOS

Fazer uma reflexão de caráter teórico em um trabalho que se assume como

pós-colonial pode aparentar uma contradição metodológica. Desde o pós-

estruturalismo passando pela virada cultural às análises feministas e marxistas, a

teoria era vista, não sem razão, como um conjunto de afirmações condicionadas por

um sistema de dominação que encerrava o mundo num esquematismo formalizante.

A teoria opunha-se na visão das citadas abordagens à vivência concreta e

significativa. E, de fato, o modelo de teoria construído a partir das reminiscências do

cientificismo novecentista, colocava a reflexão teórica em um nível de abstração que

tornava a ciência algo de misterioso, acessível apenas àqueles seres privilegiados

capazes de interpretá-la. Aos meros mortais (no jargão científico: os leigos, a massa,

o vulgo) restava acatar o que dizia a ciência, pois em sua pretensa ignorância não

teriam propriedade para questioná-la.

Ao lado deste ceticismo de que o pensador crítico não poderia compactuar

com a teorização, o discurso da ciência normativa continuou a desenvolver-se sem

os contrapontos que as abordagens contextuais poderiam oferecer. Fenômeno que

acabou construindo um abismo entre o pensamento crítico e as instâncias de

produção e divulgação do conhecimento. Ou seja, os pensadores críticos produziam,

mas o que era ensinado nas escolas e universidades eram teorias puras.

Observando este hiato, os estudos pós-coloniais começaram a repensar o papel da

teoria enquanto instrumento de ruptura com os discursos de dominação. Surgiu

assim, Orientalismo (2007) de Edward W. Said, O local da cultura de Homi Bhabha

(1998) e a Crítica da razão pós-colonial (1999) de Gayatri C. Spivak, todas, obras de

ampla envergadura teórica e nem por isso menos reacionárias com os discursos

hegemônicos.

Os estudos pós-coloniais criaram assim uma percepção nova do exercício

teórico. Na trilha da différance derridiana, o discurso científico servia de ferramenta

para desconstruir imagens hegemônicas deste mesmo discurso, assim como o

colonizado poderia se servir da linguagem do colonizador para questionar a sua

dominação. Postura discursiva entendida pelo filósofo alemão Max Horkeimer (1975)

como uma teoria crítica oposta à teoria tradicional:

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Mas existe também um comportamento humano que tem a própria sociedade como seu objeto. Ele não tem apenas a intenção de remediar quaisquer inconvenientes; ao contrário, estes lhe parecem ligados necessariamente a toda organização estrutural da sociedade. [...]. As categorias: melhor, útil, conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitas nesta ordem [social], são para ele suspeitas e não são de forma alguma premissas extracientíficas que dispensem a sua atenção crítica. [...], o pensamento crítico não confia de forma alguma nesta diretriz, tal como é posta à mão de cada um pela vida social. A separação entre indivíduo e sociedade, em virtude da qual os indivíduos aceitam como naturais as barreiras que são impostas à sua atividade, é eliminada na teoria crítica, na medida em que ela considera ser o contexto condicionado pela cega atuação conjunta das atividades isoladas, isto é, pela divisão dada do trabalho e pelas diferenças de classe, como uma função que advém da ação humana e que poderia estar possivelmente subordinada à decisão planificada e a objetivos racionais (HORKHEIMER, 1975, p. 138).

A teoria crítica entra no pensamento científico como resposta aos

extremismos da teoria ou da prática pura. Nesta medida, pensar o exercício teórico

crítico torna-lhe um importante instrumento de reflexão e denúncia das condições

sociais e, além disso, atribui ao discurso científico a possibilidade de trazer para si

tensões sociais menos perceptíveis.

Tomando por exemplo o Orientalismo de Edward Said: O processo do

orientalismo estético na literatura do século XIX sempre foi descrito na história das

ideias. Mas, foi o tratamento teórico do pensador palestino que conseguiu esclarecer

as raízes sociais e ideológicas deste fenômeno. Evidenciou-se que o “orientalismo”

não se tratava de um modismo artístico, e sim um largo processo de construção

simbólica, surgido no Ocidente para configurar uma imagem, muitas vezes

distorcida, do Oriente. Em suma, um estudo que nasceu como análise comparada

de um período literário demarcado, desvelou uma instituição social que teve início na

Grécia e vinha se propagando despercebida até atualidade - a invenção do Oriente

pelo Ocidente. A teoria reabilitou a experiência, desfazendo um equívoco milenar de

pensar a oposição meridional como um simples dado de cartografia.

Pensar na teoria do espaço ficcional cumpre o mesmo escopo: de um lado,

refletir sobre um discurso baseado numa ideia de espaço que por sua vez reflete-se

na teoria literária, do outro, pensar que consequências essa teoria tradicional incute

na atual interpretação do espaço representado na obra literária. Não se trata,

portanto, de um exercício erudicional ou uma cronologia de todas as propostas

dadas para a narratologia espacial, mas, a apresentação de modelos que continuam

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a ser empregados na teoria literária sem o questionamento se tais metodologias

ofertam uma visão global de seu objeto. O panorama teórico serve ainda para

demonstrar que apesar das diferenças nos modelos da crítica, todos admitem uma

imagem reducionista do espaço consolidada no século XIX e que nos últimos 50

anos vêm sendo criticada por diversos setores da geografia humana (TUAN, 1980;

SOJA, 1990, 1996; SAID, 2007) e da filosofia social (LEFEVBRE, 2006), num

movimento que recebeu o título de virada espacial.

A virada espacial aparece com o propósito de substituir a imagem milenar do

espaço enquanto uma entidade estática e isolada, por uma representação de

espaço relacionada com a vivência histórica e social, dinamizando-o. Esta

mobilização teórica demonstra-se oportuna para desfazer a estagnação dos

modelos predominantes na análise atual do espaço na literatura, que como se

poderá observar na continuidade deste texto, fundamentam-se quase

exclusivamente na identificação, categorização e classificação de elementos

narrativos isolados.

O emprego da formalização e esquematização das narrativas, como reflexo

da análise matematicista e anacrônica do espaço, levou a considerá-la um

paradigma descritivista-classificatório à semelhança do fora o estruturalismo para os

estudos de linguagem.

A assunção e aplicação do espaço social e dinamizado como ferramenta de

análise na presente investigação sobre a representação da metrópole n’Os versos

satânicos de Salman Rushdie (RUSHDIE,1998) vêm para suprir uma lacuna que a

teoria tradicional do espaço ficcional não aprofundaria: o discurso pós-colonial. Mas

como alcançar tais lacunas, imperfeições sem mergulhar na incerteza da reflexão

teórica? Para encontrar a différance, o avesso da representação hegemônica do

espaço e buscar um paradigma (des)construtivista é necessário entender a teoria

como uma caminho intermitente tal qual Lefebvre (2006, p. 20) pensava:

A teoria que se busca, que se ressente de um momento crítico e que desde logo recai no saber em migalhas, essa teoria se pode designar, por analogia, como “teoria unitária”. Trata-se de descobrir ou de engendrar a unidade teórica entre “campos” que se dão separadamente, assim como na física as forças moleculares, eletromagnéticas, gravitacionais. De quais campos se trata? De início, do físico, a natureza, o cosmos. Em seguida, do mental (aí incluídas a lógica e a abstração formal). Por fim, do social. Dito de outro modo, a pesquisa concerne ao espaço lógico-epistemológico – o espaço da prática social -, aquele que os

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fenômenos sensíveis ocupam, sem excluir o imaginário, os projetos e projeções, os símbolos, as utopias (LEFEBVRE, 2006, p.20, sem grifos no original).

2.1 A VISÃO DO ESPAÇO DE FORMA GERAL

O espaço é um dos elementos mais inerentes da vida humana, seja

representado por uma choupana ou por castelo, seja por uma luxuosa suíte ou uma

sombria floresta, toda experiência individual ou social é acompanhada

inexoravelmente pela espacialidade. Em quaisquer momentos, solenes ou reclusos,

ele nos acompanha como testemunha silenciosa de nossos atos e emoções.

Nenhum outro componente existencial nos é tão próximo e necessário quanto lugar

que convivemos. De tão simples, o espaço passa por um objeto cujo entendimento

integral não necessitaria nada além de um olhar mais atento.

A espacialidade, nesta perpectiva imediatista, é tratada como um fenômeno

estático, limitado e definido, cuja realização e interpretação não ultrapassariam o seu

exame pelos sentidos. Tal imagem determinista do espaço acabou por lhe envolver

de uma atmosfera de obviedade, onde “qualquer sujeito é capaz de definir o

espaço”.

Salman Rushdie afirma n’Os versos satânicos: “o que é comum acaba ficando

invisível” (RUSHDIE, 1998, p. 181). Este princípio é verificável no volume resoluto de

incursões teóricas a versarem de modo profundo sobre a questão espacial. Tomado

por um fenômeno demasiado simples, a espacialidade durante muito tempo não

recebeu uma atenção mais exaustiva dos pensadores das humanidades, sendo por

muitas vezes relegado exclusivamente às metodologias de análise importadas da

geografia física.

Assoma-se a este quadro de automatização significativa um grau de

dependência entre o conceito de espaço com outros fenômenos, como os objetos,

as ações e os seres. Conforme se lê numa definição semiótica:

Espaço é o substrato em que se desenrolam os fenômenos dimensionais, efeito desta inserção. Como o tempo possui uma posição e uma duração; o espaço possui uma posição e uma medida. Mas, diferente do tempo, o espaço tem forma (HÉBERT, 2012, p. 98)1.

1 Tradução livre, do original: Espace : Substrat dans lequel se déploient les phénomènes

dimensionnels, effet de ce déploiement. Demême que le temps est à la fois une position et une durée,

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Evidencia-se na definição de Louis Hébert (2012) o estado de coadjuvação da

espacialidade, tratada apenas como um efeito da existência das coisas, um pano de

fundo sem representatividade. Como se o espaço fosse um vazio sobre o qual

estivesse a realidade e tivesse papel pouco significante para a sua formação. A ideia

de espaço enquanto uma vacuidade é recorrente, observe-se, por exemplo, na

seguinte citação:

Ambiente ideal, caracterizado pela exterioridade de suas partes, no qual se localizam nossas percepções, e que por consequência tudo que se entende como finito. O espaço tal como o considera a intuição comum é caracterizado como homogêneo (os elementos que podem ser distinguidos pelo pensamento são qualitativamente indiscerníveis), isótropo (todas as direções possuem as mesmas propriedades), contínuo e ilimitado (LALANDE, 1997, p. 298)2.

André Lalande (1997) expõe em seu conceito de espaço, uma descrição

influenciada pelos princípios que o caracterizam na geometria, isto é, enquanto uma

abstração localizada no plano da lógica formal. O espaço nessa condição assume

um papel de total neutralidade e homogeneidade, isento de quaisquer diferenças,

mesmo perceptivas. Se admitida essa pressuposição, a espacialidade seria um

elemento não apenas vazio, mas também anacrônico, já que não estaria sujeito à

relativização subjetiva e interpretativa da consciência social e individual.

Todo este quadro conduz para uma análise realista-materialista da

espacialidade, pois, cria a impressão de que tal fenômeno seria algo per se, cuja

apreensão estaria isenta de interpretações. O espaço, nessa perspectiva, é somente

um dado puro da realidade e para analisá-lo bastaria constatar, através dos

sentidos, seus elementos constitutivos dentro de categorias objetivas (extensão,

altitude, relevo etc.).

l’espace est à la fois une position et une étendue (aire ou volume). Mais il est également, en cela il n’est plus comparable au temps, une forme. 2 Tradução livre, do original: Milieu idéal, caractérisé par l’extériorité de ses parties, dans lequel sont

localisées nos percepts, et qui contient par conséquent toutes les étendues finies. L’espace tel que le considère l’intuition commune est caractérisé par ce fait qu'il est homogène (les éléments qu'on peut y distinguer par la pensée sont qualitativement indiscernables), isotrope (toutes les directions y ont les mêmes propriétés), continu et illimité.

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2.2 O ESPAÇO DENTRO DA CRÍTICA LITERÁRIA

O espaço é, ao lado do tempo, um dos elementos mais fundamentais na

construção de obras ficcionais, conforme ressalta Salvatore D’Onofrio (1995): “[...]

todo texto literário possui seu espaço, na medida em que encerra um pedaço da

realidade, estabelecendo uma fronteira entre ela e o mundo imaginário. O espaço da

ficção constitui o cenário da obra, onde as personagens vivem seus atos e seus

sentimentos” (D’ONOFRIO, 1995, p. 98).

Apesar de tal relevância é raro encontrar na bibliografia especializada um

exame detalhado das manifestações espaciais na ficção. Tal fato condiciona que a

teoria do espaço na narratologia seja bastante esparsa, constituída basicamente por

artigos e por reflexões episódicas nas obras de maior envergadura. Mesmo em

teóricos consagrados na análise estrutural da narrativa como Todorov (cf. 1982,

1996, 2003, 2006), Genette (cf. 1969, 1972a, 1972b, 1998, 2000) e Barthes (cf.

1968, 1972, 1991), o aspecto espacial é parcamente tratado, o que exige do analista

a necessidade de impor uma organização que permita sistematizar uma teoria de

fontes tão desconectas.

Neste particular, a Narratologie des Raumes [Narratologia do espaço] de

Katrin Dennerlein (2009) demonstra-se uma importante ferramenta para ultrapassar

o obstáculo trazido pela falta de concentração bibliográfica. A obra recenseia a maior

parte da produção de caráter crítico-literário acerca do espaço durante todo o século

XX e início do XXI. A partir do estado da questão apresentado por esta obra, torna-

se mais simples entender as linhas de pensamento que foram desenvolvidas

historicamente na análise do espaço na literatura.

Conforme ressalta Dennerlein (2009), o aspecto espacial desde sempre foi

um traço que chamou a atenção do público leitor, que se focava na capacidade que

o texto literário tem de aguçar através da imaginação a recriação dos elementos

imagéticos que compõem as tramas ficcionais. Assim, o exercício de imaginar a

Ítaca de Ulisses na Odisseia (2007), o Inferno de Dante na Divina Comédia (2003)

ou a Casa Verde d’O Alienista (2003) de Machado de Assis era uma das partes mais

lúdicas e instigantes da leitura literária.

Tratando especificamente da leitura do espaço ficcional pela crítica, observa-

se que desde o começo do século XVIII os estudiosos tiveram uma forte inclinação

em estabelecer qual a relação existente entre os espaços ficcionais e os espaços

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concretos que lhe serviriam de modelo. Tal investigação se propunha,

principalmente, em reconstituir as paisagens históricas que se encontrariam

decalcadas nas narrativas literárias, por exemplo: se procurava resgatar a Grécia do

Período Micênico através da Odisseia e da Ilíada, a Europa do século XVIII por meio

das obras de Hugo, Dumas ou Schiller e assim por diante. Havia o entendimento da

obra literária como um documento, o que refletia numa análise historicista das

narrativas, mesmo as ficcionais. O historicismo e o cientificismo que dominava a

crítica literária novecentista assumiu a premissa de que o espaço, tanto concreto

quanto narrativo deveria ser entendido através das premissas da Geografia, que

ganhara neste mesmo século o status de disciplina científica a tratar da descrição

dos lugares.

É evidente, no entanto, que a própria estética literária da época concorria para

tais procedimentos descritivos: a literatura romântico-realista rompeu com um

paradigma de centrar suas tramas em locais imaginários (Tróia, a Jerusalém

medieval, a Ilha dos Prazeres etc.) e passaram a ocupar ambientes conhecidos e

concretos, em especial, as grandes cidades europeias modernas, que acumulavam

os centros intelectuais e artísticos do Ocidente. Assim, os romances alemães

adotam Berlim; os ingleses, Londres, e assim por diante; tornando o espaço fictício

uma tentativa de representação do espaço concreto.

Este movimento é perceptível, inclusive na Literatura Brasileira. Em romances

urbanos como os de Machado de Assis e José de Alencar existe uma configuração

espacial que traz para a Literatura muitos elementos descritivos do concreto, a

começar pelo emprego do nome de lugares reais como o Passo Imperial, a rua do

ouvidor, pela descrição dos prédios, fachadas, ruas.

A partir deste momento começa uma substancial migração dos conceitos da

geografia física e matérias relacionadas com esta (cartografia, topologia etc.), que se

cristalizaram como parte do jargão da análise literária. Isso ocorreu com tal

naturalidade ao ponto de não sentir-se estranhamento em termos como “espaço

geográfico na narrativa” ou “topologia narratológica”. Alguns destes termos

passaram a nomear linhas de estudo razoavelmente autônomas dentro da crítica

literária, como a “cartografia literária”, contando inclusive com uma tradição à parte

na bibliografia dos estudos espaciais da literatura. Cristalizou-se desta maneira o

primeiro modelo de descrição do espaço ficcional, o modelo concretista.

Page 16: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

14

2.2.1 O Modelo Concretista

O estudo sistemático do espaço ficcional foi iniciado ainda no século XVIII e

ganhou corpo na primeira metade século XIX, época em que predominava um

discurso de tempo e espaço guiado pelo ideal teleológico da objetividade, unidade e

universalidade (influenciado pela tradição hegeliana). Neste contexto, havia a

assunção de que as artes em geral, eram uma tentativa de representação dos

objetos concretos. E entendia-se representação como uma tentativa de aproximação

da realidade, uma imitação de caráter estético, mas, ainda arraigada ao modelo que

servia de inspiração ao artista. O estético residia, segundo o pensamento da época,

principalmente no seu aspecto não instrumental, conforme se dizia “a arte é um fim

sem fim”, ou seja, um objetivo sem propósito definido ou nas palavras de Kant

(2010) na Crítica do Juízo:

A intenção proposital pode ser vista por meio da relação variada com um determinado objetivo, ou através de um conceito. Isso evidencia o seguinte: que o Belo, é avaliado por um mero propósito de forma, isto é, um objetivo sem propósito, que é integralmente independente de uma relação com o Bom, deste modo há uma intenção proposital, isto é, a intenção de um determinado propósito se dá (KANT, 2010, p. 142)3.

.

Fica evidente que a estética novecentista ainda cria na relação dos objetos

estéticos com algo para além destes, a realidade concreta; a arte, portanto não era

um domínio autossuficiente. No caso da literatura, esse fenômeno se repetia: a partir

do romantismo, os elementos das narrativas são importados da realidade próxima

dos escritores: seus personagens, temas e intrigas têm como fontes o cotidiano e as

questões culturais daquele momento. Isso é especialmente claro no que trata o

espaço ficcional, a partir da consolidação do romance como forma dominante

narrativa, os ambientes narrativos começaram a adentrar as grandes cidades, se

desviando dos lugares comuns representados até o Classicismo. As personagens se

movimentavam por um mundo cujos nomes e linguagens eram assemelhados ao do

3 Tradução livre, do original: Die objektive Zweckmäßigkeit kann nur vermittelst der Beziehung des

Mannigfaltigen auf einen bestimmte Zweck, also nur durch einen Begriff erkannt werden. Hieraus allein schon erhellet: daß das Schöne, dessen Beurteilung eine bloß formale Zweckmäßigkeit, d.i. eine Zweckmäßigkeit ohne Zweck, zum Grunde hat, von der Vorstellung des Guten ganz unabhängig sei, weil das letztere eine objektive Zweckmäßigkeit, d.i. die Beziehung des Gegenstandes auf einen bestimmten Zweck, voraussetzt.

Page 17: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

15

público leitor. Isto é falava-se não de pátrias legendárias ou de passados imemoriais,

mas de subúrbios parisienses ou praças londrinas atuais.

O limite entre o real e o ficcional era tênue, e não era difícil encontrar críticos

que censurassem obras que não escapassem a este paradigma de representar o

ficcional segundo as demandas que o mundo real exigia. Tratava-se o espaço

presente na literatura tal qual uma tentativa de decalque dos locais concretos, daí o

forte descritivismo presente na prosa romântico-realista, que acaba dando ao

espaço ficcional uma forte aparência de realidade.

Dentro deste raciocínio surge o modelo concretista do espaço ficcional, que

procurar investigar o espaço nas obras literárias na medida de sua aproximação com

suas referências concretas. O modelo concretista admite as seguintes

características para o espaço consoante Dennerlein (2009):

(a) Objetividade e reificação

“O espaço é concebido como uma realidade independe de um observador.

Ele é tratado como um objeto cuja existência, lhe determina univocamente.

‘Espacial’ é um conceito que opõe à ‘social” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 4.

A espacialidade é um elemento objetificado e autossuficiente, sua existência

se limita aos caracteres imediatamente percebidos, não sendo possíveis flutuações

interpretativas significativas entre observadores distintos. O espaço é neutro, e,

portanto, não está sujeito a alterações provenientes da percepção subjetiva.

(b) Possibilidade de categorização e diferenciação

“O espaço, bem como o tempo, é uma categoria fundamental de classificação

e distinção. Qualquer identificação exige um tempo e um espaço. Baseados nesta

diferenciação são identificados categorialmente. Dentro de localizações espaciais

como esquematizações para objetos associados (pessoas, cultura, artefatos) tais

qualidades: divisibilidade, distinção servem de bases para fronteiras nítidas (cada

4 Tradução livre, do original: Objektivität und Objekthaftigkeit: Dem ‚Raum‘ wird eine

beobachterunabhängige Seinsweise zugesprochen. Er wird als Gegenstand behandelt, dessen Existenzart es ‚richtig‘ zu bestimmen gilt. ‚Raum‘ ist ein oppositioneller Begriff zum ‚Gesellschaftlichen‘.

Page 18: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

16

homem, cada edifício, cada cultura está em um nível de localização, como em uma

categoria)” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 5.

Toda percepção espacial liga-se à oposição com mais de uma espacialidade.

É por meio da diferenciação (certo espaço é o que outro não é) que somos capazes

de reconhecer o espaço no qual nos encontramos. Em suplemento a esta atividade

cognitiva, o espaço também é compreendido por meio de categorias como: medida e

extensão, que permitem separar o espaço em unidades menores.

(c) Separação e aditividade

“O espaço é algo que se distingue por ser segmentado em unidades que não

se sobreponham, e sua extensão integral é uma totalidade ilimitada. O espaço do

mundo (território) é a soma suas partes discretas, lotes delimitados” (DENNERLEIN,

2009, p 58) 6.

O espaço é limitado pela nossa percepção, deste modo, é possível

estabelecer fronteiras que facilitem a sua compreensão. O espaço total de uma

extensão é uma soma das suas partes limitadas, assim, por meio de um exercício de

abstração somos capazes de imaginar áreas não imediatamente visíveis, como os

continentes.

(d) Descontinuidade, Distinção, Continuidade/Homogeneidade

“Numa dimensão espacial, as unidades discretas são descontínuas em

termos de uma diferenciação (‘é distinto’). Dentro de categorias de semelhança,

conexão, uma uniformidade (homogeneidade) é assumida” (DENNERLEIN, 2009, p

58) 7.

5 Tradução livre, do original: Kategorialität und Disparatheit: Der Raum ist – neben der Zeit – eine

grundlegende Kategorie der Einordnung bzw. Zuordnung. Jegliches hat seine Zeit und seinen Ort. Auf dieser Basis werden Ungleichheiten kategoriell erfasst. Indem Raumausschnitte als Projektionsflächen für Sachverhalte dienen, bekommen auch die eingeordneten Gegenstände (Menschen, Kultur, Artefakte etc.) die gleichen Qualitäten: Teilbarkeit, Unterscheidbarkeit auf der Grundlage trennscharfer Grenzen (jederMensch, jedes Bauwerk, jede Kultur gehört auf einer Ebene genau einer Kategorie an). 6 Tradução livre, do original: Diskretheit und Additivität: Raum ist etwas, das sich abgrenzen und in

Einheiten zerlegen lässt, die sich nicht überschneiden und in ihrer Summe eine endliche Ganzheit ergeben. Die räumliche (territoriale) Welt ist die Summe ihrer diskret begrenzten Raumausschnitte.

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17

Não se deve confundir o espaço com o seu conteúdo. Numa perspectiva

concretista, o espaço é apenas o substrato onde estão as coisas, sendo diferenciado

por meio da categorização. Por si mesmo o espaço é homogêneo e contínuo.

(e) Extensão finita

“Os espaços têm um interior e exterior, estes são entendidos como unidades

discretas com uma dimensão limitada (planimétrico) ou uma expansão (espaço-

conteúdo)” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 8.

O espaço tal qual é observado na realidade empírica é sempre atrelado a

uma limitação, em oposição a outro espaço determinado. A dimensão do espaço é

identificada na sua extensão horizontal ou vertical, daí ser entendido como

planimétrico. Entretanto duas dimensões espaciais podem ser cruzadas de modo a

expressar um conteúdo (altura X área).

(f) Estabilidade/Constância

“O espaço é, enquanto uma dimensão adicional ao dinâmico tempo,

atemporal (anacrônico) em conotação. Circunstâncias são fixadas por sua

localização, e são dadas por um caráter estático da representação do espaço”

(DENNERLEIN, 2009, p 59) 9.

Para ser apreendido enquanto uma dimensão existencial autônoma, o espaço

tem que ser isolado do tempo. Por consequência, a espacialidade é imutável dentro

de uma cronologia, e não sendo dotado da dinamicidade do movimento temporal, é

também estático.

7 Tradução livre, do original: Diskontinuität, Distinktion und Kontinuität/Homogenität: In einer

räumlichen Dimension sind die diskreten Einheiten diskontinuierlich im Sinne einer Unterschiedlichkeit (‚distinkt‘). Innerhalb der Kategorien wird von einem lückenlosen, kontinuierlichen Zusammenhang und einer Gleichartigkeit (Homogenität) ausgegangen. 8 Tradução livre, do original: Endliche Extensität: Räume haben ein Innen und ein Außen, sie werden

als begrenzte Einheiten mit einer endlichen flächenhaften (planimetrischen) Ausdehnung aufgefasst (‚Containerraum‘). 9 Tradução livre, do original: Stabilität/Konstanz: Raum ist – als Dimension neben der dynamischen

Zeit – in seiner Konnotation selbst zeitlos. Gegebenheiten sind durch ihre ‚Verortung‘ fixiert und erhalten in der räumlichen Repräsentation einen statischen Charakter.

Page 20: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

18

Percebem-se nas descrições mencionadas que as propriedades apontadas

para o espaço ficcional são simples recolocações das imagens convencionalmente

atribuídas ao espaço empírico, não se observa um refinamento ou uma adaptação

dos conceitos geográficos para aplicação nas narrativas ficcionais. Conforme se

poderá observar nos críticos literários que comungam com este modelo.

Gabriel Zoran (1984) afirma que a ficção se alicerça em duas coordenadas

básicas, o tempo e espaço, que por sua vez refletem as referências mais ou menos

decalcadas da realidade factual. No caso da narrativa ficcional, o ponto de

afastamento das experiências concretas é uma correlação, mas não uma

concomitância do espaço e do tempo. Isto é, o tempo e espaço narrativos estão

imbricados na ficção, mas tem certo grau de independência e seguem uma lógica

diferenciada daquela observável na existência empírica, admitindo regimes

particularizados de significação:

A relação entre o espaço e tempo no texto da narrativa é lacunar tanto a clareza e a simetria que possui quanto aplicada ao campo da realidade. [...] A existência de espaço é empurrado para um canto, por assim dizer. Ele não é totalmente descartado, mas também não têm um estatuto reconhecido e clara no texto. Ele pode ser entendido de várias maneiras, mas nenhuma é tão clara e inequívoca como o tempo de duração. Essa falta de simetria na relação entre espaço e tempo é evidente não só no seu status no texto, [...] No entanto, apesar da possibilidade de distinguir entre o espaço do texto e do mundo, não se pode apontar para qualquer correlação constante entre eles (Zoran, 1984, p. 310) 10.

O crítico israelita defende alguns pontos específicos que caracterizam a

ontologia do ambiente ficcional: a assimetria do espaço-tempo, a não homologia

entre as referências narrativas e empíricas e a independência dos conteúdos

espaço-temporais do mundo concreto e dos mundos possíveis ficcionais. Na mesma

10

Tradução livre, do original: The relationship between space and time in the narrative text lacks both

the clarity and the symmetry it possesses when applied to the field of reality. [...] The existence of

space is pushed into a corner, so to speak. It is not altogether discarded, but neither does it have a

recognized and clear-cut status within the text. It can be understood in various ways, but none is as

clear and unambiguous as the term time. This lack of symmetry in the relationship between space and

time is evident not only in their status in the text, [...] Nevertheless, despite the possibility of

distinguishing between the space of the text and that of the world, one cannot point to any constant

correlation between them.

Page 21: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

19

menção, Zoran ressalta a ambiguidade que o espaço ficcional apresenta, pois

diferente do tempo que possui uma realidade abstrata plenamente assimilável pela

linguagem no texto literário, o espaço sempre se apresenta uma contradictio in

adjecto uma vez que este se caracteriza por ser um dado material e sensível da

realidade e a linguagem não teria como representar tal materialidade. Para

descrever como a narrativa ultrapassa tal limite, Zoran explica que a linguagem

procurar fazer o máximo de aproximações com o real resultando num processo de

espelhismo verbal:

Espaço como aparece na narrativa é um padrão muito complexo, e apenas uma pequena parte de sua existência no texto baseia-se na descrição direta. Na verdade, é uma combinação de vários tipos e níveis de reconstrução. [...] Um objeto espacial é caracterizado pelo seu ser completo, pleno, e existindo simultaneamente. Na tentativa de dar expressão verbal com a estrutura de tal objeto, o objeto deve primeiro perder alguma da sua “integridade”, já que é impossível dar uma expressão idêntica a todas as suas partes e aspectos: alguns deles podem ser descritos explicitamente , alguns deles implicitamente, e alguns evitados completamente. [...] Em qualquer caso, os aspectos espaciais são cortado s, por assim dizer, a partir de seu contexto espacial e simultâneo, e estão dispostos ao longo de uma linha temporal (ZORAN, 1984, p. 313)11.

Zoran estabelece que a existência do espaço na narrativa ficcional se dá

através de uma série de níveis descritivos que procuram diminuir os impedimentos

da linguagem em representar a “totalidade” que caracteriza os objetos espaciais. A

narrativa literária apresentaria o espaço empírico por meio de descrições com mais

ou menos detalhes, segundo a necessidade do narrador. Numa forma de

esquemática:

11 Tradução livre, do original: Space as it appears in the narrative is a very complex pattern, and only

a small part of its existence in the text is based on direct description. It is actually a combination of various kinds and levels of reconstruction. [...] A spatial object is characterized by its being complete, full, and existing simultaneously. In the attempt to give verbal expression to the structure of such an object, the object must first lose some of its "completeness," since it is impossible to give an identical expression to all its parts and aspects: some of them may be described explicitly, some of them implicitly, and some bypassed altogether. [...] In any case, the spatial aspects are cut off, so to speak, from their spatial and simultaneous context, and are arranged along a temporal line.

Page 22: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

20

Figura 01: esquema das aproximações entre referências linguísticas e

empíricas (ZORAN, 1984, p.315) 12

No esquema se destaca o papel do tempo como diretor da espacialidade, a

representação espacial só existe no modelo de Zoran na medida da sua localização

temporal. Assim, o espaço isolado seria apenas uma série de recortes imprecisos,

flashes do espaço empírico. Na representação esquemática isso se materializa

através da pequena área da figura do espaço, que ganha volume na medida do

tempo, reiterando a contiguidade do aspecto espacial na narrativa.

A partir destas pressuposições metodológicas, Zoran define que a

representação narratológica do espaço se dá em três níveis: (a) o nível topológico, o

espaço como uma entidade estática (no diagrama, expresso pela figura menor no

cubo), (b) o nível cronotópico, o espaço presente nas ações diegéticas, (projeção

semi cilíndrica no cubo) e (c) o nível textual, o espaço significado pela linguagem.

Estes níveis se inter-relacionam na estrutura narrativa para resgatar as suas

referências empíricas:

Estes níveis todos pertencem ao mundo reconstituído, e podem ser considerados como três níveis de reconstrução. O nível mais imediato de reconstrução é a textual, em que o mundo ainda mantém vários dos padrões estruturantes do texto. No nível cronotópico, o mundo já reconstruído é independente do arranjo verbal do texto, mas é ainda dependente do enredo. Finalmente, no nível mais alto de reconstrução, o topográfico, o mundo é percebido como existindo por si, com sua própria estrutura "natural", recortado inteiramente a

12

Tradução livre: Contínuo verbal, contínuo dos eventos no tempo, espaço-tempo, espaço.

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21

partir de qualquer estrutura imposta pelo texto verbal e ao enredo (ZORAN, 1984, p. 315) 13.

O teórico israelita estabelece uma hierarquia que permite compreender de

que modo a narrativa se apropria da língua para constituir o seu efeito imagético. De

outro lado identifica os modos de apresentação do espaço no texto: (a) lugares,

ambientes caracterizados pela condição de ponto, plano, volume ou espacialidades

contínuas, cujas fontes são as extensões delimitadas na realidade objetiva. Nesta

categoria estariam as casas, cidades, ruas, campos e montanhas presentes como

cenários das ficções; (b) zona de ação, ambientes onde notadamente se desenrolam

as ações narrativas, não são espacialidades definidas, mas, o terreno onde jazem

quaisquer diegeses, no caso de uma ligação telefônica entre dois personagens a

zona de ação é a superposição dos lugares onde estão, que são por sua vez

fundidos num só espaço abstrato; (c) campo de visão, este ambiente bem como o

anterior é igualmente indefinido, e parte de uma condição particular da percepção

humana de opor o espaço visível como “aqui” e o espaço já visto ou ainda a se ver

como “ali” e “lá”, esta condição sensorial leva que cada personagem tenha uma

contrução espacial demarcada pelo momento imediato ou lembrado em que

visualiza certa espacialidade, cada uma destes flashes espaciais é um campo de

visão.

A apreciação do modelo espacial de Zoran demonstra que este assume a

espacialidade textual enquanto um signo estável. A composição de suas categorias

analíticas permite uma classificação orientada por critérios imediatistas como a

segmentação e a diferenciação. Apesar de lidar com os níveis de representação

referencial se limita a elaborar uma descrição que define o que um recorte textual

descritivo é, mas não demonstra uma preocupação em tratar a narrativa e seu

13

Tradução livre, do original: These levels all belong to the reconstructed world, and can be regarded

as three levels of reconstruction. The most immediate level of reconstruction is the textual one, in

which the world still retains several of the structuring patterns of the text. In the chronotopic level, the

reconstructed world is already independent of the verbal arrangement of the text, but is still dependent

on the plot. Finally, on the highest level of reconstruction, the topographic one, the world is perceived

as existing for itself, with its own "natural" structure, cut off entirely from any structure imposed by the

verbal text and the plot.

Page 24: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

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aspecto espacial como uma totalidade significativa. O autor mantém uma correlação

imediata entre o espaço empírico e a espacialidade narrativa, ressaltando-se como

máxima a limitação da representação linguística do espaço frente a sua referência

concreta. Além disto, no modelo de análise não se distingue com clareza as

particularidades da narração literária e narrativa em geral, o que acaba criando uma

análise que não se atém às possíveis flutuações históricas da representação

espacial através de estéticas literárias diferenciadas.

A proposta de análise de Zoran direciona para uma formalização da

espacialidade narrativa, os elementos espaciais que se encontram plasmados no

texto literário, seja em nível verbal (substantivos concretos de natureza imagética)

ou em nível diegético (cenários, ambientes da ação narrativa), seriam

autoexplicativos e o objeto do crítico seria o levantamento destes e sua posterior

categorização.

O mesmo procedimento é empregado em Dimensions of semiotic space in

narrative de Lawrence O’toole (1980), no ensaio o estudioso norte-americano se

apropria do modelo semiótico de matriz franco-soviética para propor uma

sistematização do espaço narrativo através de oposições binárias e de modelos

abstratos. Conforme este afirma:

A observação e interpretação das relações espaciais em textos narrativos é um relevante tema recorrente na semiótica recente. Oposições binárias, tais como alto / baixo, perto / longe, fechado / aberto têm sido interpretados como realizações textuais sistemáticas de categorias fundamentais da mítica [...], de códigos morais ou culturais [...], e em termos de oposições psicanalíticas [...], outros, têm tentado relacionar oposições espaciais na narrativa literária à dinâmica da trama e ponto de vista ou a delimitação de caráter. [...]. A oposição puramente binária, no entanto, ao mesmo tempo, nos oferta propostas diretas e valiosas sobre relações indiciais em uma narrativa [...], pode borrar a nossa percepção de outros aspectos do espaço semiótico, por exemplo, na medida em que ele pode não ter correlações espaciais de todo, e a extensão em que as suas dimensões são mensuráveis, ou seja, percebidas em nossa leitura consistindo estas mesmas de relações graduadas (O’TOOLE, 1980, p. 135) 14.

14

Tradução livre, do original: The observation and interpretation of spatial relationships in narrative texts is a significant recurrent theme in recent semiotics. Binary oppositions such as high/low, near/far, enclosed/open have been interpreted as systematic textual realizations of fundamental categories of mythic [...], of moral or cultural codes [...], and in terms of psycho-analytic oppositions [...] , among others, have attempted to relate spatial oppositions in literary narrative to the dynamics of plot and point of view or the delineation of character. [...]. A purely binary opposition, however, while giving us direct and valuable insights into indicial relations in a narrative [...], may blur our perception of other aspects of semiotic space, for example, the extent to which it may have no spatial correlates at all,

Page 25: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

23

Continuando em sua exposição, O’Toole (1980) ressalta que todos os

elementos espaciais de certo texto ficcional poderiam ser formalizados na forma de

signos algébricos. O crítico poderia escolher numa narração os elementos cênicos

que lhe comporiam e lhe atribuiria, por exemplo, uma letra, assim, A para uma

árvore, B para uma montanha, e assim por diante. Depois de inventariar as

espacialidades, se ajuntariam as demais narrativas de uma obra e se observariam

como as séries espaciais sofreriam alternâncias, continuidades ou omissões.

Conforme um esquema oferecido pelo próprio teórico norte-americano para a

narrativa bíblica (Gn 37-50) de José, filho de Jacó:

L 3 {Todo Egito ... Canaã ... Mesopotâmia} L 2 {fazenda de Jacob ... deserto ... estrada para Canaã ... Gochen} L + 1 {palácio do rei ... acampamento do irmão} L {aposentos privados do rei, de Potifar, José, Jacó} L-1 {aposentos do rei, quarto de Potifar, câmara de conselho, parede, câmara, sala privada de J[osé], o quarto de J[osé]} L-2 {cama x 4, saco de milho} L-3 {copo, bolsa de dinheiro} (O’TOOLE, 1980, p. 139) 15.

Tomando como ponto de partida a citada narrativa do Gênesis, Otoole aplica

o seu modelo e faz um inventário de todos os ambientes presentes na trama e os

organiza numa série de níveis, de acordo com a sua extensão. De modo que nos

mesmos encontram-se respectivamente: os territórios, os locais, as construções, os

cômodos e os objetos. O’Toole elabora o mesmo procedimento com a diegese e as

dimensões da história de José e faz um cruzamento entre essas formalizações, que

teria como resultado uma matriz como esta na qual o autor aponta a formalização de

um jardim fictício:

and the extent to which its dimensions are measurable, i.e., perceived in our reading as themselves consisting of graded relationships. 15

Tradução livre: L+3 All Egypt... Canaan ... Mesopotamia} L +2 {Jacob's farm... wilderness... road to Canaan ... Goshen} L + 1 {King’s palace... brother's camp} L {private quarters of king, Potiphar, Joseph, Jacob} L- 1 {king's bedroom, Potiphar's bedroom, council chamber, well, cell, J's private room, J's bedroom} L-2 {bed x 4, sack for corn} L-3 {cup, money bag}

Page 26: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

24

Figura 02- Formalização da espacialidade de um jardim (O’TOOLE, 1980, p.

141)16

O crítico defende que o cruzamento destas tabelas de dados disponibilizaria

para análise das narrativas um grau de elevada precisão e permitiria uma análise

global dos planos cronotópicos e diegéticos em sua simultaneidade. Pois, ao

esquematizar-se cada uma das dimensões na forma de linhas, o polígono que lhes

sintetiza oferta uma representação tridimensional que caracterizaria a sua totalidade

significativa. Segundo O’Toole cada um dos vértices da figura manifestaria uma

percepção particular da diegese, dando conta dos múltiplos pontos de vista

possíveis numa narrativa.

Figura 03- O cruzamento entre as dimensões narrativas da diegese

(O’TOOLE, 1984, p. 142)17

As propostas de O’Toole seguem pressupostos assemelhados aos de Zoran

(1984), o espaço é tratado como um elemento cuja análise se fundamenta na

segmentação e classificação de unidades discretas. Preserva-se a ligação do exame

espaço-temporal como exigência compulsória e uma focalização no tempo como

16

Tradução livre: A1-6- as diversas áreas do jardim, RR- rosas vermelhas, YR- rosas amarelas, H- ervas, SH- arbustos, F- árvores frutíferas, C- pinheiros, D- árvores temperadas, L- gramados, AN- vegetações sazonais, V- legumes. 17

Tradução livre: A- diegese, B- espaço, C- cronótopo (espaço X tempo), D- tempo.

Page 27: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

25

dimensão mestra da ontologia ficcional. O que mais chama a atenção em sua

proposição é a assunção da topologia, disciplina originalmente matemática, como

instrumento da análise do espaço ficcional:

O ramo da matemática conhecido como topologia pode nos ajudar a mapear e medir essas relações sistemáticas complexas [de tempo, espaço e diegese], de modo a ter em conta todos os tipos de espaço semiótico, para evitar o excesso de simplificação da simples combinação de oposições binárias, e para dar um significado real para a noção de uma obra de arte como um signo semiótico complexo, integrante de uma rede de relações semióticas (O’TOOLE, 1980, p. 136) 18.

Uma das consequências mais naturais do método concretista, além das já

citadas categorização, objetificação, simplificação, anacronismo e automatização de

significados imediatos, é o emprego de metodologias exógenas à hermenêutica

literária. Tais instrumentos analíticos geralmente têm sua origem nas ciências

exatas, que investigam o espaço empírico em sua medida geométrico-formal

(topologia dos espaços métricos) e físico-geográfica (topologia física ou cartografia).

A entrada destas modalidades de estudo, se justificaria para oferecer interpretações

mais “precisas” e “inovadoras” das obras literárias, como ressalta O’Toole (1980):

[...] os procedimentos oferecidos para análise e síntese poética pela topologia estão longe de ser "reducionistas", como tantos modelos importados para a lingüística e a poética das chamadas ciências "duras" tendem a provar. Pelo contrário, eles são extremamente flexíveis, tão delicados e precisos quanto qualquer peça particular de análise, e tem uma elegância estética que tanto corresponde à estrutura de nossas próprias intuições sobre a obra de arte e oferecem mais novas e ricas intuições nas leituras subsequentes. Topologia pode até mesmo oferecer-nos alguma interpretação do papel da arte na sociedade e nas nossas vidas individuais (O’TOOLE, 1980, p. 136) 19.

18

Tradução livre, do original: The branch of mathematics known as topology may help us in mapping and measuring these complex systematic relations so as to take account of all kinds of semiotic space, to avoid the over-simplification of merely matching binary oppositions, and to give some real meaning to the notion of a work of art as a complex but integral semiotic sign made up of a network of semiotic relations. 19

Tradução livre, do original: [...] the procedures offered to poetic analysis and synthesis by topology are far from "reductionist" in the way so many models imported into linguistics and poetics from the so-called "hard" sciences tend to prove. On the contrary, they are extremely flexible, as delicate and precise as any particular piece of analysis requires, and have an aesthetic elegance which both matches the structure of our own intuitions about the work of art and prompts new and richer intuitions in subsequent readings. Topology may even offer us some interpretation of the role of art, both in society and in our individual lives.

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26

Nas palavras do teórico norte americano identifica-se uma defesa prévia de

possíveis críticas relacionadas ao reducionismo que análise formal poderia trazer

para a interpretação literária. Questionando tal suspeita, O’Toole argumenta que,

pelo contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a topologia estatística de

dados espaciais poderia captar detalhes sutis da estrutura visual dos textos

literários. Entretanto, nas análises oferecidas pelo estudioso não fica claro quais

seriam estas novidades interpretativas trazidas pelo modelo matemático, uma vez

que a sua proposta se limita a tornar mais precisos os dados da espacialidade com o

emprego de níveis e categorias, mas não há um entendimento do papel do espaço

na construção do significado da obra enquanto uma totalidade. Além disto, ao tentar

estabelecer a relação entre os componentes da narrativa, isto se realiza de modo

deficitário, uma vez que o método de matriz não explica o que representam as

variações e constâncias, apenas as identificando. Tal lacuna metodológica

determina limite em tal teoria, que serviria somente para inventariar as

espacialidades sem entendê-las como elementos significativos desta.

Apesar das limitações da análise oferecida por O’Toole (1984), a sua leitura é

relevante para constatar a existência de um paradigma recorrente na análise do

espaço narrativo, o uso do que se costumou denominar topologia. O termo topologia

é originário da geografia e reporta-se ao estudo, descrição e mapeamento dos

acidentes topográficos da superfície da Terra, isto é das montanhas, planícies, etc. A

topologia física trata do espaço natural e horizontal, e por analogia, dos espaços em

geral na sua neutralidade, sem as intervenções do homem sobre este.

A topologia adentra na crítica literária moderna, como a “ciência que estuda o

espaço” e, consequentemente como a “análise do espaço” (topo-análise) por reflexo

da sua etimologia20. Entretanto, o sentido da palavra na bibliografia criticista não é

único, por exemplo: Ernst Robert Curtius (1996 [1ª ed. 1957]) foi quem consolidou

seu uso na obra, Literatura europeia e idade média latina, cujo método foi

denominado topológico ou topologia (toposgemeinschaft). O pensador alemão,

diferente do outros autores citados, entende a topologia na medida da tópica, figura

da retórica clássica entendida como:

20 Do grego: πος, topos- “lugar, espaço, ambiente”; e γος, ογ α, logos, logia- “discurso acerca de

algo, ciência, estudo”.

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27

[...] um ‘pensamento infinito (na sua forma infinita, formulado ou não formulado), pensamento esse que, num determinado círculo cultural, por formação escolar e tradição literária, ou pelos efeitos de instâncias educacionais análogas, se tornou propriedade tradicional comum (LAUSBERG, 1972, p. 110).

Conforme se observa na releitura de Heinrich Lausberg (1972), Curtius

emprega o conceito de topos não na medida do lugar enquanto uma espacialidade,

e sim como uma metáfora, “os locais comuns” (loci comunes) da produção literária,

isto é, os temas, fórmulas e estruturas desenvolvidas em determinada tradição

estética. O que não exclui certos tipos de espacialidades narrativas, como o locus

amoenus, o Elísio, o Paraíso, o Olimpo, etc. Todavia, deve-se entender que Curtius

assume o espaço como todos os ambientes da representação da literatura, no seu

modelo surgem topos não espaciais: a Idade do Ouro (tópica temporal), o amor

impossível (tópica temática), o elogio (tópica retórica), o salvador (tópica diegética

de personagem).

Além da proposta de Curtius (1996) existe a compreensão da topologia

literária como um reflexo da topologia física. Este modo de entendimento do espaço

narrativo, apesar de ser bastante presente na bibliografia, inclusive em autores já

mencionados ao início deste, não apresenta um método definido. A topologia como

é apresentada em O’Toole (1980), Zoran (1984), Loriggio (1990), Szegedy-Maszák

(1990) e D’Onofrio (2001), caracteriza-se pelo levantamento das ocorrências

espaciais numa determinada narrativa, sendo classificadas segundo critérios

absorvidos da análise do espaço geográfico, principalmente pela extensão das

referências empíricas que lhe serviriam de base.

Complementando a abordagem concretista, a topologia relaciona-se com a

representação gráfica dos espaços ficcionais, isto é ao seu mapeamento. A

chamada cartografia literária é uma matéria que apresenta razoável tradição nos

estudos literários, e se propõe a construir mapas das espacialidades presentes nas

narrativas ficcionais, conforme descreve Dennerlein (2009):

A tradição dos atlas literários aparece com o primeiro em 1907, ora pontuais, globais ou contextuais espacialmente falando, isso demonstra uma impressionante marca (Nagel, 1907): O atualmente muito popular Atlas da Literatura de Bradbury está divido entre épocas e lugares (Bradbury, 1996). No capítulo seis “O Mundo Moderno”, há subcapítulos para Viena, Praga, Dublin, Paris e Berlim.

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28

Residências, locais de trabalho e pontos de encontro de escritores, seus locais de escrita são apresentados em mapas. O Dicionário de Locais Imaginários, entretanto, apenas são lugares mencionados listados que não têm um sentido secular equivalente e neste sentido são imaginários (Maguel/Guadalupi, 2000) (DENNERLEIN, 2009, p. 01) 21.

O panorama bibliográfico da cartografia literária admite uma variedade de

temas, desde a própria elaboração de mapas “ficcionais” baseados em cartas

geográficas empíricas até a construção de modelos visuais (fotografias, gravuras)

dos cenários das narrativas. Entretanto, o seu uso mais comum é o primeiro citado,

a geografia literária, como preferem alguns autores, tem como meta principal:

Um atlas do romance. Por trás dessas palavras, encontra-se uma ideia muito simples: que a geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural "acontece", mas uma força ativa, que permeia o campo literário e molda-lo em profundidade. Fazendo a ligação explícita entre geografia e literatura, então - mapeá-lo: porque um mapa é exatamente isso, uma conexão visível nos permitirá ver algumas relações significativas que até agora nos escaparam (MORETTI, 1998, p. 03) 22.

Franco Moretti (1998) nesta menção vai ao encontro de O’Toole (1980), o

crítico italiano como o americano, defende o emprego de métodos formais na análise

do espaço ficcional, e explica que o mapeamento se faria necessário para fazer

literalmente uma “conexão visível”, capaz de ser vista, entre os conteúdos

imagéticos expressos pela linguagem no texto e os leitores ou críticos, coisa que só

poderia se levada a cabo, no caso da espacialidade, por meio de um modelo gráfico-

visual, isto é, por um mapa.

A cartografia literária, diferente da topologia, possui um método mais

sistemático, em consonância com a cartografia geográfica. A maior distinção de uma

21 Tradução livre, do original: Die Tradition der Literaturatlanten, deren erster bereits 1907 erschien

und auf dendeutschen Sprachraum beschränkt ist, zeigt dies auf eindrückliche Weise (Nagel 1907): Der zur Zeit recht populäre Atlas of Literature von Bradbury ist nach Epochen gegliedert und dort nach Schauplätzen (Bradbury 1996). In Kapitel sechs „The Modern World“ gibt es Unterkapitel zu Wien, Prag, Dublin, Paris, Bloomsbury und Berlin. Wohnorte, Wirkungsstätten und Treffpunkte von Schriftstellern sowie auch die Schauplätze ihrer Texte werden auf Karten abgebildet. Im Dictionary of Imaginary Places werden hingegen nur solche Schauplätze aufgezählt, die kein realweltliches Äquivalent haben und die in diesem Sinne imaginär sind (Manguel/Guadalupi 2000).

22

Tradução livre, do original: An atlas of the novel. Behind these words, lies a very simple idea: that geography is not an inert container, is not a box where cultural history 'happens', but an active force, that pervades the literary field and shapes it in depth. Making the connection between geography and literature explicit, then - mapping it: because a map is precisely that, a connection made visible- will allow us to see some significant relationships that have so far escaped us.

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29

para outra são as fontes, enquanto a geográfica lida com dados empíricos e

estáveis, a literária, parte de cartas já produzidas pela geografia e aplica as

informações presentes nas narrativas (desde os nomes de lugares até metragens de

percursos feitos por personagens) para gerar pontos aproximativos daquilo que é

citado com o espaço concreto. O resultado são plantas baixas que mapeiam o

campo de ação, as localidades ou os ambientes específicos de uma ou mais

narrativas. As cartas podem ser mais ou menos amplas de acordo com a escala

dimensional aplicada pelo analista, conforme se observa nos seguintes exemplos.

Figura 04- Mapa do espaço territorial do romance picaresco espanhol do

século XVI e XVII (MORETTI, 1996, 49) 23

23 Tradução livre:

___ Romance Picaresco

___ Dom Quixote

...... O Caminho de Santiago

No mapa demonstram-se os seguintes romances.

B- Francisco de Quevedo, O traficante LT- Anônimo, O Lazarillo de Tormes DQ- Miguel de Cervantes, Dom Quixote PJ- López de Ubeda, A pícara Justina

GA- Mateo Alemán, Gusmão de Alfarache RC- Miguel de Carvantes, Riconete e

Cortadillo

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30

Figura 05 – Mapa da encruzilhada das três milhas, do conto Nosso vilarejo da

escritora britânica Mary Mitford (MORETTI, 2005, p. 36)

No primeiro caso, o mapa elaborado por Moretti é mais simplificado e trata de

demarcar os percursos dos personagens dos principais romances picarescos

espanhóis dos séculos XVI e XVII, tomando por base as cidades e vilarejos citados

neste. Para fazer um comparativo entre outras referências, o critico delineia as

locações citadas no Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes e o

tradicional caminho de peregrinação de São Tiago de Compostela. O segundo

exemplo, é uma mapa mais detalhado (por conta da escala usada) e apresenta uma

localidade mencionada no conto Nosso vilarejo, o fato de tratar-se de um ponto de

pequena extensão, exigiu do crítico o contato com plantas mais específicas,

representando minúcias como a área do entorno, as regiões vizinhas, pontos de

referências, estradas, etc. Moretti reutiliza um mapa feito pelo historiador Thomas

Moule para o livro As cidades inglesas delineadas, cuja edição é contemporânea a

de Mary Mitford (1824).

Dentro da cartografia literária mais recente, tem-se esforçado para criar

metodologias precisas para a geração de mapas literários cada vez mais

sofisticados. A produção passa pela topologia na seleção e categorização dos dados

textuais e pelo uso de programas de computador que produzem cartas com

interfaces visuais (cores, gráficos e códigos) padronizadas. De modo geral, as

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31

modificações são de caráter gráfico, as cartas resultantes deste processo são

mapas mais detalhados e permitem a interação com os usuários, uma vez que são

digitais e disponíveis pela rede mundial de computadores.

Entretanto, no que trata do aspecto teórico, isto é, em que tal apuramento

gráfico contribui para o entendimento das obras literárias e das espacialidades

contidas nestas; isto continua a ser dúbio. O que leva certos autores como William

Benzon (2011) a considerem este tipo de modelo cartográfico exterior a crítica

literária, um elemento paraliterário, como também o são as gravuras e anexos não

produzidos pelo próprio autor de uma obra (cf. GENETTE, 1997).

Estabelecendo um comparativo entre a topologia e cartografia literárias,

observa-se que o seu escopo teórico é similar: reunir os elementos textuais

referentes à espacialidade, classificar tais elementos em categorias decalcadas do

espaço empírico e apresentá-los em modelos abstratos, sejam esquemáticos

(tabelas, figuras e gráficos) ou visuais (mapas ou figuras). Em ambos os casos, o

espaço é encarado de modo imediatista e isolado, ou sem autonomia. Nas

propostas não se identifica uma atenção ao conteúdo significativo da espacialidade,

nem de sua correlação para formação do discurso global da narrativa. As categorias

analíticas produzidas nesta perspectiva servem mais à identificação e classificação

de elementos pontuais das narrativas e contribuem parcamente para o entendimento

de como estes se particularizam de obra para obra, ou como a espacialidade se

modificou através das diferentes estéticas na história.

2.2.2 Modelo Psicológico

O modelo psicológico do espaço surge a partir da influência d’A Póetica do

Espaço (1978) do filósofo francês Gaston Bachelard. Esta obra é bastante relevante

por ter sido uma das primeiras a tratar com profundidade do espaço, rompendo com

um longo hiato da história da filosofia no que tange o reflexão sobre o espaço.

Bachelard aplica ao espaço uma análise fenomenológica, isto é, o pensador tenta

entender o espaço não partir de suas referências imediatas, mas da experiência

deste como uma existência. Em suma, não é uma investigação de caráter

metafísico, procurando determinar os pontos comuns a todas as manifestações de

espaço (essência do espaço), é sim, uma busca pela poética (no sentido grego de

Page 34: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

32

composição, feitura) da experiência particular da espacialidade. Bachelard assim

descreve o seu método:

Esta última observação define o nível da ontologia em que trabalhamos. Como tese geral, pensamos que tudo o que é especificamente humano no homem é logos. Não chegamos a meditar sobre uma região que estaria antes da linguagem. [...] Assim, a imagem poética, acontecimento do logos, é para nós inovadora. Não a tomamos mais como "objeto". Sentimos que a atitude "objetiva" do crítico sufoca a "repercussão", recusa, por princípio, a profundidade, de onde deve tomar seu ponto de partida o fenômeno poético primitivo. [...]. Admitindo uma imagem poética nova, experimentamos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que repetiremos para comunicar nosso entusiasmo. Considerada na transmissão de uma alma para outra, vê-se que uma imagem poética escapa às pesquisas de causalidade (BACHELARD, 1978, p. 188).

O filósofo francês inverte o foco comum da investigação do espaço, partindo

do sujeito para espaço. O principal escopo de sua pesquisa é identificar de que

maneira o sujeito localiza sua identidade no espaço, isto é, como o homem cria sua

existência na relação com os espaços habitados por este em sua vida:

[...] a novidade essencial da imagem poética é colocar o problema da criatividade do ser falante. Por essa criatividade, a consciência imaginante se descobre, muito simplesmente, mas com toda a pureza, como uma origem. Todo esse valor de origem de diversas imagens poéticas é o que deve interessar, num estudo da imaginação, a uma fenomenologia da imaginação poética (BACHELARD, 1978, p. 188).

Bachelard propõe que a oposição básica do sujeito com o espaço é a

percepção do espaço feliz, “as imagens do espaço feliz. Nossas pesquisas

mereceriam, sob essa orientação, o nome de topofilia. [...] o valor humano dos

espaços de posse, espaços proibidos a forças adversas, espaços amados”

(BACHELARD, 1978, p. 196), e a sensação do espaço hostil, “os espaços de

hostilidade são apenas evocados [...]. Esses espaços do ódio e do combate não

podem ser estudados senão referindo-se a matérias ardentes, às imagens de

apocalipse” (BACHELARD, 1978, p. 197).

A partir deste jogo de lugares agradáveis (tópicos) e desagradáveis tópicos, o

pensador francês elabora mais uma categoria topofílica hiperbólica, o espaço

utópico, caracterizado pelo sonho, imaginação e desejo de realização transcendental

do homem. Diferente das outras formas de espacialidade citadas, o lugar da utopia

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33

não se liga a qualquer materialidade objetiva, é um espaço mental, onde os limites

impostos pela matéria são dissolvidos. Bachelard exemplifica esta última condição

espacial como o sonho e a fantasia estimulada pela ficção. O pensador francês

ressalta ainda que por ser fundamentado pela imaginação individual, o espaço

utópico é lugar, por excelência, da consciência humana.

Nos dez capítulos de sua obra, Bachelard esquematiza aqueles que seriam

os arquétipos dos espaços emotivos do homem, a saber: I- A casa. Do porão ao

sótão. O sentido da cabana, II- Casa e universo, III- A gaveta. Os cofres e os

armários, IV- O ninho, V- A concha, VI- Os cantos, VII- A miniatura, VIII- A imensidão

íntima; IX- A dialética do exterior e do interior e X- A fenomenologia do redondo. Em

cada uma destas espacialidades, o pensador descreve as particularidades usando

critérios como abertura, fechamento, extensão e contiguidade, posteriormente

aplicando as oposições topofílicas antes descritas.

Apesar de Bachelard negar a natureza psicológica ou psicanalítica de seu

trabalho, inclusive criticando em alguns pontos dizendo que “O psicanalista pode

estudar bem a natureza humana dos poetas, mas não está preparado, pelo fato de

estagiar na região passional, para estudar as imagens poéticas em sua realidade

superior” (BACHELARD, 1978, p. 193). É muito evidente a aplicação do método

arquetípico desenvolvido pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung no livro Os

arquétipos e o inconsciente coletivo (JUNG, 2002), tanto na seleção de

macroestruturas de significação, quanto na criação de eixos temáticos de

explicação. Além disso, concorre para o entendimento da metodologia

fenomenológica de Bachelard como psicológica, a focalização do espaço enquanto

uma dimensão afetivo-emocional criada pela percepção do sujeito em sua

individualidade.

No que trata especificamente das inovações trazidas pelo método psicológico

para a análise do espaço de maneira geral esta se circunscreve ao questionamento

que Bachelard faz ao ideal geométrico. Para o pensador francês, o espaço puro

inexiste na realidade empírica, é o ser humano em sua subjetividade que traz a

significado para este, isolado do homem, a espacialidade é vazia. O que representa

um avanço considerável à inércia do modelo concretista.

No caso da crítica literária, as propostas de Bachelard foram determinantes

para ampliar o horizonte de entendimento da espacialidade ficcional, pois, o modelo

concretista de análise fixava-se na descrição de elementos visuais mais

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34

monumentais, reflexo dos cenários dos romances históricos novecentistas. As

tramas romanescas do século XIX, geralmente, se debruçavam em histórias que

relatavam acontecimentos históricos, que se desenrolavam nos grandes castelos,

mansões, campos de batalha ou praças públicas; o que imprimia a sua

espacialidade um foco nas grandes construções. Como o modelo crítico concretista

se desenvolveu com este tipo de ficção, outros tipos de espaços e lugares recebiam

pouca atenção dos especialistas. A Poética do Espaço inverte este paradigma ao

focar nos espaços mais íntimos da vida humana para desvendar-lhe os seus

contornos:

Inicialmente, como deve ser feito no caso de uma pesquisa sobre as imagens da intimidade, colocamos o problema da poética da casa. As perguntas são muitas: como aposentos secretos, aposentos desaparecidos se constituem em moradias para um passado inesquecível? Onde e como o repouso encontra situações privilegiadas? Como os refúgios efêmeros e os abrigos ocasionais recebem às vezes, de nossos devaneios íntimos, valores que não têm qualquer base objetiva? [...] Com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de integração psicológica. Nosso inconsciente está "alojado". Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das "casas", dos "aposentos", aprendemos a "morar" em nós mesmos. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós estamos nelas (BACHELARD, 1978, p. 196-197).

Esta proposta de entender a intimidade espacial foi assimilada pela crítica

literária com o objetivo de descrever uma estética literária surgida no início do século

XX, o nouveau roman. O nouveau roman trata-se de uma forma diferenciada de

relato romanesco, como se afirmou anteriormente, o romance clássico assumia

como tema principal o relato do drama da nação, seus sucessos e fracassos, era um

mote fortemente social, vinculado aos espaços públicos. Com o advento do nouveau

roman, as tramas romanescas começaram a abandonar alguns caracteres, que lhe

conferiam um caráter épico: há uma perda da linearidade narrativa, não existe a

necessidade de uma teleologia dos motes, o objeto da narrativa deixa de ser a

comunidade para tratar dos dramas individuais e a diegese passar a ser cada vez

mais interiorizada.

O emprego desta narrativa intimista trouxe a narrativa para espaços mais

cotidianos e comuns, espaços estes que não eram contemplados pela crítica

concretista novecentista. O modelo psicológico alargou o horizonte espacial da

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crítica literária, minimizando a aparente banalidade que o espaço interior costuma

causar à primeira vista. Nas palavras de Salvatore D’Onofrio (2001, p. 98): “O

espaço interior é o espaço subjetivo, do eu que fala, o espaço da enunciação”.

Tratando especificamente do modelo psicológico enquanto uma metodologia

crítica, observa-se que embora, este tenha trazido novidades para uma concepção

mais aberta e subjetiva do espaço, permanece o uso de classificações pré-

estabelecidas de análise (espaço tópico/atópico/utópico) e do emprego de

categorias de significação automatizada (os arquétipos espaciais). O modelo

psicológico funciona mais como um complemento da análise concretista, do que

realmente como uma proposta modificadora da visão mecanicista a qual a análise

do espaço ficcional estava atrelada; substituem-se categorias concretas por

categoria psicológicas, sem a preocupação com o conjunto e particularidade da

espacialidade de uma obra literária pra outra.

2.2.3 Modelo Gestalt-Cognitivo

A teoria gestaltista ou configuracionista é uma abordagem que procura

verificar a partir de que universais de percepção o ser humano constrói a sua noção

de ambientes externos e de realidades abstratas, como o tempo. Dentro desta

teoria, o investigador analisa os dados extraídos por certo indivíduo buscando

entender como este a partir das sensações estabelece redes de significação que

possibilitam alcançar uma consciência e conhecimento do meio em que se localiza.

Conforme esclarece Lannoy Dorin (1978, p.120):

A percepção é uma tomada de consciência das sensações e estas

são tipos simples de experiências, como já foi dito. Nas percepções

há, então, análises, associações e sínteses. Razão pela qual o

estudo da percepção requer primeiramente o conhecimento da

estrutura e funções dos órgãos de sentido e do sistema nervoso

central, porque, se entendermos que a percepção é sempre uma

interpretação pessoal de um acontecimento, temos que

entender como esse acontecimento chega aos centros nervosos

superiores. [...] Para os gestaltistas, devemos estudar os

objetos pela sua forma, dado que matéria e forma não se

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36

dissociam num ser (DORIN, 1978, p. 120, sem grifos no

original).

A teoria gestaltista propõe que o mundo não é percebido da mesma por todos

os indivíduos, a todo o momento suas disposições pessoais, emocionais e sociais

agem para demarcar uma impressão naquilo que o sujeito apreende do mundo.

Deste modo, é impossível existir um mundo puro e livre de interpretações, pois

mesmo, o olhar que é considerado o mais objetivo dos sentidos está sujeito à

particularização do ponto de vista.

Os gestaltistas creem na existência de uma tendência (inata ou desenvolvida)

para percebermos conjuntos e não flashes desconexos da realidade. A mente

humana, em seu sentido cognitivo, criaria sínteses através dos seguintes

mecanismos de interpretação: 1- similaridade, a tendência a perceber elementos

com formas, tamanhos ou características aparentadas; 2- proximidade- tendência

para agrupar coisas semelhantes, formando conjuntos mais complexos; 3-

continuidade, tendência que permite dar continuidade ou ordem a alguns elementos;

4- totalidade, uma tendência da mente humana para observar as figuras como um

todo, completando, inclusive as lacunas de um objeto para que este alcance uma

significação completa.

Partindo destas tendências de interpretação, a percepção do espaço poderia

ser resumida na seguinte série de oposições qualificativas:

Fig. 06 – Esquema do sistema da espacialidade (ECO, 1984, p. 41)

Conforme vemos nesta figura inspirada em Algirdas Julien Greimas (1976) se

elaboram os níveis semânticos de descrição espacial de modo a criar categorias

unificantes do espaço. Quaisquer fenômenos espaciais poderiam ser reduzidos à

soma destes traços distintivos.

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37

O modelo gestalt-cognitivo está presente na crítica literária como uma

consequência do modelo concretista. Para não se limitar análise à simples paráfrase

e enumeração das espacialidades contidas numa obra, alguns estudiosos

(D’ONOFRIO, 2001; MITCHELL, 1980) ressaltam o caráter sensorial (quando um

dos sentidos seria mais aguçado que outros numa determinada narrativa) ou a

predominância de uma destas oposições em uma trama. A presente abordagem,

bem como as anteriores, que lhe são complementares reforça o princípio de que o

espaço é uma entidade anacrônica, redutível a categorias pré-estabelecidas.

2.3 UM EXAME CRÍTICO DAS ABORDAGENS TEÓRICAS DO ESPAÇO

FICCIONAL

Depois de fazer um panorama das principais propostas de análise espacial na

narratologia, fica a impressão de que estas não possuem uma correlação intrínseca,

por ofertarem resultados tão diversos mesmo tendo o mesmo objeto de análise. A

diferença é significativa o suficiente para levar a pensar que poderiam não estar

tratando da mesma coisa. E tal suspeita não é de todo injustificada, cada um dos

modelos apresentados na teoria da literatura para o espaço tem um escopo

particular, que à primeira vista passam como sendo o mesmo. Para tornar mais claro

este fenômeno primeiro há de entender-se que o espaço literário se manifesta em

níveis existenciais, conforme descreve Louis Hébert (2012):

(a) o espaço da produção (espace de la production), associado ao espaço

contextual, isto é onde a obra surgiu, o espaço habitado pelo autor e seus

contemporâneos.

(b) o espaço da recepção (espace de la réception), espaço onde ocorre a recepção

das obras literárias, onde estas são lidas e valoradas no contínuo histórico.

(c) o espaço tematizado (espace thématisé) na produção, isto é, o espaço que se

encontra representado na própria obra literária através do discurso.

Destes três, aquele que está presente imediatamente na narrativa e é

apreensível por meio desta é o espaço tematizado. Portanto, é a ele que a teoria

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38

literária se dedica, os demais fazem parte das dimensões da prática literária e são

domínio da sociologia da literatura (no caso de ‘a’) e da história literária (no caso de

‘b’). Neste esquema fica claro, que o espaço empírico não é terreno da teoria

literária, pois o que se presentifica na obra literária não é o concreto, mas sua

representação.

2.3.1 O estatuto ontológico do espaço na narrativa

O mundo concreto, isto é as coisas e a dimensão cronotópica, não está

decalcado na literatura, mas sim, representado através da linguagem (discurso). A

linguagem poética procura fazer aproximações do mundo por meio das descrições.

Todavia, nem só de aproximações se faz o relato ficcional, muitos elementos

concretos são propositalmente diferenciados na narrativa, sem que isso signifique

uma contradição. Pois, a coerência do texto literário possui certo grau de autonomia

com o seu referente, a polissemia é um traço inerente, e não um fenômeno

ocasional como acontece com a linguagem em seu regime utilitário. A relação entre

o concreto e o ficcional é sui generis e complexa, conforme descreve Roman

Ingarden (1980):

As objetividades apresentadas na obra literária são atividades pura e derivadamente intencionais projectadas unidades de significação. [...] os correlatos puramente intencionais das frases conexas podem entrar em múltiplas relações e conexões. [...] os objectos apresentados não estão isolados e estranhos uns aos outros, mas reúnem-se graças a múltiplas conexões ontológicas numa esfera una de ser (INGARDEN, 1980, p. 239-240).

O filósofo polonês ressalta em sua exposição que uma das principais

particularidades do discurso literário é que as objetividades são intecionais, isto é, os

elementos concretos representados neste, são interligados pela força significativa de

sua narração. Todos componentes que integram a obra literária são unidos por meio

de sua significação global e não apresentam, como na realidade empírica, um limite

unívoco. Mesmo em se tratando de elementos cuja referência concreta é limitada:

[As partes da obra literária] constituem [...] um sector de um mundo não definido nos seus pormenores mas determinado no que respeita ao seu tipo de ser ser, sector esse que nunca fica rigorosamente

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limitado nos seus limites. Tudo se passa como se um cone de luz iluminasse parte de uma região, submergindo-se o resto numa névoa indefinida sem deixar de existir neste seu estado indeterminado (INGARDEN, 1980, p. 240).

Explica-se deste modo, um aspecto sobre o qual o modelo concretista se vale

para definir o espaço literário como cópia imprecisa do concreto. Na verdade, a

variação dos níveis de descritividade espacial no texto literário, não é uma limitação

e sim efeito da intencionalidade narrativa. Quando a diegese parece mergulhar um

de seus traços na penumbra, tal não representa uma contiguidade a ser sanada pelo

uso de esquemas, mas traço da possibilidade de resignificação inerente do discurso

literário. A narrativa literária tem, portanto, uma significação própria que não passa

pelo crivo do concreto, não lhe é superior ou inferior, mas uma forma própria de

existência.

Em tratando especificamente do espaço tal noção é extremamente relevante,

pois apesar da ficção evocar através de nomes (toponímia, prosopografia, etc.)

espaços que nos são reconhecidos como concretos, sua intenção com essa

atividade não é o de dizer que eles estejam ali tal qual se encontram na realidade e

sim suprir a narrativa de pontos de referência que possibilitem ao receptor

reconstituir imaginativamente o contexto ficcional que esta propõe: “Quando numa

obra literária se trata de objectos que são “reais” pelo seu conteúdo e se pretende

conservar o seu tipo de realidade, então eles devem ser apresentados como

temporais e existentes no espaço” (INGARDEN, 1980, p. 244).

Conforme ressalta o crítico polonês, sempre existe uma intencionalidade

semântica. Quando uma obra literária decide incluir em seu bojo narrativo uma

paisagem, um monumento reconhecido pelo leitor; tal conhecimento condiciona que

esta mantenha um mínimo de elementos que permitam a associação entre o espaço

representado e o espaço evocado. Todavia, este vínculo, por assim dizer realista

não é obrigatório e tem uma relação muito próxima com a estética literária de cada

momento. Assim, em estéticas mais descritivistas, como as prosas romântico-

realistas este processo é mais empregado, enquanto as simbolista-surrealistas isto

acontece como menos frequência, sendo até mesmo substituído pela alegoria. Para

exemplificar este fenômeno, Ingarden (1980) apresenta uma descrição espacial da

primeira cena do 1° ato de Emilia Galotti de Lessing:

Page 42: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

40

Nela conhecemos um príncipe no seu gabinete a dar despacho a várias petições. Estas petições já nos indicam objectividades que se encontram fora da sala que vemos. Mas esta sala é de antemão apreendida como parte do palácio do príncipe. O que nos é apresentado não termina nas paredes do gabinete mas estende-se também às restantes salas do palácio, à cidade etc., apesar de tudo isto não ser dado directamente (INGARDEN, 1980, p. 240).

Fica demonstrada outra distinção fundamental entre o espaço concreto e o

espaço tematizado, este último não apresenta as contingências do primeiro. Apesar

de a descrição ofertar certos limites, tais fronteiras não são obrigatórias nem

determinantes, o receptor tem plena liberdade de ultrapassar o que está

imediatamente expresso no texto e construir analogias que lhe ofertem uma visão

global da espacialidade narrativa. Uma sala dentro da ficção tem paredes, mas não

se encontra aprisionada a esta contiguidade, ela mantêm uma continuidade

semântica com o todo da obra, e pode representar mais que apenas uma sala. A

identificação destes traços direciona para as idiossincrasias do espaço narrativo:

O espaço [...] aqui [na narrativa] não é o espaço real e único do mundo nem tão-pouco o “espaço de orientação” [...]. Por outro lado, não é o espaço geométrico, homogêneo, ideal, a pura multiplicidade tridimensional dos pontos. [...]. É, pelo contrário – por assim dizer –, um espaço próprio. [...] Os espaços explícita e realmente apresentados são, neste caso, separados por uma espécie de lacunas e ostentam, por assim dizer, lugares de indeterminação. Todas estas situações são absolutamente impossíveis num espaço real. Deparamos, assim, com uma particularidade geral. [...] Nunca é permitido identificá-los com o objeto da representação. Menos ainda [...] derivadamente pelas significações das palavras [...] e com algo que constitui componente real de vivências psíquicas concretas. [...] O espaço em que ele se encontra é o espaço apresentado. Na verdade, aquilo nele existe [tem] o caráter de algo representado e interpretado perante alguém (INGARDEN, 1980, p. 244-246, sem grifos no original).

Conforme descreve Ingarden (1980) o espaço narrativo não é outra coisa que

não ele próprio. Ele não se ancora no espaço concreto para existir, mas se vale

deste para constituir referências reconhecíveis pelo receptor; a ligação entre o real e

o ficcional é relativa. Todavia, mesmo não sendo concreto, o espaço ficcional tem

uma existência relativamente autônoma e se organiza em níveis significativos que

lhe oferecem um funcionamento particular, mas não arbitrário.

Page 43: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

41

O espaço ficcional se manifesta através da linguagem, em sentido global

(discurso) e não pontual (palavras), deste modo não se pode reduzir a espacialidade

narrativa ao conjunto dos substantivos ou locuções que expressam lugares ou

objetos, pois, isolados da obra tais ocorrências não são significativos, perdendo o

seu contexto narrativo, se tornando meros elementos linguísticos. Só é possível

entender a espacialidade de uma obra se cada um de seus componentes é

apreendido com base no sentido particular que tal elemento representa para cada

obra e, ainda, nas relações significativas mantidas com outros elementos.

A espacialidade, como qualquer outro aspecto do texto literário não pode ser

reduzido a um padrão único, que é continuamente repetido sem alteração através

dos tempos. A linguagem literária, diferente da linguagem cotidiana se baseia na

diferença, não existe necessariamente a existência de regras pré-estabelecidas.

Cada narrativa tem um arranjo particular que lhe distingue de outras, por sua vez,

essa particularidade é uma atualização da própria língua literária, que lhe assimila e

lhe revigora.

Este aspecto de contínua atualização do sistema espacial na narrativa exige

que o analista não se prenda apenas à formalização. Pois esse processo analítico

faz uso de generalizações que em longo prazo não encontram justificativa

hermenêutica. Por exemplo, digamos que um crítico faça um esquema algébrico de

um jardim num romance de Jane Austen e na narrativa bíblica do Gênesis. Em

ambos encontraríamos elementos discretos que fazem parte da espacialidade

reconhecida como um jardim: árvores, ervas, flores etc. É óbvio que haveria uma

variação no número destes elementos e até uma maior ou menor descritividade

entre as narrativas (mencionando diferentes espécies de cada tipo de planta).

Mas ao final do levantamento o que importaria seria cada uma das classes e

não o valor destas para a narrativa. Assim, nos resultados uma árvore seria tratada

como a mesma coisa nas duas obras. O que tornaria a interpretação inverossímil,

pois, a árvore no Gênesis tem uma significação que extrapola o sentido imediato e a

sua referência concreta, não se trata apenas de um objeto do reino biológico das

plantas, esta é signo da ancestralidade, da efêmera condição humana e da

teodicéia, ou seja, da eterna busca do homem por suas origens.

Page 44: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

42

2.3.2 O Espaço Narrativo enquanto uma Dimensão Semiótica

As propostas feitas por Roman Ingarden (1980) direcionam para o

reconhecimento do espaço narrativo como um fenômeno de pura significação. Ou

seja, de que a espacialidade na ficção é um elemento semiótico. É evidente que

crítico fenomenologista não alcança esta conclusão por conta da influência

husserliana que preferia tratar o sentido em termos de lógica e não de uma disciplina

a parte que dedicasse ao estudo dos signos. Mas fica evidente no modelo do

pensador polaco que a narrativa literária tem um regime de significação próprio,

diferente do que verifica na realidade concreta, condição que lhe coloca no rol das

manifestações sígnicas.

O entendimento do texto literário enquanto uma entidade semiótica não é

novo, desde o formalismo russo, passando pelo estruturalismo tcheco e francês, os

estudiosos ressaltam o caráter sígnico da literatura. Em sendo composto por signos,

a linguagem literária tem 03 níveis de representação, conforme o modelo de Ogden

& Richards (1970):

referência

símbolo referente

Figura 07- modelo sígnico de Ogden-Richards (OGDEN & RICHARDS, 1970,

p. 11)

O signo é nas palavras de Jan Mukařovsky “uma realidade sensível cuja

função é a de evocar uma realidade, à qual se refere” (MUKAŘOVSKY, 1978, p.

133). Ou seja, o signo trata-se de uma materialidade (visual, sonora ou gestual) que

faz referência a um dado que não lhe é imediatamente atribuível. O elemento básico

da condição de signo é evocar algo que não está presente em si mesmo, apontar

para uma realidade que não é a sua própria materialidade. Assim, a palavra

“cadeira” é um signo, pois, em sua facticidade esta é apenas uma sequência de

Page 45: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

43

sons (letras, no caso da escrita), que se unidos a uma significação particular passa a

evocar o objeto que nos é reconhecível.

O signo, portanto é a união de três instâncias: uma materialidade apreensível

pelos sentidos, o símbolo (ou significante); uma significação que irá ser ligada a

essa materialidade, a referência (ou significado) e a realidade evocada pelo ato

significativo, o referente. Diferente do que se possa imaginar, o referente não é

necessariamente um objeto concreto, mas o objeto da significação. No caso, da

palavra amor, o referente não se trata de uma entidade empírica, mas de um

conjunto de evidências comportamentais ou emocionais que são reconhecidas

através de noções reconhecidas num certo contexto.

Partindo da pressuposição do espaço narrativo enquanto uma semiose,

alguns aspectos metodológicos das abordagens explanadas ao início deste capítulo

se delineiam com mais clareza. A saber: quando a abordagem concretista da

espacialidade ficcional se dedica ao escopo de reconstituir com mapas ou esquemas

o espaço narrativo, o que está fazendo, de fato é buscar o nível referencial do signo

literário.

2.3.3 Crítica ao Modelo Concretista

Da citada constatação surge uma controvérsia que não se resolve dentro do

modelo, o tratamento dispensado por O’Toole (1980) e Zoran (1984) equipara a

linguagem literária à língua em sua dimensão pragmática, o que lhes permitem

reduzir a expressão da espacialidade em termos discretos. Entretanto, este

procedimento, ignora traços da dinâmica do discurso literário. A linguagem do

cotidiano é empregada em contextos determinados de uso que se localizam num

contexto específico (um momento demarcado no tempo e no espaço, com uma dada

intenção comunicativa), isto lhe impõe o reconhecimento referencial claro e definido

para que cada palavra assuma nesta situação uma significação inteligível por dois

(ou mais) interlocutores, para que a comunicação de decorra sem ruídos.

O significado tem na circunstância demonstrada uma estabilização

condicionada pelo ambiente concreto e referencial. Se uma pessoa diz a outra “pode

sentar na cadeira, ela está desocupada”, cada termo realmente invoca um traço

imediatamente observável na realidade contextual. Neste caso, é plenamente

aceitável que a análise da significação possa ser dada palavra a palavra. No entanto

Page 46: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

44

se a mesma frase for encontrada numa narrativa ficcional, tal não se verifica, pois a

referência do texto literário se encontra numa realidade que não é exatamente a

empírica, mas o conjunto das imagens significativas estimuladas pelo seu conjunto,

incluindo as alterações intencionais do real. Associar a espacialidade de um texto ao

conjunto das palavras que expressam lugares e suas respectivas referências

concretas é um procedimento limitado, visto que só dá conta de uma pequena parte

deste fenômeno.

Mais uma vez retomando o que Ingarden (1980) esclareceu acima, o que o

discurso literário representa não coincide com o que está expresso pelas palavras,

nem tão-pouco os pontos de referência que este absorve do mundo empírico. A

base da representação literária é a reconstrução, a partir do momento em que a

palavra e os elementos do concreto adentram uma narrativa ficcional seus contornos

cindem e passam a integrar uma estrutura determinada pela motivação e

significação próprias. No texto literário os elementos assumem significações de

acordo com as múltiplas funções que estes possam ter em diferentes níveis de

organização textual, narrativa e estética. Deste modo, nem sempre o sentido de uma

palavra numa obra coincidirá com o sentido mais recorrente desta na comunicação

cotidiana, sendo possível inclusive a total inversão desta significação imediata, como

no caso da ironia ou da alegoria.

2.3.4 Crítica ao Modelo Psicológico e Gestalt-Cognitivo

Outro importante ponto que o modelo semiótico da espacialidade elucida é a

denominada análise psicológica da espacialidade, segundo ela o espaço está

condicionado pelas relações emocionais do narrador e dos personagens. No sistema

de Gaston Bachelard (1978) esta marcação é estabelecida através da oposição

entre o local agradável (tópico) e o local desagradável (atópico). O que fica em

suspenso nesta classificação é explicar o que esta possui de psicológica, e o que tal

informação teria de relevante para a análise da espacialidade ficcional. Ao mesmo

tempo se uniriam a tal questionamento as categorias espaciais propostas pelo

filósofo francês como base da percepção psicológica: o lar, casa, ninho, mundo,

cantos; universo e imensidão íntima.

Para responder esta questão deve ficar claro que para que existir uma

verdadeira análise psicológica é necessário que exista uma pessoa de carne osso,

Page 47: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

45

cujo comportamento forneceria dados para identificar os processos psicanalíticos

(do inconsciente) que estariam subjacentes a este. Nas obras literárias tal evento

não se verifica, já que não há seres concretos na narrativa dos quais a mente

poderia ser analisada. A obra literária é um fenômeno cuja matéria é a linguagem,

em seu sentido estrito (sistema linguístico) e amplo (discurso). Deste modo, o

fenômeno ao qual Bachelard (1978) se referia como “psicológico” trata-se de um

dado puramente linguístico, a subjetividade da linguagem, mal conhecido à época

em que o filósofo escreveu, mas que hoje é terreno dos estudos de linguagem.

A linguagem não é um elemento puro, todo ato comunicativo está envolvido

numa intenção comunicativa. Dentro da subjetividade linguística, o sujeito pode

registrar a sua impressão positiva ou negativa sobre um estado de coisas. Num

exemplo bem simples: “infelizmente, a comida não estava pronta quando cheguei”, o

indivíduo expressa seu descontentamento com uma circunstância inoportuna (por

meio do advérbio felizmente). Este fenômeno é denominado modalização apreciativa

(GREIMAS, 1976), e pode ser encontrado em diferentes níveis discursivos. O mais

importante no exemplo e na constatação teórica, é que em ambos não se lida com

uma consciência particular ou ao estado emocional de um indivíduo qualquer. A

impressão de descontentamento está presente na própria linguagem e é

compreendida pelo seu próprio conteúdo.

A noção de um ambiente agradável ou hostil numa determinada narrativa

segue este mesmo raciocínio, as referências que são reconhecidas como

prazerosas ou desagradáveis estimulam nos leitores esta sensação. Não se trata,

portanto, de uma análise psicológica ou psicanalítica como presume Bachelard, mas

de uma análise semântica do conteúdo textual.

Noutra direção, o emprego dos arquétipos espaciais bachelardianos, é

igualmente uma análise semântica, a associação de categorias temáticas

organizadas em níveis é matéria da análise lexical, e se assemelha ao esquema

topológico de Curtius citado acima (substituindo-se apenas as categorias).

Ao mesmo modo, os universais propostos pela análise gestaltiva-cognitiva. É

questionável até que ponto classificar o espaço de uma obra literária sejam em

categorias matemáticas, físicas, psicológicas ou cognitivas auxilia na geração de

modelos explicativos para a narrativa ficcional. Deve-se refletir se o uso dos modelos

consagrados na tradição da crítica do espaço ficcional encontra seu limite.

Page 48: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

46

2.3.5 Crítica dos Pontos em Comum dos Três Modelos

Uma análise crítica das metodologias de análise do espaço ficcional

apresentadas até aqui recaem numa assunção de difícil justificativa em se tratando

de textos literários, partir da pressuposição de que alguma parcela deste é o real

(concreto) ou reflexo imediato deste. Todavia esta confusão é consequência de uma

propriedade do texto literário que Roland Barthes (1968) denominou efeito de real.

Em gêneros literários cujo foco é a narrativa de acontecimentos, como o

romance, boa parte de seu texto é constituído por sequências de descrição. A

descrição é um elemento crucial para construção do universo temporal e do universo

espacial sugerido pela narrativa. Toda imagem do mundo ficcional (personagens,

objetos, tempo, espaço e eventos) é modelada através da informação fornecida

pelas descrições. Nas palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1999):

[...] a descrição é um elemento textual privilegiado de que o narrador dispõe para produzir o "efeito de real" [...] e por isso mesmo os indícios e, sobretudo as informações da diegese se encontram com tanta freqüência e com tanta relevância nas descrições [...]. Esta função manifesta-se quer no retrato das personagens — a prosopografia, na terminologia da antiga retórica —, quer na caracterização do espaço social — um espaço indissociável da temporalidade histórica —, quer na pintura do espaço telúrico e geográfico — a topografia, na terminologia antes mencionada —, em geral representado nas suas conexões com o espaço social e concebido como um factor que condiciona ou determina os estados e as acções das personagens (SILVA, 1999, p. 470).

Deve-se ressalvar, que este efeito de real, esta de aparência de concretude é

intencional e está diretamente conectada com o próprio universo referencial da

linguagem literária. Esta realidade da literatura não tenta copiar ou substituir a

realidade concreta, mas ressignificá-la de diferentes modos. Deste modo, é um

esforço controverso fazer que algum ponto da narrativa ficcional seja o reflexo fiel do

empírico, conforme afirma Silva (1999):

Se cometem um erro grosseiro os que admitem, ou postulam, uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, atribuindo, portanto ao discurso literário o funcionamento referencial

que se verifica noutros tipos de discurso (SILVA, 1999, p. 644).

Page 49: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

47

Apesar de se diferenciarem em alguns particulares, os modelos apresentados

convergem para a assunção do espaço ficcional como elemento definido e fixo, seja

em sua imediatez linguística (palavras) ou em sua pretensa imediatez referencial

(espaços concretos). Há uma correlação automatizada entre o signo e o real, como

se a significação do espaço se trata de um dado unívoco.

Tal fenômeno não é ocasional, como todo discurso, a teoria do espaço

ficcional se alicerça em dois fatores principais: a cosmovisão (weltanschauung) de

um dado momento sócio-histórico e a representação simbólica de certo estado de

coisas. Entender uma teoria não passa apenas pelo reconhecimento de seus

pressupostos, como esta fosse um construto afastado do mundo.

A análise deste paradigma, o qual denominaremos descrivista-classificatório

se baseia na ideia de que o signo é uma realidade concreta, que garante uma

homogeneidade da significação. Esta ideia do signo enquanto uma entidade

autônoma tem sua origem na concepção saussuriana da língua, conforme o

esquema:

Figura 08 – Esquema saussuriano da relação entre significado e significante

no signo linguístico (SAUSSURE, 2008, p. 81; ECO, 1984, p. 08)

No modelo semiótico, a língua está composta por unidades menores, os

signos. Cada um destes signos subdivide-se em dois planos: o significado (expresso

no esquema pelo desenho da árvore) e o significante, uma imagem mental dos sons

contidos num determinado vocábulo de uma língua (expresso no esquema pela

palavra arbre). Ferdinand de Saussure (2008) ressalta que é traço inerente ao signo

Page 50: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

48

a arbitrariedade do significante, não existe relação direta entre o número e tipo de

sons que o compõem e o significado evocado por este.

A arbitrariedade a qual o pensador faz referência atém-se exclusivamente ao

seguinte: “Assim, a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à

seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada

igualmente bem por outra seqüência” (SAUSSURE, 1998, p. 81-82). Deste modo,

mantêm-se a relação de espelhismo entre a palavra e coisa (sendo na língua

substituída pelo significado).

O procedimento teórico apontado por esta concepção dá base para entender

o significado com algo imediato e autônomo, pois ao deslocar a significação para a

esfera ideal do signo ou da mente, esta se isenta da possibilidade de ser variável e

polissêmica. A proposta de Saussure (2008) esforça para impor um regime

interpretativo que permitisse ao estudioso obter dados segmentáveis e classificáveis

em categorias universalmente perceptíveis em quaisquer línguas. Para alcançar esta

estabilização metodológica foi indispensável pensar a sua representação como um

sistema imune à interferência da vivência concreta dos falantes e das mudanças

sociais:

[...] a própria arbitrariedade do signo põe a língua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificá-la. [...] A massa, ainda que fosse mais consciente do que é, não poderia discuti-la. [...] a língua não é completamente arbitrária e onde impera uma razão relativa, é também o ponto onde avulta a incompetência da massa para transformá-la. Pois tal sistema é um mecanismo complexo; só se pode compreendê-lo pela reflexão; mesmo aqueles que dele fazem uso cotidiano, ignoram-no profundamente. [...] A língua, de todas as instituições sociais, é a que oferece menos oportunidades às iniciativas. A língua forma um todo com a vida da massa social e esta, sendo naturalmente inerte, aparece antes de tudo como um fator de conservação. [...] Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário (SAUSSURE, 2008, p. 87-88, sem grifos no original).

O signo ao modo que defendia Saussure é uma entidade hegemônica,

superior às atribulações do real. O signo é todo razão, lógica e autonomia. A língua

constituída por este elemento é em sua complexidade incompreensível pelos que

fazem uso dela. Pois, a língua só é acessível àqueles seres dotados de métodos

privilegiados de “reflexão”, nomeados pelo próprio linguista genebrino:

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49

“especialistas, gramáticos, lógicos, etc.” (SAUSSURE, 2008, p. 88). O sistema da

língua tem por função assegurar a sua inércia, para que esta não venha ser

contaminada pelos movimentos da “massa”.

Neste particular, o uso do termo “massa” assume um papel central. Saussure

o qualifica por adjetivos pouco positivos, no enunciado este é descrito como

“inconsciente”, “incapaz”, “ignorante”; se opondo à complexidade que é atribuída à

língua. Saussure demonstra um grande esforço por colocar a língua num alto nível

de abstração, chegando a insinuar um completo desligamento entre língua e

sociedade.

Não por acaso, Umberto Eco (1984) interpreta este mister saussuriano como

uma revitalização da doutrina das ideias de Platão (PLATÂO, 2003). Como o filósofo

grego, Saussure não acreditando nos dados imediatos do seu objeto (a vivência

concreta da língua na realidade cotidiana entre seus falantes), cria uma realidade

ideal (o signo linguístico, a imagem acústica) só acessível aos iniciados (linguistas).

A partir desta realidade considerada mais “verdadeira” (cf. SAUSSURE, 2008, p. 07)

emanariam os dados legítimos e dignos de estudo. Sobre este particular assevera

Eco evocando o esquema saussuriano para o signo “árvore”:

O que é essa árvore? Um desenho? Neste caso é outro signifiant. É alusão ao fato de que em nossa mente se delineia, ao ouvirmos a palavra “árvore”, a imagem (Peirce diria o “ícone mental” de uma árvore)? [...] Essa árvore poderia ser também uma idéia hiperurânia de tipo platônico: há uma zona, além da rota dos skylabs, na qual existe a arboreidade, a eqüinidade, etcétera (ECO, 1984, p. 08).

Com um comentário sarcástico, o semioticista italiano ressalta uma inversão

inerente a esta percepção formalista de pensamento. Num primeiro momento, a

teoria constrói categorias baseadas em referência concretas com a proposta de

explicar a realidade. Entretanto o uso compulsivo de formalizações leva a um

instante em que se passa gerar categorias não de fenômenos observados, mas de

categorias pré-estabelecidas. Gerando uma análise que não é mais capaz de

observar as diferenças que constituem o empírico, se satisfazendo com apenas com

os conceitos legados pela tradição. Chegado a este ponto, a modalidade teórica se

esgota em si mesma e passa a tratar seu objeto de modo limitado e reducionista. O

objeto é substituído por rótulos, nem sempre significativos para a interpretação.

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50

No caso do espaço ficcional isto é plenamente verificável, pois em nenhum

dos modelos citados até este momento (o concretista, o psicológico e o gestaltista-

cognitivo) há um esforço para romper com a contingência das classificações.

2.4 POR UM PARADIGMA (DES)CONSTRUTIVISTA DA ESPACIALIDADE

NARRATOLÓGICA

Como foi apresentada desde o início da presente reflexão, a análise do

espaço ficcional está atrelada a dois discursos hegemônicos surgidos no século XIX

e consolidados na primeira metade do século XX: (a) a ideia da representação

enquanto uma unidade definitiva, homogênea e original, que não está diretamente

relacionada ao contexto sócio-histórico. Desta percepção idealizada da realidade

surge a imagem de que os signos em sua condição abstrata organizam e explicam o

mundo. Assumindo tal abordagem, o estudioso torna-se uma figura privilegiada,

capaz de ordenar a existência através de categorias universalmente válidas. O

objeto da representação abandona sua natureza multirreferencial e formaliza-se. As

diferenças inerentes a qualquer fenômeno são entendidas com desvios de um

padrão pré-estabelecido e são uniformizadas para conferir aos resultados

(esquemas) uma aura de precisão atemporal. (b) uma concepção estática de

espacialidade, baseada em princípios já descritos acima quando da explicação do

modelo concretista (vide 1.2.1).

Para contrapor este paradigma, entendido como descritivista-classificatório

por se fixar mais à identificação e categorização arbitrária de dados isolados que na

formulação de interpretações baseadas no entendimento do conjunto e da

especificidade de cada obra. Faz-se necessário seguir na análise apontando as

limitações de alguns conceitos assumidos pela vertente e sugerindo caminhos

alternativos para reposicionar a análise do espaço ficcional. Tal virada espacial da

análise literária passa por dois momentos, a busca pelo reverso dos signos e a

dinamização do espaço.

2.4.1 Em Busca do Reverso dos Signos

Em todos os modelos apresentados pela crítica literária para o entendimento

do espaço ficcional se faz presente um imperativo, o de torná-lo uma entidade

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51

estática, autossignificativa e anacrônica. Adotá-los tal quais se encontram na

bibliografia levantada esgotaria a análise do espaço narrativo na estatística de

substantivos e na sua classificação. Para ultrapassar esta estagnação metodológica

é preciso desconstruir a ideia saussuriana de um signo diáfano e isolado na “torre de

marfim” da formalização. Contrapor o paradigma descritivista-classificatório da

espacialidade exige assumir o signo nos moldes das propostas Mikhail Bakhtin:

[O signo é] um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2006, p. 29).

Bakhtin (2006) vai de encontro a Saussure e propõe que os signos não são

elementos de uma realidade paralela ou ideal, mas fazem parte da vida humana,

tanto quanto os objetos concretos. O signo é veículo das ideias construídas pelo

homem, e só ganha sentido na relação direta entre homem, realidade e significação.

Fora de um contexto, o signo é apenas uma materialidade desprovida de justificativa

e de existência.

O pensador russo traz nesta mesma afirmativa algo de bastante caro ao

entendimento do espaço, diferente da perspectiva de Saussure que limitava o

caráter sígnico às palavras, Bakhtin compreende que o que torna algo signo é

impressão significativa que este mantém com a realidade. Deste modo, o espaço

enquanto um fato concreto também pode apresentar-se como um símbolo. Além

disto, Bakhtin ressalta dois caracteres completares da significação, o signo não

apenas reflete uma dada realidade como também a refrata. Isto o signo além de

apontar para uma realidade, carrega para ela uma significação que é representativa

e valorativa. Nesta medida, o signo jamais é neutro, conforme reitera o linguista

russo:

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se

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52

encontra,encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (BAKHTIN, 2006, p. 30).

Bakhtin questiona mais uma vez caráter de neutralidade do signo, se o

significado é construído com base na interação entre seres humanos, dotados de

particularidades, seria uma contradição acreditar que o signo pudesse ser isolado

desta rede comunicativa. O signo além de representar, ele assume uma posição

diante do seu objeto de representação, ele pode concordar com este, distorcê-lo

positivamente ou negativamente e até negá-lo. A atividade sígnica, portanto está

sempre envolvida por sistemas de valoração que lhe são inerentes e não

excepcionais. Os sujeitos a todo o momento produzem, alteram e substituem signos,

a prática semiótica é dinâmica e é condicionado pelas demandas simbólicas de cada

momento histórico. O semiótico é deste modo, um fato social:

A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada, [...], é socialmente dirigida. Antes de mais nada, ela é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela (BAKHTIN, 2006, p. 115-116).

A atividade semiótica está envolvida numa ação intencional, seja a de

informar, questionar, concordar, etc. Não existem signos imotivados, sem intenção

ou valor. É evidente que a capacidade refratária da realidade sígnica lhe permite

ocultar este caráter, mas isso não quer dizer que este traço inexista, e sim que está

implícito à enunciação.

A ideia de que o signo é capaz de se revestir de uma aparência de realidade

e de uniformidade, pode ser entendida como uma forma de hegemonia. Bakhtin

explica que a produção sígnica é contínua e multiforme, no entanto, nem todos os

signos são considerados oportunos por uma comunidade discursiva. Alguns têm

mais valia enquanto outros são estigmatizados, esse movimento ocorre pelo próprio

desdobramento das hierarquias sociais que acabam transferindo suas imagens

simbólicas para os signos produzidos nesta dinâmica. Quanto mais antigo e estável

é um signo mais ele está afinado ao poder tradicional de uma sociedade, pois para

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manter sua ordem agem as chamadas forças centrípetas do discurso, conforme

descreve o pensador russo:

Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação [...] das forças centrípetas [...] as variantes básicas [...] desenvolvem na corrente das forças centrípetas da vida verbo-ideológica que unifica e centraliza. [...] nas altas camadas sócio-ideológicas oficiais, resolve o problema da centralização cultural, social e política do mundo verbal-ideológico (BAKHTIN, 1998, p. 82-83).

As forças centrípetas do discurso tem a função, como bem ressaltou Bakhtin

vem das classes dominantes, como o objetivo de criar uma representação que apare

as arestas da diferença. Por meio de signos unificantes o discurso impõe sobre a

realidade uma aparência de centralidade cultural, social e política. Livrando a signo

do “conflito dos pontos de vista sócio-linguísticos, [...], do conflito intralinguístico das

vontades individuais ou das contradições lógicas” (BAKHTIN, 1998, p. 83).

Nesta mesma direção de por à prova a estabilidade dos signos Jacques

Derrida (1977) dá como exemplo a representação semiótica de “água”:

Figura 09- Os “nomes” da água (DERRIDA, 1977)

Em L'écriture et la différence, Derrida explica como uma palavra

aparentemente banal como “água” pode revelar um universo complexo que lhe

subjaz: A água é o elemento mais presente na realidade, apesar disso, sua

realidade concreta é tão múltipla que a cada esforço de limitá-la, essa se nos

escapa. Pois o gelo, também é água, mas é duro e limitado, ao passo que o vapor

nem visível nos é, e não deixa de ser água. Surge então a questão: alguns destes

referentes é menos ou mais água? Se sim ou não, a água é por si mesma

indefinível, e nem por isso deixa de ser menos real.

Para continuar a reflexão, Derrida propõe que pensemos como os

estruturalistas, e por um momento esqueçamos que o concreto existe, pois neste

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caos de referências tão variadas não é possível encontrar um conceito racional que

possa ser unívoco. Deste modo, enumeremos os signos que representam a água.

Aqui surge mais um problema, pois em cada língua temos um significante diferente,

qual deles poderia ser usado no conceito? A não ser que se empregasse outro

código, mais convencional, como a notação química H2O, mas aparece outro

problema, isso é igualmente questionável, pois como sabemos as notações são

arbitrárias, então o que num copo d’água o que é H, 2 e O; e no gelo e no vapor?

Mais uma vez diferenças demais e nenhuma homogeneidade para assegurar a

cientificidade do conceito.

O único caminho restante é sentido, deve haver algo de estável no sentido

que permita, enfim o conceito final da água. Bem para ter esta resposta enumere-se

o máximo de ocorrência na língua que tenham como base a água, aquele traço que

for repetido deve ser a identidade da água. Chuva, piscina, balde, gotas, correnteza,

rio, oceano etc., tudo isto tem relação com água, mas o que de comum entre tudo

isto?

A resposta é, de fato, nada, a não ser esta palavra “água” ou “H2O” que

acompanha o questionamento desde o início. Em ambas, operando o mesmo

processo a escritura. Conforme descreve Derrida a escritura é um processo

associado ao regime de verdade logocêntrico, isto é em que a palavra representa o

real. O processo de escritura logocêntrico inicia-se com os filósofos gregos se

autointitulando mestres da verdade (aletheia), verdade essa que passava

obrigatoriamente pela palavra (logos) dos pensadores autorizados. O pensador

francês demonstra esse fenômeno fazendo um panorama histórico desde Tales de

Mileto, passando pelos medievais, até chegar aos filósofos contemporâneos, dando

especial atenção aos estruturalistas, que àquela altura ocupam o primado do

pensamento francês. Derrida termina seu percurso ressaltando como o

estruturalismo, enquanto novo representante das filosofias totalizantes conseguia

reduzir o universo todo às suas categorias homogêneas:

Graças ao esquematismo e a uma espacialização mais ou menos declarada, que viaja em um campo mais livremente eliminadas as forças. Eliminadas todas suas forças, mesmo elas sendo a totalidade da forma e significado, então são reformuladas no sentido da forma, e a estrutura torna-se a unidade formal da forma e significado. Dir-se-á que esta neutralização pela forma é o ato do autor antes da crítica e, até certo ponto, pelo menos -, mas é isso, pois é - ele vai estar certo. Em todo caso, o projeto sugere que a totalidade é mais

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facilmente declarada hoje, e um tal projeto também escapa-se para as totalidades determinadas da história clássica. Por isso, propõe-se ultrapassar-lhes. Assim, o esquema e o contorno das estruturas aparecem melhor quando o conteúdo que é a energia viva de significado é neutralizado. Um pouco como a arquitetura de uma cidade desabitada ou queimada, reduzida a um esqueleto de uma catástrofe da natureza ou da arte. Cidade já não habitada ou simplesmente abandonada, mas sim assombrada pelo significado e a cultura. Esta obsessão que impede aqui de tornar-se natural em geral o modo de presença ou da ausência da própria coisa na linguagem pura. Linguagem pura que abrigaria a literatura pura, o objeto da crítica literária pura (DERRIDA, 1977, p. 13) 24.

Fica evidente nesta passagem do filósofo francês, uma pungente crítica ao

formalismo implantado pelo método estrutural no signo. O signo enquanto uma

realidade concreta de significação não é uma estrutura indefinidamente repetida na

história. Os vínculos entre significado e significante são instáveis, e estão sempre

sujeitos às flutuações contextuais do ser humano, a busca formalista por um

significante e um significado primeiros é uma ficção metafísica, que só se sustenta

na medida de romper propositalmente o substrato de onde estes surgem. A

significação, portanto, é uma dinâmica que não se deixa limitar pelo ideal purista de

alguns pensadores. Longe do jogo da significação não há signo, apenas vestígios de

uma existência abstrata.

Derrida propõe então um desafio necessário para romper com o idealismo

abstrato do formalismo, em primeiro lugar assumir que o significado não está

localizado em nenhum outro lugar que não no próprio ato de significar. As palavras e

as coisas não são dotadas de significação, emanando por si mesmas os seus

conceitos. O mundo só ganha significação na relação dos sujeitos com a busca

contínua pelo sentido. Não existe um sentido último, nem primeiro, só existe a

24

Tradução livre, do original: Grâce au schématisme et à une spatialisation plus ou moins avouée, on parcourt sur plan et plus librement le champ déserté de ses forces. Totalité désertée de ses forces, même si elle est totalité de la forme et du sens, car il s'agit alors du sens repensé dans la forme, et la structure est l'unité formelle de la forme et du sens. On dira que cette neutralisation par la forme est l'acte de l'auteur avant d'être celui du critique et dans une certaine mesure du moins — mais c'est de cette mesure qu'il s'agit —, on aura raison. En tout cas, le projet de penser la totalité est plus facilement déclaré aujourd'hui et un tel projet échappe aussi de lui-même aux totalités déterminées de l'histoire classique. Car il est projet de les excéder. Ainsi, le relief et le dessin des structures apparaissent mieux quand le contenu, qui est l'énergie vivante du sens, est neutralisé. Un peu comme l'architecture d'une ville inhabitée ou soufflée, réduite à son squelette par quelque catastrophe de la nature ou de l'art. Ville non plus habitée ni simplement délaissée mais hantée plutôt par le sens et la culture. Cette hantise qui l'empêche ici de redevenir nature est peut-être en général le mode de présence ou d'absence de la chose même au langage pur. Langage pur que voudrait abriter la littérature pure, objet de la critique littéraire pure.

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significação de um contexto particular, cuja essência só pode ser resgatada pela

reflexão da diferença. A reconstrução de um sentido é, nesta medida, uma

arqueologia onde um sujeito não pode presumir automaticamente uma significação

que lhe parece coincidir com aquilo que este deseja conceituar. Ele tem de

abandonar a sua posição inicial de portador do discurso (intérprete) e buscar na

incerteza da visão do outro (alteridade), a significação que se faz presente inclusive

na sua ausência.

A différance tal qual concebe Derrida é um revés à indiferença, ao absoluto, à

totalidade. A différance é, em termos filosóficos, uma abertura ontológica, o ser

deixa de ser regido por algo além dele (a essência) e torna-se sujeito de sua própria

existência. Nas palavras do filósofo:

[...] a différance não é uma essência, não sendo nada, não é a vida se está sendo determinado como ousia, presença, essência/ existência, substância ou matéria. Ela faz pensar a vida como um traço antes de determinar o ser como presença. Ela é a única condição para poder dizer que a vida é a morte, que a repetição e o além do princípio do prazer são originais e contingentes em sua origem aos quais transgride (DERRIDA, 1977, p. 302) 25.

O fechamento do sentido, ou seja, o conceito de alguma coisa só é

possibilitado pelo fim do jogo da significação. Fechamento este, que não é natural,

mas imposto pelas circunstâncias (um indivíduo não podendo levar a reflexão pelo

infinito, decide cindir o contínuo num ponto que lhe convêm) ou pela força do logos,

dos discursos de hegemonia.

Derrida (1977) indica nesta reflexão, que ao mesmo tempo atuam dois

princípios básicos na significação: a escritura, que procura estabilizar os discursos

sobre a realidade através da tradição, criando imagens que aparentam uniformidade

e homogeneidade; e a différance que se opõe a todas as imagens automatizadas,

propondo recategorizações que movimentam o sentido para um lugar não comum,

do qual emerge a diferença. Na Ordem do discurso, Michel Foucault (2002) ressalta

que além de uma questão sígnica, a tendência de homogeneização do sentido se

liga ao jogo do poder na sociedade:

25 Tradução livre, do original: [...] la différance n'étant pas une essence, n'étant rien, elle n'est pas la vie si

l'être est déterminé comme ousia, présence, essence / existence, substance ou sujet. Il faut penser la vie comme

trace avant de déterminer l'être comme présence. C'est la seule condition pour pouvoir dire que la vie est la mort,

que la répétition et l'au-delà du principe de plaisir sont originaires et congénitaux à cela même qu'ils

transgressent.

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[...] esta vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído (FOUCAULT, 2002, p.10).

Foucault alerta que a estabilidade do signo é uma estratégia ideológica,

disseminada das classes dominantes (simbólica e economicamente) e preservada

pelos mecanismos de controle social: a polícia, a escola, ciência, filosofia e estética

(literatura e demais artes). O filósofo francês afirma que o discurso sempre está

pelos interesses sociais, mesmo uma pintura ou um mapa é capaz de se posicionar

nesta dinâmica, mantendo ou subvertendo um sistema de valores.

2.4 DINAMIZANDO O ESPAÇO

O espaço é um traço tão inerente da organização social e da vida moderna

que pensá-la para além da imediatez torna-se um complexo esforço de reflexão.

Essa abordagem de espacialidade, por assim dizer, automatizada do espaço urbano

acaba por fixar sua configuração apenas ao caráter sensorial de sua paisagem.

Conforme afirma o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (1980):

Um ser humano percebe o mundo simultaneamente através de todos os seus sentidos. [...] Na sociedade moderna, o homem tem que confiar mais e mais na visão. Para ele, o espaço é limitado e estático, um quadro ou matriz para os objetos. Sem objetos e sem fronteiras, o espaço é vazio. E vazio porque não há nada para ver, embora possa estar cheio de vento (TUAN, 1980, p. 12-13).

Essa visão realista-materialista do espaço conduz para uma análise

reducionista da espacialidade, pois, cria a impressão de que tal fenômeno seria algo

per se, cuja apreensão estaria isenta de interpretações. O espaço, nessa

perspectiva, é somente um dado puro da realidade e para analisá-lo bastaria

constatar, através dos sentidos, seus elementos constitutivos dentro de categorias

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objetivas (extensão, altitude, relevo etc.). O pensador americano Edward W. Soja

(1990) assim descreve este processo:

Esta visão essencialmente física tem influenciado profundamente todas as formas de análise espacial. [...]. Isso inclusive tem tendido a imbuir todas as coisas espaciais de uma persistente sensação de primordialidade e composição física, de uma aura de objetividade, inevitabilidade e reificação (SOJA, 1990, p. 79) 26.

A espacialidade seria descrita da mesma maneira, não importando a época, o

contexto cultural ou o sujeito que lhe observasse. Entretanto, o próprio Tuan (1980)

questiona esse caráter de aparente transparência do espaço. Para ele a relação

com a espacialidade não pode ser entendida de forma anacrônica e

descontextualizada, pois, encontra-se continuamente modificada na relação entre

sujeito e lugar:

A superfície da terra é extremamente variada. Mesmo um conhecimento casual com sua geografia física e a abundância de formas de vida muito nos diz. Mas são mais variadas as maneiras como as pessoas percebem e avaliam essa superfície. Duas pessoas não veem a mesma realidade. Nem dois grupos sociais fazem exatamente a mesma avaliação do meio ambiente. A própria visão científica está ligada à cultura - uma possível perspectiva entre muitas (TUAN, 1980, p. 6).

Conforme esclarece o pensador chinês o espaço não fala por si mesmo, este

só ganha significado na sua relação com o ser humano, com a sua subjetividade,

cultura e contexto sócio-histórico. No mesmo sentido, Edward Said (2007) adota

similar posicionamento ao falar de uma entidade geográfica específica, o Oriente:

O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas [Oriente e Ocidente], portanto, sustentam-se e, em certa medida, refletem uma a outra (SAID, 2007, p. 31).

Destarte, a espacialidade não pode ser entendida como um elemento

anacrônico ou autossuficiente, mas, como uma intricada rede de materialidades

26 Tradução livre, do original: This essentially physical view of space has deeply influenced all forms

of spatial analysis. [...] It has also tended to imbue all spatial things with a lingering sense of primordiality and physical composition, an aura of objectivity, inevitability, and reification.

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concretas e representações simbólicas. O espaço não é apenas fato, é também uma

representação e uma construção discursiva localizada historicamente. Logo, caberia

ao analista do espaço não limitar-se a descrever os seus elementos visuais (what),

mas, também teria de constatar os elementos discursivos ligados a espacialidade

(how), reconstituindo as origens socio-históricas de ambos. Nas palavras de Soja

(1990):

É necessário começar a fazer uma possível e clara distinção entre espaço per se, espaço como um dado contextual e espaço criado pela organização e produção sociais. Partindo de uma perspectiva materialista, quer mecanicista ou dialética, o tempo e o espaço em sentido geral ou abstrato, representam uma forma objetiva de matéria. Tempo, espaço e matéria estão inextricavelmente conectados (SOJA, 1990, p. 79) 27.

2.4.1 Do Espaço Ideal ao Espaço Social

O espaço durante muito tempo foi considerado um dado puro da realidade

determinado por categorias indiferentes a sua experiência e a sua multiplicidade. O

trajeto percorrido até este ponto colocou em destaque que esta visão espacial conta

com uma extensa história e se encontra alicerçada por um determinado discurso,

que ultrapassa os limites da geografia enquanto ciência. Evidencia-se, conforme se

descreveu no tópico anterior, uma certa forma de entendimento do que vem a ser

representação (problema do signo e do discurso) e uma conjuntura interpretativa

(problema da percepção e da ciência).

Para discutir especificamente o segundo problema é importante refletir que

pressupostos epistemológicos fazem entender o espaço como um fenômeno

estático. Historicamente, a primeira disciplina a enunciar a inércia espacial, foi a

matemática, empregando a análise geométrica e tratando o espaço na sua medida

formal, consolidou um paradigma de que a definição universal de espaço é esta:

O espaço [...] é caracterizado como homogêneo [...], isótropo [...], contínuo e ilimitado.

27 Tradução livre, do original: It is necessary to begin by making as clear as possible the distinction

between space per se, space as a contextual given, and socially-based spatiality. From a materialistic perspective, whether mechanist or dialectical, time and space in the general and abstract sense represent the objective form of matter. Time, space and matter are inextricably connected.

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Estas propriedades são muito gerais, mas a geometria habitual adiciona as duas seguintes determinações: 1° tem três dimensões, isto é, com um ponto pode se traçar três retas perpendiculares umas às outras [...]; 2° é homoloidal, ou seja, podemos construir figuras semelhantes tem qualquer escala (LALANDE, 1997, p. 298) 28.

Esta definição matematizada do espaço vem sendo repetida desde a Grécia

como uma verdade atemporal. Quando uma pessoa é indagada sobre o que é

espaço, geralmente emprega quaisquer dos adjetivos da sentença e dá como

definido o espaço. Este comportamento encontra-se tão interiorizado ao ponto do

sujeito não ter nem mesmo de olhar em volta para verificar, se o espaço no qual este

se encontra é realmente limitado, homogêneo etc. Nas palavras de Henri Lefebvre:

O espaço! Há poucos anos esse termo não evocava nada a não ser um conceito geométrico, o de um meio vazio. Toda pessoa instruída logo o completava com um termo erudito, tal como “euclidiano”, ou “isotrópico”, ou “infinito”. O conceito de espaço dependia, geralmente se pensava,da matemática e tão-somente dessa ciência. O espaço social? Essas palavras causavam surpresas (LEFEBVRE, 2006, p.03).

Lefebvre (2006) ressalta que essa imediatez da compreensão espacial não se

limita ao senso comum, mesmo a filosofia contribuiu para estagnação da reflexão

sobre o espaço. Desde Aristóteles até René Descartes, o espaço foi colocado numa

medida transcendental, que se afina mais à metafísica que a uma experiência

concreta, o espaço era “portanto uma abstração: um recipiente sem conteúdo”

(LEFEBVRE, 2006, p.03):

Na filosofia? Com freqüência, o espaço era desdenhado, tratado como uma “categoria” entre outras (um “a priori”, diziam os kantianos: uma maneira de dispor os fenômenos sensíveis). Às vezes, era carregado de todas as ilusões e de todos os erros: desviando a interioridade de “si”, o desejo e a ação, para o exterior, portanto, a vida psicológica para fora e para o inerte, espedaçante e espedaçado (com e como a linguagem: Bergson).

28

Tradução livre, do original: L’espace [...] est caractérisé par ce fait qu'il est homogène [...], isotrope [...], continu et illimité. Ce sont là des propriétés très générales; mais la géométrie usuelle y ajoute les deux déterminations suivantes: 1° il a trois dimensions, c'est à dire que par un point on peut menertrois droites perpendiculaires entre elles, [...]; 2° il est homaloïdal, c'est à dire qu'on peut y construire des figures semblables a toute échelle.

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Depois das abordagens formais e filosóficas, o pensamento sobre o espaço

recebeu o incremento de propostas de diferentes disciplinas das humanidades,

surgiram assim a ideias de um espaço psicológico, sociológico etc. A variedade de

perspectivas não representava, todavia, o avanço na visão espacial, certos

preconceitos como a categorização e classificação continuavam a limitar a

percepção da espacialidade. O que variavam eram os termos empregados, mas no

fim “as concepções sobre o espaço estavam confusas, paradoxais, incompatíveis”

(LEFEBVRE, 2006, p.03):

Quanto às ciências que dele se ocupavam, elas o repartiam, o espaço se fragmentando segundo postulados metodológicos simplificados: o geográfico, o sociológico, o histórico etc. No melhor dos casos, o espaço passava por um meio vazio, recipiente indiferente ao conteúdo, mas definido segundo certos critérios inexprimidos: absoluto, ótico-geométrico, euclidiano-cartesiano-newtoniano. Se “espaços” eram admitidos, eram reunidos num

conceito cujo alcance permanecia mal determinado (LEFEBVRE, 2006, p.03).

Na opinião do filósofo francês tal panorama conduzia o espaço para um

paradoxo existencial e epistemológico, descrito como “uma contradição (diabólica)

inexprimida, inconfessada, inexplicitada, a prática – na sociedade e no modo de

produção existentes” (LEFEBVRE, 2006, p.03). Pois, como era possível seres

humanos diversos, habitando diferentes rincões, cada um com uma paisagem,

cultura e sociedade particulares, crerem tão facilmente num discurso de

uniformidade do espaço?

A resposta só poderia ser encontrada num elemento que não fosse natural ou

espontâneo na espacialidade. Deste modo, Lefebvre assevera que “o significado do

espaço não está no próprio espaço”. Isto é, o espaço por si só não tem significação,

o sentido constrói-se na medida de uma relação recíproca entre sociedade e

espacialidade. O princípio garante que as representações espaciais não são fixas,

podem ser reposicionadas e questionadas na medida da vivência social de cada

comunidade. Um mesmo local assume diferentes valores de acordo com o contexto

humano no qual se insere. O espaço é modificado na medida de uma dialética entre

discursos tradicionais e discursos de ruptura, e isto se verifica em quaisquer níveis

de representação desde um mapa, passando por uma conversa informal sobre uma

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localidade até num tratado de geografia física. A espacialidade é, portanto, um

exercício de significação social contínuo, jamais neutro e articulado com os demais

discursos presentes numa sociedade.

O espaço não pode mais ser concebido como passivo, vazio, ou então, como os “produtos”, não tendo outro sentido senão o de ser trocado, o de ser consumido, o de desaparecer. Enquanto produto, por interação ou retroação, o espaço intervém na própria produção: organização do trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-primas e de energias, redes de repartição de produtos. À sua maneira, produtivo e produtor, o espaço (mal ou bem organizado) entra nas relações de produção e nas forças produtivas. Seu conceito não pode, portanto, ser isolado e permanecer estático. Ele se dialetiza: produto-produtor, suporte de relações econômicas e sociais (LEFEBVRE, 2006, p.03).

O espaço torna-se um fenômeno ideológico, no sentido de refletir em suas

imagens a tensão social entre representações hegemônicas e representações

estigmatizadas. As imagens dominantes do espaço naturalizam um discurso

fechado, alheio à experiência cotidiana do ambiente e as justificam por meio de

figuras de autoridade, como a ciência. Lefebvre (2006) ressalta que a geografia é em

primeiro lugar uma vivência do homem com espaço, e só depois uma disciplina.

Neste sentido, não se pode confundir o discurso científico sobre a espacialidade

com o próprio fenômeno, o resultado de uma ciência não é necessariamente

verdadeiro (mesmo que sempre este tente passar por infalível). Um mapa, uma foto

de satélite, por mais preciso que este possa ser, sempre vai representar uma das

representações possíveis sobre um local e não a última representação deste:

Uma forte corrente ideológica (fortemente agarrada à sua própria cientificidade) exprime, deforma admiravelmente inconsciente, as representações dominantes, portanto, aquelas da classe dominante, talvez as contornando ou delas desviando. Uma certa “prática teórica” engendra um espaço mental, ilusoriamente exterior à ideologia. Por um inevitável circuito ou círculo, esse espaço mental torna-se, por seu turno, o lugar de uma “prática teórica” distinta da prática social, que se erige em eixo, pivô ou centro do Saber (LEFEBVRE, 2006, p. 16).

Outro ponto sobre o qual Lefebvre assenta sua crítica é sobre o excesso

classificatório que sobrecarrega a análise espacial. Para o filósofo francês, o uso de

categorias, só faz sentido numa análise, se tais auxiliam de fato na interpretação de

fenômenos concretos, criar um termo para explicar outro termo, distorce o foco da

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investigação espacial, que deve ser a vivência e estudo das diversas representações

da espacialiadade. Falar de espaço através de metalinguagem, como verticalidade

ou prospectividade, sem acompanha-se isto pela reflexão do significado particular

desde dado para a experiência de um ambiente, é um exercício estéril de listagem

ou material para um dicionário. Não se pode limitar a experiência espacial a

categorias fechadas e pré-estabelecidas, pois diferente de outros sistemas de

significação, o código semiótico de espaço não é gerado em outro lugar que não na

experiência imediata do discurso. Sendo assim, uma categoria criada deveria ser

atualizada, mesmo revista em cada experiência estudada, traço que não é

observado através da formalização:

É preciso, talvez, descobrir algumas relações ainda dissimuladas entre o espaço e a linguagem, a “logicidade” inerente à articulação funcionando desde o início como espacialidade, redutora do qualitativo dado caoticamente com a percepção das coisas (o prático-sensível). [...] Em qual medida um espaço se lê? Se decodifica? A interrogação não receberá uma resposta satisfatória tão cedo. Com efeito, se as noções de mensagem, de código, de informação etc., não permitem seguir a gênese de um espaço [...], um espaço produzido se decifra, se lê. Ele implica um processo significante. E mesmo se não existe um código geral do espaço, inerente à linguagem ou às línguas, talvez códigos particulares tenham se estabelecido ao longo da história, provocando efeitos diversos; de modo que os “sujeitos” interessados, membros desta ou daquela sociedade, acedam ao mesmo tempo a seu espaço e à sua qualidade de “sujeitos” atuando nesse espaço, o compreendendo (no sentido o mais forte desse termo) (LEFEBVRE, 2006, p. 24).

Lefebvre ressalta que a análise do espaço é um contínuo esforço de

interpretação, e não a busca de princípios universais que abarquem todas as formas

de experiência espacial. A espacialidade tem particularidades que não se deixam

categorizar, por exemplo, as categorias centro e periferia não encontram referências

puramente espaciais, um local não é dito centro da cidade por se localizar

precisamente no ponto médio, mas por acumular representações simbólicas de

autoridade e qualidade. Em contrapartida, a periferia seriam espaços desprovidos de

hegemonia ou com representações estigmatizadas. Isso demonstra mais uma vez

que a espacialidade só ganha sentido na sua relação com o social O espaço é

acima de tudo uma representação localizada histórica e socialmente. :

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Que o espaço físico não tenha nenhuma “realidade” sem a energia que se desenvolve, isso parece fora de dúvidas. As modalidades desse desenvolvimento, as relações físicas entre os centros, os núcleos, as condensações, e, de outro lado, as periferias, permanecem conjecturais. A teoria da expansão supõe um núcleo inicial, uma explosão primordial. Essa unicidade original do cosmos tem provocado muitas objeções, em razão de seu caráter quase teológico (teogônico). F. Hoyle opôs-lhe uma teoria muito mais complexa: a energia se desenvolve em todas as direções, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. Um centro único do cosmos, seja original, seja final, é inconcebível. A energia-espaço-tempo se condensa numa multiplicidade indefinida de lugares (espaços-tempos locais) (LEFEBVRE, 2006, p. 21).

Lefebvre acentua que a representação dos espaços sociais constitui-se de

três práticas simbólicas:

a) A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especificados e conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuidade numa relativa coesão. Essa coesão implica, no que concerne ao espaço social e à relação de cada membro de determinada sociedade ao seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance. b) As representações do espaço, ligadas às relações de produção, à “ordem” que elas impõem e, desse modo, ligadas aos conhecimentos, aos signos, aos códigos, às relações “frontais”. c) Os espaços de representação, apresentam (com ou sem código) simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que eventualmente poder-se-ia definir não como código do espaço, mas como código dos espaços de representação (LEFEBVRE, 2006, p. 36).

Para apreender o mecanismo de construção simbólica da espacialidade de

Henri Lefebvre, Edward W. Soja (1996) propõe um modelo denominado de trialética

da espacialidade “que inter-relaciona uma dialética ligada por uma tríade” (SOJA,

1996, p. 65-68). O resultado deste processo é o esquema abaixo:

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Figura 10- Modelo da trialética da espacialidade (SOJA, 1996: p. 74)

O modelo de espacialidade proposto por Soja (1996) está composto por três

níveis (a, b, c):

a) A prática espacial (espace perçu, o espaço percebido)

A prática espacial é entendida como a produção das representações da

espacialidade desenvolvidas por cada grupo social. Para Soja (1996), “é entendida

como o processo da forma material da espacialidade social; ela é, deste modo,

apresentada tanto como meio quanto propósito da atividade, comportamento e

experiência humanas” (SOJA, 1996, p. 66).

b) As representações do espaço (espace conçu, o espaço concebido)

As representações do espaço são um conjunto de abstrações espaciais

produzidas para convencionar uma percepção do espaço. Estas representações

ordenam, dimensionam e, de certo modo, “impõem um controle sobre o

conhecimento, os símbolos, e códigos [...] da decodificação da prática espacial e da

produção do conhecimento espacial” (SOJA, 1996, p. 66). Segundo Lefebvre (2006,

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p. 36-37) este tipo de espacialidade é a forma dominante de espaço em qualquer

sociedade e “um armazém do poder epistemológico”.

c) Os espaços das representações (espace vécu, o espaço vivenciado)

Os espaços das representações se diferenciam das outras duas modalidades

espaciais por se tratar de um uso estratégico do espaço, relacionado às práticas

particulares dos diversos grupos sociais com seu espaço. Estes se ligam com as

atividades não convencionais, sejam as marginalizadas, underground ou mesmo

artísticas, que não costumam estarem cotidianamente presentes em todos os

espaços.

Estas intervenções não automatizadas sobre o espaço reposicionam as

representações estabelecidas do espaço: ora as questionando, ora as atualizando

segundo as demandas da dinâmica comunitária. Daí estas representações estarem

diretamente ligadas à vivência dos sujeitos com sua espacialidade

O avanço trazido pela trialética de espacialidade é captar os discursos

espaciais imediatamente como representações simbólicas, sem a necessidade do

contato imediato com um lugar concreto. Este refinamento semiótico da abordagem

lefebvriana por Edward Soja permite aplicar a dinamização espacial a fenômenos

puramente discursivos, como o espaço ficcional, e ainda, espaços concretos em sua

dimensão simbólica, como os locais de culto ou o imaginário de grandes cidades

como Londres ou Nova Iorque. Ampliando ainda mais o “esses entrecruzamentos

múltiplos, em lugares e praças assinalados” (LEFEBVRE, 2006, p. 36) inerentes à

espacialidade.

2.4.2 Uma Nota de Autocrítica

O exame das propostas dadas por Henri Lefebvre e Edward W. Soja é

sintomático: é chegado o momento de questionar os mitos de nossa visão espacial:

a) ilusão da transparência, ou seja, a ideia de que o espaço é claro, óbvio,

integralmente inteligível aos olhos de qualquer um. Como se espaço fosse inocente,

sem obscuridades, livre de arestas. Nas palavras de Lefebvre (2006, p. 33): a ilusão

de transparência “revela-se como uma ilusão transcendental, retomando

momentaneamente a velha linguagem dos filósofos: como um engodo, funcionando

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por sua própria potência quase mágica, mas remetendo assim e do mesmo

movimento a outros engodos, seus álibis, suas máscaras”. b) ilusão realística,

baseado no primeiro preconceito, a ilusão realística resume o espaço a categorias

abstratas que corresponderiam a seus aspectos universais, como lateralidade,

dimensionalidade etc., que longe do espaço concreto são simples palavras, vazias

de significado. A ilusão realística fornece ao estudiosos o monopólio do discurso

espacial, reduzindo a espacialidade a um amontoado de categorias que pouco

fornece para uma explicação interpretativa da vivência espacial.

A existência destas questões leva a indagar até que ponto a teoria do espaço

ficcional se encontra atenta a tal problemática. O exame dos modelos de análise do

espaço ficcional recenseados ao início de nossa reflexão, e avaliados no seu

decorrer evidenciam a total assunção desta visão estática de espaço acompanhada

por um modelo formalista de análise. Em nenhuma das propostas teóricas houve a

necessidade de refletir o caráter social e contextual da representação espacial na

literatura. Fato que torna o espaço na narrativa uma das matérias mais

condescendentes com aquilo que Bourdieu chama de crítica pura, que se

caracteriza pela crença na obra de arte como um fenômeno autônomo, sem ligação

com o seu contexto de produção e recepção e que reproduz continuamente os

juízos de críticos consagrados com a interpretação última da obra:

A experiência da obra de arte como imediatamente dotada de sentido e de valor é um efeito do acordo entre as duas faces da mesma instituição histórica, o habitus cultivado e o campo artístico, que se fundam mutuamente: sendo dado que a obra de arte só existe enquanto tal, isto é, enquanto objeto simbólico dotado de sentido e de valor, se é apreendida por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas que ela exige tacitamente, pode-se dizer que e o olho do esteta que constitui a obra de arte como tal, mas com a condição de lembrar imediatamente que não o pode fazer sentido na medida em que ele próprio e o produto de uma longa história coletiva, ou seja, da invenção progressiva do "conhecedor", e individual, isto e, de uma frequentação prolongada da obra de arte. Essa relação de causalidade circular, à da crença e do sagrado, caracteriza toda instituição que pode funcionar apenas se é instituída a um só tempo na objetividade de um jogo social e em disposições que predisponham a entrar no jogo, a interessar-se por ele. [...]. O jogo faz a illusio, o investimento no jogo do jogador avisado que, dotado do senso do jogo porque feito pelo jogo, joga o jogo e, com isso, o faz existir (BOURDIEU, 1996, p. 323-324).

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68

É neste jogo onde os críticos literários criam classificações e os analistas as

assumem sem consciência de seus possíveis limites e de suas consequências

discursivas para a representação da espacialidade que jazem os modelos

concretista e seus correlatos. É necessário buscar entender a espacialidade como

um elemento intrínseco do texto literário que se atualiza em cada obra literária. Não

existe a espacialidade enquanto um elemento etéreo, repetido uniformemente por

toda a literatura. O espaço representado em uma obra é sempre particular e nele se

figuram uma rede complexa entre o discurso enquanto linguagem e enquanto pintura

espacial das representações simbólicas surgidas de seu contexto. A postura a ser

admitida por uma análise global da espacialidade deve, portanto consorciar a sua

dimensão linguística, estética e social. Cada análise adotará o critério específico do

conjunto significativo de uma narrativa particular, a espacialidade não é a soma de

suas expressões discretas (substantivos), mas um todo em que cada elemento

transcende a sua individualidade, assumindo uma significação que é específica, só

compreendida na relação concomitante entre as partes.

O conjunto destas premissas, entendidas como uma metodologia alternativa à

tradicional análise concretista estabelece um paradigma construtivista da

espacialidade ficcional. O termo construtivista é um empréstimo dos estudos da

aprendizagem (CARVALHO & MATOS, 2009), e refere-se ao entendimento de que

os conhecimentos, as significações e os conceitos não são preexistentes nem

universais, desta maneira cada fenômeno é aprendido na relação entre o indivíduo e

a realidade. Cada imagem que é constituída por um sujeito está mediada pelas suas

percepções individuais e pelas representações que absorve na sua relação com a

sociedade. Desta maneira, não existem conceitos padrões e sim conceitos em

contínuo processo de elaboração, abandono e resgate. O paradigma citado obriga o

analista a reconstituir em cada fenômeno a sua singularidade, evitando ao máximo

eleger categorias semanticamente fechadas para não se sentir autorizado a fazer

induções que não estejam de fato presentes no objeto.

A metodologia construtivista afina-se com o discurso dinamizante da

espacialidade, pois questiona o valor da classificação e descrição como fontes de

interpretação. Em termos de crítica literária, o método de análise construtivista

assemelha-se à hermenêutica, partindo da obra para a reflexão e não de categorias

teóricas para trechos isolados de obras. Com a presente investigação vislumbram-se

os fundamentos discursivos e metodológicos que guiarão a análise da

Page 71: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

69

representação do espaço n’Os versos satânicos de Salman Rushdie desenvolvida

nas próximas páginas.

Page 72: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

70

03 O LUGAR DO ESPAÇO NA FORTUNA CRÍTICA D’OS VERSOS SATÂNICOS

No capítulo anterior se procurou evidenciar a existência de dois paradigmas

de percepção espacial: de um lado, uma abordagem imediatista consolidada no

século XIX, que restringe a compreensão do espaço à soma de seus dados

sensoriais ou de formalizações classificatórias importadas da geografia física e

geometria (esquemas, gráficos e mapas), o qual foi denominado convencionalmente,

paradigma descritivista-classificatório. Do outro, uma abordagem discursiva e

contextual que propunha a ideia dinamizada da espacialidade, sendo esta entendida

como um produto social localizado na História e na vivência concreta e simbólica de

uma comunidade particular, à perspectiva denominou-se paradigma

(des)construtivista por tratar o espaço a partir de uma rede de representações

discursivas, que estão sendo continuamente construídas e reposicionadas.

O reconhecimento deste fato leva questionar-se qual modalidade de discurso

sobre a espacialidade é assumida na recepção crítica d’Os versos satânicos para a

partir daí sugerir caminhos alternativos para sua interpretação. De modo a alcançar

tal propósito se apresentará um panorama da fortuna crítica do romance objeto da

presente investigação. O foco da bibliografia empregada na recensão são análises

que tratem (ainda que não exclusivamente) do espaço na produção ficcional de

Salman Rushdie, dando ênfase àquelas que se debruçam sobre Os versos

satânicos.

Antes começar este inventário crítico se faz oportuno retomar um conceito

apresentado anteriormente por Louis Hébert (2012): o termo espaço pode assumir

três diferentes acepções relacionadas com os estudos literários: (a) o espaço da

produção, (b) o espaço da recepção e (c) o espaço tematizado. No que trata da

fortuna crítica d’Os versos satânicos todas estas modalidades se encontram

presentes, assim para sistematizar a apresentação dos juízos dos críticos se fará

uso destas categorias analíticas, seguindo preferencialmente a ordem cronológica

das fontes. Em se tratando de um levantamento da recepção da obra rushdiana, é

inteligível a menção análises estudos versando sobre outros trabalhos de Salman

Rushdie que mantenham uma afinidade temática com Os versos satânicos,

especialmente naqueles assuntos em que sejam poucas as análises atinentes a este

romance.

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71

3.1 O ESPAÇO DA PRODUÇÃO D’OS VERSOS SATÂNICOS

Desde a sua publicação em setembro de 1988, Os versos satânicos ficaram

envoltos numa das mais profundas polêmicas editoriais do século XX. O principal

fator para tal foi o reconhecimento do romance como uma ofensa “ao Islã, ao Profeta

do Islã e ao Corão” (KHOMEINI, 1989) pela comunidade muçulmana internacional. A

repercussão global deste acontecimento tornou o espaço de produção e recepção

imediata uma temática comum na fortuna crítica de nosso objeto.

3.1.1 Edward W. Said (1989a, 1990 [1989b], 1994a, 1994b)

A recepção da polêmica d’Os versos satânicos em termos de crítica literária

inicia-se com dois artigos publicados em jornais por Edward W. Said, que à época

era catedrático de Literatura Comparada na Universidade de Columbia e um dos

entusiastas do movimento intelectual pós-colonial. No primeiro artigo, saído no dia

26 de fevereiro de 1989 (SAID, 1989a), portanto pouco mais de uma semana após a

condenação capital (fatwa) de Salman Rushdie pelo Aiatolá Ruhollah Musavi

Khomeini, o pensador palestino procura localizar o autor d’Os versos satânicos a

partir de sua carreira literária. Para isto analisa uma crônica publicada por Rushdie

em 1984, The Outside of Whale (RUSHDIE, 1992 [1984]), demonstrando como as

instabilidades culturais e políticas evidenciadas naquele momento tinham chegado

ao seu píncaro com o movimento fundamentalista deflagrado com a reação à

publicação d’ Os versos satânicos.

No artigo seguinte, intitulado Dealing With Rushdie’s: Complicated Mixture,

Edward Said (1989b) retoma a sua reflexão ao ressaltar o tom “profético” do citado

texto de Rushdie, pois no mesmo, o escritor indiano dizia “O mundo moderno não

carece apenas de esconderijos, mas de certezas” (RUSHDIE, 1992 [1984], p. 99), o

que era sensível na situação que vinha vivenciado desde a publicação d’Os versos

satânicos, conforme reiterou Said:

Essas palavras possuem uma aplicação inteiramente profética para a situação atual de Salman Rushdie, não apenas porque ele tem estado escondido para salvar sua vida, mas porque ele escreveu um

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livro que fez um ‘imenso estardalhaço’ ao questionar certezas, provocando ira e espanto (SAID, 1990 [1989b], p. 164) 29.

O crítico palestino ultrapassa o entendimento da polêmica como uma

simples questão de religião ou censura, o espaço que o romance de Rushdie alçou

foi o lugar do incomum dentro da tradição ficcional de língua inglesa. Para Said Os

versos satânicos manifestam um caminho literário que vai de encontro às visões

naturalizadas pela tradição literária. Daí, o emprego da metáfora d’o lado de fora da

baleia, pois como é conhecida pelo relato bíblico de Jonas, a literatura ocidental

sempre se focou num viés do discurso (o lado de dentro da baleia) e deixou de fora

de seu relato diferentes caminhos de interpretação. Assim, o lado de fora da baleia

evoca “uma genuína necessidade para a ficção política, para livros que desenhem

novos e melhores mapas da realidade, e para a feitura de novas linguagens com as

quais possamos compreender o mundo” (RUSHDIE, 1992 [1984], p. 100) 30. Os

versos satânicos encontram-se na percepção do pensador palestino neste lugar

particular de representação, nas suas palavras:

Os versos satânicos são uma admirável e prodigiosamente inventiva obra de ficção. Como também o é seu autor, na história, o mundo, a multidão e a tempestade. Este é de todos os modos possíveis uma obra deliberadamente transgressora. Ele une e representa as narrativas centrais do Islã com arrojo, intrepidez e ousadia pós-moderna. Isso demonstra outro lado de seu autor, um contínuo engajamento com a política e a história da cena contemporânea (SAID, 1990 [1989b], p. 164-165) 31.

Edward Said entende que a polêmica instaurada pela publicação do romance

de Rushdie, em especial, no que se relacionava com a comunidade islâmica não

29

Tradução livre, do original: These words have an ominously prophetic applicability to Salman Rushdie's situation today, not only because he has to be in hiding in order to save his life, but because he wrote a book that made 'a very devil of a racket' in challenging certainties, provoking anger and amazement.

30 Tradução livre, do original: Outside the whale there is a genuine need for political fiction, for books

that draw new and better maps of reality, and make new languages with which we can understand the world.

31

Tradução livre, do original: The Satanic Verses is an astonishing and prodigiously inventive work of fiction. Yet it is like its author, in history, the world, the crowd and the storm. It is, in all sorts of ways, a deliberately transgressive work. It parallels and mimics the central Islamic narratives with bold, nose-thumbing, post-modern daring. And in so doing it demonstrates another side of its author’s unbroken engagement with the politics and history of the contemporary scene.

Page 75: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

73

correspondia à fé islâmica como um todo, mas a um grupo específico desta

comunidade que se fechava num radicalismo irracional. O crítico ressaltava que

imputar sobre Rushdie uma pretensa aversão à cultura muçulmana era uma falácia

criada pelos regimes totalitários de alguns estados com o objetivo de impor o ódio

pelo Ocidente. Said argumenta em seu artigo que desde o início de sua trajetória

literária e intelectual Salman Rushdie:

[...] falou em favor dos imigrantes, e dos direitos dos palestinos e dos não-brancos (black), e contra o imperialismo e racismo, como também contra a censura, ele sempre expressou sem receio a disposição para assumir posições políticas que sem a sua voz jamais teriam encontrado espaço (SAID, 1990 [1989b], p. 165) 32.

A condenação à morte de Salman Rushdie trouxe para a opinião pública uma

série de questões que vinham sendo negligenciadas: a condição de subalternidade

dos imigrantes nas grandes cidades do ocidente e o regime de miséria econômica e

social que boa parte das populações não-brancas, não-europeias estavam sujeitas

através do globo. Conforme reitera Said, a narrativa de Rushdie questiona a

superioridade de gênero baseada num ideal de pureza e ancestralidade que não

corresponde à multiplicidade das vivências humanas:

[...] este paradoxo peculiar é também um emblema do destino de híbridos e imigrantes, que é destino também deste mundo contemporâneo. Por este princípio, não existe algo puro, imaculado, essência sem mistura para a qual algumas de nós possamos retornar, como a essência do Islã puro, do Cristianismo puro, do Judaísmo ou do Orientalismo puro, Americanismo, Ocidentalismo. A obra de Rushdie não é apenas sobre a mistura, ela é a própria mistura (SAID, 1990 [1989b], p. 166) 33.

Edward Said trata da obra de Rushdie, não apenas enquanto uma ficção e

sim como uma forma de representação localizada num contexto social particular,

levando em conta seu princípio analítico de que “[...] as obras literárias não são

meramente textos. Elas são constituídas de maneira diferente; tem objetivo de fazer

32 Tradução livre, do original: [...] has spoken out for immigrants', black and Palestinian rights, against

imperialism and racism, as well as against censorship, and he has always unhesitatingly expressed willingness to take active political positions whenever his voice has been needed.

33

Tradução livre, do original: [...] this peculiar paradox is also an emblem of the fate of hybrids and

immigrants, that fate too is part of this contemporary world. For the point is that there is no pure, unsullied, unmixed essence to which some of us can return, whether that essence is pure Islam, pure Christianity, pure Judaism or Easternism, Americanism, Westernism. Rushdie's work is not just about the mixture, it is that mixture itself.

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74

diferentes coisas” (SAID, 2003, p. 188). Falar do lado de fora da baleia, faz recordar

aquilo que Jacques Derrida chamava de différance, ou seja, a busca pelo avesso

dos discursos totalizantes.

Nesta direção, différance do discurso rushdiano não se limitava apenas à

escrita, acompanhava também a sua posição de intelectual. Said (1994) discutiu

esse viés da polêmica d’Os versos satânicos em uma série de conferências

apresentadas em 1993, intituladas Representations of the Intellectual. O pensador

palestino avalia a censura ao romance de Salman Rudhdie como o sinal de uma

crise instalada na figura pública do intelectual. Desde o final do século XIX, atividade

dos maiores intelectuais europeus se restringia quase exclusivamente ao magistério

universitário e a publicação de obras que eram lidas pelos seus pares.

Assim, na segunda metade do século XX, a sociedade estava acostumada a

se isentar de demandas intelectuais mais profundas, em suma, o que acontecia na

academia ou nas artes geralmente não ultrapassava o limiar dessas esferas. Então,

aparece uma obra de ficção que abala a aparente serenidade da democracia

cosmopolita, trazendo à tona demandas há muito ignoradas. Defender a liberdade

de expressão de Rushdie era, para Said, defender a formação de um novo

paradigma de intelligentsia, comprometida com as demandas sociais e ideológicas

da contemporaneidade:

Liberdade inalienável de opinião e expressão é baluarte principal do intelectual secular: abandonar a sua defesa ou tolerar violações de qualquer um dos seus fundamentos é, com efeito, trair a vocação do intelectual. É por isso que a defesa d’Os versos satânicos de Salman Rushdie foi absolutamente um problema central, tanto para o seu próprio bem e para o bem de todos os outros ao se assaltar contra o direito de expressão dos jornalistas, romancistas, ensaístas, poetas, historiadores (SAID, 1994a, p. 89) 34.

Conforme se observa nesta citação, Said encara a polêmica d’Os versos

satânicos como um momento de transição, em que o artista e arte em geral deixa a

sua aura de exterioridade social (autotelismo) e passa a assumir posições na

sociedade da qual emergiu. Deste modo, a defesa incansável do direito à liberdade

34

Tradução livre, do original: Uncompromising freedom of opinion and expression is the secular intellectual's main bastion: to abandon its defense or to tolerate tamperings with any of its foundations is in effect to betray the intellectual's calling. That is why the defense of Salman Rushdie's Satanic Verses has been so absolutely central an issue, both for its own sake and for the sake of every other infringement against the right to expression of journalists, novelists, essayists, poets, historians.

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75

de expressão artística e intelectual deveria ser a pedra de toque desta nova estética.

Sem a liberdade de pensamento exigida pela arte de Rushdie, é improvável a sua

compreensão global. Retomando, às palavras de Said (1990 [1989b]), Os versos

satânicos não estão inscritos em qualquer ideologia particular, é um imperativo de

estilo ignorar a ideia da unidade, tudo que encontra em seu bojo é elaborado sob o

signo da diferença e do hibridismo, não poderia ter uma identidade própria sem ser

pura multiplicidade.

Apesar de ressaltar a importância histórica e o caráter humanitário da

polêmica d’Os versos satânicos, Edward Said ressalta que jamais se deve tirar o

foco da própria obra, foi dela que emergiram os questionamentos e ela deve ser o

ponto de partida de quaisquer análises deste fenômeno. Para Said, ignorar a leitura

do romance como um produto estético que gerou o extremismo das partes

envolvidas nos inumeráveis incidentes desde a sua publicação (atentados,

assassinatos, censura, etc.). Conforme ele descreveu em Culture and Imperialism:

O espaço entre o choque de outras religiões ou culturas e o autoelogio excessivamente conservador não foi preenchido com a análise ou discussão edificantes. Nas resmas impressas sobre Os versos satânicos de Salman Rushdie, apenas uma pequena proporção discutiu o livro em si, aqueles que se opunham a ela e recomendou sua queima e a morte de seu autor recusou-se a lê-lo, enquanto que aqueles que apoiaram a sua liberdade de escrever limitaram-se também nisso. Muito da controvérsia apaixonada da “alfabetização cultural” nos Estados Unidos e na Europa foi sobre o que deveria ser lido - os vinte ou trinta livros essenciais - não sobre como eles devem ser lidos. Em muitas universidades americanas, a resposta do pensamento correto frequente para as demandas de grupos marginais recém-empossados foi “me mostrar o Proust Africano (ou asiático, ou feminino)” ou “se você mexer com o cânone da literatura ocidental é provável que esteja promovendo o retorno da poligamia e a escravidão”. Seja ou não grande arrogância e tão caricatural uma visão do processo histórico deveriam exemplificar o humanismo e a generosidade da “nossa” cultura, esses sábios não se prontificaram (SAID, 1994a, p. 328) 35.

35

Tradução livre, do original: The space between the bashing of other religions or cultures and deeply conservative self-praise has not been filled with edifying analysis or discussion. In the reams of print about Salman Rushdie’s Satanic Verses, only a tiny proportion discussed the book itself; those who opposed it and recommended its burning and its author's death refused to read it, while those who supported his freedom to write left itself righteously at that. Much of the passionate controversy about “cultural literacy” in the United States and Europe was about what should be read – the twenty or thirty essential books – not about how they should be read. In many American universities, the frequent right thinking response to the demands of newly empowered marginal groups was to say “show me the African (or Asian, or feminine) Proust” or “if you tamper with the canon of Western literature you are likely to be promoting the return of polygamy and slavery.” Whether or not such hauteur and so caricatural a view of historical process were supposed to exemplify the humanism and generosity of “our” culture, these sages did not volunteer

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76

3.1.2 Richard Webster (1992)

Richard Webster em sua A Brief History of Blasphemy: Liberalism, Censorship

and the Satanic Verses (1992), desenvolve um relato cronológico e crítico sobre os

acontecimentos derivados da polêmica d’Os versos satânicos, sua atenção centra-

se nas repercussões jurídicas e públicas das sucessivas tentativas de censura da

edição do romance de Rushdie. Webster inicia sua reflexão procurando

compreender como o conceito de blasfêmia, até então, considerado anacrônico e

ultrapassado na atual sociedade ressurgiu no vocabulário filosófico com a

deflagração do caso de Salman Rushdie.

O historiador cultural britânico retoma o texto da fatwa de Khomeini e analisa

como se tornou possível a transmissão de um discurso calcado no contexto da

teocracia e do conservadorismo religioso para o ocidente, onde imperava uma

“infalível” aparência de liberdade e ecletismo religioso. Webster ressalta que a

reação contra Os versos satânicos resgatou um passado de intolerância que vinha

sendo ignorado, principalmente pelo Reino Unido. Quando explodiram na Inglaterra

as primeiras manifestações contra a obra de Salman Rushdie, alguns conservadores

(tanto islâmicos, quanto cristãos) fizeram uso de uma lei ainda vigente naquele país

contra blasfêmia. O processo não foi muito longe, mas foi o suficiente para chamar a

atenção de que mesmo em países ditos “liberais” ainda persistem mecanismos de

violação da liberdade de expressão artística.

Um ponto importante da análise de Webster da polêmica é que apesar deste

fato ter surgido como uma questão de religião, esta só se sustentou por um

significativo tempo e numa amplitude global por tocar em duas questões universais:

o choque entre culturas de matriz étnica diversa e o conflito de interesse político

entre a soberania ideológica e a manutenção da “paz” social. O historiador ressalta

que o âmago da controvérsia sobre a obra de Rushdie foi cultural, ambos os partidos

não estavam tão preocupados em avaliar o que realmente estava expresso n’Os

versos satânicos, e sim apontar onde estava “o satânico”, “o Mal” denunciado pela

polêmica. Assim, havia nos meios de comunicação ocidental uma campanha para

demonizar o Mundo Islâmico em bloco e a sua recíproca na imprensa árabe. A

questão a ser respondida pela obra é pensar se a blasfêmia não foi um veículo de

reconhecimento de uma verdade inconveniente:

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77

Para dizer isso, porém, em si, não resolve nenhuma das questões mais importantes que foram levantadas pela publicação d’Os versos satânicos e pela resposta muçulmana a ele. Para o fato de que os muçulmanos - ou para qualquer outro assunto que grupo de pessoas - pode se sentir ameaçado, incomodado ou ofendido com a publicação de um romance em si não é uma razão para suprimir essa novela ou recusando-se a publicá-lo em uma edição de bolso. A própria verdade às vezes é doloroso, inquietante e ofensivo. Sendo assim, a questão que permanece sem resposta é se a blasfêmia pode-se ser um veículo de verdade, e se o direito de exercer a blasfêmia contra uma religião em particular, ou mesmo contra todas as religiões, é, portanto, um direito precioso que deve ser defendida a todo custos. Para responder a essa pergunta, eu acredito que nós precisamos localizá-lo não em algum Utopia hipotético, mas no mundo histórico e político real (WEBSTER, 1992, p. 23) 36.

3.1.3 Margaret Bald (2006)

Na obra enciclopédica intitulada Banned Books-Literature suppressed on

religious grounds, Margaret Bald elabora um extenso inventário dos principais

episódios da literatura universal em que autores, obras ou movimentos sofreram

alguma censura ou perseguição por causas religiosas. Conforme pontua a autora, a

idealização de seu projeto editorial surgiu a partir da repercussão ligada à tentativa

de censura da publicação d’Os versos satânicos:

Em 1989, um decreto de Teerã trouxe um lembrete chocante de censura religiosa, considerado por muitos como um fantasma do passado distante da Inquisição e da queima de hereges. O decreto de morte do aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie e a proibição generalizada do romance de Rushdie, Os versos satânicos, por blasfêmia contra o Islã foi um exemplo surpreendente de um fenômeno que é tão antiga quanto a história e, com a atual onda de fundamentalismo religioso, tão recente quanto manchetes de todo dia (BALD, 2006, p. XI) 37.

36

Tradução livre, do original: To say this, however, does not in itself resolve any of the most important questions which have been raised by the publication of The Satanic Verses and by the Muslim response to it. For the fact that Muslims – or for that matter any other group of people – might feel threatened, discomforted or offended by the publication of a novel is not in itself a reason for suppressing that novel or declining to publish it in a paperback edition. Truth itself is sometimes painful, disturbing and offensive. That being so, the question which remains unanswered is whether blasphemy can itself be a vehicle of truth, and whether the right to engage in blasphemy against a particular religion, or indeed against all religions, is therefore a precious right which should be defended at all costs. In order to answer that question, I believe that we need to locate it not in some hypothetical Utopia but in the real historical and political world.

37

Tradução livre, do original: In 1989, an edict from Tehran brought a shocking reminder of religious censorship, regarded by many as a specter from the distant past of the Inquisition and the burning of heretics. The Ayatollah Khomeini’s death decree against author Salman Rushdie and the widespread

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78

Bald trata do caso d’Os versos satânicos como um evento emblemático que

manifestou com profundidade todos os malefícios da perseguição religiosa contra a

literatura. Pois não tentou vedar apenas a divulgação de um produto intelectual, mas

atentou contra o bem-estar e os direitos civis de vários sujeitos envolvidos direta ou

indiretamente em sua produção e divulgação, a começar pelo seu autor que teve de

passar anos sob proteção policial para garantir sua integridade vital.

Para retratar com detalhe o ocorrido, Bald faz um relato sinóptico dos

principais acontecimentos, citando datas, personagens e a recepção destes pelos

meios de comunicação ocidentais. A estudiosa americana retoma a polêmica d’Os

versos satânicos em boa parte dos verbetes de sua obra, demonstrando a

relevância desta para a história da literatura ocidental como um divisor de águas na

relação entre o campo literário-intelectual e o campo social.

3.1.4 Talal Asad (2009)

No outono de 2007, evocando a celeuma causada pela polêmica de charges

dinamarquesas e ainda na lembrança recente do assassinato do cineasta holandês

Theo Van Gogh (em 2004) por extremistas islâmicos, a Universidade da Califórnia

sediou o Simpósio “Is Critique Secular?” com o propósito de discutir os desafios da

liberdade secular nas artes e na comunicação social. Na ocasião o antropólogo Talal

Asad apresentou a conferência Free Speech, Blasphemy,and Secular Criticism,

pontuando a coerência daquele contexto para tal questionamento:

Por muitos anos, tem havido discussão na Europa e América sobre a ameaça à liberdade de expressão, especialmente quando seus muçulmanos têm levantado a questão da blasfêmia em resposta a algumas críticas públicas do Islã. A crise mais recente foi o escândalo das caricaturas dinamarquesas. Uma década e meia após o caso Rushdie, a antiga denúncia religiosa de "blasfêmia" tinha elevado sua cabeça novamente entre os muçulmanos na Europa e fora dela, tentando minar as liberdades seculares duramente conquistados. Ou assim nos foi dito. Houve protestos e alguma violência, por um lado, muitas afirmações de princípio e expressões de indignação, de outro. O assunto foi discutido amplamente no

banning of Rushdie’s novel The Satanic Verses for blasphemy against Islam was a startling example of a phenomenon that is as old as history and, with the current wave of religious fundamentalism, as recent as today’s headlines.

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79

contexto do problema da integração dos imigrantes muçulmanos na sociedade europeia e como se relacionava com a "ameaça global" dos islâmicos (ASAD, 2009, p. 20) 38.

Na esteira de Webster (1993), Asad interpreta o fenômeno da polêmica d’Os

versos satânicos enquanto um choque civilizacional, onde ambos creem serem

portadores do modelo ideal de cultura. Trata-se deste modo de uma crise de

identidades sociais totalizantes: o Ocidente assumindo a imagem de universo

cosmopolita, defensor intransigente da “liberdade” e Oriente Mulçumano tentado

preservar-se desta ditadura da “cultura democrática” globalizada. O antropólogo

saudita dá especial nota a imagem que a cultura norte-americana e europeia nutre

pelos países de matriz árabe: guerras, preconceitos e estereótipos são justificados

pelo simples argumento étnico, o que é igualmente digno de crítica, tendo em vista

suas consequências para a relação simbólica e real entre ocidentais e orientais.

Talal Asad observa a blasfêmia como um processo de reposicionamento de

representações discursivas e estéticas, que acontece continuamente em quaisquer

comunidades; inclusive no Ocidente em diversas ocasiões através da história.

Exemplo deste processo simbólico, são os momentos em dois discursos se opõem,

criando uma tensão entre os polos culturais de certo contexto: as Cruzadas, a

Revolução Francesa, a Guerra Fria etc. Um movimento natural, ainda que traumático

para qualquer dinâmica social.

Quando o Oriente alega o caráter pretensamente blasfemo d’Os versos

satânicos, está apenas externando o impacto da instabilidade de suas

representações. Como o seu regime ideológico baseia-se mais na tradição, que na

inovação este abalo é sentido com mais pungência, daí as represálias endurecidas.

Conforme, descreve Asad (2009):

A destruição intencional de signos, ou seja, o assalto contra imagens e palavras que são investidos com o poder de determinar o que conta como verdade, tem uma longa história de transcender a

38

Tradução livre, do original: For many years now, there has been much talk in Euro-America about the threat to free speech, particularly whenever its Muslims have raised the issue of blasphemy in response to some public criticism of Islam. The most recent crisis was the scandal of the Danish cartoons. A decade and a half after the Rushdie affair, the old religious denunciation of “blasphemy” had reared its head again among Muslims in Europe and beyond, seeking to undermine hard-won secular freedoms. Or so we were told. There were angry protests and some violence on one side, many affirmations of principle and expressions of outrage on the other. The affair was discussed largely in the context of the problem of integrating Muslim immigrants into European society and how it related to the “global menace” of Islamists.

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distinção entre o religioso e o secular. Como iconoclastia e blasfêmia, a crítica secular também busca criar espaços para uma nova verdade, e, como eles, fá-lo, destruindo os espaços que foram ocupados por outros sinais (ASAD, 2009, p. 33) 39.

3.1.5 Kenan Malik (2010)

Na obra From Fatwa to Jihad: The Rushdie Affair and Its Aftermath (How a

Group of British Extremists Attacked a Novel and Ignited Radical Islam), o

antropólogo indiano Kenan Malik explora a sua experiência de imigrante na

Inglaterra para analisar o processo de formação e as consequências da polêmica

d’Os versos satânicos para a convivência inter-racial e intercultural no contexto do

Reino Unido. O seu relato começa com a narração de uma cena acompanhada pelo

autor, a queima de exemplares do citado romance de Salman Rushdie:

[Bradford, norte da Inglaterra] Era uma cidade da qual poucas pessoas fora da Grã-Bretanha teria ouvido falar. Até que, então, milhares de manifestantes muçulmanos tiveram, no mês anterior, desfilaram com uma cópia d’Os versos satânicos de Salman Rushdie, antes de cerimoniosamente queimar o livro. O romance foi amarrado a uma estaca, antes de ser incendiado em frente à delegacia de polícia. Foi um ato calculado para chocar e ofender. Ele fez mais do que isso. A queima de livros tornou-se um ícone da raiva do Islã. Transmitido ao redor do mundo por uma multidão de fotógrafos e câmeras de TV, a imagem proclamou: “Eu sou um presságio de um novo tipo de conflito e de um novo tipo de mundo” (MALIK, 2010, p. 03) 40.

Malik ressalta o papel da polêmica na mudança de mentalidade ocidental

sobre o Mundo Árabe. Até este momento, povo islâmico era apenas um nome que

se localizava em algum canto dos livros de história e geografia, a repercussão global

do caso de Rushdie colocou a questão do imigrante no centro da opinião pública

39

Tradução livre, do original: The willful destruction of signs—that is to say, the assault on images and words that are invested with the power to determine what counts as truth—has a long history of transcending the distinction between the religious and the secular. Like iconoclasm and blasphemy, secular critique also seeks to create spaces for new truth, and, like them, it does so by destroying spaces that were occupied by other signs.

40

Tradução livre, do original: [Bradford, northern England] It was a town of which few people outside of Britain would have heard. Until, that is, a thousand Muslim protestors had, the previous month, paraded with a copy of Salman Rushdie’s The Satanic Verses, before ceremoniously burning the book. The novel was tied to a stake before being set alight in front of the police station. It was an act calculated to shock and offend. It did more than that. The burning book became an icon of the rage of Islam. Sent around the world by a multitude of photographers and TV cameras, the image proclaimed, ‘I am a portent of a new kind of conflict and of a new kind of world’.

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81

britânica. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha recebeu uma

corrente migratória de diversas proveniências, no entanto, a condição vivida por

estes estrangeiros em terras inglesas não havia sido refletida com profundidade,

nem pelas ilustres escolas de sociologia localizadas no país.

Um grande número de imigrantes vivia em condições de extrema miséria e

alguns eram submetidos a um regime semelhante ao de escravidão. Abandonados

pelo poder público e considerados como pessoas que ocupavam o espaço dos

britânicos nos empregos, estes foram constrangidos a diversos tipos de

discriminação. Muitas dos constrangimentos vivenciados pelo personagem Saladin

Chamcha n’Os versos satânicos retratam essa realidade “visível, mas não vista”

(RUSHDIE, 1998, p. 200) do imigrante numa sociedade de tradição imperialista.

Conforme descreve Malik:

O caso Rushdie foi o momento em que um novo Islam anunciou-se dramaticamente como uma importante questão política na sociedade ocidental. Foi também o momento em que a Grã-Bretanha percebeu que estava diante de um novo tipo de conflito social. Desde os primórdios da imigração do pós-guerra, os negros e asiáticos estiveram envolvidos em amargos conflitos com autoridade. [...] Foi o primeiro grande conflito cultural, uma polêmica bastante diferente de tudo o que a Grã-Bretanha já tinha experimentado. Fúria muçulmana parecia ser conduzido não por questões de assédio ou discriminação ou pobreza, mas por um sentimento de dor que as palavras de Salman Rushdie ofendeu suas crenças mais profundas. Onde é que tal dor vem, e por que foi sendo expresso agora? Como poderia um romance criar tal indignação? Poderia angústia muçulmano ser amenizada, e deve ser? Como é que a raiva nas ruas de Bradford relacionam com questões políticas tradicionais sobre direitos, deveres e direitos? Grã-Bretanha nunca tinha perguntado a si mesmo essas perguntas antes. Vinte anos depois, ele ainda está tateando em busca de respostas 41 (MALIK, 2010, p. 10-11).

41 Tradução livre, do original: The Rushdie affair was the moment at which a new Islam dramatically

announced itself as a major political issue in Western society. It was also the moment when Britain realized it was facing a new kind of social conflict. From the very beginnings of post-war immigration, blacks and Asians had been involved in bitter conflicts with authority. [...] The Rushdie affair was different. It was the first major cultural conflict, a controversy quite unlike anything that Britain had previously experienced. Muslim fury seemed to be driven not by questions of harassment or discrimination or poverty, but by a sense of hurt that Salman Rushdie’s words had offended their deepest beliefs. Where did such hurt come from, and why was it being expressed now? How could a novel create such outrage? Could Muslim anguish be assuaged, and should it be? How did the anger on the streets of Bradford relate to traditional political questions about rights, duties and entitlements? Britain had never asked itself such questions before. Twenty years on, it is still groping for the answers.

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82

A polêmica d’Os versos satânicos foi fruto de um processo silencioso de

busca de reconhecimento social de um extrato social que vinha sendo marginalizado

na sociedade britânica. A questão religiosa serviu de estopim para a revolta

generalizada dos imigrantes, o que surge como um dado de crença se une as

demandas políticas, culturais e públicas, que não ganhariam notoriedade sem uma

celeuma que mobilizasse toda classe imigrante. Não é possível entender esse

fenômeno fora deste contexto tão específico. Segundo o estudioso indiano, o caso

Rushdie representou o advento de uma nova ordem social, “uma reviravolta no

relacionamento entre a sociedade britânica e suas comunidades islâmicas 42”

(MALIK, 2010, p. 11), e consequentemente, com outros grupos imigrantes que

habitam o país.

3.1.6 Annika Fickers (2012)

Explorando um caminho de pesquisa semelhante ao de Malik, Annika Fickers

apresenta em sua dissertação de mestrado pelo departamento de História da

Universidade de Leiden, At the Crossroad: The Impact of the Rushdie Affair on the

Framing of the Dutch and British Public Debates on Immigrant Integration, um estudo

sobre as reportagens veiculadas nos meios de comunição britânicos e neerlandeses

no período da polêmica d’Os versos satânicos e suas consequências para os

debates sobre a imigração nos respectivos países. Segundo a autora, a sua

preocupação em cruzar estes dois fenômenos particulares foi o fato de ambas as

nações se configurarem como grandes polos de atração populacional, e que boa

parte das comunidades imigrantes da Holanda e Grã-Bretanha compõe-se de

mulçumanos que estiveram diretamente mobilizados pelo caso Rushdie.

Além deste foco historiográfico, a análise de Fickers se fundamenta na

metodologia dos estudos culturais, o que lhe permitiu interpretar os acontecimentos

arrolados em categorias que tratam de perto do problema da imigração, a saber:

assimilação, multiculturalismo, universalismo e teorias da formação comunitária.

Fickers elaborou ainda uma rede de 04 conflitos particularizados (sociais e

42

Tradução livre, do original: [...] was a turning point in the relationship between British society and its Muslim communities.

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83

discursivos) que em sua visão resumiriam os problemas básicos de tal polêmica: (a)

Habitante colonial contra trabalhador migrante, (b) Agência contra voz, (c) As

relações raciais contra minorias culturais, (d) Estado neoliberal contra o bem-estar.

A obra de Annika Fickers demonstra-se bastante pontual em aprofundar a

polêmica d’Os versos satânicos enquanto um fenômeno social que ultrapassou os

limites da arte e contribuiu sobremaneira para a reflexão do papel e da imagem dos

imigrantes nas sociedades inglesa e neerlandesa, e consequentemente no contexto

geral do Ocidente. Conforme resume Fickers:

Os resultados de minha pesquisa contribuiram para a literatura existente sobre o caso Rushdie em duas maneiras. Por um lado, os meus resultados do estudo manifestam o caso Rushdie como um evento que abriu o caminho para os críticos de integração mais tarde para implementar suas idéias neo-realistas no debate público holandês. A polêmica retirada dos velhos tabus para criticar os imigrantes e para fazer valer as falhas de integração, tornou as pessoas receptivo para as idéias neo-realistas. De certa forma o caso Rushdie também serviu como um teste importante ou modelo, respectivamente. [...] Por outro lado, este estudo revelou que o legado do passado colonial tem um impacto significativo sobre o processo de integração dos imigrantes na Europa. Antigas relacões coloniais das sociedades sobre o processo de integração de migrantes muçulmanos (FICKERS, 2012, p 90) 43.

3.2 O ESPAÇO DA RECEPÇÃO D’OS VERSOS SATÂNICOS

Dando prosseguimento ao panorama crítico d’Os versos satânicos se

apresentarão os estudos que versam sobre a recepção da própria obra no contexto

dos estudos literários. Apesar de ser um romance relativamente recente (publicado

há menos de 30 anos), Os versos satânicos já conta com uma alentada fortuna

crítica tratando deste particular. O reconhecimento da extensão do material sobre a

recepção da obra aqui em análise se faz necessário uma sistematização prévia

antes de expor os dados da revisão bibliográfica.

43 Tradução livre, do original: [...] my research findings contributed to the existing literature on the

Rushdie affair in two ways. On the one hand, my study results manifest the Rushdie affair as an event that cleared the way for later integration critics to implement their neo-realist ideas in the Dutch public debate. The controversy removed the old taboos to criticize immigrants and to assert integration failures, and made people receptive for neo-realist ideas. In a certain way the Rushdie affair also served as an important test or respectively role model.[...] On the other hand, this study revealed that the legacy of the past has a significant impact on the integration process of migrants in Europe. Earlier colonial relations of the receiving societies with the sending society facilitated the absorption of Muslim immigrants.

Page 86: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

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Desde muito cedo, Os versos satânicos foram observados como uma das

narrativas mais representativas do movimento pós-colonial e multiculturalista (SAID,

1989; SPIVAK, 1989; APPIGNANESI, MAITLAND, 1990 BHABHA, 1998; AHMED,

2000; ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2000). Essa condição tornou a obra objeto

de diferentes campos de estudo: História, Crítica Literária, Filosofia e Estudos

Comparados da Religião. Deste modo, para sistematizar o volume das publicações

acerca d’Os versos satânicos, adotam-se os seguintes eixos temáticos, que serão

aplicados à frente nas exposições de caráter mais pontual:

a) Pós Modernidade, Desconstrução e Hibridismo.

b) Estudos Culturais, Pós-Coloniais, Transnacionais, Anti-Imperiais e Étnicos.

c) Localização da obra rushdiana na tradição canônica universal.

Gayatri Chakravorty Spivak (1989)

Numa das primeiras análises a tratar especificamente do conteúdo intrínseco

d’Os versos satânicos, Gayatri Chakravorty Spivak, à época professora do

departamento de Literatura Inglesa da Universidade de Pittsburgh e hoje uma das

teóricas expoentes dos estudos pós-coloniais, apontou alguns caminhos que mais

tarde tornaram-se recorrentes na recepção crítica do romance de Salman Rushdie.

A estudiosa indiana inicia sua reflexão se isentando dos efeitos da polêmica

religiosa relacionados à publicação da obra, como esta afirma “me proporei a fazer o

que pode parecer impossível: uma leitura d’Os versos satânicos como se nada

tivesse acontecido desde o final de 1988” (SPIVAK, 1989, p. 79). Spivak ressalta

que se propõe a unir em sua análise, uma metodologia estética a um estudo

contextual, inspirado no conceito de lebenswelt44 Peter Burger e Jürgen Habermas,

“a prática e política da vida interceptando um objeto estético como simples leitura

do que se tornou impossível” (SPIVAK, 1989, p. 79).

Gayatri Spivak descreve a narrativa d’Os versos satânicos como artefato

emblemático da pós-colonialidade (post-coloniality), ou seja, uma “citação, uma

reescritura, um redirecionamento do histórico” (SPIVAK, 1989, p. 79). O

reconhemineto indica para a crítica que a investigação deste romance não poderia

44

Em alemão: vivência no mundo.

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85

ignorar a “reunião das várias posições do sujeito na política geográfica

contemporânea” e a sua inclusão como “elemento de uma história intelectual”. Em

termos de síntese, Spivak assevera: “Os versos satânicos,sem ignorar toda sua

multiplicidade, tem um agressivo tema central: o pós-colonial dividido entre duas

identidades; o imigrante e o nativo” (SPIVAK, 1989, p. 79).

Segundo Spivak o universo representado nos é um espaço “de muitas

representações fragmentadas da Nação”, o tom do seu relato gravita entre “o sério e

o cômico”, em ambos os casos manifestando “figuras de resistência” à soberania

imperial. O registro da denúncia social presente na narração é contrabalançado pela

contínua inserção de elementos insólitos e maravilhosos, dando à obra um estilo

semelhante ao Realismo Mágico encontrado na moderna literatura latino-americana.

Essa peculiaridade narrativa leva Spivak a considerá-la como um recurso para

conferir à obra “uma descrição taxionômica privilegiada e uma apropriação de estilos

e sistemas de representação alternativos” (SPIVAK, 1989, p. 79).

A condição do sujeito migrante é compreendida na medida de uma voz

exílica, de uma identidade em contínua busca pelo lar perdido, por uma pátria

imaginada. Este espaço limiar oferece à trama um mise-én-abîme, seus

personagens encontra-se num persistente conflito por abandonar seus lares e ter

que conviver com referências culturais com as quais não estão habituados. Noutra

direção, o imigrante sofre com a não-aceitação da papulação nativa, que lhe

considera um indivíduo suspeito, lhe colocando numa espiral de marginalização e

subalternidade. Spivak interpreta o relato ficcional de Salman Rushdie como o

retrato de uma modernidade marcada pela “realidade fantasmagórica”, “vanguarda

artística”, “uma realidade psíquica entalahada no capitalismo”.

Traçadas as linhas gerais deste escrito é sintomático como este contém

um programa descritivo das temáticas que guiarão boa parte dos trabalhos críticos

posteriores. Tal evidência se torna ainda mais patente pelo fato de sua autora ser

uma das mais representativas pensadoras dos chamados Estudos Pós-Coloniais (ao

lado de Edward Said, Homi Bhabha, Gyan Pakrash, etc), além de produzir estudos

de natureza culturalista, (Cultural Studies) e ter sido uma das primeiras a fazerem a

recepção em língua inglesa das escolas do Pós-Estruturalismo Francês : Derrida,

Gilles Deleuze, entre outros. O que por sua vez estimulará o contato com

problemáticas afins destas como: a Psicanálise Lacaniana, Os Estudos Femininos, o

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86

Historicismo de Michel Foucault e a Análise do Discurso (segundo Bakhtin, Kristeva,

etc.).

Todo este repertório de teorias e modos de interpretar Os versos satânicos

cristalizou um repertório terminológico híbrido, que envolve desde Antropologia,

passando pela Filosofia, Sociologia, etc. Se destacando entre estas a contribuição

dos Estudos Culturais da Escola Britânica e os Estudos Pós-coloniais. Uma

significativa parcela dos estudos da recepção d’Os versos satânicos adotam

algumas das problemáticas levantadas por Gayatri Spivak, as aprofundando

segundo sua extensão. O estudo da pensadora indiana, torna-se relevante não

apenas por trazer caminhos originais à analise da obra rushdiana, mas por se focar

no romance enquanto objeto estético, desviando da polêmica que cumpre mais um

questão sócio-histórica que literária strictu sensu, na suas palavras:

Neste ensaio, eu ofereci um primeiro esboço do enredo crítico literário do livro, porque acho que deve ser um professor na sala de aula quando se torna impossível para dobrar o mercado. Eu tenho feito isso quase como um ato de piedade disciplinar para o que é, afinal, uma romance. Em seguida, apresentamos um dossiê tentando nos concentrar no que as pessoas, que são diversamente ligados a este evento, estão dizendo. Parei por um instante para refetir sobre as espetaculares abstrações da razão democratica, por vezes, podem levar. Então passei a esboçar a possibilidade de questionar o que, muitas vezes, tomar como dado, que a idéia de razão - já que eu posso ver a própria razão como um pharmakon, ao invés de um bem inquestionável ou um mal inquestionável - é necessariamente eurocêntrica 45 (SPIVAK, 1989, p. 99)

3.2.1 Pós-Modernidade, Desconstrução e Hibridismo

Temática inspirada em áreas afins dos Estudos Literários, em especial no

Pós-Estruturalismo e Estudos Culturais, caracteriza-se pela pressuposição de que a

cosmovisão da sociedade capistalista tardia encontra-se num processo de

45

Tradução livre, do original: In this essay, I have first offered a literary critical plot summary of the book, because I think one must be a schoolteacher in the classroom when it becomes impossible to ply that trade. I have done it almost as an act of disciplinary piety towards what is, after all, a novel. Next I have presented a dossier trying to focus on what people, who are diversely connected to this event, are saying. I have paused for a moment upon the uses to which the spectacular rational abstractions of democracy can sometimes be put. I have gone on to sketch the possibility of questioning what we often take as given, that the idea of reason - since I can see reason itself as a pharmakon, rather than an unquestioned good or an unquestioned evil - is necessarily Eurocentric.

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87

fragmentação surgido com desintegração do modelo ideológico iluminista-positivista,

que por sua vez teria causado uma série de descentramentos na identidade

humana. Esta crise identitária teria levado ao surgimento da Era Pós-Moderna,

demarcada pelo enfraquecimento das instituições sociais (Estado, Igreja, Escola,

Família etc.), pelo individualismo generalizado, massificação dos meios de

comunicação e homogeneização das referências sociais e culturais. Conforme

descreve Stuart Hall:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrais. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada [...] de deslocamento ou descentramento do sujeito. Esse duplo deslocamento descentração dos sujeitos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma “crise de identidade” (HALL, 2003, p. 09).

Neste quadro de ausência de referências identitárias claras, o sujeito perderia

as bases que lhe garantiriam um espaço social determinado, lhe transformando num

ser híbrido com “identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de

tal modo que [...] estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2003, p.13). Deste

modo, o limite entre a concretude do real e o simulacro das imagens de si e dos

outros (alteridade) é cindido, dando ao mundo pós-moderno uma atmosfera de

instabilidades generalizadas, onde imperam as incertezas do porvir e o culto do

espetáculo midiático, consoante explica Jean Baudrillard:

Por isso tudo nós vivemos num universo estranhamente parecido com o original – as coisas são “duplas” pelo seu próprio cenário. Mas este duplo não significa, como na tradição, a iminência sua morte – elas são isentas de sua morte, e mais ainda de seu vivente; mais sorridentes, mais autênticas, à luz de seu modelo, como os rostos de funerárias 46 (BAUDRILLARD, 1981: p. 24).

46

Tradução livre, do original : Ainsi partout nous vivons dans un univers étrangement semblable à l'original - les choses y sont doublées par leur propre scénario. Mais ce double ne signifie pas, comme dans la tradition, l'imminence de leur mort - elles sonnt déjà exputgées de leur mort, et mieux encore que de leur vivant; plus souriantes, plus authentiques, dans la lumière de leur modèle, tels les visages des funeral homes.

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Baudrillard (1981) fascinado com os horizontes multirreferenciais da

sociedade capistalista pós anos 50, descreve um mundo onde o estatuto da verdade

não é dirigido nem pela Ciência Experimental nem pela Filosofia, mas, pelo

simulacro da imagem. O “real” neste modelo pós-moderno encontra-se assentado no

Imaginário das Mídias de Massa: certo objeto, certo discurso só passa a ter sua

existência autorizada a partir do momento em que este é visível em algum meio de

comunicação audiovisual.

Neste sentido, duas instâncias de verificação do real são abandonadas, pois

sendo a “visibilidade” critério de maior peso ontológico: tanto o imaginário passa a se

tornar passível de realidade (assim há uma confusão ou um amálgama entre entes

deste imaginário, como os personagens de novelas televisivas e os seus entes reais,

seus atores); quanto o real passa a não ser necessariamente factual (certo evento

ocorrido em alguma parte do mundo se não for reportado por alguma instância

comunicativa passa a ter aura de inexistência).

3.2.1.1 Eric L. Berlatsky (2003)

Apropriando-se de um debate recente da historiografia: a construção dos

fatos no discurso, Eric L. Berlatsky apresenta em sua tese de doutoramento pelo

departamento de Letras da Universidade de Maryland, Fact, Fiction, and Fabrication:

History, Narrative and the Postmodern Real from Wolf to Rushdie, uma análise em

que investiga as afinidades entre os discursos históricos e as narrativas ficcionais na

representação do “real” na pós-modernidade. Para alcançar tal escopo o crítico se

apropria da teoria meta-histórica de Hayden White (1973):

Enquanto a maioria dos relatos de atitudes ocidentais para a história do século XIX sugerem que os vitorianos tinham uma fé em sua origem, a teleologia e significado, avaliações da história do século XX com mais freqüência sugerem o contrário. Tanto a teoria pós-estrutural e da historiografia pós-moderna, na esteira de Metahistory de Hayden White apresentar uma visão relativista da possibilidade de qualquer objetividade ou referencialidade material discurso histórico, principalmente por meio da narrativa. A partir desta perspectiva, a narrativa histórica é definida como uma criação discursiva que obscurece as relações materiais de sua produção e como um instrumento de ideologia e opressão (BERLATSKY, 2003, p. i) 47.

47

Tradução livre, do original: While most accounts of Western attitudes towards history in the nineteenth century suggest that Victorians had a faith in its origin, teleology and meaning,

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89

Berlatasky neste contexto apreende o surgimento das novas escolas do

pensamento historiográfico que questionaram a veracidade do conhecimento

acumulado em séculos de erudição. Alguns estudiosos (CERTEAU,1982; DOSSE,

1992) da História relativizam os métodos que consolidavam o modelo cientificista

desta matéria, evidenciando que muitas “verdades” escritas pela historiografia, eram

ficções que serviam aos mais diversos modelos de dominação ideológica.

Para ultrapassar o estanque desta representação “falseada” da verdade

histórica, a Nouvelle Histoire propôs o resgate de outras formas de registro, como as

obras literárias, tentando reconstituir os fatos encontrados dentro das narrativas

ficcionais. Pois, não estando contaminados pelos vícios da narrativa historiográfica

os romances e demais formas literárias seriam capazes de captar fenômenos

silenciados pela sua seleção não transparente (“não existem seleções ingênuas”).

De modo, que esta polêmica renegou o limite antes tão cristalino entre imaginário e

factual.

Ao mesmo tempo, a narrativa pós-moderna se serviu deste preceito, se

dispondo a fazer uma reescritura das narrativas nacionais e sociais. Muitos artefatos

literários pós-modernos, valendo-se de fontes documentais e memoriais, ofertam

retratos que destoam das versões “oficiais” (metaficções históricas), dando ao leitor

a oportunidade de “conhecer” uma “verdade” oculta pela “História”.

Por meio do princípio do hibridismo, o discurso ficcional pós-moderno

(principalmente sob a forma de romance) alterna quadros narrativos em que não é

possível dissociar História de Imaginário. Alcançando deste modo, uma narrativa em

que o verossímil se confunde com a ficção e o “real” e desloca-se através do

discurso em possível “realidade” (ficção como lugar dos mundos possíveis).

Identificando estes traços nas narrativas rushdianas e as comparando com as de

Virginia Woolf e Milan Kundera, Berlatsky (2003) ressalta o papel de questionamento

político e social presentes no romance pós-moderno:

Este estudo defende a avaliação da ficção pós-moderna contemporânea, refletindo modelos pós-estruturais de textualidade

twentiethcentury assessments of history more often suggest the opposite. Both poststructural theory and postmodern historiography in the wake of Hayden White’s Metahistory present a relativist view of the possibility of either objectivity or material referentiality in historical discourse, particularly through the medium of narrative. From this perspective, historical narrative is defined as a discursive creation that obscures the material relations of its production and as an instrument of ideology and oppression.

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90

infinita nega uma importante elemento dos romances estudados: seu compromisso com a possibilidade de acesso a materiais realidade e da importância desse acesso tanto para a construção de uma ética e de ação política. Ao olhar atentamente para romances contemporâneos teorizarando explicitamente história e historiografia, torna-se claro que insistem num sentido da "Real", pelo menos em parte, por causa dessas preocupações políticas (BERLATSKY, 2003, p.iii) 48.

3.2.1.2 Sebastião Alves Teixeira Lopes (2002, 2006)

Dando continuidade às temáticas ligadas à recepção d’Os versos satânicos,

Sebastião Alves Teixeira Lopes em sua tese de doutoramento apresentada no

departamento de Letras da Universidade de São Paulo (USP) intitulada O universo

em ruptura: putas e poetas ma leitura de he atanic erses de alman Rushdie,

aborda o romance de Rushdie a partir da reflexão teoria desconstrutivista de

Jacques Derrida, explorando a palavra na medida de uma representação discursiva

(ecriture) e instrumento de questionamento de significados preestabelecidos

(différance). Consoante este descreve:

Minha leitura [parte da] hipótese de que Rushdie questiona a noção de palavra logocêntrica, que no romance toma a forma de palavra revelada. A palavra logocêntrica, compreendida como uma dádiva divina pressupõe significações transcendentais e absolutas, não aceitando, portanto, dissensão ou contra-argumentos, narrativas paralelas ou interpretações alternativas. Rushdie, ao contrário, denuncia os posicionamentos político-ideológicos que suportam e justificam essa palavra, assim como questiona os posicionamentos sociais que são construídos e impostos a partir dessa palavra logocêntrica. [...] busco demonstrar como, em The Satanic Verses, Rushdie questiona a noção de palavra logocêntrica, com seus pressupostos absolutistas, significados transcendentais e posicionamentos privilegiados (LOPES, 2002, p. i).

No caminho de Derrida, Lopes (2002) propõe que Rushdie (2008) denuncia a

existência de um discurso totalizante centrado numa representação purista de

identidade e nação, manifesto no romance através do profeta Mahound, do Imã e da

48 Tradução livre, do original: This study argues that the assessment of contemporary postmodern

fiction as reflecting poststructural models of endless textuality denies an important element of the novels studied: their commitment to the possibility of accessing material reality and the importance of such access both for the construction of an ethics and for political agency. By looking closely at contemporary novels that explicitly theorize history and historiography, it becomes clear that they instead insist on a sense of the “real” at least in part because of these political concerns.

Page 93: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

91

Inglaterra, o discurso logocêntrico. E do outro lado um discurso de questionamento e

ressignificação identitária, o logos da blasfêmia, representado pelas putas e poetas

na reescritura da narrativa corânica, e o discurso pós-colonial presentificado na

trama por meio da tensão das trajetórias de Saladin Chamcha e Gibreel Farishta.

Lopes (2006) ressalta que a tensão identitária que caracteriza a narrativa d’Os

versos satânicos centra em dois conceitos basilares: a metamorfose e o hibridismo.

Em consonância com Hall (2002), afirma que diferente do que se costuma pensar

“as identidades não são naturais, ou seja, as significações atribuídas aos sujeitos

não lhes são inatas ou imanentes, mas construídas social e historicamente”

(LOPES, 2006, p. 279). Deste modo, um sujeito encontra sua particularidade através

de uma harmonia de muitas identidades que este vivencia nos diferentes momentos

de sua existência pessoal e social, em suma, o hibridismo é uma constante da

identidade e não a estabilidade. Destarte, a identidade passa por um processo de

contínuas metamorfoses, conforme Lopes (2006) verifica na narrativa d’Os versos

satânicos:

Esses processos distintos de metamorfose pressupõem maneiras distintas de confrontar-se a questão da identidade. Farishta busca uma identidade centrada em si mesma e nos seus próprios referenciais, indiferente à presença do outro. Chamcha busca, através da destruição total de referenciais anteriores, dotar sua identidade de um outro centro. Em ambos os casos, a relação com o outro acontece por extremos: ou por sua negação, ou por sua total assimilação. Farishta busca a transposição total de sua cultura para o ocidente; Chamcha rejeita a possibilidade de transposição cultural, mesmo que parcial. Parece-me que ambas as situações são insustentáveis. Farishta em sua busca de pureza efetivamente não sobrevive; Chamcha é resgatado justamente por reatar relações com seu passado. A terceira via do diálogo, da contaminação, do ecletismo e do hibridismo (tema que será discutido mais adiante) mostra-se a possibilidade para que, como afirma Rushdie, o novo entre no mundo! (LOPES, 2006, p. 282).

3.2.2 Estudos Culturais, Pós-Coloniais, Transnacionais, Anti-Imperiais e

Étnicos

Salman Rushdie descreve n’Os versos satânicos a trajetória de vida de

imigrantes no contexto metropolitano de Londres, da condição de abandono

governamental e xenofobia generalizada. Tal representação levou os críticos a

entender a sua narrativa como um “protesto” contra a subalternidade que estes

Page 94: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

92

indivíduos estavam sujeitos neste contexto. O caráter de opor um discurso de

dominação nacional a um discurso de exploração colonial, buscando o resgate e

reflexão da identidade pós-colonial contribuiu para a consolidação desta temática

como a mais recorrente da recepção do romance de Rushdie.

A extensão da bibliografia a tratar deste particular nos leva a descrever em

detalhe apenas aquelas obras de caráter monográfico, cuja ressonância em outros

trabalhos ou originalidade justifique uma descrição mais minuciosa de seu

conteúdo49.

3.2.2.1 Homi K. Bhabha (1998)

Conforme pudemos constatar desde o início deste panorama crítico da obra

de Salman Rushdie, os pensadores dos Estudos Pós-coloniais demonstram-se

como pontos fulcrais de sua recepção. No que trata dos temas relacionados à

questão nacional o intelectual indiano Homi K. Bhabha contribui não apenas para o

reconhecimento d’Os versos satânicos como uma das narrativas exemplares da

estética pós-colonial, mas, principalmente para a consolidação de uma nova

representação da nação:

Os versos satânicos, de Salman Rushdie, busca redefinir as fronteiras da nação ocidental, a fim de que a "estrangeiridade das línguas" se tome a condição cultural inevitável para a enunciação da língua-mãe. [...] Em Os versos satânicos, Rushdie parece sugerir que e somente através do processo de dissemiNação - de significado, tempo, povos, fronteiras culturais e tradições históricas - que a alteridade radical da cultura nacional criara novas formas de viver e escrever (BHABHA, 1998, p. 233-234).

Neste passo de DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação

moderna, Bhabha explora a nação como um processo discursivo, que semelhante à

linguagem nasce da relação enunciativa entre o Eu (self) e o Outro (the other). Neste

sentido, a formação da nação desenvolve-se a partir de signos identitários, é uma

escritura e uma narrativa das comunidades humanas. Em termos de cultura, a nação

é um mosaico de identidades, não existe, na percepção do crítico indiano, a

49

Para mais detalhes sobre a bibliografia a tratar deste assunto, favor consultar as referências das obras consultadas.

Page 95: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

93

possibilidade de pensá-la num estado de pureza ancestral, toda identidade é sempre

constituída no seio do hibridismo e da tensão agonística. Nas palavras de Bhabha

(1998):

Sugeri que o passado nacional atávico e sua linguagem do pertencer arcaico marginalizam o presente da "modernidade" da cultura nacional, de cena forma sugerindo que a história acontece “fora” do centro e do núcleo. Mais especificamente argumentei que apelos ao passado nacional também devem ser vistos como o espaço anterior de significação que “singulariza” a totalidade cultural da nação (BHABHA, 1998, p. 234).

Bhabha no texto citado desenvolve um longo comentário abordando as

personagens d’Os versos satânicos e seus conflitos identitários relacionados com os

diferentes níveis de vivência nacional: “Rushdie personifica nas figuras narrativas

duplas de Gibreel Farishta/Saladin Chamcha, ou Gibreel Farishta/sir Henry Diamond,

o que sugere que a narrativa nacional é o lugar de uma identificação ambivalente”

(BHABHA, 1998, p. 234). Entre os personagens atentados por Bhabha, Gibreel

Farishta é entendido como o avatar mais amplo e complexo da condição in-between

da pós-colonialidade, em sua trajetória a um tempo secular e milenarista o anjo-

homem vivencia a metamoforse desconstrutiva da identidade pós-moderna,

conforme sintetiza Bhabha:

E Gibreel Farishta? Bem, ele e o cisco no olho da historia, seu ponto cego que não deixara o olhar nacionalista se fixar centralmente. Sua mímica da masculinidade colonial e sua mimese permitem que as ausências da história nacional falem na narrativa ambivalente do saco de retalhos. Mas é exatamente esta "bruxaria narrativa" que estabeleceu a própria re-entrada de Gibreel na Inglaterra contemporânea. Como pós-colonial tardio, ele marginaliza e singulariza a totalidade da cultura nacional. Ele é a história que aconteceu em algum outro lugar, no além-mar sua presença pós-colonial, migrante, não evoca uma harmoniosa colcha de retalhos de culturas, mas articula a narrativa da diferença cultural que nunca deixa a história nacional encarar-se a si mesma de modo narcisista (BHABHA, 1998, p. 234-235).

3.2.2.2 Györke Ágnes (2009)

Investigando o tema dos regimes de nacionalidade na contemporaneidade em

sua tese de doutoramento pelo Departamento de Artes da Universidade de

Debrecen (Hungria), Postmodern Nations in alman Rushdie’s Fiction, Györke

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94

Ágnes estuda como o sujeito na condição pós-moderna consegue estabelecer

relações comunitárias e nacionais dentro do contexto de globalização política e

cultural. O crítico húngaro se apropria da discussão da Nação por meio da tensão

entre dois polos: de um lado a fragmentação do discurso nacional imperialista em

nações de passado colonial através de Gayatri Spivak, Ngugi wa Thiong’o e Homi

Bhabha, do outro, a proposta de nacionalismo inerente à condição ocidental por Eric

Hobsbawn:

Desde pós-modernismo questionou a idéia de essência e dicustiu sobre a visão de uma espécie de consciência coletiva, que é a base das nações imaginadas, os dois discursos parecem ser incompatíveis. O princípio nacional, por sua própria natureza, vai contra o pós-modernismo, uma vez que não é nada "hesitante" e "duvidoso": lutas nacionais, que foram desenhando e redesenhando o mapa do mundo ao longo dos séculos, ainda tem lugar, e sua própria presença parece lançar tais categorias como o pós-modernismo de lado, como menores, frívolas, questões teóricas. Apesar do grande número de livros escritos tanto sobrepós-modernismo e nacionalismo, poucos críticos abordam o paradoxo envolvido na idéia de “nações pós-modernas”. A crítica pós-colonial, por exemplo, investiga a questão a partir de várias perspectivas, uma vez que após a descolonização do Terceiro Mundo a formação de nações independentes tornou-se um foco central de análise em uma série de textos históricos e literários (ÁGNES, 2009, p. 02) 50.

Ágnes (2009) examina os romances: Vergonha, Os filhos da meia-noite e Os

versos satânicos de Salman Rushdie para identificar como estas narrativas

contribuem para a representação do discurso de Nação em moldes de uma

nacionalidade pós-moderna. Consoante a análise do crítico húngaro o ficcionista

indiano se apropria do discurso de desconstrução significativa semelhante aos jogos

semânticos de Jacques Derrida para ressignificar as performance social e política da

Nação. Ao criar um mundo onde a comunidade não se limita às fronteiras

50

Tradução livre, do original: Since postmodernism contests the idea of essence and questions the vision of the kind of collective consciousness which is the basis of imagining nations, the two discourses appear to be incompatible. The national principle, by its very nature, goes against postmodernism, since it is anything but “hesitant” and “doubtful”: national struggles, which have been drawing and redrawing the map of the world for centuries, still take place, and their very presence seems to cast such categories as postmodernism aside as minor, frivolous, theoretical issues. Despite the large number of books written both on postmodernism and nationalism, few critics address the paradox involved in the idea of “postmodern nations.” Postcolonial criticism, for instance, investigates the issue from various perspectives, since after the decolonisation of the Third World the formation of independent nations has become a central focus of analysis in a number of historical and literary writings.

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95

geográfico-admnistrativas, mas com a assunção de um discurso cultural comum, as

nações imaginadas (imaginary homelands), Rushdie aponta para a formação de

uma nacionalidade que cumpra realmente com seu papel de unir e não de separar

as identidades.

3.2.3 Localização da obra rushdiana na tradição canônica universal

Um dos aspectos que mais recentemente despertaram a atenção na obra de

Salman Rushdie é encontrar suas linhas de influência estética, a partir dos autores

da Literatura Universal e Indiana de língua inglesa. Para alcançar este escopo, os

estudos tem comparado a obra rushdiana com a de autores canônicos ou dentro

estéticas específicas: realismo pós-moderno; hibridismo literário; narrativa pós-

Étnica; raça, emigração e identidade americana; emigração e literatura.

3.2.3.1 Sibylle Pärsch (2007)

Com a tese de doutoramento pelo departamento de História e Filologia da

Universidade de Augsburg intitulada Differenz und Interdependenz: Die Krise der

Metaerzählungen und ihre Folgen in Salman Rushdies The Satanic Verses und Don

DeLillos Underworld, Sibylle Pärsch aborda os limites e novos usos da

metaficcionalidade nas narrativas pós modernas mais recentes, para isso emprega

uma comparação entre Os versos satânicos de Salman Rushdie e Underground de

Don DeLillos. Á revelia da proposta de Berlatsky (2003), Pärsch compreende que o

romance de Rushdie não se trata de um romance pós-moderno padrão, visto que

diferente doutras narrativas emblemáticas desta estética, há uma preservação da

linearidade diegética, um enredo teleológico e uma integridade formas, apesar da

multirreferencialidade temática. Estas particularidades levam a estudiosa alemã a

apontar que tais obras evidenciam o surgimento de uma nova estética que vai ao

encontro da condição identitária da pós-modernidade. Nas palavras de Pärsch

(2007):

Este trabalho estabeleceu como objetivo traçar um campo de tensão que o romance pós-moderno demonstra em características centrais – representando por Os versos satânicos de Salman Rushdie e Underworld de Don DeLillo (1997). Esta é a diferença entre o movimento e interdependência entre a remoção contínua de regulamentos estabelecidos ou padrões de pensamento e detecção

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96

de ligações recíprocas. O ponto de partida da investigação de partida é uma mudança de ênfase: além de discordar e esforço de rompimento dos romances, este trabalho concentra-se principalmente sobre o conteúdo e forma da experiência estética da negociação de fragmentação e instabilidade. Isso levanta a questão de como muita incerteza e abertura do homem (e da arte) pode realmente suportar. O romance, a tese responde à condição pós-moderna, com um aumento de disparidade, com a pluralização, saltos temporais ou espaciais, etc, mas isso é acompanhado por um aumento de compostos complexos, que define os elementos fragmentados em uma relação tensa com o outro (PÄRSCH, 2007, p. 03) 51.

O estudo de Pärsch (2007) demonstra-se original na medida de trabalhar a

obra de Rushdie numa perspectiva estritamente literária, procurando entender como

a desconstrução filosófica de Jacques Derrida e Jean-François Lyotard contribuiu

para a conformação formal híbrida das tramas pós-modernistas contemporâneas. A

crítica alemã diferente de outros analistas não importa os conceitos decalcados da

filosofia lhes identificando em passos dos romances avaliados, mas investiga

através da hermenêutica literária como tais temáticas filosóficas se presentificam nas

narrativas ficcionais.

3.2.3.2 Mayra Helena Alves Olalquiaga (2010)

Em sua dissertação de mestrado pelo departamento de Letras da

Universidade Federal de Minas Gerais, Mayra Helena Alves Olalquiaga elabora uma

interpretação d’Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie enquanto uma releitura

d’O paraíso perdido de John Milton. A estudiosa brasileira apreende em sua

51

Tradução livre, do original: Diese Arbeit hat sich zum Ziel gesetzt, ein Spannungsfeld zu skizzieren, das den postmodernen Roman – repräsentativ Salman Rushdies The Satanic Verses (1988) und Don DeLillos Underworld (1997) – zentral kennzeichnet. Es handelt sich dabei um die Bewegung zwischen Differenz und Interdependenz, zwischen der kontinuierlichen Demontage etablierter Ordnungen oder Denkmuster und dem Aufspüren wechselseitiger Verbindungen. Den Ausgangspunkt der Untersuchung bildet eine Akzentverschiebung: Neben den Dissens- und Disruptionsbestrebungen der Romane, konzentriert sich diese Arbeit vor allem auf die inhaltliche wie formalästhetische Verhandlung der Erfahrungen von Fragmentierung und Instabilität. Dabei stellt sich die Frage, wie viel Unsicherheit und Offenheit der Mensch (aber auch das Kunstwerk) tatsächlich ertragen kann. Der Roman, so die These, reagiert auf den postmodernen Zustand mit einer Steigerung des Disparaten, mit Pluralisierung, temporalen oder räumlichen Sprüngen etc., doch geht damit eine Steigerung komplexer Verbindungen einher, welche die aufgesplitterten Elemente in eine spannungsreiche Relation zueinander setzt.

Page 99: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

97

comparação a existência de defesa e legitimação nacional presente no épico de

Milton e um questionamento deste discurso n’Os versos satânicos:

Esta dissertação propõe um estudo d’Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie como uma re-leitura de Paraíso perdido de John Milton. O épico de Milton foi lido em termos de imperialismo britânico ligados a uma tradição de afirmação da nação. Retomando Paradise Lost, Os filhos da meia-noite dialoga com estatura do épico de defensor da nacionalidade e sugere que a percepção da nacionalidade são associadas, e informa também uma identidade pós-colonial nacional indiana independente. E, como a explosiva heterogeneidade das superfícies d’Os filhos da meia-noite, caracteriza-se mais como uma comunidade imaginada em vez da homogeneidade estável seu narrador em primeira acredita que deveria ser. Isto leva a um questionamento da nação como o espaço privilegiado para negociar significados e identificação (OLALQUIAGA, 2010, p. ii) 52.

Conforme se observa nesta sinopse, Olalquiaga se apropria de uma temática específica dos estudos pós-coloniais, as pátrias imaginadas (HALL, 2003; ANDERSON, 2006). Desde o declínio do imperialismo europeu no final do século XIX e as constantes crises do nacionalismo no século XX, a prática social da nação teve de se desacoplar das referências geográficas e política, por força da globalização. A vivência da nação tornou-se cada vez mais um aspecto discursivo e cultural que uma realidade material. Neste sentido investigar estas duas formas de narração nacional opera um reconhecimento de um discurso colonial oposto a um discurso pós-colonial conforme descreve Stuart Hall (2003):

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações, uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [. . . ] . As culturas nacionais, ao produzir sent idos sobre “nação”, sentidos com os quais podemos nos identi f icar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam; seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada" (HALL, 2003, p. 50-50).

52

Tradução livre, do original: This thesis proposes a study of Salman Rushdie’s Midnight’s Children as

a re-reading of John Milton’s Paradise Lost. Milton’s epic has been read in terms of British imperialism and linked to a tradition of affirmation of nation. Taking up Paradise Lost, Midnight’s Children dialogues with the epic’s stature of upholder of nationality and suggests that the perception of nation-ness associated to it informs also the independent post-colonial Indian national identity. But as the nation’s explosive heterogeneity surfaces Midnight’s Children characterizes it more as an imagined community instead of the stable homogeneity its narrator first believes it to be. This leads to a questioning of the nation as the privileged space in which to negotiate meanings and identification.

Page 100: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

98

3.2.3.3 Eva Kroupová (2008)

Na dissertação de mestrado pelo departamento de Estudos Ingleses e

Americanos pela Universidade de Masaryk na República Tcheca, Postcolonial

Theory and Practice - Zadie Smith and Salman Rushdie, Eva Kroupová elabora uma

investigação procurando identificar os pontos de contato entre a teoria pós-colonial

em nível filosófico e sociológico e a sua representação estética através das

narrativas de White Teeth da escritora britânica Zadie Smith e d’Os versos satânicos

de Salman Rushdie, conforme a estudiosa descreve:

Em minha dissertação eu gostaria de apresentar as principais teorias e perspectivas sobre pós-colonialismo na literatura. Já havia um grande quantidade de teorias escritas sobre este assunto. Portanto, eu não quero apresentar apenas essas teorias, mas também encontrar as suas principais idéias em prática. Isso significa aplicá-las em obras literárias que se diz ser parte da literatura pós-colonial (KROPOUVÀ, 2008, p. 06) 53. .

Os interesses de Kropouvá centram-se principalmente em dois temas: a

relação das identidades pós-coloniais no contexto da migração para países de

passado metropolitano (imperial) e as instabilidades sociais localizadas no seio do

multiculturalismo. Outro ponto trabalhado no estudo da crítica tcheca é a questão da

recepção do estilo rushdiano por Zadie Smith, considerada por alguns como uma

das escritoras expoentes da literatura pós-colonial contemporânea de língua inglesa.

No que tange a análise estilística comparada das duas obras, Kropouvá

atenta para o uso peculiar do realismo mágico, da pós-modernidade na trama d’Os

versos satânicos, atribuindo-lhe uma multiplicidade formal e semântica que é

assumida por Zadie Smith em White Teeth.

3.2.3.4 Kenneth Sammond (2008) / Ioannis Ziogas (2011)

Um dos temas mais recentes e específicos da recepção d’Os versos

satânicos na tradição canônica universal é a análise da influência da literatura antiga

no obra rushdiana. Seguindo esta abordagem, Kenneth Sammond na tese de

53

Tradução livre, do original: In my thesis I would like to present the main theories and perspectives on postcolonialism in literature. There were already a lot of theories written on this subject. Therefore, I do not want to only present these theories but also find their main ideas in practice. It means applying them on literary works that are said to be part of the postcolonial literature.

Page 101: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

99

doutoramento pelo departamento de Literatura Comparada da Universidade de New

Jersey, Exile and Empire: Post-Imperial Narrative and the National Epic. A

comparative study of the Rushdie’s Satanic Verses & ergil’s Aeneid, desenvolve

uma pesquisa para identificar os pontos de contato e afastamento do uso gênero

épico na contrução das narrativas nacionais presentes nas obras do escritor latino

Públio Virgílio Maro e n’Os versos satânicos de Salman Rushdie.

Esta tese justapõe a Eneida de Virgílio com Os versos satânicos de Salman Rushdie, a fim de explorá-los como épicos, que questionam e desestruturam nossas próprias idéias de civilização, representando uma crise na cultura e antecipam novas formas de imaginar a comunidade. Esta justaposição, desenvolvido a partir de alusões a Virgil encontrados em Os versos satânicos, examina como épico de Virgílio imagina o império e como a obra de Rushdie, enquanto uma forma de épico, cria uma narrativa que eu denomino ‘pós-imperial’ (SAMMOND, 2008, p. ii) 54.

Como é perceptível na descrição do trabalho de Sammond (20008), este se

apropria do conceito de nação enquanto comunidade discursiva trabalhada por

Benedict Anderson em Imagined Communities (2006). A nação é entendida aí como

um sistema de produção e compartilhamento de símbolos que particularizam e

identificam certa comunidade em oposição a outra que não possui estes mesmos

distintivos, consoante Anderson (2006):

A nação é imaginada como limitada porque mesmo a maior delas, abrangendo talvez um bilhão de seres humanos vivos, é limitada, se estendidas, limites, além se encontram outras nações. Nenhuma nação se imagina coincidente com a humanidade. Os nacionalistas mais messiânicos não sonhar com um dia em que todos os membros da raça humana vai se juntar a sua nação no caminho que era possível, em certas épocas, para, por exemplo, os cristãos a sonhar com um planeta totalmente cristão. [...] É imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração reais que possam prevalecer em cada um, a nação é sempre concebida como um profundo agrupamento horizontal (ANDERSON, 2006, p. 07) 55.

54 This dissertation juxtaposes Virgil’s Aeneid with Salman Rushdie’s The Satanic Verses in order to

explore how epics, which question and upend our very ideas of civilization, represent a crisis in culture and anticipate new ways of imagining community. This juxtaposition, developed from allusions to Virgil found in The Satanic Verses, examines how Virgil’s epic imagines empire and how Rushdie’s work, as a type of epic, creates a narrative that I term, ‘post-imperial’.

55 Tradução livre, do original: The nation is imagined as limited because even the largest of them,

encompassing perhaps a billion living human beings, has finite, if elastic, boundaries, beyond which lie other nations. No nation imagines itself coterminous with mankind. The most messianic nationalists do not dream of a day when all the members of the human race will join their nation in the way that it was

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100

Trabalhando um aspecto complementar desta temática, Ioannis Ziogas

aborda a condição de exílio do sujeito num mundo em que as nações têm cada vez

menos contribuído para a formação de uma identidade cultural própria. Neste

particular, o crítico grego associa a narrativa do exílio n’Os versos satânicos com a

vivência e obra do poeta latino Públio Ovídio Naso. Quando estava no ápice de sua

produção intelectual Ovídio foi desterrado de Roma para Tomos no Ponto Euxino, as

razões para seu degredo pelo imperador Augusto são até hoje ignoradas (cf.

ALBRECHT, 2012, p. 664). Mas o fato é que em suas últimas obras

Metamorfoses,Tristes e Epístolas do Ponto, o poeta relata os seus sofrimentos pelo

exílio e por ter que conviver com uma cultura integralmente diversa da sua.

Esse estado de fragmentação identitária leva Ziogas (2011) a comparar a

narrativa do poeta exilado com a do personagem imigrante em Salman Rushdie. No

artigo Ovid in Rushdie, Rushdie in Ovid: A Nexus of Artistic Web, estudioso grego

desenvolve um trabalho que alem de identificar a redes intertextuais da obra

rushdiana, ressalta o papel renovador do ficcionista indiano ao propor uma leitura

mais ampla de um autor pouco estudado em sua medida social e política:

Dois mil anos depois que o imperador Augusto ter relegado Ovídio à margem do mundo então conhecido, Salman Rushdie vê o poeta romano como uma fonte de coragem para ele. [...] as Metamorfoses não são simplesmente um compêndio mitológico aprendido e colorido dos contos metamórficos, mas, Rushdie delineia um trabalho subversivo que denuncia o crime e punição do artista. O engajamento de Rushdie com Ovídio está longe de “ridiculamente romântico” [...]. Nos anos setenta e oitenta, quando a maioria dos estudiosos clássicos pensamento de Ovídio como poeta lúdico e ingênuo, que não tinha nenhum interesse na política, Rushdie era um leitor perspicaz da natureza profundamente política da obra de Ovídio (ZIOGAS, 2011, p. 23)56.

possible, in certain epochs, for, say, Christians to dream of a wholly Christian planet. [...] it is imagined as a community, because, regardless of the actual inequality and exploitation that may prevail in each, the nation is always conceived as a deep, horizontal comradeship.

56 Tradução livre, do original: Two thousand years after the emperor Augustus relegated Ovid to the

fringes of the then known world, Salman Rushdie sees the Roman poet as a source of courage for him. [...] the Metamorphoses is not simply a learned and colorful mythological compendium of metamorphic tales, but—Rushdie’s line—a subversive work that bespeaks the crime and punishment of the artist. Rushdie’s engagement with Ovid is far from “ridiculously romantic” [...]. In the seventies and eighties, when most classical scholars thought of Ovid as a playful and naive poet who had no interest in politics, Rushdie was a keen reader of the deeply political nature of Ovid’s work.

Page 103: A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Rushdie - parte 01

101

3.3 O ESPAÇO TEMATIZADO N’OS VERSOS SATÂNICOS

O espaço tematizado trata-se do espaço imediatamente representado na

narrativa de uma obra, seja através dos momentos de descrição, seja pelo relato

diegético. Conforme foi declarado no capítulo anterior este é o objeto específico da

presente investigação o espaço representado na narrativa d’Os versos satânicos.

Elaborando este inventário crítico do romance de Rushdie, constatou-se que as

análises do seu espaço tematizado são sobremaneira fortuitas, não sendo

encontrada em nenhum nível de produção, uma obra integralmente dedicada ao

assunto especificamente com Os versos satânicos. Os críticos se limitam a emitir

pequenos e pontuais comentários, declarando, por exemplo, que o espaço na obra

rushdiana é “múltiplo” (PÄRSCH, 2007, p.37), “liminar” (BHABHA, 1998, p. 234), “um

espaço de choque entre culturas” (SAID, 1994a, p. 328). Não há dentro da

bibliografia levantada um tratamento detalhado da espacialidade tematizada n’Os

versos satânicos, nem de sua contribuição para a representação do discurso pós-

colonial.

A única exceção relativa deste fenômeno é a obra de Robert P. MaRzec

(2007), An Ecological and Postcolonial Study of Literature: From Daniel Defoe to

Salman Rushdie, em que se propõe a estabelecer uma ontologia do lar (home

ontology) a qual denomina ecologia baseando-se principalmente na fenomenologia

do filósofo alemão Martin Heidegger. No estudo o crítico americano, procura

estabelecer a relação entre os personagens da literatura de língua inglesa e suas

terras natais desde o século XIX, com Robinson Crusoé até a contemporaneidade,

com alguns romances de Salman Rushdie:

Ler Rushdie é experimentar um encontro constante com o que tem de ser encerrado, a fim de que um campo discursivo da realidade nacional permaneça constante e convincente- a terra. Narrativas como Os filhos da meia-noite, Os versos satânicos, O último suspiro do mouro e O chão em que ela pisa oferecem uma recusa controversa e poderosa que Fredric Jameson chamou de “a casa-prisão da linguagem”. Nestes textos, Rushdie se envolve na “a forma como as coisas são”, não apenas a partir da perspectiva foucaultiana d“o caminho que as coisas discursivamente vir a ser ", mas a partir do locus de uma instabilidade discursiva que precede o próprio ato de construção discursiva. Idéias e motivos como “o monstro de muitas cabeças”, “incompatibilidade”, “humanizado” e “terremotos’”, indicam a presença de uma liberdade energização de estabilização forças.[...] Os textos de Rushdie interrogam a relação fundamental entre o essencialmente instável e caótico e as forças institucionais

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estabilizadores da auto-capô, convenção e consenso nacional. O impulso anárquico é, portanto, a "aflição" fundamental contra o qual o país se esforça, vis-à-vis um aparato político reguladora com base em um discurso de gabinete (MARZEC, 2007, p. 155)57.

Conforme se pode averiguar na citação, apesar de tratar de espaço narrativo,

Marzec (2007) o apreende numa medida figurada, enquanto um discurso puramente

simbólico, sem preocupar-se nem com o exame detalhado de suas ocorrências, nem

com uma teoria específica para a descrição do espaço em termos de teoria literária

ou geografia simbólica. Tal caráter faz a abordagem do crítico norte-americano

aproximar-se mais do espaço de recepção do que do espaço tematizado.

3.4 RETROSPECTO

O exame da fortuna crítica d’Os versos satânicos de Salman Rushdie leva a

constatação de que o espaço enquanto dimensão narrativa é um aspecto

parcamente analisado em termos de crítica literária. Tal fenômeno não é de todo

inesperado, pois conforme se explicitou no capítulo anterior a espacialidade costuma

ser tratada como um traço secundário do texto artístico, não merecendo um

aprofundamento mesmo por parte dos teóricos.

Para ultrapassar esta contiguidade recorrente da teoria e do pensamento

geral acerca faz-se necessário desconstruir o paradigma secular de entender o

espaço como um fenômeno autossignificativo e anacrônico e, além disso, reavaliar

as posturas da própria crítica literária o seu objeto. Será que dizer que o espaço

n’Os versos satânicos é “x” ou “y” basta para entendê-lo em sua significação global?

Não seria isto uma volta ao discurso etiquetador (logocêntrico) tão criticado pelo

57

To read Rushdie is to experience a constant encounter with what has to be foreclosed in order that a discursive field of national reality remain constant and convincing—the land. Narratives such as Midnight’s Children, The Satanic Verses, he Moor’s Last igh, and The Ground Beneath Her Feet offer a contentious and powerful refusal to what Fredric Jameson has called “the prison-house of language.” In these texts, Rushdie engages “the way things are,” not only from the Foucauldian perspective of “the way that things have discursively come to be,” but from the locus of a nondiscursive instability that precedes the very act of discursive construction. Ideas and motifs such as “the many-headed monster,” “incompatability”, “humanized,” and “earthquakes” indicate the presence of an energizing freedom from stabilizing forces. [...] Rushdie’s texts interrogate the fundamental relation between the essentially unstable and chaotic and the stabilizing institutional forces of self-hood, convention, and national consensus. The anarchic momentum is thus the fundamental “affliction” against which the nation struggles, vis-à-vis a regulatory political apparatus based upon a discourse of enclosure.

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autor tanto na sua ficção quanto em sua obra crítica? Uma das passagens do

romance aqui analisado é emblemática em questionar qualquer visão do mundo que

se assuma como óbvia e unificada:

Se alguém algum dia tentar convencer você que este belíssimo e mais perverso dos planetas é de alguma forma homogênea, composto apenas de materiais conciliáveis, que tudo se soma, pegue o telefone e ligue para o fabricante de camisas-de-força. [...] O mundo é incompatível, nunca se esqueça: é gagá. Fantasmas, nazistas, santos, todos vivos ao mesmo tempo; num lugar, felicidade perfeita, enquanto virando a esquina está o inferno (RUSHDIE, 1998, p. 245).

É neste contexto plurissignificativo, que não se encerra nas nomenclaturas

que se movimenta o discurso d’Os versos satânicos. Deste modo, para entendê-lo

em quaisquer dos seus níveis constitutivos, o analista deve assumir uma postura

aberta, abandonando-se os valores pré-estabelecidos. Para que sua interpretação

seja coerente, ocasionalmente terá de questionar a própria teoria. Pois, como

qualquer discurso, a crítica literária serve a um contexto de representação que não é

necessariamente o evocado por determinada obra. Conforme, ressaltou Antoine

Compagnon no Demônio da teoria (1999), o analista não deve se iludir pensando

que a sua posição e metodologia privilegiadas tornam a sua análise infalível. A teoria

só se concretiza realmente quando colabora para a ampliação do sentido da

literatura, se apenas lhe reduz a um vocabulário científico, só serve como

instrumento de legitimação ideológico, perdendo o caráter interpretativo que lhe

caracteriza:

A teoria institucionalizou-se, transformou-se em método, tornou se uma pequena técnica pedagógica, frequentemente tão árida quanto a explicação de texto, que ela atacava [...] energicamente. A estagnação parece inscrita no destino [...] de toda teoria. [...] Talvez por isso mesmo ela tenha se tornado rígida. É impossível, hoje, passar num concurso sem dominar os distínguos sutis e o jargão da narratologia. Um candidato que não saiba dizer se o pedaço de texto que tem sob os olhos é “homo” ou “heterodiegético”, “singulativo” ou “iterativo”, de “focalização interna” ou “externa” não é admitido, assim como outrora era necessário distinguir um anacoluto de uma hipálage, e saber a data de nascimento de Montesquieu. [...] A nova crítica, assim como, algumas gerações antes, a história literária de Gustave Lanson, viu se rapidamente reduzida a algumas receitas, truques e astúcias para brilhar nos concursos. O impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação de texto (COMPAGNON, 1999, p.13).

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Assume-se esta provocação de Antoine Compagnon como lema da presente

investigação sobre a representação da metrópole pós-colonial n’Os versos satânicos

de Salman Rushdie. A teoria da literatura e a reflexão do espaço servem apenas de

guias e as categorias selecionadas para a análise não trazem em si, conceitos

definitivos a serem reproduzidos. Neste sentido, a pesquisa multidisciplinar entre a

crítica literária e geografia simbólica contribui para a formação de uma análise mais

ampla e profunda da espacialidade no romance de Rushdie: pois onde uma

apresenta uma lacuna, a outra oferta um caminho alternativo, tornando-as

igualmente relevantes para este estudo.

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