119
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HELENA LÍVIA DEDECEK GERTZ A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA REVISTA DER SPIEGEL: A PERSISTÊNCIA DO ESTEREÓTIPO PORTO ALEGRE 2013

A Representação Do Brasil Na Revista Der Spiegel

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Monografia de Conclusão de Curso. Estudo comparativo das reportagens sobre o Brasil publicadas pela revista Der Spiegel em 2001 e entre agosto de 2010 e agosto de 2011, utilizando a metodologia da Análise de Cobertura Jornalística, desenvolvida por Gislene Silva e Flávia Maia. Observa-se que, mesmo com a emergência do Brasil no cenário político e econômico como "softpower" e "sexta maior economia do mundo" no cenário internacional da época, a revista segue repetindo estereótipos especialmente no que se refere às mulheres, aos indígenas e aos pobres.

Citation preview

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    HELENA LVIA DEDECEK GERTZ

    A REPRESENTAO DO BRASIL NA REVISTA DER SPIEGEL: A PERSISTNCIA DO ESTERETIPO

    PORTO ALEGRE 2013

  • 1

    HELENA LVIA DEDECEK GERTZ

    A REPRESENTAO DO BRASIL NA REVISTA DER SPIEGEL:

    A PERSISTNCIA DO ESTERETIPO

    Monografia apresentada como requisito para a obteno do grau de graduao em Jornalismo da Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientadora: Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy

    Porto Alegre

    2013

  • 2

    HELENA LVIA DEDECEK GERTZ

    A REPRESENTAO DO BRASIL NA REVISTA DER SPIEGEL:

    A PERSISTNCIA DO ESTERETIPO

    Monografia apresentada como requisito para a obteno do grau de graduao em Jornalismo da Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em: ___ de _____________ de ______.

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Antonio Carlos Hohlfeldt

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Juan Domingues

    __________________________________________________

    Prof. Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy

    PORTO ALEGRE

    2013

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    A meus pais e meus amigos.

    minha orientadora, Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy.

    Pela pacincia e ensinamentos, obrigada.

  • 4

    RESUMO

    Neste trabalho se analisa a representao do Brasil atravs de textos

    publicados na revista alem Der Spiegel. Tem-se o objetivo de entender como

    a publicao contribui para a formao do imaginrio de seus leitores sobre o

    pas e, para tanto, foi feita uma relao entre o contedo que aborda o tema

    publicado no ano de 2001e no perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2011.

    Foram observados 17 textos de diferentes formas narrativas a partir do

    protocolo de Anlise de Cobertura Jornalstica, proposto por Silva e Maia

    (2011). Com a observao das publicaes dos dois intervalos de tempo,

    separados por dez anos, esperava-se notar uma variao no noticirio que

    revele uma mudana na temtica dos textos sobre o Brasil. Contudo, percebeu-

    se que, mesmo com a passagem de tempo e os avanos nas reas social,

    econmica e poltica, persiste o esteretipo de um pas violento, corrupto, mal

    planejado, habitado um povo alegre composto por mulheres erotizadas,

    indgenas e caboclos sem conscincia ecolgica e que se preocupa mais com

    futebol do que com o pas onde vive.

    PALAVRAS-CHAVE: Brasil, Representao, Esteretipo, Der Spiegel

  • 5

    ABSTRACT

    Neste trabalho se analisa a representao do Brasil atravs de textos

    publicados na revista alem Der Spiegel. Tem-se o objetivo de entender como

    a publicao contribui para a formao do imaginrio de seus leitores sobre o

    pas e, para tanto, foi feita uma relao entre o contedo que aborda o tema

    publicado no ano de 2001e no perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2011.

    Foram observados 17 textos de diferentes formas narrativas a partir do

    protocolo de Anlise de Cobertura Jornalstica, proposto por Silva e Maia

    (2011). Com a observao das publicaes dos dois intervalos de tempo,

    separados por dez anos, esperava-se notar uma variao no noticirio que

    revele uma mudana na temtica dos textos sobre o Brasil. Contudo, percebeu-

    se que, mesmo com a passagem de tempo e os avanos nas reas social,

    econmica e poltica, persiste o esteretipo de um pas violento, corrupto, mal

    planejado, habitado um povo alegre composto por mulheres erotizadas,

    indgenas e caboclos sem conscincia ecolgica e que se preocupa mais com

    futebol do que com o pas onde vive.

    KEY WORDS: Brazil, Representation, Stereotype, Der Spiegel

  • 6

    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Capa da revista Newsweek ..................... 17

    Figura 2 Capa da revista Der Spiegel ........................................................... 17

    Figura 3 Capa da revista Time ...................................................................... 17

  • 7

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Dados quantitativos sobre visibilidade dos pases ........................ 26

    Tabela 2 Dados quantitativos sobre contedo das reportagens sobre

    a Amrica Latina ....................................................................................27

    Tabela 3 Dados quantitativos sobre forma narrativa .................................... 28

    Tabela 4 Dados quantitativos sobre seo personalidades ......................... 30

    Tabela 5 Temas das reportagens selecionadas sobre o Brasil .................... 33

    Tabela 6 Dados quantitativos sobre forma narrativa de todos os

    textos analisados sobre o Brasil .......................................................... 34

  • 8

    SUMRIO 1 INTRODUO ........................................................................................ 10 2 A REVISTA DER SPIEGEL: HISTRIA E CONTEXTO MIDITICO .. 13 2.1 A AMRICA LATINA E O BRASIL NA REVISTA DER SPIEGEL: METODOLOGIA DE ANLISE ........................................................ 20 2.2 CORPUS DE PESQUISA ..................................................................... 24 3 REPRESENTAO: DEFINIO GERAL ............................................. 35 3.1 REPRESENTAES NO JORNALISMO ............................................. 39 3.2 JORNALISMO INTERNACIONAL: COMO COMUNICAR INTERCULTURALMENTE ............................................................... 44 4 AMRICA LATINA E BRASIL: CONTEXTO SOCIOECONMICO ATUAL .............................................................................................. 53 5 A ANLISE DE COBERTURA JORNALSTICA PROPRIAMENTE DITA .......................................................................................................... 69 5.1 PERODO DE 2001 ................................................................................ 69 5.2 PERODO DE 2010 A 2011 .................................................................... 94 5.3 A VIGNCIA DO ESTERETIPO ......................................................... 103 6 CONCLUSO ........................................................................................... 109

  • 9

    REFERNCIAS .......................................................................................... 112

  • 10

    INTRODUO

    No dia 15 de junho de 2013, o caderno Cultura do jornal Zero Hora

    publicou uma reportagem sobre as notcias veiculadas sobre o Brasil na mdia

    estrangeira. A forma como o estrangeiro v o Brasil de interesse do governo,

    de empresas e dos brasileiros. A representao do pas, atravs do jornalismo,

    envolve questes polticas, econmicas e sociais especialmente no momento

    em que o pas emerge, no cenrio internacional, como potncia.

    dentro desse tema que se situa a presente monografia. A escolha por

    analisar as representaes da revista Der Spiegel foi feita porque trata-se de

    um dos peridicos mais lidos em pases de lngua alem1, com mais de seis

    milhes de leitores, e reconhecido por ser um veculo de credibilidade no

    contexto europeu. A opo por uma revista alem, tambm, se deve a minha

    ligao pessoal com o pas: entre 2009 e 2010, tive a oportunidade de estudar

    na Universidade Catlica de Eichsttt, na Bavria, por meio de convnio com a

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Durante essa estada, ,

    chamou a ateno os comentrios de meus colegas alemes sobre o Brasil e

    o choque ao descobrir que no se fala espanhol no maior pas da Amrica

    Latina e a cobertura da imprensa local sobre meu pas de origem

    principalmente, centrado na cobertura do futebol, de crimes e de temas

    relacionados a mulheres. O que li e ouvi, nessa experincia de intercmbio,

    no coincidia com a minha imagem sobre o Brasil: um pas ainda com graves

    problemas, mas que, no entanto, parecia seguir uma curva ascendente de

    melhorias em questes democrticas, educacionais, de infraestrutura e direitos

    humanos.

    Acredito que a mdia responsvel pela formao de parte da viso de

    mundo das pessoas. Sendo assim, parte daquilo que os alemes pensam

    sobre o Brasil provm da mdia. As notcias que formam o ponto de vista

    destes alemes fundamentalmente produzida por jornalistas. E, aqueles

    jornalistas que, em teoria, teriam mais credibilidade para passar informaes

    sobre qualquer assunto, so os que acompanharam o fato a ser noticiado in

    1 Segundo a instituio que monitora a mdia alem Presse-Monitor (PMG), a revista Der Spiegel foi a mais citada em 2011. Disponvel em . Acesso em 25 maio 2012.

  • 11

    loco. A revista Der Spiegel, uma das publicaes de maior circulao no pas,

    possui correspondentes no Brasil, que acompanham os fatos que ocorrem no

    nosso contexto. Porm, que tipo de representao este jornalista, que

    acompanha fatos in loco e relata o que viu para mais de seis milhes de

    leitores estaria publicando para que eu precisasse explicar que sim, temos

    abastecimento de energia eltrica; no, nem todo brasileiro negro; no, falo

    alemo, mas no sou neta de nazistas que fugiram para a Amrica do Sul; e

    no, nem todo morador de favela criminoso?

    Assim, surgiu a ideia de observar como a revista Der Spiegel cobre

    assuntos relacionados ao Brasil, quais so os temas mais recorrentes na

    abordagem. Para efetivar essa proposta, foram selecionados dois perodos de

    tempo, procurando responder um questionamento mais especfico: houve

    variao na cobertura? Afinal, a proposta do jornalismo acompanhar

    mudanas. Escolheu-se iniciar a anlise pelo ano de 2001. Neste ano, o

    jornalista do Financial Times Jim O'Neill cunhou2 a sigla BRIC para designar os

    pases de economias emergentes Brasil, Rssia, ndia e China. O ano tambm

    marcou o fim do governo de Fernando Henrique Cardoso e o incio da corrida

    eleitoral que elegeu Lus Incio Lula da Silva, em 2002. A partir de ento, o

    efeito do Plano Real ligado ao investimento em projetos sociais comeou a

    impulsionar a economia e o desenvolvimento humano do pas. Em outubro de

    2010, Dilma Rousseff foi eleita e, em 2011, iniciou seu mandato. Neste

    intervalo de dez anos, o pas mudou.

    Para observar se a reportagem da revista Der Spiegel acompanhou esta

    mudana, foram separados textos que noticiavam sobre o Brasil no ano de

    2001 e no perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2011. Entre notas,

    reportagens, entrevistas, cartas da redao, perfis e obiturios, foram

    identificados 33 materiais jornalsticos cujo tema principal envolvia o pas, dos

    quais 17 foram selecionados por serem considerados as formas narrativas

    mais importantes sobre sua representao. Nestes 17 textos, de diferentes

    formas narrativas, foi aplicado o protocolo de anlise sugerido por Gislene Silva

    e Flvia Dourado Maia (2011) que, partindo do pressuposto de que a forma de

    produo deixa marcas no produto final do jornalismo, prope uma articulao

    2 http://www.ft.com/cms/s/0/112ca932-00ab-11df-ae8d-00144feabdc0.html, acesso em 16 de junho de 2013.

  • 12

    entre narrativa e apurao, considerando ainda o contexto macro como

    ambiente fundamental na produo da cobertura jornalstica.

    Com essa estratgia, pretende-se responder:

    a) Como o Brasil era representado em 2001 e no perodo entre 2010 e

    2011?

    b) Houve mudanas nestas representaes?

    c) Caso houve, em que sentido a representao mudou?

    d) Caso no houve, por que o jornalista no acompanhou as mudanas

    do pas?

    Com estas questes respondidas, espera-se chegar a uma concluso

    sobre de que modo a representao do Brasil na revista Der Spiegel pode estar

    gerando, ou perpetuando, preconceitos ou, por outro lado, informando seu

    leitor sobre o que acontece no pas dentro dos parmetros da interculturalidade

    que pautariam o jornalismo internacional.

    Para se chegar a esta concluso, sero apresentados os quatro vetores

    envolvidos na pesquisa: 1) o contexto miditico no qual a revista Der Spiegel se

    insere e sua histria, o que ajuda a entender o posicionamento do veculo e

    proporciona uma imagem do perfil de seu pblico leitor, 2) a situao social,

    econmica e poltica do Brasil tendo em vista sua evoluo ao longo dos dez

    anos entre 2001 e metade de 2011 e sua insero no continente latino-

    americano, 3) a funo da representao na sociedade e especificamente no

    jornalismo e 4) a tarefa do correspondente internacional de comunicar

    interculturalmente. A metodologia de pesquisa e o corpus de anlise

    esclarecem a dimenso do assunto, atravs da quantificao em tabelas, e da

    forma pela ser abordado. Por fim, no ltimo captulo, os quatro vetores de

    pesquisa sero articulados com a anlise de cobertura jornalstica,

    denominao adotada por Silva e Maia (2011) para o protocolo metodolgico, o

    que d origem s respostas que este trabalho se prope a responder.

    Com essa anlise, espera-se compreender, pelo menos em parte, a

    forma como o pas visto pelos leitores da Der Spiegel e com quais aspectos a

    cultura e a sociedade brasileiras so vinculadas no imaginrio alemo.

  • 13

    1. A revista Der Spiegel: histria e contexto miditico

    Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a Alemanha foi ocupada

    pelas foras armadas dos chamados pases aliados (Unio Sovitica, Frana,

    Estados Unidos, Gr-Bretanha), que dividiram o territrio do pas entre si. Os

    campos de concentrao revelaram a barbrie da humanidade, o ataque de

    Hiroshima mostrou que o homem capaz de matar outros iguais com bombas

    nucleares e o peso dos interesses econmicos nas decises polticas foram

    percebidos como mais fortes do que qualquer outro aspecto. As pessoas

    haviam passado por bombardeios, as cidades estavam destrudas e as famlias

    estavam separadas. A economia e a infraestrutura internas estavam falidas e a

    nova sociedade, em organizao, buscava formas de limpar o pas dos atos

    do passado nazista e impedir que o mesmo se repetisse (Bundeszentrale fr

    politische Bildung3, a agncia nacional para educao poltica). A poca do

    ps-guerra ficou conhecida como hora zero para a Alemanha: a poca da

    reconstruo a partir do nada.

    Dois anos aps o fim da guerra, em janeiro de 1947, surgiu, em Hannover,

    cidade do norte da Alemanha de pouco mais de 500 mil de habitantes, a revista

    semanal Der Spiegel, O Espelho em alemo. poca, a publicao foi

    patrocinada por militares britnicos, que ocupavam a cidade sede, para

    finalmente trazer novamente notcias objetivas aos alemes (Pgina oficial

    do Grupo Spiegel na internet4). A revista foi concebida nos padres das news

    magazines anglo-saxnicas, como a Time e Newsweek. Atualmente, Der

    Spiegel a revista de seu gnero mais vendida da Alemanha, com

    aproximadamente 900 mil exemplares por semana5 e com mais de seis

    3 Bundeszentrale fr politische Bildung (bpb), disponvel em http://www.bpb.de/themen/6AFV6I,0,0,Deutschland_nach_1945.html, acesso em 23 de maro de 2013.

    4 Histria do Spiegel Gruppe, disponvel em http://www.spiegelgruppe.de/spiegelgruppe/home.nsf/Navigation/00725D93EF0ABA5BC1256FD600330072?OpenDocument, acesso em 23 de maro de 2013.

    5 Segundo dados de 2012 da Sociedade para determinao de veculos divulgadores de publicidade (Informationsgemeinschaft zur Feststellung der Verbreitung von Werbetrger) http://daten.ivw.eu/index.php?menuid=1&u=&p=&20124=ON&20123=ON&detail=true&titelnrliste=122;&alle=%5BDetails%5D, acesso em 24 de maro de 2013.

  • 14

    milhes de leitores6, e tambm uma das de maior circulao na Europa.7

    Devido a esta influncia, a revista tida como um dos veculos formadores de

    opinio em regies de lngua alem e nos outros 169 pases onde vendida.

    O alemo Rudolf Karl Augstein foi nomeado pelos militares britnicos como

    o primeiro redator-chefe da revista. Augstein, que tambm usava os

    pseudnimos Moritz Pfeil e Jens Daniel, iniciou sua carreira no jornalismo sem

    formao acadmica, atravs de um estgio voluntrio no jornal

    Hannoverscher Anzeiger, que mais tarde se tornou o Hannoversche Allgemeine

    Zeitung, cuja principal rea de circulao est no norte da Alemanha. Em 1942,

    durante a guerra, Augstein trabalhara como operador de rdio para o governo

    alemo. Quando o fim do conflito se aproximava, ele foi promovido de

    observador dos aliados para tenente da reserva. Com o fim da guerra, Augstein

    se tornou editor-chefe do Hannoversches Nachrichtenblatt. Em 1946, aos 23

    anos, o jornalista era considerado politicamente neutro8, e, por isso, foi

    nomeado pelos oficiais da imprensa militar britnica John Seymour

    Chaloner, Harry Bohrer e Henry Ormond, como redator da revista Diese Woche

    (Esta Semana, em traduo livre), que antecedeu a criao da Der Spiegel.

    Segundo relato de Harry Bohrer a Leo Brawand (1987), Chaloner achava os

    jornais alemes muito chatos e no queria mais l-los. [...] Ele queria criar algo

    mais vibrante e interessante, assim como a News Review ou a Time

    (BRAWAND, 1987, p. 29) 9. Brawand, um dos co-fundadores da revista e que

    tambm participou do projeto Diese Woche, escreve que o primeiro homem

    dos redatores alemes era um jovem plido e de culos, chamado pelos outros

    6 De acordo com a Arbeitsgemeinschaft Media-Analyse (Associao de anlise da mdia), 2013, e a Allensbacher Markt- und Werbetrgeranalyse (Empresa de anlise de mercado e divulgao de publicidade de Allensbach), 2012.

    7 Segundo informa a pgina da revista online em , acesso em 24 de maro de 2013.

    8 Segundo a descrio de Rudolf Augstein pelo International Press Institute (IPI), baseado na ustria, em 2000 por ocasio da condecorao do jornalista com heri da liberdade de imprensa mundial. Disponvel em http://www.freemedia.at/awards/rudolf-augstein.html, acesso em 24 de maro de 2013.

    9 Traduo nossa. No original: Er finde die deutsche Tageszeitungen [...] sterbelangweilig; er knne sie bald nicht mehr lesen. Man msse etwas viel Lebendigeres, Interessanteres mit viel Hintergrund bringen, so etwas wie das britische Magazin News Review oder das amerikanische Time.

  • 15

    de o pequeno pelo menos no incio (Idem, p.14) 10. Brawand revela que o

    colega no possua grande experincia em jornalismo (os estgios nos jornais

    de Hannover no teriam passado de alguns meses) e que tambm teria escrito

    crticas de teatro e textos polticos inofensivos para a publicao nazista Das

    Reich, o que, junto com o trabalho de radialista durante a guerra, lhe rendeu

    acusaes de participao na SS. Seu tipo de alemo, segundo Brawand,

    seria o do jovem que cresceu durante o Terceiro Reich, serviu ao exrcito por

    obrigao, foi anistiado por falta de atividade poltica, e que, quando adulto, se

    tornou um cidado exemplar durante a desnazificao11classificado como no

    acusado.

    Brawand revela que a criao da nova revista era basicamente uma ideia

    maluca do Major Chaloner, entediado com o fim da guerra (Idem, p. 16) 12, e

    que inclusive Augstein acreditava ser uma publicao satrica.

    Depois de apenas seis edies, o projeto foi cancelado pelos britnicos

    devido publicao de crticas sobre a ocupao dos pases aliados na

    Alemanha.13 Chaloner, um dos oficiais britnicos fundadores da revista,

    conseguiu permisso para entregar a marca a seu proteg Rudolf Augstein,

    liberando-a da ligao com o governo. Assim, em janeiro de 1947, um ano

    aps a criao e cancelamento da Diese Woche, foi lanada Der Spiegel,

    revista de assuntos gerais (esporte, poltica, cultura, economia, cincia) com o

    preo de um Reichsmark. Brawand escreve que Augstein esperava que a

    revista conseguisse criar transparncia democrtica e expor o abismo entre a

    demagogia poltica e a ao seria a tarefa da revista 14 (Idem, p. 60). Rudolf

    10 Traduo nossa. No original: Erster Mann unter den deutschen Redakteuren schien ein blasser, bebrillter Jngling zu sein, den die anderen den Kleinen nannten jedenfalls zu Anfang.

    11 Traduo literal de Entnazifizierung.

    12 Traduo nossa. No original: bei der Grndung der neuen Zeitschrift handelte es sich im Grunde um eine Schnapsidee des sich nach Ende der Kampfhandlungen langweilenden Majors Chaloner.

    13 Segundo informa a pgina do Spiegel Gruppe em http://www.spiegelgruppe.de/spiegelgruppe/home.nsf/Navigation/00725D93EF0ABA5BC1256FD600330072?OpenDocument, acesso em 24 de maro de 2013.

    14 Traduo nossa. No original: So etwas, [...] demokratische Transparenz zu schaffen und berhaupt die Hohlrume zwischen politischer Deklamation und tatschlichen Handeln blozulegen, das msse auch die aufgabe des Magazins werden.

  • 16

    Augstein ocupou a posio de redator-chefe at sua morte, em novembro de

    2002.

    Segundo o manual de redao, o Spiegel Statut, de 1949,

    A Spiegel uma revista de notcias e curiosidades. Portanto deve ser:

    atual;

    um contedo altamente voltado para notcias e curiosidades. Por isso,

    deve procurar notcias e curiosidades pessoais, ntimas e contextuais,

    alm daquelas apresentadas pela imprensa diria;

    interessante. Isso significa:

    com instinto jornalstico certeiro, reconhecer acontecimentos atuais

    que possam interessar, tocar, emocionar imediatamente um grande

    grupo de leigos.

    esses acontecimentos devem ser trabalhados de forma que

    imediatamente salte aos olhos do leitor leigo comum, que o amarre e

    que ele possa ler at o fim sem dificuldades e com prazer. (Uma

    notcia-Spiegel que precisa ser lida duas vezes para ser

    compreendida no uma histria-Spiegel). (BRAWAND, 1987, p.

    225) 15.

    O uso de temos como curiosidades pessoais, ntimas, neste estatuto,

    pode dar a impresso de que se trata de uma revista de jornalismo popular, no

    entanto, Der Spiegel exerce jornalismo de qualidade e investigativo16, seguindo

    o exemplo das revistas anglo-saxnicas que a inspiraram (BRITZ, 2008, p. 42).

    Neste caso, a apresentao destas curiosidades diz respeito indicao de

    que a cobertura deve ser profundamente contextualizada e, se necessrio,

    dados sobre a vida pessoal dos envolvidos podem ser publicados, desde que

    estejam ligados notcia em questo.

    15 Traduo nossa. No original: Der SPIEGEL ist ein Nachrichten-(Neuigketein-) Magazin. Darum muss der SPIEGEL: 1. Aktuell sein, 2. Einen hohen Nachrichten-(Neuigkeits-)Gehalt haben. Dabei muss er andere, das heit persnlichere, intimere, hintergrndigere Nachrichten (Neuigkeiten) mitteilen und verarbeiten, als sie die Tagespresse darbietet, 3. Interessant sein. Das heisst: a) er muss mit sicherem journalistischem Instinkt die aktuellen Vorgnge erkennen, von denen sofort angenommen werden kann, dass sie einen breiten Kreis normal interesierter Laien berhren, angehen, beschftigen. b) er muss diese Vorgnge in einer Art servieren, auf die dieser normale Laienleser sofort anspringt, die ihn fesselt und die ihn mit Vergngen und ohne Mhe das Ganze zu Ende lesen lsst. (Ein SPIEGEL-Bericht, den man zweimal lesen muss, um ihn zu verstehen, ist keine SPIEGEL-Geschichte).

    16 Site do Grupo Spiegel, http://www.spiegelgruppe.de/spiegelgruppe/home.nsf/Navigation/440FBE98BAF7E2F8C1256FD5004406DD?OpenDocument, acesso em 30 de maro de 2013.

  • 17

    As semelhanas com revistas generalistas anglo-saxnicas, como Time

    e Newsweek, tambm so percebidas no design grfico.

    Figura 1 Figura 2 Figura 3

    Capa da revista Newsweek17 Capa da revista Der Spiegel18 Capa da revista Time19

    Mesmo com clara diferena, no posicionamento das imagens, na

    tipografia, nos espaos em branco, percebe-se um padro nas capas das trs

    publicaes. A cor vermelha, que remete nobreza e ao requinte, guerra e

    tambm a sentimentos como raiva, coragem e paixo, predominante

    (GUIMARES, 2003). A escolha da famlia tipogrfica varia nas trs capas, no

    entanto, todas so serifadas, o que remete escrita latina, considerada

    requintada e racional.20 Pode-se ento afirmar que as trs revistas procuravam

    se colocar no mercado como publicaes respeitveis, confiveis, srias. Der

    Spiegel se tornou referncia no chamado jornalismo investigativo na

    Alemanha21, e tambm tem fama de ser a mais detestada por polticos (BRITZ,

    2008, p. 42).

    17 Imagem disponvel em http://delawarereason.com/?p=3234, acesso em 17 de junho de 2013.

    18 Imagem disponvel em http://www.rp-online.de/gesellschaft/fernsehen/immer-wieder-montags-1.2035456, acesso em 17 de junho de 2013.

    19 Imagem disponvel em http://g7e9.wordpress.com/, acesso em 17 de junho de 2013.

    20 Segundo pgina do designer Paulo Heitlinger http://tipografos.net/escrita/letra-dos-romanos-3.html>, acesso em 24 de maro de 2013.

    21 De acordo com o International Press Institute (IPI), como afirmado no site da revista e reconhecido pela revista concorrente Stern em http://www.stern.de/kultur/buecher/der-spiegel-erfolge-feiern-mit-skandalen-579670.html, acesso em 24 de maro de 2013.

  • 18

    Um dos casos de investigao mais importantes da revista ficou

    conhecido como Spiegel-Affre, em 1962, e levou priso de Rudolf Augstein.

    O caso foi considerado o maior escndalo poltico da jovem Repblica Federal

    da Alemanha (RFA), aps o fim da Segunda Guerra. A revista foi acusada de

    alta traio devido publicao de informaes confidenciais sobre estratgias

    de defesa da RFA, que estariam marcadas por irregularidades e desvios de

    dinheiro, em um esquema em conjunto com a Organizao do Tratado do

    Atlntico Norte (Otan) e com o conhecimento do ento primeiro-ministro Konrad

    Adenauer. O governo alemo decretou a invaso da sede do peridico, que

    fora transferida de Hannover para Hamburgo, em 1952, e a priso do editor-

    chefe e de todos os outros editores que ficaram em custdia, por 103 dias. O

    caso comoveu a populao, que, com medo de uma possvel quebra da recm-

    instalada repblica, saiu s ruas em uma onda de protestos que culminou com

    a libertao dos jornalistas, com a renncia do ento ministro da defesa, Franz

    Josef Strauss, que chegou a chamar a revista de Gestapo do nosso tempo 22,

    e com o incio do fim da Era Adenauer (1949 1963).

    Mais recentemente, em 2011, uma reportagem revelou a negociao da

    venda proibida de tanques de guerra entre Alemanha e Arbia Saudita, e um

    escndalo envolvendo um famoso cirurgio plstico alemo, e alterao de

    registros mdicos. Der Spiegel no s revelou escndalos, como tambm foi

    alvo de crticas. A situao mais marcante foi em relao a uma reportagem, de

    1997, sobre AIDS, sendo acusada de espalhar o pnico (HANS-JRGEN,

    2005). O texto fazia questionamentos como Uma nova peste nos ameaa? e

    Seria a AIDS um cavaleiro apocalptico montado em um corcel negro que vem

    para ameaar a humanidade?, alm de afirmaes de que crianas, recm-

    operados, vtimas de acidentes e pacientes de hospitais corriam grave risco de

    serem infectados.

    Em 1994, o Grupo Spiegel, que, em termos de mdia impressa, detm

    21 ttulos de revistas, lanou sua verso digital (www.spiegel.de). O acesso s

    reportagens gratuito, no entanto, o acesso s ltimas verses impressas s

    possvel mediante pagamento. Atualmente, h uma verso em ingls no site, a

    22 Disponvel em http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-46174133.html, acesso em 24 de maro de 2013.

  • 19

    Spiegel International. Alm da revista nacional de assuntos gerais, o Grupo

    Spiegel responsvel pela Spiegel Geschichte (revista trimestral temtica

    sobre fatos histricos), Spiegel Wissen (revista publicada quatro vezes por ano,

    voltada para filosofia e cincia), Dein Spiegel (revista mensal com contedo

    especial para crianas), New Scientist (revista semanal editada em alemo em

    parceria com a publicao original inglesa), Spiegel Jahres-Chronik (publicao

    de retrospectiva anual), KulturSPIEGEL (caderno mensal de cultura), manager

    magazin e manager magazin online (revista mensal voltada para empresrios e

    sua verso para web), Harvard Business Manager e Harvard Business

    Manager online (verso alem parceira da norte-americana Harward Business

    Review e sua verso online) e a Unterrichtsmagazin (revista de ensino,

    publicada em conjunto com a editora Klett, circula trs vezes por ano e traz

    assuntos voltados a alunos e professores do ensino mdio), UniSPIEGEL

    (voltado para a estudantes de graduao, publicado seis vezes ao ano),

    quatro revistas voltadas para Literatura (buchreport, buch aktuell,

    Taschenbuch-Magazin e ecco), e outros dois ttulos de menor circulao, a

    lebenswert, sobre bem-estar e sade, e a revista feminina piazza. Em termos

    de outras mdias, o grupo dono da SPIEGEL TV (canal do grupo em parceria

    com os canais de TV aberta RTL e Sat.1, tambm pode ser assistido online),

    ASPEKT Telefilm (produtora de filmes para TV e sries). Alm de explorar o

    mercado de comunicao, o Spiegel Gruppe tambm possui uma editora de

    livros e udio-livros, que publica majoritariamente bestsellers, e a loja virtual

    SPIEGEL-Shop, que vende coletneas de filmes organizadas pela editora,

    CDs, livros, brinquedos, calendrios e jogos de computador.

    Atualmente, os redatores-chefe da revista Der Spiegel so Georg

    Mascolo (impresso) e Mathias Mller von Blumencron (online). A revista conta

    com sete sucursais na Alemanha, a maior delas em Berlin, com 37

    profissionais, e com 18 correspondentes no exterior. A maior redao fora da

    Alemanha est em Moscou, somando 270 jornalistas. No Brasil, h um

    jornalista correspondente. No ano de 2012, a mdia de pginas por edio

    atingiu 124 pginas. Alm do trabalho das revistas e sites, o Grupo Spiegel

    mantm um arquivo com mais de 60 milhes de documentos de texto e cinco

    milhes de fotografias, um dos maiores da Europa (KUBY, 1987, p. 29). Mais

  • 20

    de 300 publicaes em 15 lnguas so regularmente registradas no arquivo h

    65 anos.23

    1.2. A Amrica Latina e o Brasil na revista Der Spiegel: metodologia de

    anlise

    A presente anlise em torno do jornalismo parte da perspectiva terica

    de que o processo de produo da mensagem e de sua recepo na sociedade

    no so categorias estanques, mas sim fatores que se complementam. Com

    isso, se pretende ter uma viso global do trabalho jornalstico.24

    Aqui, o cotidiano da redao e as formas de apurao do fato no fazem

    parte da observao direta desta pesquisadora, j que no foi possvel

    acompanhar a rotina dos reprteres cujos textos so aqui analisados. No

    entanto, reivindica-se que, para fazer uma anlise elaborada sobre o produto

    do jornalismo, preciso levar em conta a perspectiva do narrador, o ponto de

    vista a partir do qual o jornalista escreve. Ou seja, a rotina do jornalista nos

    interessa para compreender o ponto de vista a partir do qual a notcia

    apurada. Como Gislene Silva e Flvia Maia (2012, p. 2) apresentam, em se

    tratando de textos jornalsticos, o processo de produo no desaparece do

    produto. Com isso, as autoras defendem que a forma como a notcia

    produzida deixa, obrigatoriamente, marcas na narrativa final.

    As autoras aproximam o jornalismo como traduo dos fatos do

    trabalho de traduo de lnguas: o jornalismo traduz fatos cotidianos para

    aqueles que no os vivenciaram e a traduo lingustica traduz textos originais

    para os que no podem decodific-los, ambos os processos feitos de modo fiel,

    objetivo e veraz (Ibid., p. 2). No cabe aqui aprofundar a anlise sobre

    traduo, no entanto importante ressaltar o uso dos adjetivos fiel, objetivo e

    veraz como caractersticas da traduo do fato. Assim como a verso de um

    texto de uma lngua para outra, a apresentao de um acontecimento, uma

    traduo cultural (Ibidem, p. 2), no uma construo original, mas sim uma

    23 Informaes disponveis em http://www.spiegelgruppe.de, acesso em 24 de maro de 2013.

    24 Autores, como Aline Strelow (2010), propem uma metodologia de anlise global do jornalismo, porm neste trabalho ser utilizado outro referencial terico mais adequado proposta.

  • 21

    interpretao o mais verossmil e prxima possvel do primeiro objeto.

    Construo que, ao ser interpretada, repassada ao receptor carregada do

    ponto de vista do tradutor ou jornalista.

    Portanto, se faz necessria uma anlise da forma de produo do

    contedo a ser estudado (nvel 1 do mtodo de Anlise de Cobertura

    Jornalstica [ACJ], a ser apresentado adiante) que levar em conta as marcas

    de produo que o prprio texto leva e da forma de trabalho e do ponto de vista

    do correspondente. Esta observao serve para identificar o posicionamento do

    jornalismo em relao a seu produto, aqui entendido como o material

    jornalstico produzido. A narrativa final, com suas marcas de produo, compe

    o principal corpus desta pesquisa, sobre o qual se pretende descobrir o que o

    discurso jornalstico representa, ou apresenta, como a verdade sobre

    determinado assunto (nveis 2 e 3 do mtodo de ACJ, a ser apresentado

    adiante).

    Este estudo trata especificamente da cobertura no jornalismo impresso.

    O mtodo de observao a ser aplicado foi desenvolvido pelas pesquisadoras

    Gislene Silva e Flvia Maia (2011), denominado de Anlise de Cobertura

    Jornalstica (ACJ). O mtodo ajuda a pensar, a identificar e a tipificar as

    especificidades da atividade jornalstica, mapeando tendncias e possveis

    lacunas na obteno, averiguao e apresentao das informaes" (SILVA e

    MAIA, 2011, p. 26). A escolha desta forma de anlise permite observar

    possveis transformaes na cobertura de um tema ao longo do tempo, porque

    possibilita enfatizar o contexto histrico-social-cultural.

    Exatamente por este motivo, a ACJ foi escolhida para servir de base

    para o estudo da representao do Brasil na revista Der Spiegel. O corpus de

    anlise ser composto por reportagens, notas, entrevistas, cartas da redao25,

    obiturios, artigos opinativos e perfis que abordem atualidades sobre o pas.

    Como se pretende analisar uma possvel alterao no modo como o maior pas

    da Amrica Latina apresentado pela revista alem, se escolheu observar

    25 Em alemo, Hausmitteilung. Trata-se, no contexto da revista, de uma narrativa sobre as observaes sobre a produo de reportagens, especialmente sobre as condies nas quais o reprter apurou a matria.

  • 22

    documentos com um intervalo de 10 anos de diferena: o primeiro intervalo

    comporta textos publicados durante todo o ano de 2001 e, no segundo, so

    selecionados textos do perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2011,

    completando igualmente um ano. Desta forma, como se pretende estudar

    aspectos socioculturais associados a uma determinada variao de tempo e,

    consequentemente, a mudanas socioeconmicas, a ACJ, por levar em conta

    tais aspectos, se mostra apropriada para esta anlise. No entanto, um ponto

    no abordado pelas autoras o ponto de vista do jornalista. Como aqui se tem

    como premissa terica que o jornalismo ligado a determinada realidade,

    expe um modo de ver e seu produto, a notcia, reflete na sociedade, fez-se

    necessrio buscar outras informaes para ampliar o quadro de anlise. Este

    complemento ser apresentado mais adiante.

    O sistema de anlise desenvolvido por Silva e Maia (2011) dividido em

    trs nveis, que abordam diferentes aspectos de produo: (1) Marcas de

    apurao, (2) Marcas de composio do produto e (3) Aspectos do contexto de

    produo. Foi identificado que alguns aspectos no encontravam

    correspondncia nos documentos usados para esta pesquisa. Desta forma, os

    aspectos que se aplicam neste trabalho foram selecionados e sero

    apresentados de maneira adaptada ao corpus da pesquisa. A seguir, ser

    apresentada a seleo daqueles pontos de anlise propostos pelas autoras

    que se aplicam a este trabalho.

    O nvel 1 (marcas da apurao) recai exclusivamente sobre a matria

    jornalstica tomada de forma isolada , explorando indcios do mtodo de

    apurao e da estratgia de cobertura em close-up (SILVA E MAIA, 2011, p.

    27). Nele, deve-se observar (1) assinatura: local; correspondente; enviado

    especial, colaborador; agncia de notcias; no assinada. (2) local de apurao:

    in loco ou no; (3) origem da informao: natureza da fonte (humana,

    documental, eletrnica) e sua posio, observando-se (a) informaes de

    primeira mo: poder pblico, institucionais, cidados, especialistas, assessoria

    de imprensa e fontes no-convencionais; (b) informaes de segunda mo:

    agncia de notcias, outros veculos jornalsticos, publicaes cientficas,

    documentos impressos e eletrnicos, internet.

  • 23

    No nvel 2 (marcas da composio do produto), que oferece uma viso

    um pouco mais aberta do objeto, agora enfocando no s o texto, mas o

    conjunto amplo do produto, como localizao na pgina, diagramao, foto

    etc. (Ibidem, p. 27), se observa, (1) Gnero jornalstico: nota; notcia; matria;

    fotonotcia; entrevista; reportagem; reportagem especial. (2) Localizao do

    texto no veculo/destaque: pgina par ou mpar; quadrante superior ou inferir,

    direito ou esquerdo; pgina inteira; mais de uma pgina; editoria; manchete;

    chamada de capa; apenas texto. (3) Recursos grficos-visuais: fotografia;

    grfico ou tabela; boxe; infogrfico; ilustrao ou montagem.

    Por fim, no nvel 3 (aspectos do contexto da publicao), que no

    capta detalhes, mas oferece um plano geral do objeto, captando aspectos da

    dimenso organizacional e do contexto scio-histrico-cultural em que se

    insere a produo jornalstica (Ibidem, p. 27), sero analisadas as seguintes

    caractersticas: (1) Contexto interno: caracterizao visual, editorial e

    organizacional do veculo/empresa; orientaes editoriais; tiragem; rea de

    abrangncia; pblico alvo; estrutura de produo prpria; formato do produto.

    (2) Contexto externo: caracterizao do tema/fato/assunto especfico da

    cobertura e da conjuntura scio-histrico-cultural que o envolvem.

    Os nveis 1 e 2 podem ser observados na tabela em anexo, j os itens

    do nvel 3 sero abordados em momentos diferentes, uma parte j foi

    explicitada no primeiro captulo, que trata da revista em anlise, e o segundo

    estar tambm na tabela em anexo. Como este trabalho est baseado em

    apenas uma publicao, o contexto interno da revista, descrito no primeiro

    captulo, contempla o primeiro item do nvel, isto , o contexto interno da

    publicao. O segundo item deste terceiro nvel de anlise o contexto externo

    acompanha os outros dois nveis na tabela em anexo na coluna Resumo

    [da notcia analisada].

    Atendendo a estes pontos, espera-se que a investigao seja capaz de

    revelar as marcas de produo deixadas na narrativa, e compreender como o

    produto final representa, traduz uma realidade.

    Como enxergamos o produto do jornalismo como algo produzido e

    interpretado socialmente (JOHNSON, 1999), ou seja, feito por pessoas, com

    experincias pessoais prprias, para que outras pessoas, com vivncias

  • 24

    diferentes, leiam e interpretem a realidade a partir daquilo que foi escrito,

    necessrio tambm estudar sob quais condies a notcia foi feita. Neste caso,

    por se tratar de jornalismo internacional, importante saber, por exemplo, se o

    reprter tem conhecimento da lngua do pas onde correspondente, se

    conhece o sistema poltico e se entende a cultura daquela sociedade, e qual

    sua rotina de produo. De outra parte, tambm importante saber como a

    redao no pas de origem trata a notcia enviada pelo jornalista no exterior, se

    e como ela o pauta, se aceita sugestes de assuntos tidos como importantes

    pelo correspondente ou se impe o que pensa ser importante que seus leitores

    saibam. Para responder a estas questes, nos basearemos na pesquisa de

    Lange (2002), que investigou os processos de produo de 29

    correspondentes de jornais, emissoras de rdio e televiso e revistas, entre

    elas a Spiegel, de lngua alem na Amrica Latina, e von Roemeling-Kruthaup

    (1991), que investigou processos de seleo de notcias internacionais na

    mdia alem e a representao da poltica, economia e histria da Amrica

    Latina.

    1.2.1 Corpus de pesquisa

    Para selecionar o corpus de pesquisa, em um primeiro momento, fez-se

    uma triagem dos assuntos nas publicaes dos perodos de tempo

    especificados anteriormente26 e foram selecionados aqueles que se referiam a

    algum aspecto27 da Amrica Latina. Esta etapa foi necessria para identificar

    se algum pas da rea geogrfica onde est o Brasil foi mais retratado do que

    outro. Os dados obtidos a partir desta triagem do origem tabela 1.

    Com estes dados em mos, foi necessrio, num segundo passo,

    identificar o assunto abordado na notcia. Isto porque por se tratar de uma

    revista generalista de assuntos factuais os temas que aparecem

    provavelmente esto ligados a um acontecimento importante que teve lugar em

    determinado pas. Ou seja, com a ocorrncia do terremoto no Haiti, por

    exemplo, devido sua dramaticidade pelo nmero de vtimas e em virtude do

    drama humano, no se pode esperar que a notcia mais importante vinda da

    26 Todo o ano de 2001 e o perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2011 (Captulo 1.2) 27 Neste primeiro momento, o tema no era importante.

  • 25

    Amrica Latina no mesmo perodo seja algum acordo interno entre pases do

    MERCOSUL que possa mudar algum aspecto das importaes para a Europa.

    Desta forma, esperado que a notcia de destaque sobre a Amrica Latina,

    numa situao como a supracitada, seja o primeiro fato o terremoto e no o

    segundo o acordo interno.

    Em seguida, os documentos foram separados conforme a forma

    narrativa, para possibilitar a seleo daqueles que permitem que a Anlise de

    Cobertura Jornalstica seja aplicada aos propsitos desta pesquisa. Foram

    selecionados textos em forma de reportagem, entrevista e cartas da redao,

    porque se entende que estas narrativas permitem aprofundamento no assunto

    e revelam o ponto de vista do jornalista, a partir das marcas por ele deixadas

    no texto. Com isso, deixamos de lado a perspectiva de que possvel escrever

    sobre qualquer assunto isentando-se de dar opinio. Partimos do pressuposto

    de que a escolha de fotografias e suas legendas, de citaes de fontes

    entrevistadas e a escolha de palavras so reveladoras da perspectiva a partir

    da qual o reprter escreve e o que pensa sobre aquilo que relata.

    Ao todo, foram identificadas 128 narrativas que abordam algum aspecto

    relacionado Amrica Latina. Em 2001, foram publicados 64 textos e, entre

    agosto de 2010 e agosto de 2011, foram, igualmente, 64. A partir destes dados,

    j se observa certo equilbrio no volume de publicao de textos que envolvem

    a Amrica Latina.

    Os documentos identificados foram ento quantificados em duas

    tabelas: uma conforme aquilo que diz respeito ao contedo da informao

    (personalidades, poltica, sociedade e direitos humanos, crime, desastres

    naturais e meio ambiente, cultura, economia, geral, cartas da redao e

    esporte28), como mostra a tabela 2, e outra de acordo com a forma narrativa do

    texto (reportagem, nota, obiturio, carta da redao, perfil, entrevista ou artigo

    opinativo), conforme mostra a tabela 3. Ambas as tabelas so apresentadas a

    seguir.

    28 Detalhes sobre a diviso dos assuntos sero dados adiante.

  • 26

    Conforme apresentado na tabela 1, o pas que rendeu mais publicaes,

    na soma de todas as formas narrativas (reportagem, entrevista, nota, carta da

    redao, obiturio, perfil), no perodo de tempo observado, foi o Brasil.

    Tabela 1 Dados quantitativos sobre visibilidade dos pases

    PAS 2001 2010 2011 TOTAL

    Brasil 20 4 9 33

    Colmbia 9 1 5 15

    Argentina 7 5 3 15

    Amrica Latina29 10 3 1 14

    Cuba 5 2 2 9

    Chile 1 4 3 8

    Venezuela 4 1 2 7

    Peru 2 1 4 7

    Haiti - 2 4 6

    Mxico 1 2 3 6

    Nicargua 2 - 1 3

    Bolvia 1 - - 1

    El Salvador 1 - - 1

    Equador 1 - - 1

    Uruguai - - 1 1

    Guatemala - - 1 1

    TOTAL 64 25 39 128

    A partir desta tabela, pode-se dizer que h equilbrio na quantidade de

    vezes em que acontecimentos em pases da Amrica Latina merecem espao

    29 Como Amrica Latina se categorizou: as cartas da redao; matrias sobre economia que abordavam mais de um pas; entrevista de socilogo chileno sobre direitos humanos no continente; artigo opinativo; seo personalidades sobre cantora latino-americana naturalizada estadunidense; militante argentino que participou da revoluo cubana.

  • 27

    na revista. No ano de 2001, foram 64, o mesmo nmero de publicaes

    encontrado na soma do perodo de um ano entre 2010 e 2011.

    Em seguida, os assuntos abordados em cada reportagem so

    apresentados na tabela 2. Com base no assunto de cada texto, pode-se afirmar

    que o total destes dados varia, especialmente, conforme acontecimentos

    trgicos (o terremoto no Haiti e o soterramento de mineiros no Chile, por

    exemplo), crise econmica e poca de eleies.

    Tabela 2 Dados quantitativos sobre contedo das reportagens

    sobre a Amrica Latina

    CONTEDO/ANO 2001 2010/2011 TOTAL

    Sociedade e direitos humanos30 5 9 14

    Poltica31 4 4 8

    Crime32 1 4 5

    Desastres naturais e meio ambiente

    3 3 6

    Cultura - - -

    Economia 4 - 4

    Esporte - 1 1

    TOTAL 17 21 38

    Para a aplicao da ACJ, o corpus ser dividido conforme a forma

    narrativa e o assunto que permitam identificar os pontos em cada nvel de

    anlise apresentados anteriormente. Esta seleo permite uma viso clara e

    30 Textos relacionados, por exemplo, guerrilha colombiana; possvel assassinato do escritor chileno Pablo Neruda; marca de refrigerante peruana concorrente da Coca-Cola; entrevista com o empresrio brasileiro Eike Batista; pesquisa de engenheiro aeroespacial argentino; acontecimentos ps-terremoto no Haiti; reportagens sobre o soterramento de mineiros no Chile; Barrigas para reproduo (edio 25, 2001).

    31 Assuntos que apresentam temas de relaes internacionais e eleies foram includos em poltica.

    32 Assuntos relacionados ao trfico de drogas e assassinato.

  • 28

    organizada dos textos estudados, alm de dar uma pista sobre o grau de

    relevncia do continente e do Brasil. Observa-se na tabela 3 que notas e

    reportagens so as formas de abordagem atravs das quais mais textos se

    publicam sobre a Amrica Latina. A partir disto, pode-se sugerir que os

    assuntos do continente no so totalmente negligenciados, e que o volume de

    reportagens (que permitem maior aprofundamento sobre o fato) no fica muito

    aqum do volume de notas (que informam, mas no se aprofundam).

    Tabela 3 Dados quantitativos sobre forma narrativa

    FORMA NARRATIVA/ANO 2001 2010/2011 TOTAL

    Notas 36 29 65

    Reportagem 17 21 38

    Obiturio 5 7 12

    Entrevista 3 2 5

    Carta da redao33 3 2 5

    Perfil - 3 3

    TOTAL 64 64 128

    Do total de documentos obtidos, sero analisados apenas aqueles

    considerados de maior profundidade, como reportagens e entrevistas, e

    aqueles que permitem mais liberdade de expressar um posicionamento

    pessoal, como artigos opinativos e as cartas da redao. Isto porque se

    entende que em tais materiais possvel, por exemplo, expressar pontos de

    vista, veicular esteretipos e criar um raciocnio lgico capaz de influenciar

    opinies e formar uma imagem sobre determinado pas ou povo.

    O perfil, apesar de tambm ser um texto do qual se pode extrair

    percepes do reprter, no ser estudado, porque no h nenhuma

    publicao nesta forma narrativa que apresente alguma personalidade

    brasileira ou ligada ao pas.

    33 No foram quantificadas de acordo com assunto.

  • 29

    Os demais gneros jornalsticos, citados aqui como nota e obiturio, no

    sero totalmente desprezados. Entretanto, eles compem um material usado a

    ttulo de comparao, por exemplo: a partir da observao de que a quantidade

    de notas (que no se aprofundam no assunto) maior do que a de artigos

    opinativos (que informam e formam opinio) pode-se sugerir que a informao

    bsica (o que? como? onde? quando? quem? por qu?) sobre aspectos da

    Amrica Latina mais valorizada do que a opinio sobre algo que aconteceu

    no continente. A partir disso, pode-se sugerir tambm que aquilo que acontece

    na Amrica Latina no to importante para o leitor da Der Spiegel, j que no

    merece anlise alongada.

    No fator de assuntos abordados sobre a Amrica Latina, tampouco

    trataremos sobre a totalidade dos temas identificados. No entanto, cabe uma

    observao sobre a seo aqui categorizada como personalidades. Esta diz

    respeito parte denominada Szene na Der Spiegel, na qual so

    apresentados feitos de pessoas famosas. Esta rea se distingue de outra

    seo de notas que mostra exclusivamente fatos ocorridos fora da Alemanha, e

    que faz parte de Panorama, inscrita na editoria internacional.

    Apesar de tambm no ser estudada a fundo ao longo do trabalho, ela

    fornece informaes preliminares sobre quem (artistas, empresrios,

    esportistas, entre outros profissionais) considerado relevante na Amrica

    Latina. A quantificao destas formas narrativas de acordo com a profisso das

    personalidades apresentadas d origem tabela 4, na prxima pgina.

  • 30

    Tabela 4 Dados quantitativos sobre seo personalidades

    PERSONALIDADES 2001 2010/2011 TOTAL

    Artistas 4 4 8

    Modelo/miss - 5 5

    Atleta 3 1 4

    Outros34 2 - 2

    Policial 2 - 2

    Poltico 1 - 1

    Empresrio - 1 1

    TOTAL 12 11 23

    A tabela 4 se refere a personalidades de toda a Amrica Latina. Os

    resultados mostram um equilbrio entre a quantidade de notas sobre msicos (e

    um escritor) e modelos ou miss, em primeiro e segundo lugar do nvel de

    publicaes, e polticos e empresrios, nos ltimos lugares. Esta variao, ao

    contrrio daquilo que poderia esperar, no se repete nas reportagens sobre o

    Brasil, como v-se no captulo 4, nas quais a presena de representantes da

    cultura, como msicos ou escritores, menor do que a de atletas. J a

    presena de polticos, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a ex-

    senadora Marina Silva e a atual presidente Dilma Rousseff, nas reportagens

    estudadas relevante, porm d lugar a outros entrevistados dos

    correspondentes Matthias Matussek e Jens Glsing. Chama a ateno a

    despreocupao dos reprteres em buscar fontes oficiais e/ou especializadas,

    e valorizar entrevistas com personagens, pessoas que ilustrariam um

    comportamento, um assunto ou um ponto de vista.

    Como observado anteriormente, as notas, tanto da seo

    personalidades quanto as pertencentes editoria internacional, e os

    obiturios permitem menor aprofundamento e insero do ponto de vista do

    reprter do que a reportagem e, portanto, no sero analisadas neste trabalho.

    34 Outros: profissionais que no se encaixam em nenhuma das outras categorias: engenheiro aeroespacial e sequestrador de avio, que se tornou personagem de filme.

  • 31

    Entende-se que, atravs da escolha por uma anlise das narrativas

    classificadas como entrevista, cartas da redao e reportagem ser possvel

    entender com preciso a imagem da Amrica Latina que a revista produz. Isso

    porque se presume que estas formas narrativas permitem maior

    aprofundamento do assunto. No caso da reportagem, por exemplo, a apurao

    exige a consulta de mais de uma fonte e a abordagem de diferentes pontos de

    vista. J na entrevista, o reprter mostra que domina o assunto sobre o qual

    questiona uma fonte oficial ou especializada. E nas cartas da redao, temos

    relatos sobre a apurao da reportagem, fato que ajuda a compor a

    observao sobre o ponto de vista e a opinio do jornalista. Alm disso,

    especialmente no caso da reportagem, a informao costuma ser apurada in

    loco por correspondentes internacionais do prprio veculo, situao que

    permite subentender que o fato passou por um jornalista representante da

    revista. Este jornalista, provavelmente, conhece a linha editorial da Der Spiegel,

    e procura escrever de acordo com os assuntos sobre os quais a empresa

    acredita que seus leitores queiram ser informados. Aqui no se discute a tica

    ou no do manual de redao da revista nem o trabalho do reprter em si: o

    objetivo apresentar o motivo da escolha de analisar reportagens em

    detrimento das notas. Na maioria das vezes, as notas so publicadas com base

    em dados de agncias internacionais, como ser aprofundado no captulo 2.2.

    Elas, as notas, at podem ser reinterpretadas e modificadas por profissionais

    contratados da empresa, porm no foram produzidas com informao

    recolhida no local do fato, ou seja, no so de fonte primria. Em outras

    palavras: as notas tratadas aqui no deixam de expressar a linha editorial do

    veculo, j que passam pelo crivo da redao seleciona-se o que importante

    e o que no , no entanto, o estudo delas no cabe aqui, uma vez que

    existem formas narrativas que se aprofundam mais nos aspectos relevantes

    para a formao de um panorama sobre a representao do Brasil na revista

    Der Spiegel a entrevista e a reportagem.

    As entrevistas tambm fazem parte do corpus, porque igualmente so

    formas narrativas que envolveram, neste caso, o trabalho direto de jornalistas

    da Der Spiegel. Em ambos os casos, o assunto do texto no ser levado em

    conta como critrio de escolha ou eliminao, porque, como se trata de uma

    observao scio-cultural, entende-se que todos os assuntos que permeiam a

  • 32

    sociedade, da poltica ao esporte, servem para representar uma cultura. Em

    resumo, o motivo da excluso de determinados materiais a forma narrativa e

    no seu contedo.

    As cartas da redao sero estudadas por conta de seu carter pessoal.

    Se reportagens e entrevistas so normalmente de carter informativo, de

    linguagem direta e objetiva, esta outra forma narrativa d margem opinio e a

    relatos pessoais. Assim, se pretende abordar diretamente a imagem que a

    revista possui sobre o pas. As cartas, no contexto da revista Der Spiegel,

    assumem um carter muito particular. Este material revelador da forma de

    apurao: trata-se de relatos sobre o trabalho do reprter no lugar da

    reportagem. Assim, pode-se afirmar que as cartas da redao so

    complementares s reportagens. Por um lado, ampliam ou detalham o aspecto

    estritamente informativo, por outro, so importantes porque tratam das

    condies de produo, e veiculam destaques do prprio reprter sobre suas

    impresses daquilo que viu e apurou. Dessa forma, tais materiais so

    reveladores sobre a perspectiva tanto da revista quanto do jornalista, e

    norteiam a interpretao das entrelinhas das reportagens e a entrevista escritas

    pelos correspondentes. Alm disso, as cartas da redao destacam trs

    reportagens de cada edio, ou seja, o fato de que um texto merece uma carta

    da redao significa que a revista o julga como de interesse do leitor.

    Feita esta quantificao sobre a visibilidade da Amrica Latina nas

    notcias da Der Spiegel, no perodo de tempo determinado e sobre os temas e

    as formas narrativas presentes no corpus, passamos para a observao da

    apresentao do Brasil na revista.

    A tabela 5, na prxima pgina, trata dos temas apresentados na revista

    apenas nos textos narrados como reportagem e entrevista. As cartas da

    redao no foram classificadas de acordo com o assunto, porque so relatos

    da produo da reportagem, ou seja, informam sobre as condies nas quais o

    reprter apurou a matria ou transmitem a opinio pessoal do jornalista.

  • 33

    Tabela 5 Temas das reportagens selecionadas sobre o Brasil

    CONTEDO/ANO 2001 2010/2011 TOTAL

    Sociedade e direitos humanos 2 2 4

    Crime 2 2 4

    Desastres naturais e meio ambiente

    2 - 2

    Esporte 1 1 2

    Economia 1 - 1

    Poltica - 1 1

    Cultura - - -

    TOTAL 8 6 14

    Chama ateno, na tabela 5, a inexistncia de reportagens sobre

    cultura. Como vimos na tabela 4, as notas sobre msicos s so precedidas

    pelas notas sobre polticos. A partir disso, era esperado que o nmero de

    reportagens deste aspecto cultural se repetisse, ou, pelo menos, se

    aproximasse nas reportagens sobre o Brasil. A poltica tampouco um tema

    que merece ateno nas reportagens sobre o pas. J crime, desastres

    naturais e meio ambiente e sociedade e direitos humanos so os assuntos que

    mais merecem destaque nas reportagens da Der Spiegel sobre o Brasil. Esta

    variao, como veremos no captulo 1.3.2., est ligada ao esteretipo sobre o

    pas e maior facilidade de publicar matrias que no contestem este

    esteretipo.

    Finalmente, na tabela 6 contabilizamos o total de textos sobre o Brasil

    que sero analisados neste trabalho.

  • 34

    Tabela 6 Dados quantitativos sobre forma narrativa de todos os

    textos analisados sobre o Brasil

    FORMA NARRATIVA/ANO 2001 2010/2011 TOTAL

    Reportagem 8 6 14

    Carta da redao 2 - 2

    Entrevista 1 - 1

    TOTAL 11 6 17

    Do total, 17 textos sero observados: 14 reportagens, duas cartas da

    redao e uma entrevista. A anlise destes textos ser dividida por data da

    publicao. No captulo 3, primeiramente sero comentadas as nove narrativas

    publicadas no ano de 2001 e, em seguida, as seis publicadas entre agosto de

    2010 e agosto de 2011. Por fim, as informaes obtidas a partir das anlises

    dos dois perodos de tempo sero comparativamente articuladas com o

    objetivo de identificar se houve alguma modificao da representao sobre o

    Brasil e, tanto em caso positivo quanto negativo.

    Como mencionado anteriormente, as notas, obiturios e perfis no faro

    parte do corpus, porm sua quantificao nas tabelas desta seo servem

    como informao complementar e auxiliam a ampliar a ideia da visibilidade da

    Amrica Latina na revista Der Spiegel, continente no qual o Brasil se insere e,

    por consequncia, tambm influencia em sua representao.

  • 35

    2. Representao: definio geral

    Uma representao , obrigatoriamente, algo que substitui. Seja uma

    obra de arte, um objeto ou um conceito, sua representao ser sempre uma

    cpia do original. Esta condio de cpia, por mais perfeita e verossmil que

    parea, implica uma interpretao do original. No dicionrio (BUARQUE DE

    HOLANDA FERREIRA, 2010, p. 1747), consta que, para a rea da Filosofia, a

    representao um contedo concreto apreendido pelos sentidos, pela

    imaginao, pela memria ou pelo pensamento, e oferece interpretao

    como sinnimo, especialmente para o Teatro.

    Naquilo que diz respeito representao mental, em outras palavras,

    no de um objeto, mas sim de imagens ativadas pela mente de um espectador,

    leitor ou ouvinte, Murilo Csar Soares (2007, p. 48) lembra que, na filosofia

    medieval, a ideia de representar envolvia reapresentar algo ento ausente

    como se estivesse presente, ou seja, tornar algo presente outra vez. No sculo

    XVIII, a representao assumiu papel de gnero, do qual derivariam todas as

    manifestaes ou atos cognitivos, e, assim, os termos usados para representar

    assumiriam significao mxima. A partir desse ponto de vista, tudo aquilo que

    o ser humano capaz de reconhecer com seus cinco sentidos seria uma

    representao. A partir do sculo XIX, uma nova perspectiva sugere a insero

    de estruturas sociais e conjunturas histricas na constituio de

    representaes. A partir desta ideia, a representao de uma palavra, por

    exemplo, varia de acordo com o momento histrico e quadro social no qual

    usada. Nessa poca, tambm se passa a considerar a coletividade na

    produo de ideias e consensos.

    Como expe Soares (Ibidem, p. 49), um sculo mais tarde, o socilogo

    francs mile Durkheim props a forma de representaes coletivas, que

    seriam conceitos que formam a bagagem cultural de uma sociedade. Sob esta

    tica, toda ao individual no seria nada mais que o reflexo das

    representaes coletivas expressas de forma individualizada. Mais alm,

    Durkheim distingue as representaes coletivas das sociais. Para ele, a

    primeira seria imposta aos indivduos pela sociedade, enquanto a segunda

    gerada por sujeitos sociais. Como explica Serge Moscovici, representaes

  • 36

    sociais seriam explicaes e conceitos originados nas comunicaes

    interpessoais da vida cotidiana, operando como formas de familiarizao com

    setores do mundo, estranhos a ns (MOSCOVICI, 2003 apud SOARES, 2007,

    p. 49).

    J no final do sculo XX, Stuart Hall (1997) apresenta a ideia da

    existncia de dois sistemas de representao. O primeiro diz respeito

    representao mental, capacidade humana de dar significado ao mundo,

    atravs da construo de grupos de elementos correspondentes ou divergentes

    pessoas, objetos, acontecimentos e aos conceitos sobre esses temas. O

    segundo sistema ligado lngua, e diz respeito construo de ligaes

    entre estes conceitos j existentes e um conjunto de significaes,

    compartilhadas por um grande grupo, atravs de uma lngua ou linguagem. Por

    exemplo, o desenho de uma caneta seria uma representao mental do objeto,

    porque interpretado atravs da viso, e decodificado no crebro, atravs do

    conhecimento prvio sobre sua forma e funo. J a palavra caneta, escrita

    ou falada, uma representao verbal que aciona o conceito que o interlocutor

    tem sobre a palavra.

    Feita a diferenciao entre os dois sistemas, Hall apresenta trs teorias

    da representao: a reflexiva, a intencional e a construtivista. A primeira

    abordagem entende que o significado expresso atravs da lngua, ou de

    linguagem, deve refletir um objeto, pessoa, evento ou ideia sobre o mundo real,

    Assim, a lngua funcionaria como um espelho, que reflete exatamente aquilo

    que se quer dizer. Esta teoria, que tambm defende que a lngua funciona

    simplesmente refletindo ou imitando o mundo material, chamada de

    mimtica. A abordagem intencional supe que o emissor impe os

    significados atravs da lngua. Suas palavras seriam interpretadas exatamente

    da forma como ele pretende ser entendido. Esta proposta, para Hall, falha, j

    que, mesmo que a lngua seja um sistema compartilhado, a interpretao

    pessoal. Por fim, a teoria denominada por Hall como construtivista, embora

    fundamentada por autores estruturalistas, baseada em teorias da lingustica,

    e reconhece o carter pblico e social da lngua.

  • 37

    O principal pensador desta tese o linguista suo Ferdinand Saussure.

    Em seu Curso de lingustica geral, compilao pstuma de suas aulas, feita por

    alunos, Saussure analisa aquilo que ele trata como signo: a representao

    sonora, psquica e/ou escrita, aquilo que existe no mundo real, usada quando

    se quer comunicar algo, ou seja, uma palavra. Para Saussure, o signo

    composto por duas faces: a sonora e a psquica. Toda a representao sonora,

    ou imagem acstica, denominada como significante, e toda a representao

    visual, o conceito, como significado. O signo, a palavra, arbitrrio, porque os

    objetos, sentimentos e aes, no significam sozinhos, quem d significado a

    eles o grupo que compartilha uma mesma lngua. Logo, ela s funciona

    porque compartilhada (SAUSSURE, 1970). O estudo saussuriano chamado

    de social, pois entende a lingustica como uma cincia que estuda a lngua

    em uso na sociedade. William Labov (2008, p. 217), no entanto, critica esta

    posio. Para ele [os linguistas] insistem em que as explicaes dos fatos

    lingusticos sejam derivadas de outros fatos lingusticos, no de quaisquer

    dados externos sobre comportamento social. Gregory Guy (1995, no

    paginado) critica a dicotomizao de Saussure. Para ele, a dicotomia

    lngua/fala divorcia a estrutura abstrata sistemtica da linguagem de seu uso

    concreto e, para muitos fins, privilegia a estrutura como foco principal da

    disciplina. Um dos principais pontos criticados por Guy a dicotomia

    saussuriana de diacronia e sincronia. Na teoria do linguista suo, a lingustica

    sincrnica descreve a lngua numa esfera de tempo determinada, busca

    explicaes sobre a competncia do falante (a capacidade de se comunicar em

    sua lngua materna), e no analisa seu conhecimento histrico sobre a lngua.

    J uma pesquisa diacrnica, ou histrica, procura explicar a mudana

    lingustica ao longo do tempo, como a lngua chegou ao ponto no qual est.

    Para Guy (Ibidem), essa estratgia de desenvolvimento de uma teoria no

    parece ter sentido, dado que sabemos que todas as lnguas esto sempre

    mudando. O autor lembra que a mudana lingustica contnua e, que,

    portanto, uma anlise que deixa de lado algum dos aspectos, ou o histrico ou

    o contemporneo, falha.

    Vale ressaltar, aqui, a essencialidade da lngua para o desenvolvimento

    das representaes. Uma ideia s pode circular entre um grande grupo de

  • 38

    pessoas com a existncia de uma lngua, ou at mesmo da linguagem (a de

    sinais ou notas em uma partitura musical, por exemplo) comum. Aqui, a crtica

    de Guy pode ser relacionada ao uso de uma mesma lngua por diferentes

    geraes: muitas vezes, o vocabulrio, expresses e construes frasais

    variam tanto ao longo do tempo que podem causar dificuldade de compreenso

    entre dois falantes nativos. Logo, a constituio de imagens necessariamente

    ligada ao compartilhamento de significados e, portanto, a lngua considerada

    tambm um sistema representacional, e a representao uma parte essencial

    do processo de produo e compartilhamento de significado entre membros de

    uma mesma cultura (HALL, 1997).

    A representao conecta significado e lngua, ou linguagem, cultura.

    Em outras palavras, a produo de sentido atravs da lngua, o que reflete

    diretamente sobre a cultura. Hall (Ibidem, p. 3) lembra que a cultura, mesmo

    que compartilhada, composta por uma grande variedade de interpretaes e

    formas de representao. O autor cita, por exemplo, a expresso facial: ela

    representa alguma emoo. Assim, comunica algo que pode ser interpretado

    por outra pessoa, e a emoo expressa s pode ser interpretada se locutor e

    interlocutor compartilharem a mesma ideia sobre o significado da tal expresso

    facial. A capacidade de interpretao, o fato de existir uma cultura comum, o

    que diferencia a capacidade social do ser humano da capacidade de vida em

    conjunto de outros animais. A cultura, portanto, no uma reao biolgica,

    porque foi criada pelo homem. Hall (Ibidem, p. 3) define:

    A cultura [...] est envolvida em todas as prticas que no so apenas geneticamente programadas em ns como o reflexo do joelho ao ser batido mas que carregam significados e valores para ns, os quais precisam ser interpretados significativamente por outras pessoas, ou que dependem do significado para sua funcionalidade

    efetiva (HALL, 1997, p. 3) (grifos do autor) 35.

    A representao, expressa por uma lngua ou linguagem comum, forma

    a cultura. Para Hall, a representao passvel de interpretao, devido ao

    compartilhamento de conhecimento atravs da cultura. Para um ocidental, sem

    conhecimento prvio sobre o assunto, a imagem de um deus hindu (com mais 35 Traduo nossa. No original: Culture [...] is involved in all those practices which are not simply genetically programmed into us like the jerk of the knee when tapped but which carry meaning and value for us, which need to be meaningfully interpreted by others, or which depend on meaning for their effective operation

  • 39

    de dois braos, corpo de humano e cabea de elefante) pode parecer uma obra

    de arte dadasta, porque no h compartilhamento de cultura. Da mesma forma

    que a imagem criada quando se fala sobre determinado assunto, a Amrica

    Latina, por exemplo, pode variar totalmente de acordo com nacionalidade,

    classe social ou nvel de educao formal.

    Esta breve introduo busca posicionar este trabalho na esfera da

    anlise das representaes, cuja formao e veiculao centralizada no

    trabalho da mdia. Muitas vezes, no entanto, essa funo pode acabar gerando

    distores na realidade e ter como consequncia o preconceito, o esteretipo e

    a desinformao. Por outro lado, como observa Soares (2007, p. 53), as

    representaes no jornalismo se dariam necessariamente como

    enquadramentos, o que no significa um julgamento moral sobre a prtica

    jornalstica em si, mas a admisso de uma contingncia prpria do trabalho

    jornalstico.

    Na seo a seguir, veremos como as representaes se inserem no

    mbito do jornalismo. Logo depois, veremos o trabalho do correspondente

    internacional, especialmente naquilo que diz respeito as suas fontes e suas

    rotinas de produo, o panorama desta editoria em veculos alemes e a

    relao do trabalho destes jornalistas com o pas sobre o qual escrevem, e, por

    consequncia, os esteretipos que podem veicular.

    2.1. Representaes no jornalismo

    Nesta seo, sero apresentados diferentes pontos de vista sobre a

    definio de representao e sua aplicao. As diferentes vises sobre a

    representao permitem entender a formao do esteretipo, ponto central

    neste trabalho. Apesar da observao a partir de diferentes ticas, este

    trabalho se baseia no entendimento de que o jornalismo representa uma

    realidade fragmentada, ou seja, faz um recorte ao noticiar um fato mesmo

    que procurando contextualiz-lo histrica e socialmente e o repassa ao

    receptor, impregnado pelo ponto de vista do reprter, com seus valores e sua

    cultura, o que pode ligar a representao da tal realidade com um esteretipo

    do assunto relatado.

  • 40

    O jornalismo trabalha diariamente com representaes. Nesta rea, o

    objeto original o fato, e tudo aquilo que for publicado sobre ele, seja

    impresso, em vdeo ou udio, uma representao. O que ser contado mais

    tarde pela imprensa sobre qualquer evento uma representao, que procura

    se aproximar o do fato ocorrido, dando voz aos envolvidos, e mostrando o

    mximo possvel de verses sobre o assunto. Mesmo assim, o fato

    propriamente dito nunca se repetir, simplesmente porque j aconteceu em

    determinada circunstncia e espao de tempo irrepetveis.

    Assim, atravs de representaes verossmeis, a imprensa constri

    aquilo que seu maior capital: a credibilidade (BERGER, 1998). A

    credibilidade construda no interior do jornal assim como um rtulo ou uma

    marca que deve se afirmar, sem, no entanto, nomear-se como tal (idem, p.

    21). A autora analisa que este capital da imprensa tem a ver com persuadir o

    leitor atravs da construo de um efeito de verdade, que se atinge pela

    linguagem, por argumentos de autoridade, testemunhas e/ou provas. A

    representao do fato, em forma verossmil, faz com que o leitor forme

    imagens do acontecimento e, assim, crie sua prpria verso. Mais do que

    atravs de fotografias e vdeos, a representao que mais pede a participao

    do leitor, que mais permite uma interpretao prpria, aquela feita pela mdia

    impressa. Para Walter Lippman (2008, p. 29), o nico sentimento que algum

    pode ter acerca de um evento que no vivenciou o sentimento provocado por

    sua imagem mental daquele evento.

    Baseado apenas naquilo que um texto conta, permitido ao leitor, e at

    necessrio, reproduzir o fato em sua mente, de acordo com seu conhecimento

    prvio sobre o assunto e sua viso de mundo, sua cultura. Berger (Ibidem, p.

    26) observa que todo processo de produo discursiva , ao mesmo tempo,

    um processo de recepo, e que todo processo de recepo implica, por sua

    vez, o comeo de uma nova cadeia de construo de significantes. J para

    Luiz Gonzaga Motta (2009, p. 4), as narrativas passam a ser compreendidas,

    no apenas como representao das coisas nem como constructos culturais,

    mas prticas de empalavramento sucessivo da realidade para enfrentar a

    complexidade do mundo. Para o autor, a narrativa, que aqui se refere a

    qualquer forma de contar uma histria, no apenas nos moldes jornalsticos,

  • 41

    uma forma de experimentao da realidade cotidiana, e atravs desta

    experimentao que se produz o senso comum.

    No jornalismo brasileiro, especialmente no dirio, mas tambm em

    revistas informativas semanais, a orientao de no adjetivar substantivos e de

    escrever de forma simples, direta, evitando ao mximo expressar sua opinio,

    teoricamente, d margem para que o leitor complete o texto, e experimente

    o mundo conforme sua prpria bagagem cultural. O texto, acompanhado de

    uma fotografia, refora ainda mais a ideia de verossimilhana. Mesmo

    atualmente, com a possibilidade de manipulao digital de foto e vdeo cada

    vez mais facilitada, uma imagem ainda capaz de persuadir o receptor de que

    o que o fato realmente aconteceu assim como exposto pela notcia. Para

    Lippman (2008, p. 93), as fotografias tm o tipo de autoridade sobra a

    imaginao hoje, da mesma forma que a palavra impressa tinha ontem, e a

    palavra falada tinha antes ainda. Elas parecem completamente reais.

    Luiz Gonzaga Motta, Gustavo Borges Costa e Jorge Augusto Lima

    (2004, p. 36-37) observam, ainda, que, para entender uma representao

    jornalstica, importante observar o conjunto de informaes sobre o objeto

    estudado. Do ponto de vista de sua existncia, a narrativa no tem uma

    existncia independente, visto que aparece em um universo povoado por

    imagens e outras narrativas, no qual se integra (Ibidem, p. 37-38). Aqui, os

    autores tambm ressaltam, alm da produo jornalstica, a necessidade de

    levar o ponto de vista do receptor em conta, j que, como apresentado

    anteriormente, a cultura balizadora de interpretaes.

    Marcondes Filho (1986, p. 19) observa que no h ao ou

    envolvimento possvel do receptor das notcias se estas no forem associadas

    sua realidade especfica. O pesquisador afirma que a fragmentao da

    realidade, promovida pela imprensa, a lgica [...] de desorganizar qualquer

    estruturao racional da realidade e jogar ao leitor o mundo como um

    amontoado de fatos desconexos e sem nenhuma lgica interna (Ibidem, p.

    18), responsvel por cultivar a passividade. Marcondes Filho expe dois

    sistemas produzidos pela comunicao de massa: o imaginrio e o de

    realidade. O primeiro diz respeito s novelas de televiso, filmes e literatura,

  • 42

    enquanto no segundo, que segue um princpio de realidade, se encaixam

    documentrios, reportagens, resenhas, debates, enfim, a produo jornalstica.

    O autor aponta que a imprensa joga com estes dois lados, um que promete

    felicidade, tranquilidade, prosperidade, e outro que mostra a dificuldade da

    vida real, para equilibrar o noticirio e, assim, incentivar permanentemente a

    passividade, a acomodao e a apatia em seus receptores (Ibidem, p. 15).

    A representao do sistema realidade, de forma fragmentada, tem

    como consequncia a formao de uma imagem igualmente fragmentada.

    As determinaes histrico-estruturais dos fenmenos, como responsveis pelas ocorrncias no que se refere poltica e economia sobre o dia-a-dia so desprezadas. Os fatos aparecem soltos, sem relacionamento com fatores internos macro-sociolgicos da realidade (Ibidem, p. 43).

    Outra crtica s representaes parte de Soares (2007, p. 53) que,

    apesar de entend-las como necessrias e como sendo produtos secundrios

    naturais do jornalismo, compara as representaes miditicas com

    representaes cientficas e populares. Como exemplo, citada a imagem da

    mulher na publicidade, que raramente condiz com os padres populacionais

    regulares. Segundo o autor, atravs destas imagens distorcidas, a mdia pode

    exceder um limite ou intervalo aceitveis e provocar desrepresentao.

    Joo Freire Filho (2004) trabalha com esta ideia para criticar a formao

    de esteretipos. Os significados veiculados pelas representaes constroem

    os lugares a partir dos quais os indivduos podem se posicionar e a partir dos

    quais podem falar (WOODWARD, 2000, p. 17). Porm, se, por um lado, os

    esteretipos podem ser um modo necessrio de processamento de

    informao, sobretudo em sociedades altamente diferenciadas; como uma

    forma inescapvel de criar uma sensao de ordem em meio ao frenesi da vida

    social e das cidades modernas (LIPPMAN, 1965 apud FREIRE FILHO, 2004,

    p. 46), por outro, representaes simplificadas, parciais e seletivas podem ser o

    ponto de partida para o desencadeamento de comportamentos racistas,

    xenfobos ou de discriminao social ou sexual. De acordo com Freire Filho,

    o esteretipo [...] reduz toda a variedade de caractersticas de um povo, uma raa, um gnero, uma classe social ou um grupo desviante a alguns atributos essenciais supostamente fixados pela natureza. Encoraja, assim, um conhecimento intuitivo sobre o Outro,

  • 43

    desempenhando papel central na organizao do discurso do senso-comum (FREIRE FILHO, 2004, p. 47).

    Outro ponto importante a ser tratado sobre esteretipos a partir de

    onde ele criado. A mdia brasileira, por exemplo, apresenta os

    acontecimentos internos do pas, sejam eles polticos, econmicos, sociais ou

    ambientais, de forma a informar. Mas, internamente, a imprensa pode criar

    representaes sobre regies que causam desinformao e discriminao (por

    exemplo, a ideia de que no Rio Grande do Sul o tempo sempre frio ou de que

    o Nordeste subdesenvolvido em comparao a outros estados), e todos os

    demais eventos de todas as editorias de um veculo jornalstico. O mesmo, a

    criao de identidades distorcidas, pode acontecer no mbito internacional. Ao

    veicular apenas notcias sobre a chamada Primavera rabe e associ-la ao

    Oriente Mdio como um todo, a mdia contribui para a massificao da

    identidade de povos distintos, mas que, por razes polticas, geogrficas e

    socioeconmicas, vive um perodo parecido, mas no idntico. No se pode

    exigir que um jornal dirio ou uma revista semanal de atualidades publique

    informaes que abordem todos os assuntos de um pas estrangeiro. Afinal,

    esta a funo de um jornal nacional do tal pas e no da seo Internacional

    de um veculo estrangeiro. No entanto, a publicao que aborda apenas um

    aspecto dos fatos e da cultura, contribui para a formao de uma imagem

    unidimensional do representado,

    pois o ambiente real excessivamente grande, por demais complexo, e muito passageiro para se obter conhecimento direto. No estamos equipados para tratar com tanta sutileza, tanta variedade, tantas modificaes e combinaes. E embora tenhamos que agir naquele ambiente, temos que reconstru-lo num modelo mais simples antes de poder manej-lo. Para atravessar o mundo, as pessoas precisam ter mapas do mundo (LIPPMANN, 2008, p. 31).

    O marxismo provavelmente no /foi posto em prtica conforme aquilo

    que Karl Marx escreveu em O capital, mas sim conforme as diversas

    interpretaes de quem leu aquilo que foi escrito. Do mesmo modo, todos os

    dias se lem, se ouve e se assiste a representaes de assuntos que no

    fazem parte do nosso cotidiano, da nossa cultura, do nosso conhecimento, e,

    para interpret-los, se recorre a um banco de informaes pessoal, atravs do

    qual nos apropriamos dos dados que recebemos. Se, por um lado, as

    representaes so necessrias, conforme sustenta Lipmann, por outro, o risco

  • 44

    de que elas gerem preconceito e desinformao grande, como contrape

    Freire Filho. Se, ao mesmo tempo em que as representaes e a formao de

    esteretipos so necessrias e consequentes, naturais da produo do

    jornalismo, preciso observar criticamente a narrativa, para que no se veicule

    formas preconceituosas do outro.

    2.2. Jornalismo Internacional: como representar interculturalmente

    O trabalho do correspondente internacional , resumidamente, traduzir

    os acontecimentos de determinado pas estrangeiro para seus leitores na terra

    natal. Porm, mais do que simplesmente passar informao sobre poltica,

    economia, desastres naturais, esporte e sociedade do exterior, o trabalho do

    jornalista, neste caso, consiste em contribuir para a formao da imagem do

    pas no qual est trabalhando (embora isto no seja propriamente reconhecido

    em tais termos). Com esta funo, de acordo com a escolha e a realizao da

    pauta, o reprter pode ou contribuir para a difuso do conhecimento e

    entendimento entre povos ou para a consolidao de esteretipos. A rotina de

    produo de um correspondente internacional pode ser cansativa, j que ele

    o responsvel por cobrir qualquer acontecimento de relevncia no pas que

    tambm seja de interesse do leitor estrangeiro e, s vezes, no continente

    onde est sediado. No entanto, a escolha da informao relevante e do

    enfoque atravs do qual ser contada, no depende s da viso de mundo e

    da rotina do profissional.

    O jornalista internacional est ligado a um veculo de mdia que, como

    qualquer empresa, tem interesses e visa ao lucro. Como o jornalista o

    produtor da notcia que vai gerar o lucro, importante para a empresa que os

    pontos de vista estejam alinhados. Jaap Van Ginneken (1998 apud SILVEIRA,

    2012) observa que a relao do correspondente com a redao-sede serve

    para evitar que o jornalista gradualmente perca a perspectiva do pas-sede,

    adote aquela do pas anfitrio, venha a se identificar demais com ela e se torne

    talvez complacente ou sujeito a presso (Van Ginneken, 1998, p. 133 apud

    Silveira, 2012, p. 6). Porm, manter um profissional correspondente e alinhado

    no exterior uma opo cara. Uma forma de manter o noticirio estrangeiro em

    pauta, e assim fidelizar leitores interessados na editoria, o uso de informao

    produzida por agncias de notcias, que, segundo Joo Batista Natali (2004, p.

  • 45

    31), do viabilidade econmica ao noticirio internacional. Segundo o autor, o

    texto distribudo s centenas de jornais que assinam este servio sai muito

    mais barato do que o texto de um enviado especial ou a manuteno de um

    correspondente no exterior. Mas, por outro lado, o fato de um veculo de mdia

    dispor deste profissional deslocado passa a ser um diferencial em seu

    contedo (Ibidem). Para o autor, como as agncias distribuem notcias para

    pases das mais diferentes culturas, elas correm o risco de se tornarem

    apartidrias e at mesmo desinformativas. Natali pondera que a deciso de dar

    nfase a um aspecto, em detrimento de outro, numa cobertura de guerra, por

    exemplo, uma postura de mercado, no uma deciso tica. Afinal, a

    empresa-agncia de notcias no deseja desagradar a este ou quele

    comprador. Desta forma, a distribuio massiva, internacional e intercultural de

    um nico ponto de vista sobre determinada situao alm das fronteiras, corre

    o risco de se tornar rasa e desinformativa. Silveira (2012, p. 6) entende que as

    agncias de notcias, fundadas para atender o mundo financeiro (NATALI,

    2004), so controladas por uma elite poltica e econmica [banqueiros,

    investidores, empresrios] [...] [que] determina o que ser produzido por uma

    elite miditica [as agncias], ao mesmo tempo em que a subdisia. Segundo

    ela, para que esse investimento nas agncias acontea, necessrio que elas

    conquistem e fidelizem seus clientes (seus patrocinadores), e no se oponham

    a seus interesses.

    Elas precisam, [...] selecionar aspectos da realidade com os quais o maior nmero de clientes possa concordar, ou seja, devem definir como notcia aquilo que no desdiga nem contradiga o que seus clientes j pensam (SILVEIRA, 2012, p.6).

    Outro fator importante que acompanha a editoria Internacional o

    prprio leitor. Como vimos anteriormente, as representaes s podem ser

    consolidadas com a participao de algum que as receba e lhes d

    significado. A comunicao tambm s existe se houver emissor e receptor

    (MATTELART, 2005; HOHLFELDT et. al, 2002). Natali (2004, p. 55) observa

    que este receptor um leitor que possui critrios menos provincianos e mais

    metropolitanos de interesse. A partir disso, pode-se dizer que so pessoas que

    formam opinio. Mais um motivo para que as informaes que ali constam no

    consolidem esteretipos negativos.

  • 46

    Para Natali (2004, p. 63), o noticirio internacional est exposto a uma

    mar cada vez mais invasora de fetichizao. Ele cita como exemplo a

    cobrana de editores pela cobertura da vida de celebridades, e define esta

    prtica como um dos estados patolgicos, uma espcie de aberrao

    constante do meio. Para ele, o fetiche uma das portas que leitores de menor

    escolaridade utilizam para ter acesso s notcias (Ibidem), e cita

    especialmente os Estados Unidos como fonte