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Nuno Miguel Magarinho Bessa Moreira A Revista de História (1912-1928): Uma Proposta de Análise Histórico-Historiográfica Volume I Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012 Dissertação de Doutoramento em História sob a orientação do Professor Doutor Armando Luís de Carvalho Homem Tese financiada pelo POPH QREN Tipologia 4.1 Formação Avançada, comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC através da Bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia com a referência SFRH/BD/41069/2007

A Revista de História (1912-1928):

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  • Nuno Miguel Magarinho Bessa Moreira

    A Revista de Histria (1912-1928):

    Uma Proposta de Anlise Histrico-Historiogrfica

    Volume I

    Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012

    Dissertao de Doutoramento em Histria sob a orientao do

    Professor Doutor Armando Lus de Carvalho Homem

    Tese financiada pelo POPH QREN Tipologia 4.1 Formao Avanada, comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC atravs da Bolsa da Fundao para a Cincia e Tecnologia com a referncia SFRH/BD/41069/2007

  • II

  • III

    Ao Caquito

    Tia Cu

  • IV

  • V

    Resumo

    Nesta dissertao estudaremos a Revista de Histria, essencialmente pelo

    prisma da Histria da Historiografia. O objeto da nossa investigao carece de uma

    identificao prvia. A Revista de Histria foi criada no seio da Sociedade Nacional de

    Histria, como veculo de informao privilegiado do respetivo iderio e forma de

    difuso das ideias da instituio.

    O peridico em causa composto por 16 volumes (1912-28). Comeou antes

    da I Guerra Mundial, terminou dois anos depois da Instaurao da Ditadura Militar de

    Gomes da Costa e foi contemporneo do Integralismo Lusitano, da Renascena

    Portuguesa e da Seara Nova. A questo que se coloca : qual a relevncia cultural e

    historiogrfica da Revista de Histria no contexto em que se desenvolveu?

    A Historiografia tem sido, muitas vezes, equiparada Teoria da Histria numa

    perspetiva epistemolgica, mas sobretudo filosfica. Sem esquecer ou ignorar estas

    acees, possvel integr-las num reduto amplo, ancorado na diacronia, a coberto de

    especulaes com tendncia generalizante. Um determinado discurso historiogrfico

    ocorre em espao e tempo prprios, que condicionam o que expressa. Para

    concretizar melhor o que est em causa neste trabalho, convm proceder a uma

    descrio detalhada das motivaes subjetivas e objetivas e das fontes e

    metodologias nele implicadas. Esta dissertao resulta do interesse que desde sempre

    nutrimos pela Histria Contempornea, na vertente cultural. A publicao em causa

    representa, pelo perodo em que se inscreve, um esforo de conjunto no que respeita

    aos peridicos da especialidade na poca republicana. Por outro lado, a Histria da

    Historiografia tambm constitui disciplina a aprofundar, a exemplo do que h mais

    tempo acontece em Espanha, Frana ou no Brasil. Dentro da Historiografia, a escolha

    da diacronia como prioridade prende-se com uma atitude metodolgica que procura

    conferir destaque historicidade do objeto de investigao

    Este estudo divide-se em trs partes. Na primeira, procede-se ao

    enquadramento histrico, institucional e biogrfico do peridico (captulos 1 4). Num

    segundo momento, realiza-se a anlise qualitativa de artigos da publicao, seguida

    de uma sntese dos conceitos historiogrficos operatrios postos em prtica pelos

    articulistas. (captulos 5 9). A terceira parte deste trabalho contempla uma

    caracterizao da Revista de Histria, assente num acompanhamento da atualidade

    patente ao longo da seco de Factos e Notas e no arranque do andamento dedicado

    Bibliografia (captulo 10). Exposto este percurso, concretiza-se um balano

    epistemolgico e ideolgico da publicao (captulo 11).

    Trata-se de um peridico marcado pela diversidade temtica, mas que no

    deve ser inserido numa nica escola, frustrando qualquer prefigurao dos Annales.

  • VI

  • VII

    Abstract

    The topic of this dissertation is the Revista de Histria, mainly from the point of

    view of the History of Historiography. First, the object of our research requires prior

    identification. The Revista de Histria was created within the National History Society,

    as an important means of information of its views and a way of spreading the ideas of

    the institution.

    The journal in question consists of 16 volumes (1912-28) and was first

    published before World War I. It ceased to exist two years after the beginning of the

    military dictatorship of Gomes da Costa and was a contemporary of the Integralismo

    Lusitano, the Renascena Portuguesa and the Seara Nova. The question is: how

    relevant was the Revista de Histria in the context in which it developed, from the

    cultural and historiographical point of view?

    Historiography has been often equated to the Theory of History not just from an

    epistemological perspective, but above all from a philosophical one. Taking these

    particular conceptions into account, it is possible to integrate them into a larger extent,

    based on diachrony, thus protected from speculation and generalizing tendency. A

    particular historiographical discourse occurs in a particular space and time, both of

    which determine what is expressed. In order to be more specific regarding what is

    involved in this study, we will refer to the motivations both subjective and objective

    and the sources and methodologies used. This dissertation is a result of our particular

    interest for Contemporary History, from its cultural perspective. Bearing in mind the

    historical period, the publication in question represents a joint effort as far as the

    specialty journals in the Republican Era are concerned. On the other hand, the history

    of historiography is also a subject which requires deeper studies, similar to what has

    been happening for a long time in Spain, France or Brazil. Within historiography, the

    choice of diachrony as a priority implies a methodological approach that seeks to give

    priority to the historicity of the object of research.

    This study is divided into three parts. The opening part presents the historical,

    institutional and biographical background of the journal (chapters 1 4). In the second

    part, a qualitative analysis of the contents of the articles is carried out, followed by a

    summary of the historiographical operative concepts used by writers. (Chapters 5 9).

    The third part of this study describes a characterization of the Revista de Histria,

    based on a follow up of modern times evident over the section of Facts and Notes and

    the section of Bibliography (1912-14) in chapter 10. Having presented this line of

    thoughts, an epistemological balance of the publication is then established (chapter

    11).

  • VIII

    This journal is marked by thematic diversity not to be inserted in a single

    doctrine, which impedes any prefiguring of the Annales.

  • IX

    Agradecimentos

    Comeo por agradecer ao Professor Doutor Armando Lus de Carvalho

    Homem, orientador deste estudo, a confiana que sempre depositou no meu trabalho,

    desde a escolha do tema, at escrita. Estou-lhe igualmente grato pelas observaes

    construtivas e pela possibilidade que me deu de assistir s suas aulas de Histria da

    Historiografia e de Historiografia Portuguesa do curso de licenciatura em Histria, com

    as quais muito aprendi, mormente no que respeita anlise de contedos de textos

    historiogrficos.

    A minha profunda gratido estende-se Fundao para a Cincia e Tecnologia

    (FCT), que me concedeu uma Bolsa de Doutoramento (com a referncia

    SFRH/BD/41069/2007), durante quatro anos, sem a qual a realizao desta

    investigao estaria irremediavelmente comprometida

    Agradeo tambm minha mulher, Cristina, pelo seu amor incondicional,

    traduzido num companheirismo inquebrantvel, criando sempre todas as condies

    para a realizao desta tese, compreendendo os tempos que infelizmente no pude

    dedicar-lhe, em virtude da concretizao deste labor intelectual. Muito obrigado pelo

    carinho e ternura nos momentos de desnimo e pela enorme fora e energia que me

    transmite diariamente, sem as quais este trabalho teria sido impossvel, fazendo de

    mim um privilegiado. Muito obrigado tambm pela existncia do nosso filho, Ricardo

    Miguel, cujo sorriso vale infinitamente mais do que qualquer das pginas que se

    seguem.

    Expresso igualmente a minha enorme gratido ao meu irmo gmeo Ricardo,

    um ser humano excecional, que, apesar dos seus inmeros afazeres, sempre se

    manifestou disponvel para me ajudar a minorar a minha inpcia em questes tcnicas

    de carter informtico, revendo e corrigindo todo o texto vrias vezes, abdicando de

    incontveis noites de descanso, e beneficiando-me sempre com o seu entusiasmo em

    relao a esta dissertao, enriquecendo-a com observaes pragmticas

    indispensveis

    Agradeo muito especialmente aos meus pais, pelo que no cabe num

    agradecimento e espero tentar transmitir ao Ricardo Miguel. A minha me uma

    pessoa de uma esperana e bondade contagiantes e o meu pai leu, analisou e criticou

    em primeira mo e escrupulosamente a verso final deste texto, quando ela ainda a

    no era, de todo, apresentvel.

    Por outro lado, agradeo o amor das minhas avs, Clarinha e Palmira, bem

    como o dos meus sogros, pelo que no exerccio formal ou convencional chamar-

    lhes pais.

  • X

    No posso esquecer o Pedro e o Jorge Sobrado, amigos/ irmos desde a

    infncia e respetiva famlia , tributrios da minha admirao sem limites.

    So indispensveis tambm palavras de enorme e profunda gratido aos meus

    grandes amigos Lucinda Ribeiro e Manuel Maria de Magalhes, pela profunda

    amizade que nos une e com a qual fazem o favor de me honrar, ajudando-me

    enormemente em importantes, trabalhosos e decisivos detalhes tcnicos desta

    dissertao, para mim de difcil execuo, e que obrigaram a uma dedicao a este

    trabalho durante vrias semanas, partilhando as minhas angstias e contribuindo

    decisivamente para atenu-las e resolv-las.

    No mesmo sentido, dirigiu-se a colaborao dos excelentes amigos Rosa Paula

    Neves, Ricardo Pereira e Eurico Dias. A Rosa Paula, cuja amizade fundamental para

    mim, traduziu para ingls o resumo deste estudo com imensa competncia e

    inexcedvel bondade. Ao Ricardo agradeo a cpia e o envio, por mim solicitados, de

    dezenas obras da Biblioteca Nacional, qual se deslocou reiterada e

    sistematicamente. Ao Eurico estou grato pelas estimulantes conversas e pela partilha

    generosa de informaes extremamente importantes, sem pedir nada em troca.

    Quero destacar o enorme profissionalismo e o apoio incansvel da D. Maria

    Jos da seco de Doutoramentos da Faculdade de Letras do Porto, mas no posso

    esquecer que fui sempre bem atendido na seco nas ausncias da funcionria

    referida.

    Cumpre aqui agradecer aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade de Letras

    do Porto, pela forma profissional e amiga como sempre resolveram as dvidas e

    dificuldades que lhes fui insistentemente colocando. Destaco a Idalina Azeredo, a

    Rafaela, a D. Laura, a Mrcia, a ngela, a Marlene e o Jorge.

    O meu abrao estende-se a todos os meus queridos familiares e amigos. Muito

    obrigado por existirem.

  • 11

    ndice Geral

    Introduo 17

    Parte 1: Enquadramento Histrico, Institucional e Biogrfico da Revista de

    Histria

    49

    Captulo I Enquadramento Histrico da Revista de Histria 51

    1.1 A Viragem do Sculo 55

    1.1.1 Economia e Poltica 55

    1.1.2 Sistema Poltico e Governao: Legislao Eleitoral e Modalidades de

    Voto

    63

    1.2 Primeira Repblica 70

    1.2.1 Base Demogrfica e Populao (1910/1926) 70

    1.2.2 O 5 de Outubro de 1910 74

    1.2.3 Os Primeiros Anos da Repblica (1910/1917) 76

    1.2.4 O Sidonismo (1917/1918) 83

    1.2.5 Os ltimos Anos da Repblica (1919/1926) 88

    1.2.6 Educao, Cultura e Meio Scio-Cultural Lisboeta Durante a I

    Repblica

    89

    1.2.7 A Ditadura Militar (1926/1933) 95

    Captulo II As Revistas e a Revista de Histria: Uma Panormica 97

    2.1 As Revistas Como Fonte e Objeto de Estudo: Mtodos e Tcnicas de Anlise 97

    2.2 Revista de Cultura na Europa e no Brasil Entre 1880 e 1930: a Belle poque

    das Revistas

    102

    2.3 Revistas Portuguesas de Cultura Geral ou Devotadas Especializao No

    Universitria

    116

    2.4 Revistas Acadmicas e Universitrias de Histria: Panormica Internacional

    (Meados do Sculo XIX 1930) e Nacional

    121

    2.5 Revistas Universitrias de Histria em Portugal 160

    2.6 Revista de Histria Um Peridico Institucional Dedicado a Clio: Acadmico,

    No-Universitrio, Fruto de uma Sociedade de Saber

    162

  • 12

    Captulo III Apontamentos sobre a Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade

    Portuguesa de Estudos Histricos: Instituio Criadora da Revista de Histria

    179

    3.1 A Circular Fundadora da Sociedade Nacional de Histria 179

    3.2 Uma Sociedade de Saber, Herdeira das Academias? 182

    3.3 Os Primeiros Anos de Atividade da Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade

    Portuguesa de Estudos Histricos

    192

    Captulo IV Esboos dos Perfis Biogrficos dos Articulistas da Revista de Histria 213

    4.1 Scios da Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos

    Histricos com Artigos na Revista de Histria

    213

    4.2 Colaboradores da Seco de Artigos No Scios da Sociedade Nacional de

    Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos Histricos

    346

    4.3 Sntese do Captulo 427

    Parte 2: Anlise Qualitativa de Artigos da Revista de Histria: Prticas e

    Discursos Historiogrficos

    429

    Captulo V Da Histria Poltica Histria dos Descobrimentos 431

    5.1 Ponto Prvio Sobre a Seco de Artigos 431

    5.2 Histria Poltica 435

    5.3 Histria Diplomtica 462

    5.4 Histria Militar 485

    5.5 Histria Econmica e Social 507

    5.6 Histria dos Descobrimentos 517

    5.6.1 Histria e Historiografia das Cincias Nuticas na Revista de Histria 520

    5.6.2 Artigos Sobre os Portugueses na ndia e no Extremo Oriente 527

    5.6.3 Estudos sobre o Brasil, a Amrica Latina e Amrica do Norte 537

    5.6.4 Estudos sobre frica 548

    5.6.4 A Histria Eclesistica e Religiosa da Expanso 548

    5.6.5 A Histria da Arte na e da Expanso Portuguesa 561

    Captulo VI: Da Histria da Cultura Histria Eclesistica e das Religies 565

    6.1 Histria da Cultura 565

    6.2 Histria dos Intelectuais e das Ideias na Revista de Histria 578

    6.3 Histria da Arte 590

    6.4 Histria Eclesistica e das Religies 608

  • 13

    Captulo VII: Da Histria da Historiografia s Cincias Auxiliares da Histria e

    Histria Local 655

    7.1 Histria da Historiografia e Teoria da Histria nas Primeiras Dcadas do Sculo

    XX 655

    7.2 Anlise de Artigos de Histria da Historiografia 672

    7.3 Teoria e Filosofia da Histria 725

    7.4 Cincias Auxiliares e Histria Local 746

    7.4.1 Arqueologia 746

    7.4.2 Genealogia e Herldica 749

    7.4.3 Arquivistica e Bibliografias 754

    7.4.4 Histria Local 766 Captulo VIII: Outras reas Disciplinares na Seco de Artigos 797

    8.1 Literatura 7978.1.1 A Histria da Literatura como dimenso estudada na Revista de Histria 804

    8.1.2 Ensino da Histria da Literatura 924

    8.1.3 Apontamentos Genricos Sobre a Semntica e a Histria da Crtica

    Literria em Portugal: Preldios Abordagem na Revista de Histria 929

    8.1.3.1 A viso de Fidelino de Figueiredo Sobre a Histria Crtica

    Literria 933

    8.1.4 A crtica literria na Revista de Histria 936

    8.1.5 Lingustica na Revista de Histria 955

    8.2 Filosofia 9678.3 Geografia 9718.4 Antropologia 975 Captulo IX: Conceitos Historiogrficos Operatrios

    979

    9.1 Documento/ Monumento 9809.2 Factos Histricos 9839.3 Mtodos 9879.4 Tempo Histrico 9899.5 A Verdade Histrica: Categoria de Conhecimento e Processo Histrico 10109.6 Apontamentos sobre o Modo Biogrfico 1021

  • 14

    Parte 3: Caracterizao da Revista de Histria: Atualidade, Construes Historiogrficas e Representaes Ideolgicas

    1025

    Captulo X: A Atualidade na Revista de Histria 1027

    10.1 Atividade Cientfico-Cultural na Seco de Factos e Notas 1027

    10.1.1 Representaes e Construes da Memria 1134

    10.1.1.1 Legitimao da Revista da Histria 1134

    10.1.1.2 Institucionalizao da Publicao 1139

    10.1.1.2.1 A Promoo da Sociedade Nacional da Histria/ Sociedade

    Portuguesa de Estudos Histricos 1139

    10.1.1.3 Os Elogios Fnebres como Ritualizaes da Memria 114010.1.1.4 A Divulgao de Atividades Cientifico-Culturais e a

    Internacionalizao do Peridico 1142

    10.1.1.5 Intervenes Sobre o Presente Histrico e a Cultura Coeva 114510.2 Atualidade Bibliogrfica no arranque da Seco de Bibliografia (1912/1914) 1148

    Captulo XI Balano Epistemolgico-Ideolgico da Revista de Histria 120311.1 Os Intelectuais na Revista de Histria (Atividades e Representaes) 120311.2 Um Certo Pendor Historicista: Grupo, Movimento ou Escola? 1228

    11.3 Um Exemplar de um Nacionalismo Historicista: o Predomnio de uma Ideologia

    Proto-Cientfica Conservadora na escrita da Memria Histrica Nacional 1244

    11.3.1 Concees Tericas de Nacionalismo e a Realidade da Revista de

    Histria 1246

    11.3.2 Usos Historiogrfico-Ideolgicos de Memria Histrica 125811.3.2.1 Jesuitismo, Anti-Pombalismo, Anti-Maonismo 1260

    11.3.2.2 Conservadorismo, Tradicionalismo e Pensamento

    ContraRevolucionrio 1264

    11.3.2.3 Entre o Nacionalismo Cultural Historicista e uma Certa

    Hispanofilia 1271

    11.4 Historiografia Erudita sem Esquecer Alguma Divulgao Cientfica:

    Confirmao de uma Revista Acadmica 1273

    Concluses 1277Referncias Bibliogrficas 1305Anexo 1402

  • 15

    A estruturao e afirmao de qualquer cincia ou ramo do saber passa no

    s pelos seus cultores, pela investigao e pelo ensino, como pelos principais veculos

    de divulgao de resultados, designadamente livros e revistas. () Com o acelerado desenvolvimento dos diversos domnios cientficos tanto do mbito das cincias

    experimentais, como do das cincias humanas e sociais , de modo particular desde

    meados do sculo XIX, o papel desempenhado pelas revistas passou a adquirir uma

    relevncia crescente. () A renovao da histria passa tambm, em grande medida, pelas revistas de histria () Trata-se de uma temtica ainda insuficientemente estudada, no obstante o interesse de que a mesma se reveste

    Jos Maria Amado Mendes, Desenvolvimento e Estruturao da Historiografia Portuguesa, Revistas de Histria; A Renovao da Historiografia Portuguesa, O Grande Surto das Revistas de Histria e o seu significado in Histria da Histria em Portugal, Sculos XIX-XX, Lus Reis Torgal, Jos Maria Amado Mendes e Fernando Catroga, Lisboa: Crculo de Leitores, 1996,pp.211;337

  • 16

  • 17

    Introduo: A Revista de Histria sob o prisma da Histria da

    Historiografia

    Objeto, Motivaes, Objetivos e Estrutura da Dissertao

    O objeto central deste estudo a Revista de Histria (1912-1928), publicada

    em dezasseis volumes e sessenta e quatro nmeros, portadora de uma periodicidade

    trimestral. A estruturao e o desenvolvimento da cincia da histria dependeram da

    criao de rgos de comunicao e difuso dos respetivos resultados, desde meados

    do sculo XIX, na Europa, mas tambm noutros continentes.

    Tornou-se, deste modo, relevante o estudo do peridico dirigido por Fidelino de

    Figueiredo, de forma a tentar ajudar a diminuir a escassez de investigaes em

    Portugal sobre publicaes dedicadas a Clio e Histria da Historiografia.

    Do nosso ponto de vista, a Histria da Historiografia constitui um domnio de

    estudo no seio da histria como cincia. Ocupa-se, em diacronia e sincronia, das

    condies espcio-temporais, institucionais e biogrficas de surgimento e

    desenvolvimento do ofcio dos historiadores. O trabalho dos cultores de clio, enquanto

    conhecimento cientfico, comporta uma vertente profissional e outra disciplinar. A

    primeira concita um enquadramento scio- cultural, no qual se integra, e a segunda

    implica um conjunto de princpios, valores, mas tambm de paradigmas, modelos,

    teorias, conceitos, mtodos, que determinam a escrita historiogrfica, entendida como

    ponto de convergncia de prticas historiogrficas, discursos e representaes,

    portadores de uma dimenso epistemolgica e outra ideolgica. O ofcio dos

    historiadores incorpora as funes e o estatuto do trabalho historiogrfico.

    A escola da Faculdade de Letras do Porto, na qual nos licencimos, confere

    grande importncia pesquisa de fontes primrias e crtica documental. evidente

    que este enquadramento modelou a nossa personalidade e ter reflexos na

    investigao.

    A Histria uma cincia e a Historiografia uma rea especifica que depende

    daquela. A Histria da Historiografia que se ir abordar devedora, entre outros, de

    Carbonell, Vitorino Magalhes Godinho e A. H. de Oliveira Marques, no que respeita

    ao seu estatuto, e das diversas contribuies da Storia della Storiografia, ainda que

    no esqueamos a relevncia, para o (nosso) posicionamento terico, de outras

    revistas como os Annales, ou a History and Theory. Esta ltima privilegia a

    Historiografia nas suas vertentes epistemolgica e filosfica.

  • 18

    Esta investigao parte do enfoque j exposto. Interessa a Historiografia

    enquanto atividade desenvolvida por vrios historiadores, num espao e tempo

    determinados.

    Este estudo ajudar a esclarecer as prticas do fundador e dos colaboradores

    da Revista de Histria, numa perspetiva que no esquecer o percurso biogrfico

    das personalidades em causa, seguindo o exemplo, entre outros, do Professor

    Carvalho Homem. Tentaremos entender o grau de envolvimento de vrios autores na

    Sociedade de Estudos Histricos e a ligao existente entre esta e a Revista, que

    nasceu no seu seio.

    Este trabalho divide-se em trs partes. Na primeira procede-se ao

    enquadramento histrico, institucional e biogrfico do peridico (captulos 1 a 4). Num

    segundo momento, realiza-se a anlise qualitativa de contedos dos artigos da

    publicao, seguida de uma sntese dos conceitos historiogrficos operatrios postos

    em prtica pelos articulistas. (captulos 5 a 9). Esta abordagem assenta na anlise das

    razes e motivos que levaram os autores a escrever os seus artigos, sem esquecer o

    pblico ao qual se dirigem e, sobretudo, os principais assuntos versados, mormente

    aqueles que evidenciem os instrumentos e conceitos historiogrficos operatrios

    envolvidos nas prticas historiogrficas em causa (documento/ monumento; factos;

    mtodos, tempo e verdade). Este trabalho implica uma insero subdisciplinar dos

    estudos baseada numa escolha da nossa responsabilidade , sublinhando a

    evoluo de dimenses e domnios pertencentes Histria, destacando ainda outras

    disciplinas, como a Literatura, a Histria ou a Geografia. A preponderncia do estudo

    dos artigos nesta investigao deriva do facto de constiturem, em nosso entender, o

    centro da publicao dirigida por Fidelino de Figueiredo seguindo, de resto, uma

    tendncia no mesmo sentido patenteada por peridicos congneres a nvel

    internacional dado que, atravs deles, define-se o campo de estudo preferido, uma

    vez que os artigos constituem o principal elo de comunicao pelo qual a publicao

    se responsabiliza e a base de conhecimento disciplinar assumida no peridico. Por

    outro lado, a seco de artigos domina as nossas atenes porque ocupa cerca de

    dois teros do espao da Revista de Histria, constituindo-se como o respetivo

    corao 1.

    A terceira parte desta dissertao contempla uma caracterizao da Revista de

    Histria, assente num acompanhamento da atualidade, patente ao longo da seco de

    Factos e Notas e no arranque do andamento dedicado Bibliografia. Exposto este

    percurso concretiza-se um balano epistemolgico da publicao (captulos 10 e 11).

    1 Cfr. Margaret Stieg, The Origin and the development of Scholarly Historical periodicals, Alabama: The University of

    Alabama Press, 1986, pp. 189-190.

  • 19

    A Sociedade Nacional de Histria, posteriormente designada Sociedade

    Portuguesa de Estudos Histricos, teve antecedentes institucionais noutras

    congneres europeias, participando de um esforo europeu de implementao.

    Convm indagar as caractersticas da Sociedade (...) sem excluir a conjuntura

    internacional da qual emerge e a que d corpo. Da Sociedade (...) conhecem-se,

    essencialmente, os estatutos e algumas notcias publicadas anualmente na Revista de

    Histria por Fidelino de Figueiredo. Fidelino de Figueiredo tem merecido estudos e

    trabalhos acadmicos de Mestrado ou Doutoramento, mas julgo que ainda no foi

    abordado, tendo em conta a sua atividade na Revista de Histria.

    Este trabalho de mbito biobibliogrfico contempla os membros da Sociedade

    Nacional de Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos Histricos que sejam

    colaboradores da seco de artigos da Revista (...) e tambm os articulistas do

    peridico que no pertenam referida instituio de origem. O levantamento de uns e

    outros, comporta a indicao da data de nascimento e morte e da respetiva profisso,

    bem como, sempre que possvel, a origem social e geogrfica dos autores em causa,

    seguindo uma metodologia prxima de uma Historiografia de preocupao sociolgica

    sobre os intelectuais.

    A nossa investigao procurar atingir, na medida do possvel, os seguintes

    objetivos gerais: integrar a Revista () na sua poca (1 Repblica; 1 Guerra Mundial

    e Ditadura Militar), de forma a perceber se estes acontecimentos so tratados como

    objetos de estudo nos artigos do peridico ou, alternativamente, enquanto causas de

    uma eventual crise conjuntural da Historiografia; comparar a Revista de Histria com

    eventuais modelos estrangeiros e nacionais; estabilizar a gnese da Revista de

    Histria no seio da Sociedade Nacional de Histria, atravs da anlise da escassa

    documentao disponvel da Sociedade; reconhecer o papel do fundador da Revista

    de Histria na Publicao. Para tal, convm tentar responder a questes que se

    prendem com a notoriedade e o estatuto profissional de Fidelino Figueiredo:

    historiador tout court? historiador, crtico ou terico da literatura?.Convm no

    esquecer a eventual importncia do texto de Fidelino, o Esprito Histrico (1910), para

    a integrao da Revista (), no mbito da Filosofia e da Teoria da Histria. Note-se

    que em 1912 foi publicado na Revista () o artigo: A crtica literria como cincia.

    Por outro lado, procuraremos perceber a relevncia dos colaboradores da

    Revista de Histria e analisar o respetivo percurso intelectual (perfil bibliogrfico e

    pertena a instituies culturais), de modo a compreender as suas prticas

    historiogrficas, esclarecendo se o peridico constitui grupo, movimento ou escola.

    Esta tarefa complexa. Vejam-se, a ttulo de exemplo, as filiaes tericas dspares

    dos seguintes autores: Silva Telles (Evolucionismo); Pedro de Azevedo (Erudio);

  • 20

    Fortunato de Almeida (Histria como tribunal e mestra da vida); Fidelino Figueiredo

    (Conciliao do Idealismo de matriz croceana com os preceitos rankeanos).

    O primeiro, segundo, nono e dcimo primeiro captulos desta dissertao so

    essencialmente baseados em bibliografia dita secundria, enquanto os andamentos

    que se estendem do quinto ao oitavo centram-se numa anlise dos artigos da Revista

    de Histria. Por seu turno, no dcimo captulo encaramos as Seces de Factos e

    Notas e de Bibliografia igualmente como fontes primrias. A situao complica-se se

    tivermos em conta que no segundo andamento deste estudo recorremos aos textos

    programticos da Revue de Synthse Historique e da La Critica. Tambm no

    esquecemos a circular fundadora da Sociedade Nacional de Histria ou o inventrio

    publicado por esta instituio, intitulado Revistas de Histria, dado estampa em 1915

    (trabalhados no terceiro captulo).Por outro lado, o quarto andamento desta tese

    essencialmente enciclopdico, mas no esquece obras dos colaboradores do

    peridico publicadas fora dele e suas contemporneas.

    Em seguida, demonstramos o modo como sero compaginadas as diversas

    tarefas a realizar para cumprir os objetivos enunciados todas direcionadas para a

    pesquisa, escrita e anlise dos vrios andamentos , atravs do recurso ao resumo de

    algumas linhas de fora das quais este trabalho tentar ser portador, configurando-se

    estas como caractersticas essenciais do estudo desenvolvido ao longo dos anos, no

    qual tentmos ser fiis a uma matriz terica afirmada desde o projeto da bolsa e

    sempre reiterada. Resulta importante relembr-la, sucintamente, nesta ocasio. Esta

    dissertao inscreve-se, prioritariamente, nunca demais sublinh-lo, na Histria da

    Historiografia, cruzando-a com a Histria das ideias e dos intelectuais, concretizando

    uma abordagem detentora de nucleares afinidades com a Histria da Cincia de Clio.

    Procuraremos perceber o eventual contributo da Revista de Histria para a legitimao

    e institucionalizao disciplinar da rea de saber plasmada no ttulo do peridico.

    A publicao foi sempre encarada enquanto objeto central deste estudo, ao

    arrepio de um tratamento instrumental, que se eximisse a analis-la na sua

    especificidade. Todavia, esse destaque, possuidor de autonomia, no impediu que

    nesta dissertao, a Histria da Imprensa surja subordinada a imperativos

    historiogrficos, que no a anulam, mas colocam-na na estrita dependncia deles e de

    um itinerrio que afirma a escrita da Histria essencialmente como prtica

    historiogrfica, enquadrada do ponto de vista scio-cultural. Ser necessrio um

    trabalho futuro que encare a publicao dirigida por Fidelino de Figueiredo como parte

    da imprensa, analisando-a tecnicamente em funo da evoluo dos materiais

    impressos, integrando-a nesse conspecto e aprofundando as suas caractersticas, ao

    nvel do suporte utilizado, dos caracteres tipogrficos, da paginao, sem deixar de

  • 21

    incorpor-las numa reflexo que as reclama, dado que influenciam a edio e a

    distribuio da Revista de Histria, assim como a sua colocao no mercado ou o

    preo nele atingido.

    As questes relacionadas com o mercado e a edio necessitam de uma

    investigao autnoma e independente, que nunca esteve nos nossos horizontes.

    Contudo, as origens do peridico e a sua gnese interessaram-nos sobretudo no que

    respeita sua natureza no plano dos contedos, comparando-a com revistas de

    histria que a precederam, sem esquecer a gnese que faz da congnere portuguesa

    uma publicao institucional, iniciada durante a Primeira Repblica, devedora do

    contexto de instabilidade que preparara o novo regime. Todavia, a anlise qualitativa

    de contedos da Revista de Histria constituiu o foco essencial da nossa ateno

    assumindo-se como prioritria a abordagem da seco de artigos, sem esquecer as de

    Factos e Notas e a de Bibliografia. Bem pelo contrrio, na medida em que estas

    possam ajudar a explicar aquela exigindo a considerao de cada texto na sua

    especificidade, sem fazer tbua rasa de alguns elementos biobibliogrficos do trajeto

    dos articulistas que ajudaram a enquadrar a anlise de contedos e a perceber a

    respetiva gestao, condicionada por aspetos scio-culturais. No entanto, nunca

    pretendemos ultrapassar os limites de um Esboo de perfis biogrficos dos

    colaboradores da Revista de Histria. Note-se que um esboo apenas isso, possui

    um carcter indicirio e exime-se a tentar aprofundar informaes de teor biogrfico,

    utilizando-as em nome da compreenso dos contedos da Seco de Artigos. Nessa

    medida, apenas traaremos perfis biogrficos, assumidamente lacunares, que no

    constituem biografias coletivas, nem redes de relaes entre personalidades

    histricas, que exigiriam um estudo prosopogrfico completamente independente.

    Esse trabalho autnomo tambm esteve sempre ausente dos nossos objetivos.

    Por outro lado, a Histria da Historiografia que praticamos no trata os

    discursos historiogrficos como unidades lingusticas, lexicais, morfosntticas

    autnomas, embora sejam legtimas abordagens afins, para as quais no possumos

    habilitaes nem capacidade.

    Preferimos concretizar um estudo que tentar entender as prticas

    historiogrficas patentes nos artigos escritos para a Revista de Histria, sem deslig-

    las da restante atividade biobibliogrfica dos seus autores, que os influenciou e foi

    condicionada por eles. Assim, os articulistas da publicao escreveram os seus textos

    tendo em conta o lugar que ocupavam espcio-temporal e estatutariamente na

    sociedade da poca, dirigindo-se a um pblico letrado e erudito, de forma a partilhar

    conhecimentos. Da que a anlise de contedos que empreendemos procure esboar

    as razes ou os objetivos dos cultores de Clio ao abord-los. A sntese destes ser

  • 22

    utilizada para ajudar a compreender o modo como os historiadores trabalharam, e as

    prticas historiogrficas que concretizaram, utilizando conceitos historiogrficos

    operatrios, aos quais consagrmos um captulo. Todavia, esta anlise das

    potencialidades informativas, comunicacionais e historiogrficas dos artigos da Revista

    de Histria subordinou-se a uma categorizao prvia de contedos, distribudos por

    reas sub-disciplinares no mbito da Histria e da Literatura, da Geografia e da

    Filosofia.

    Natureza, Tipologias e Funes da Historia da Historiografia

    Para sublinhar as opes descritas at este momento, testando-as e

    classificando-as teoricamente, convm integrar o nosso estudo num quadro

    conceptual amplo, dentro da Histria da Historiografia, contemplando e comparando

    os modos de a fazer, e propiciando uma aferio da nossa posio nesse conspecto,

    aproximando-nos mais de certas abordagens do que de outras, mas tentando uma

    configurao do objeto de estudo e da respetiva anlise. Urge a distino sumria

    entre Histria da Historiografia e Teoria e Filosofia da Histria. Apresentamos um

    ponto prvio. H autores que entendem a Teoria da Histria enquanto foro disciplinar

    dedicado s reflexes relativas discusso dos fundamentos do pensamento

    historiogrfico, considerado como objeto abstrato, sem aplicao prtica. Outros

    defendem que a prtica historiogrfica um complemento tramitao terica,

    subordinado ao imperativo categrico configurado pelos ditames da teoria. Existem

    estudiosos favorveis inverso de predomnio. A teoria no entendida como

    essncia, pelo contrrio, e pode diluir-se ou deixar de ser explicitada.

    A nossa perspetiva identifica-se com a Histria da Historiografia, enquanto

    promotora da relao entre ambos os domnios contidos na designao e constitui-se

    como teoria aplicada a situaes concretas. A relao aludida pressupe hierarquias e

    confere precedncia Histria sobre a Historiografia, mas sem a anular, antes pelo

    contrrio. A Filosofia da Histria pode ser encarada sob diversos prismas: enquanto

    disciplina, subdisciplina ou cincia autnoma; como mtodo, objeto, ou conceito, e

    suscita vrias questes relativas natureza, ao objeto, com reflexos no

    enquadramento institucional que traduz um dos mbitos de concretizao da Filosofia

    da Histria, e pode ajudar a responder s seguintes interrogaes colocadas por

    Berkley Eddins: how may single philosophies of history be evaluated, and in what

    ground may one philosophy of history be preferred to another?2 A Filosofia da Histria

    pode ser encarada na sua vertente epistemolgica ou teleolgica. A primeira no nos

    2 Berkley Eddins Historical data and policy decisions: a key to evaluating philosophies of history. In Philosophy and Phenomenological Research, vol. 26, n. 3. Providence: Brown University, 1966, p. 427.

  • 23

    totalmente estranha e identifica-se com uma dimenso reflexiva e crtica, enquanto

    nos desviamos da dimenso especulativa configurada pela procura de um sentido

    para as aes humanas, em Deus ou no mundo. A nossa escolha da Histria da

    Historiografia recebeu contributos vrios, alguns deles j citados, mas no

    aprofundados. Comearemos por abordar a influncia das posies de Charles-Olivier

    Carbonell no nosso trabalho, e pensamos que se tornam mais claras agora, dado que

    temos vindo a expor o modo concreto como assimilamos empiricamente as suas

    ideias sem a elas nos referirmos explicitamente.

    Num texto que consideramos seminal, pelos caminhos que abriu e permitiu

    desbravar, intitulado Pour une Histoire de lHistoriographie, publicado no primeiro

    nmero da Revista Storia della Storiografia, relativo a 1981, o historiador francs

    elabora um manifesto a favor da sua disciplina de eleio, reclamando a respetiva

    prtica e escrita como um exclusivo de historiadores.3 Procede, desde logo,

    desmontagem de certos preconceitos, evidenciados inclusive por muitos colegas de

    profisso e responsveis pela desconfiana face Histria da Historiografia que, no

    caso portugus, se encontra nos dias de hoje ainda longe de ser cabalmente

    ultrapassada, embora haja avanos nesta matria na atualidade. O afastamento ou a

    distncia de historiadores relativamente Histria da Historiografia pode dever-se

    considerao e/ou conjugao de quatro atitudes que convergem, situando-a fora da

    Histria: a vaidade, a degradao, a mutilao e a rejeio. A Histria da Historiografia

    foi sendo escrita durante dois mil anos sem que aqueles que se lhe dedicaram a

    denominassem enquanto tal ou a constitussem como disciplina, concretizando-se este

    processo durante o sculo XIX, e na passagem de oitocentos para novecentos. At a

    materializao desta realidade, os historiadores que se debruavam sobre a atividade

    de outros cultores de Clio faziam-no, no raro, de modo laudatrio, apologtico.

    endeusando-os e divinizando-os, recusando-se a relativizar aquilo que perspetivavam

    como absoluto, transcendente, comprazendo-se em produzir elogios que alimentavam,

    eventualmente, a vaidade de quem os fazia. A Historiografia podia comparecer como

    algo intangvel, etreo, oracular, vagamente esotrico. Ora, conforme ficou

    demonstrado, pretendemos contrariar esta viso, na linha de Carbonell, dado que

    escolhemos um objeto concreto devidamente situado, imanente ao devir humano e

    dele dependente. O segundo preconceito que tentaremos evitar encontra-se

    devidamente circunscrito pelo historiador francs, que se reporta natureza limitada

    de certas Histrias da Historiografia produzidas no sculo XIX e que constituem

    apenas inventrios de nomes de autores e de obras, no aprofundando qualquer das

    3 Cfr. Charles-Olivier Carbonell Pour une Histoire de lHistoriographie. In Storia della Storiografia, vol.1.Milo: Jaka

    Book, 1981, pp.7-25.

  • 24

    duas componentes e contribuindo decisivamente para a degradao de uma rea sub-

    disciplinar na qual se deveria investir para alm da elaborao de bibliografias

    regressivas, de inegvel interesse heurstico, mas que nele se no esgotassem. Outro

    dos preconceitos frequentemente associados Histria da Historiografia deriva da

    desvalorizao das fontes secundrias como base documental dos trabalhos

    historiogrficos, sob pena de serem encaradas como menos originais. Ora, conforme

    j comprovmos no caso da Revista de Histria, a natureza das fontes depende do

    uso que lhes do os cultores de Clio. Relembre-se que o peridico em questo ser

    por ns tratado como fonte primria que no se encontra mutilada ou diminuda

    mesmo quando serve de suporte e instrumento de consulta a investigaes que nela

    no se centrem, utilizando-a episdica ou parcialmente, medida das respetivas

    necessidades. O fetiche pelas fontes primrias pode implicar a rejeio de certas

    abordagens situveis no mbito da Histria da Historiografia.

    Numa investigao recente, publicada sob a forma de artigo, intitulado Towards

    a new theory-based history of historiography, Horst Walter Blanke devota-se a um

    exerccio incomum, e necessrio, que consiste na descrio informativa formalizada

    das tipologias referentes aos diversos modos de praticar e escrever Histria da

    Historiografia. Assim, refere-se a dez abordagens historiogrficas que no obrigam os

    estudiosos a seguir em exclusivo uma delas, permitindo e incentivando combinaes

    diferentes4. Deste modo, existem: a Histria de autores; de obras; os textbooks, a

    Histria das Instituies; a Histria dos mtodos historiogrficos; a concatenao de

    temas, mtodos e modelos interpretativos (Histria intelectual); as Histrias-Problema;

    a concentrao no estatuto social da Historiografia; a Histria social da Historiografia e

    a reflexo historiogrfica meta-terica. A primeira e a segunda abordagem citadas so

    suscetveis de trilhar caminhos absolutamente autnomos, contudo, a respetiva

    conciliao possvel e, em nosso entender, desejvel, conforme j explicitmos

    anteriormente.

    Por outro lado, os textbooks consistem no agrupamento selecionado de textos

    dos historiadores, por forma a serem posteriormente utilizados como panormica da

    respetiva atividade historiogrfica, eventualmente ao servio de fins pedaggico-

    didticos ou heursticos, estes ltimos integrados numa perspetiva que salvaguarde

    intuitos cientficos especializados, pertencentes ao mbito da investigao. No nosso

    estudo, a publicao autnoma de excertos de obras e artigos encontra-se ausente, o

    que no significa que nos furtemos a apresentar vrias citaes no corpo do texto,

    sempre que se justifiquem, para que cada leitor possa confront-las com os nossos

    4 Horst Walter Blanke- Towards a new theory-based history of historiography. In Peter Koslowaki (org.), The discovery

    of historicity in German Idealism and historism. Berlim: Springer, 2010, pp. 223-267.

  • 25

    enquadramentos e as descries ou interpretaes que realizamos, incentivando a

    perspetiva pessoal de cada um. A Revista de Histria, em certa medida, uma

    instituio, dado que se constitui como uma organizao (com uma hierarquia, da qual

    faziam parte um diretor, uma redao nunca especificada, mas em nome da qual eram

    assinadas notcias das Seces de Factos e Notas e de Bibliografia e colaboradores),

    e teve origem numa outra, a Sociedade Nacional de Histria (objeto do terceiro

    captulo deste trabalho), que a dotou de um conjunto de regras, eventualmente pouco

    formalizadas, mas possuidoras de um teor indicativo, ainda que escassamente

    definido. No concretizaremos uma abordagem assente numa metodologia que

    ressalte essencialmente a dimenso institucional, jurdica ou grupal do peridico

    dirigido por Fidelino de Figueiredo, comparecendo a primeira apenas na justa medida

    em que se considera a revista em anlise institucional, acadmica e no universitria.

    No entanto, o nosso enfoque subsidirio de uma Histria da Historiografia

    problematizante, que procura entender se e em que medida o seu objeto central de

    estudo contribuiu para a certificao cientfica profissional e disciplinar da Histria

    na sua poca em Portugal. Assim, as Histrias-Problema a que Horst Walter Blanke se

    refere no so necessria ou exclusivamente aquelas que a Historiografia dos Annales

    prodigalizou do ponto de vista da atitude metodolgica. Tambm comportam um tipo

    especfico de Histria da Historiografia que pode escolher como objeto a diacronia de

    disciplinas individuais, a relao entre disciplinas e sub-disciplinas ou a receo de

    eventos histricos particulares. A nossa investigao centra-se essencialmente na

    diacronia de uma disciplina central no interior de uma publicao, relacionando-a com

    sub-disciplinas e outras disciplinas, conforme tivemos ocasio de afirmar numa fase

    precedente desta introduo.

    A Histria da Historiografia concita mltiplas funes. Destaquemos algumas, em

    sintonia com Walter Horst-Blanke. Esta rea do saber pode assumir vertentes

    cientficas e ideolgicas, separadas ou conjugadas, afirmando-se como base de apoio

    ou de crtica dos poderes dominantes. Por outro lado, passvel de constituir-se como

    plataforma que absorve, situa e condiciona construes tericas, que se lhe

    submetem. Tambm pode verificar-se a instrumentalizao da Histria da

    Historiografia pela Teoria da Histria. Optmos, neste estudo, pela penltima funo

    enunciada5.

    Em seguida, expomos uma breve e muito lacunar reviso bibliogrfica sobre a

    Histria da Historiografia em Portugal, que enquadre e ajude a contextualizar a nossa

    dissertao.

    5 Ibid., pp. 232-237.

  • 26

    Breve reviso bibliogrfica sobre Histria da Historiografia (e temticas

    afins) em Portugal

    A reviso bibliogrfica a que procederemos centra-se na Histria da

    Historiografia e exclui a abordagem do ensino da histria. Logo em 1915, Fidelino de

    Figueiredo deu estampa uma Bibliografia Portuguesa de Theoria e Ensino da

    Histria, publicada como anexo da segunda edio de O Esprito Histrico. Trata-se de

    um instrumento heurstico bastante til.6

    Em 1940, Vitorino Magalhes Godinho foi pioneiro na anlise de problemas

    historiogrficos, relacionando-os com a crise contempornea. Decorria a Segunda

    Guerra Mundial na Europa quando, na sua dissertao de licenciatura, apresentada

    Faculdade de Letras de Lisboa, o autor construiu uma argumentao cientfica para

    responder aos problemas que como cidado observava em Portugal, na Europa e no

    Mundo. Queria intervir civicamente na denncia do regime poltico vigente no nosso

    pas, de modo a contribuir, no plano intelectual, para ajudar mudar a situao. O

    trabalho em apreo intitula-se Razo e Histria (introduo a um problema)7. Nesta

    dissertao de licenciatura, o autor distingue a lgica transcendente da lgica formal,

    admitindo ligaes entre ambas, mas ultrapassa-as, recorrendo a Kant, sem colocar,

    por outro lado, o empirismo totalmente de parte, consciente das respetivas

    necessidade e insuficincia Dois anos depois, a Guerra continuava e os indesejveis

    irracionalismo e misticismo recrudesciam. Assim, no estudo A Historiografia

    Contempornea Orientaes e Problemas, Magalhes Godinho rejeita a leitura do

    presente a partir de uma imposio dogmtica e acrtica do passado como tradio.

    Por outro lado, o historiador coloca o problema do passado no apenas para o

    recapitular, nem to pouco com o intuito de julg-lo. Procura explicar a sua irredutvel

    especificidade e relacion-lo com o presente, sem instrumentalizaes recprocas.

    Magalhes Godinho tenta ultrapassar a pura erudio, tendo-a em conta, sem a anul-

    la ou posterg-la. Bem pelo contrrio. Acrescenta-lhe uma insero da Histria no

    mbito da problematizao scio-cultural8.

    Alguns anos volvidos, o autor reafirmou a confiana na cincia, na tcnica, no

    alargamento geogrfico e temtico da histria, acolhendo os contributos da histria

    econmica e social, na obra A Crise da Histria e as suas novas diretrizes9.Neste

    trabalho, o historiador contesta a arquitetura tradicional da histria, tendencialmente

    6 Fidelino de Figueiredo - Bibliografia Portuguesa de Theoria e Ensino da Histria, in O Esprito Histrico, 2. edio.

    Lisboa: Clssica Editora, 1915. 7 Vitorino Magalhes GodinhoRazo e Histria (introduo a um problema), Lisboa: [s:n], 1940.

    8 Cfr. Vitorino Magalhes Godinho A Historiografia Contempornea Orientaes e Problemas, Lisboa: [s.n.], 1942.

    9Cfr. Vitorino Magalhes Godinho A Crise da Histria e as suas novas directrizes, Lisboa. Empresa contempornea

    de edies, s.d.

  • 27

    poltica, militar e diplomtica, baseada no primado da descrio andina de factos,

    datas, reinados, batalhas

    Num mbito assaz diverso, em 1962, Carlos Abranches de Soveral, professor

    da Faculdade de Letras do Porto, publicou um artigo intitulado Histria, Historiografia e

    Historiologia na revista Studium Generale, Boletim do Centro de Estudos Humansticos

    anexo Universidade respetiva10. Trata-se de um estudo essencialmente terico, no

    qual o seu autor se exime a enveredar pela histria da historiografia, centrando-se

    numa reflexo conceptual, alicerada na distino entre Histria, Historiografia e

    Historiologia. A primeira entendida como a realidade histrica, o processo

    existencial, correspondendo ao que acontece e flui, enquanto a segunda diz respeito a

    uma produo escrita, ao registo e interpretao da histria, concretizando a respetiva

    transformao, baseada na expresso subjetiva do historiador, sem esquecer que o

    seu esforo se inscreve, igualmente, no mbito de uma inteno coletiva. Por seu

    turno, a historiologia abarca e congrega as duas dimenses anteriores, constituindo

    uma abordagem filosfica acerca da historiografia. No entender de Carlos Abranches

    de Soveral, Tucdides foi o pai da historiografia, distinguindo-se pelo cunho

    alegadamente pragmtico do seu trabalho. Fora da Teoria da Histria, curioso

    verificar que Joaquim Verssimo Serro se interessasse por estabelecer uma diacronia

    essencialmente descritiva da Historiografia Portuguesa dos Sculos XIX e XX.

    Ainda em 1962, Joaquim Verssimo Serro publicou a Histria Breve da

    Historiografia Portuguesa11, que constitui essencialmente uma recolha de nomes, de

    personalidades e de obras, uma inventariao com fins descritivos, na qual quaisquer

    intuitos de problematizao e interpretao resultam subalternos. O mesmo

    diagnstico repercute-se e pode ser aplicado num estudo que comeou a ser dado

    estampa dez anos volvidos, intitulado A Historiografia Portuguesa: Doutrina e Crtica12,

    no qual o autor apresenta, em trs volumes uma panormica diacrnica da

    Historiografia Portuguesa, portadora de um aparato erudito mais vincado do que o

    patente no trabalho anterior. Em 1963, Antnio da Silva Rego publicou um trabalho

    essencialmente de cariz metodolgico e pedaggico, intitulado Lies de Metodologia

    e Crtica Histrica.13

    Por seu turno, numa linha bem diferente da exposta nas linhas precedentes,

    assente na problematizao e na inspirao extrada dos Annales, mormente da

    Histria Nova, Magalhes Godinho, nos seus Ensaios III, publicados em 1971, deu

    10

    Cfr. Carlos Abranches de Soveral Histria, Historiografia e Historiologia Studium Generale Boletim do Centro de Estudos Humansticos, volume IX, Tomo 2, Porto: Universidade do Porto,1952, pp. 5-60. 11

    , Joaquim Verssimo Serro Histria Breve da Historiografia Portuguesa, Lisboa: Verbo, 1962. 12

    Joaquim Verssimo Serro A Historiografia Portuguesa Doutrina e Crtica, Volume I sculos XII-XVI, Lisboa: Verbo, 1972. 13

    Cfr. Antnio Silva Rego Lies de Metodologia e Crtica Histrica. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, Centro de Estudos Polticos e Sociais,1963.

  • 28

    sequncia a importantes contributos anteriores de sua lavra e traou, de forma

    original, as diretrizes da Historiografia Portuguesa, republicando vrios artigos, entre

    os quais pontifica o estudo Historiografia Portuguesa do Sculo XX, orientaes

    problemas e perspetivas, dado estampa pela primeira vez em 1955 e que constituiu

    uma fonte de inspirao par ns, dado que configura um dos primeiros trabalhos

    empricos na rea da Histria da Historiografia, dedicado aos historiadores e suas

    obras, da autoria de um cultor de Clio profissional. A reflexo historiogrfica em

    Portugal deve muito a Vitorino Magalhes Godinho e aos diversos trabalhos que lhe

    devotou, praticando nos trs volumes dos Ensaios, uma historiografia total,

    problematizante, aberta interdisciplinaridade com a geografia, a economia ou a

    sociologia, incrementando a histria da cincia e da tcnica, mas tambm a das

    mentalidades, sem esquecer uma empatia pelo tempo presente, incentivando uma

    nova erudio, conferindo destaque a historiadores dos Descobrimentos a sua

    poca de estudo de eleio durante a maior parte do seu trajeto intelectual como

    Duarte Leite. No terceiro volume dos Ensaios comparecem alguns artigos previamente

    publicados no Dicionrio da Histria de Portugal, dirigido por Joel Serro. Na primeira

    parte deste estudo, subordinada Crise da Histria e suas novas diretrizes, so

    abordados temas como; a histria humana e a histria natural; a histria e a geografia;

    a histria econmica e social; histria da tcnica, civilizao e vida mental e histria da

    cultura. Na segunda parte, Magalhes Godinho debrua-se sobre diversos

    historiadores como Duarte Leite, Jaime Corteso e Veiga Simes14.

    Em 1974, precisamente no ano da Revoluo de Abril, A.H. de Oliveira Marques

    publicou uma obra que a reviso bibliogrfica no pode esquecer, ou pr de parte, um

    contributo estruturante, basilar e indispensvel; a Antologia de Historiografia

    Portuguesa. Este trabalho aposta na apresentao de diversos historiadores

    portugueses, atravs da pesquisa e publicao de excertos significativos dos seus

    textos. Essa recolha no aleatria e percorre cronologicamente momentos

    significativos do pensamento historiogrfico portugus, tal como os posteriores

    Ensaios de Historiografia Portuguesa. As duas obras possuem uma introduo

    comum, na qual Oliveira Marques lamenta a escassez de trabalhos de Histria da

    Historiografia publicados em Portugal. O primeiro trabalho referido uma seleta, em

    dois volumes, de textos considerados significativos de historiadores de vrias pocas

    at ao dealbar do sculo XX. Nas suas escolhas nota-se o respeito de Oliveira

    Marques pela historicidade das prticas historiogrficas que colige, eximindo-se a

    fazer interpretaes explcitas sobre os excertos transcritos. Nota-se que o historiador

    14

    Cfr. Vitorino Magalhes Godinho Ensaios III, Sobre Teoria da Histria, Lisboa: Livraria S da Costa 1971. Este autor estudou, ao longo da sua vida, a evoluo das Cincias Sociais e Humanas em Portugal, visando sempre o reforo da cidadania.

  • 29

    salvaguarda a objetividade e identidade dos materiais selecionados. Esta seleo no

    aleatria e permite aos leitores potenciais encetar novas investigaes, estimulando-

    as. No segundo trabalho citado, o autor rene estudos vrios de histria da

    historiografia escritos entre 1960 e 1985, nos quais prolonga o tipo de prtica

    historiogrfica que acabmos de enunciar. Congrega, por exemplo, documentos sobre:

    os primrdios da Faculdade de Letras de Lisboa, o magistrio de Vieira de Almeida, a

    historiografia regionalista na poca do Abade de Baal, entre outros temas, tais como

    uma aproximao s biografias de Ferno Lopes, de Jaime Corteso e Antnio Srgio,

    todas indicadoras de uma linhagem metodolgica e ideolgica respeitada por Oliveira

    Marques, seguidor de uma anlise crtica e emprica de fontes, avesso a lucubraes

    e especulaes filosficas abstratas. O esboo biogrfico sobre Francisco Vieira de

    Almeida pretende conferir destaque a uma personalidade que foi alvo da denunciada

    censura salazarista.

    Em 1976, fortemente influenciado e marcado pelo marxismo e pelo

    materialismo dialtico, Joaquim Barradas de Carvalho publicou um estudo intitulado

    Da Crnica Histrica Histria Cincia15.

    No ano de 1982, Daniel de Sousa, publicou um trabalho essencialmente

    filosfico, intitulado Teoria da Histria e do Conhecimento Histrico16. Trata-se de um

    texto que pretende distinguir as vrias acees de Teoria da Histria, desde as que a

    identificam com a reflexo sobre o conhecimento cientfico e seus limites, at s que a

    aparentam com um exerccio sobre o sentido da existncia. No primeiro caso, ressalta-

    se o processo de autonomizao da Histria como cincia do esprito face s cincias

    da natureza, prodigalizada na Alemanha na segunda metade do sculo XIX por

    autores como Dilthey, Wildeband, Droysen ou Rickert. Quanto abordagem

    especulativa, Daniel de Sousa confere bastante espao ao Marxismo e ao

    Materialismo Dialtico. No mesmo ano surgiu outro trabalho tambm de natureza

    pedaggico-didtica, mas dotado de uma perspetiva ideolgica bem diversa. Trata-se

    de Teorias sobre a Histria, da autoria de Filipe Rocha, personalidade ligada

    Faculdade de Filosofia da Universidade Catlica de Braga, que construiu uma espcie

    de manual para poder ser lido pelos alunos, dividido em trs partes: a primeira,

    dedicada diacronia das Teorias sobre a Histria, entendidas estas como

    conhecimento histrico; a segunda, subordinada s dinmicas de foro existencial, que

    contemplam uma dimenso metafsica, na qual a indagao de Deus e da

    transcendncia no est ausente. Num terceiro momento, o autor procura descrever

    os instrumentos conceptuais ao dispor do historiador na construo crtico-reflexiva de

    15

    Cfr. Joaquim Barradas de Carvalho Da Crnica Histrica Histria Cincia, Lisboa: Livros Horizonte, 1976. 16

    Daniel de Sousa Teoria da Histria e do Conhecimento Histrico, Lisboa: Livros Horizonte, 1982.

  • 30

    um conhecimento cientfico de natureza disciplinar. Esses instrumentos so, por

    exemplo, a explicao, a causalidade ou o tempo histrico. Este andamento o mais

    til nossa pesquisa, mas Filipe Rocha parece no se contentar com o apuramento, a

    construo e interpretao de factos positivos, embora os considere imprescindveis17.

    Vrios autores no deixaram de fazer importantes estudos sobre a

    Historiografia, nas suas vertentes terica e conceptual.

    Em 1986, num trabalho mais nitidamente historiogrfico, Antnio Manuel

    Hespanha preocupou-se com questes historiogrficas, no deixando de interrogar a

    Historiografia Ps-Moderna no seu artigo publicado na Revista Ler Histria em 1986,

    intitulado Histria Sistema: interrogaes Historiografia Ps-Moderna18.Neste texto, o

    seu autor expressa algumas reservas face ao modo ps moderno de escrever histria

    alegadamente presente nos dois volumes da Identificao de um Pas (), dada

    estampa no ano anterior por Jos Mattoso, nos qual se sacrifica, supostamente, uma

    ideia de sistema na anlise historiogrfica, em detrimento da valorizao exclusiva do

    individuo e do singular

    Por seu turno, Jos Maria Amado Mendes dedicou-se Histria como Cincia,

    texto publicado em 198719. Trata-se de um trabalho que foi realizado no mbito das

    preocupaes pedaggicas do seu autor, Professor na Faculdade de Letras de

    Coimbra, que pretendeu orientar os estudos dos seus alunos em meados dos anos

    oitenta do sculo XX, no que tange problemtica das fontes em histria e vertente

    terica da cincia de clio. O historiador comea por debruar-se sobre a natureza e

    evoluo do conhecimento histrico, considerado diferente do patente nas Cincias

    Naturais e inscrito nas Cincias Sociais e Humanas. Amado Mendes no pe em

    causa este estatuto cientfico da Histria e sublinha a sua importncia. Concordamos

    com esta perspetiva. Em seguida, o autor de Histria como Cincia estabelece a

    evoluo do processo histrico, privilegiando a respetiva cronologia. Contudo,

    histria da historiografia acrescenta a metodologia da histria (tendo em conta

    conceitos e problemticas importantes como o tempo histrico) e a respetiva

    teorizao (na qual no esquece conceitos e instrumentos imprescindveis ao trabalho

    do historiador, como a explicao). Esta conciliao da Histria da Historiografia com

    uma teoria da histria, extrada da prtica historiogrfica, e dela catalisadora, parece-

    nos relevante, a tal ponto que a partilhamos.

    Em 1988, o historiador brasileiro Francisco Falcon traou uma panormica

    diacrnica da Historiografia Portuguesa at aos nossos dias, publicando-a na revista

    17

    Cfr. Filipe Rocha Teorias sobre a Histria, Braga: Faculdade de Filosofia de Universidade Catlica Portuguesa, 1982. 18

    Antnio Manuel Hespanha Histria Sistema: interrogaes Historiografia Ps-Moderna, in Revista Ler Histria, vol. 9, 1986. 19

    Cfr. Jos Maria Amado Mendes Histria como Cincia, Cimbra: Minerva, 1987.

  • 31

    brasileira Estudos Histricos20. Existe uma edio portuguesa deste texto, dada

    estampa na Revista da Faculdade de Letras do Porto, srie de Histria.

    Num trabalho de carcter bem diferente, Jos Mattoso rene um conjunto de

    conferncias dadas estampa em 2002, que contemplam textos escritos em 1988 e

    outros em 2000. O volume intitula-se A Escrita da Histria. O trabalho deste historiador

    essencialmente terico. Debrua-se sobre a escrita da histria, os materiais e os

    temas nela envolvidos, sem esquecer o respetivo ensino. Defende que a histria

    uma cincia com uma forte componente artstica. No que tange escrita

    historiogrfica, comporta um discurso especfico que, segundo Jos Mattoso, alberga

    trs momentos: a reunio de marcas e vestgios do passado; a representao mental

    dos dados compilados e construdos e a produo discursiva por parte do historiador.

    O autor de A escrita da Histria sugere que os cultores de clio devem materializar um

    ofcio assente na contemplao, conceito despido, eventualmente, da sinonmia face a

    transcendncia ou a irrealismo, ligando-se realidade dos vestgios do passado, que

    cabe ao historiador interpretar21.

    Em 1988, Ana Leonor Pereira destacou a posio de Antnio Hespanha face

    ao papel dos indivduos na Histria. No seu artigo intitulado Problemas atuais da

    Histria, a historiadora defende que deve haver um equilbrio entre o individual e o

    coletivo na Histria22. Para esta autora, as cincias historiogrficas necessitam de um

    discurso do mtodo, ao arrepio da reduo da historicidade a um sistema

    unidimensional assente no cientismo. Por outro lado, Ana Leonor Pereira solidariza-se

    com a primeira historiografia positivista e o seu alegado repdio do sociologismo,

    defendendo que as polticas da historiografia devem situar-se entre a prtica

    historiogrfica e a reflexo filosfica23.

    Em 1991, Antnio Manuel Hespanha voltou a interrogar criticamente certas

    posies historiogrficas de Jos Mattoso, num artigo intitulado A Emergncia da

    Histria, publicado na revista Penlope, no qual sublinhou a existncia de dois

    problemas na historiografia do visado: a verificabilidade e comunicabilidade dbeis dos

    respectivos objectos historiogrficos e o risco de anacronismo, decorrente de uma

    hipertrofia da experincia existencial do cultor de clio24.

    Quando este artigo de Antnio Manuel Hespanha foi tornado pblico, a

    divulgao da Histria encontrava-se na moda no mercado livreiro, nas televises e

    20

    Cfr. Francisco Falcon A Historiografia Portuguesa, esboo histrico-interpretativo, in Estudos Histricos,vol.1, n.1, Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vragas 1988, pp.79-99. 21

    Cfr. Jos Mattoso A Escrita da Histria , Lisboa: Crculo de Leitores, 2002, maxime pp.5;11-22. 22

    Ana Leonor PereiraProblemas actuais da Histria, In Revista de Histria das Ideias, volume 11, Coimbra: Instituto de Histria e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras, pp. 579-639. 23

    Ibid. p. 577. 24

    Antnio Manuel Hespanha - A Emergncia da Histria, in Revista Penlope, Fazer e Desfazer a Histria, nmero 5, Lisboa: Edies Cosmos, 1991, pp 9-22.

  • 32

    nos jornais. O historiador alerta para alguns perigos e equvocos deste quadro, que se

    prendem com a domesticao indesejvel do passado; a legitimao a todo o custo do

    presente do historiador; a adequao s categorias profundas de organizao do real,

    tendencialmente unidimensional e totalitria; a prtica de uma histria redutora da

    diversidade humana.

    Por outro lado, faltava realizar uma Histria geral da Histria ou da

    Historiografia em Portugal. Em 1996, o trabalho de Jos Maria Amado Mendes, Lus

    Reis Torgal e Fernando Catroga foi pioneiro, paradigmtico e estimulante, dado que a

    Histria da Histria em Portugal apresenta uma viso de conjunto dotada de uma

    profundidade e extenso nunca antes verificadas, e preenche uma lacuna25 no ofcio

    de clio. No partilhamos esta designao Histria da Histria e preferimos a que

    consagra a Histria da Historiografia, entendendo que exprime melhor a consignao

    da escrita historiogrfica como resultado do trabalho dos historiadores e da prtica

    historiogrfica, que possuem um carcter cientfico e uma historicidade prpria.

    Alternativamente, no prefcio respetiva obra, Lus Reis Torgal, Fernando Catroga e

    Jos Maria Amado Mendes consideram que a Histria da Histria cumpre melhor esse

    e outros desgnios, mormente aquele mais discutvel que encara a Histria como uma

    cincia especial, materializando uma literatura de expresso cientfica. Para os

    historiadores imediatamente ante-citados, a Histria da Histria comporta os trs

    sentidos do conhecimento histrico: o cientfico, o pedaggico-didtico e o

    conhecimento do senso comum (a conscincia histrica, individual e coletiva). Em

    nosso entender, a expresso Histria da Historiografia tambm alberga estas

    dimenses e torna-se menos equvoca, dado que no se confunde com a Histria

    como devir ou realidade histrica.

    Ainda em 1996, num artigo publicado numa revista espanhola, Pedro Cardim

    foi eventualmente o primeiro historiador de que temos conhecimento a abordar

    exclusiva e autonomamente a anlise do discurso historiogrfico como um dos

    aspectos centrais no trabalho dos historiadores, que costumavam eximir-se a tratar

    conceptual e metodologicamente esta temtica, deixando tal responsabilidade a cargo

    de hermeneutas e estudiosos da literatura. O estudo em questo intitula-se Entre

    textos y discursos. La historiografa y el poder del lenguaje26.

    Ao longo dos anos 90 do sculo XX, incorporando desafios e interrogaes da

    historiografia ps-moderna (parcialmente na linha de Jos Mattoso), Maria de Ftima

    Bonifcio desenvolveu vrios estudos, de teor diverso, mas portadores de um

    25

    Cfr. Lus Reis Torgal; Jos Maria Amado Mendes e Fernando Catroga (org.) Histria da Histria em Portugal. Lisboa: Crculo de Leitores, 1996. 26

    Pedro Cardim - Entre textos y discursos. La historiografia y el poder de l lenguaje, Cuadernos de Historia Moderna, 17. In Revista da Universidad Complutense de Madrid, 1996, pp. 123-149.

  • 33

    denominador comum. Para a autora, as grandes narrativas legitimadoras de um

    sentido para a histria e a historiografia foram sendo substitudas por dimenses

    tericas intermdias e menores, at consagrao da desintegrao da histria

    cientfica. A referida historiadora defendeu, desde 1993, O abenoado retorno da velha

    histria, sustentando uma crtica consequente ao estrutralismo braudeliano, tido como

    abstrato e exemplo do paroxismo atingido pela histria cientfica, alegadamente

    desligada das aes dos homens e da vida das personalidades histricas. Como

    antdoto a este impasse, a cultora de Clio encorajou um regresso narrativa e

    historiografia como gnero artstico, sujeito a regras internas27.

    Em 1999, Ftima Bonifcio radicalizou o seu diagnstico e a defesa da

    biografia e do estudo dos acontecimentos, aplicando-os Apologia da Histria

    Poltica28. No mesmo ano, a historiadora afastou-se das verses mais radicais do ps-

    modernismo, sobretudo da ideia do fim da histria, postulando a existncia e a

    necessidade de continuar a analisar A narrativa na poca ps-histrica Maria de

    Ftima Bonifcio defendeu, ento, uma soluo ps-moderna moderada, num

    momento percorrido por uma desintegrao, pulverizao e fragmentao do objeto

    historiogrfico, portadoras de sinais de alarme e perigos, dos quais o historiador teria

    que estar consciente para atenu-los e evitar a anarquia total. O nilismo ou o

    relativismo infrene so vistos com perplexidade pela historiadora, que defende que a

    narrativa historiogrfica se subordina a regras que salvaguardam a existncia de um

    referente exterior (a realidade histrica) neste gnero literrio bem diferente da

    literatura tout court, dado que esta d livre curso imaginao, enquanto a histria

    implica veracidade, verosimilhana e regimes de verdade, na linha de Ricoeur29. Por

    seu turno, em 2002, Rui Bebiano defendeu um conjunto de ideas dotado, em nosso

    entender, de afinidades com a a perspetiva de Ftima Bonifcio, aprofundando a

    importncia, funcionalidade e a historicidade do discurso historiogrfico. O autor

    considera que a histria um gnero literrio e no deve haver drama quando se

    destaca a necessidade de abordar a narrativa historiogrfica como algo que no

    neutro, imparcial ou assptico, veiculando, da forma aos estilos, as posies e

    ideossincrasias dos historiadores. O esforo intelectual de Rui Bebiano intitula-se

    Sobre a Histria como potica30.

    No entanto, boa parte dos trabalhos inventariados at ao momento, com raras

    e honrosas excees, so essencialmente epistemolgicos, constituindo reflexes

    27

    Cfr. Maria de Ftima Bonifcio O abenoado retorno da velha histria. In Anlise Social, n. 122, 1993. 28

    Cfr. Maria de Ftima BonifcioApologia da Histria Poltica. Lisboa: Quetzal, 1999. 29

    Cfr. Maria de Ftima Bonifcio A narrativa na poca ps-histrica. In, Anlise Social, volume XXIV, n. 150, pp. 11-28. 30

    Cfr. Rui Bebiano, Sobre a Histria como potica. In Revista de Histria das Ideias, vol. 21. Coimbra: Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 2000.

  • 34

    sobre a natureza e o estatuto do conhecimento historiogrfico. Convm tambm

    prestar ateno a estudos menos genricos, mais sectoriais e portadores de

    abordagens de certo modo mais nitidamente empricas, que inspiraram diretamente a

    nossa dissertao, numa linha que privilegia a historicidade do percurso dos cultores

    de clio e dos seus trabalhos, a exemplo da prtica historiogrfica materializada por

    Vitorino Magalhes Godinho e A.H: de Oliveira Marques, entre outros. A Histria da

    Historiografia, em sentido mais restrito, tributria dos trabalhos de Armando Carvalho

    Homem, atentos institucionalizao universitria da Historiografia a diversos nveis.

    Observamos ainda que as investigaes de Doutoramento nesta rea,

    demonstrativas de uma histria da historiografia sectorial, na qual nos inscrevemos,

    esto numa fase de desenvolvimento, lento mas sustentado. So disso exemplo os

    esforos de Srgio Campos Matos e Isabel Mota. Antes de rastrearmos os trabalhos

    destes autores, convm referir a nica tese de licenciatura da qual temos

    conhecimento, situvel no mbito da histria da historiografia. Trata-se de um estudo

    pioneiro, bastante pormenorizado da autoria de Anbal Barreira, apresentado

    Faculdade de Letras do Porto e publicado em 1971, com o ttulo: Aspetos do

    pensamento histrico em Portugal no sculo XIX31. Em 1971, o autor deu estampa

    um artigo sobre Jos Anastcio de Figueiredo, publicando oito anos volvidos outro,

    desta vez acerca de Joo Pedro Ribeiro].

    Em 1990, Srgio Campos de Matos publicou a sua dissertao de mestrado,

    intitulada Histria, mitologia, imaginrio nacional. A Histria no curso dos liceus (1895-

    1939), na qual se debruou sobre a historiografia de divulgao no ensino mdio,

    analisando e criticando fontes primria diversas, de modo a entender o contributo dos

    manuais escolares para a legitimao e institucionalizao da histria como saber

    construdo, dando conta dessa construo tornando evidentes prticas

    historiogrficas, discursos e representaes, na sequncia do levantamento exaustivo

    de uma problemtica inerente s funes e ao estatuto da historiografia de divulgao

    e dos seus cultores. Este historiador concilia uma heurstica rigorosa com uma

    hermenutica que situa a histria da historiografia no mbito da histria da cultura.

    Esta metodologia foi testada e aprofundada, oito anos volvidos, na Dissertao de

    Doutoramento do seu autor, intitulada, Historiografia e memria nacional no Portugal

    do sculo XIX (1846-1898)32. Neste trabalho, o seu autor desenvolveu um aparelho

    conceptial complexo, aplicando-o a um universo documental mais vasto,

    correspondente a um amplo espectro da historiografia de divulgao, nomeadamente

    as Histrias de Portugal publicadas por estrangeiros. O historiador desenvolveu os

    31

    Anbal BarreiraAspectos do pensamento histrico em Portugal no sculo XIX. Porto: Faculdade de Letras, 1970. [Dissertao de Licenciatura em Histria] 32

    Srgio Campos Matos Historiografia e memria nacional no Portugal do sculo XIX (1846-1898), Lisboa, 1998.

  • 35

    conceitos de memria social, cruzando saberes interdisciplinares, partindo de Maurcio

    Hlbwacks at s tendncias mais recentes e atuais. Fez o mesmo quando distinguiu

    Nacionalismo de Patriotismo e analisou as diversas modalidades e representaes e

    correntes nomeadamente acerca das origens da nacionalidade.

    Em 2001 foi publicada a dissertao de doutoramento de Isabel Ferreira da

    Mota, intitulada Academia Real da Histria: a histria e os historiadores na primeira

    metade do sculo XVIII33. Trata-se de um trabalho alicerado numa exaustiva

    pesquisa de fontes, assente numa cuidadosa crtica documental.

    No ano de 2004 foi dada estampa a dissertao de doutoramento de Carlos

    Maurcio, intitulada A Inveno de Oliveira Martins34. Neste estudo, o seu autor

    debrua-se sobre o percurso pessoal e o discurso historiogrfico de um dos pioneiros

    da historiografia portuguesa.

    H ainda que assinalar, sem qualquer exaustividade, as provas de Agregao

    de Joo Francisco Marques, Mestrados como o de Joo Paulo Avels Nunes, Sofia

    Gomes da Costa ou Eurico Dias.

    Quanto s primeiras, Joo Francisco Marques realizou um trabalho pioneiro

    sobre a institucionalizao da Teoria da Histria como disciplina acadmica, intitulado

    Teoria da histria e do conhecimento histrico: programa, contedos e mtodos de

    uma disciplina da Licenciatura em Histria, apresentado Faculdade de Letras do

    Porto em 199035.

    No que respeita aos mestrados, Joo Paulo Avels Nunes ocupou-se da

    evoluo de uma disciplina, a Histria Econmica e Social, lecionada na Faculdade de

    Letras de Coimbra, a partir de 1911. Analisou ampla e pormenorizadamente um

    conjunto extremamente amplo de documentos, de forma a aproximar-se da

    historicidade do objeto de estudo, consultando e abordando a legislao que regulava

    as Universidades, os currculos, os sumrios de aulas, a correspondncia e a

    bibliografia dos docentes. O historiador desenvolveu uma aprofundada crtica de

    fontes e procurou perceber uma questo especfica relacionada com a ascenso e

    queda do paradigma historicista neo-metdico36.

    Por seu turno, Eurico Gomes Dias, em 2002, dedicou-se s construes da

    Idade Mdia em dois peridicos Oitocentistas: O Panorama e o Archivo Pittoresco.

    Trata-se de um estudo que se centra em representaes historiogrficas, trabalhando

    33

    Isabel Maria Henriques Ferreira da Mota Academia Real da Histria: a histria e os historiadores na primeira metade do sculo XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras,2001. [Dissertao de Doutoramento]. 34

    Cfr. Carlos Maurcio A inveno de Oliveira Martins. Lisboa:Imprensa nacional Casa da Moeda, 2004. 35

    Cfr. Joo Francisco MarquesTeoria da histria e do conhecimento histrico: programa, contedos e mtodos de uma disciplina da Licenciatura em Histria. Porto: FLUP, 1990 [Relatrio para a agregao em Histria]. 36

    Cfr. Joo Paulo Avels Nunes A Histria Econmica e Social na Faculdade de Letras de Coimbra. Ascenso e queda do paradigma historicista da escola neo-metdica. Coimbra: Faculdade de Letras, 2003 [Dissertao de Mestrado em Histria].

  • 36

    tematicamente uma poca histrica, a medieval, e escolhendo fontes primrias,

    pormenorizada e escrupulosamente abordadas, pertencentes ao sculo XIX. Esta

    investigao de Eurico Dias situa-se no mbito da histria da imprensa, cruzando-a,

    implicitamente, com a histria da historiografia. A transcrio e exegese documentais

    so a base metodolgica deste estudo37.

    Em 2004, Sofia Gomes da Costa debruou-se sobre a Vida e Obra do Conde

    de Sabugosa (1845-1923): Questes Historiogrficas Relacionadas com a Idade

    Mdia38. Neste trabalho, a autora recolhe extensa documentao sobre a vida e obra

    do Conde de Sabugosa, sublinhando a respetiva conceo de histria, as

    metodologias utilizadas ou a presena de temticas pertencentes Histria Medieval e

    Histria moderna.

    Em 2006, fora do mbito de Mestrados e doutoramentos, Judite de Freitas

    apresentou uma comunicao ao colquio realizado na Universidade Fernando

    Pessoa, intitulado Cidadanias: Prticas e discursos.39 A historiadora pronunciou-se

    sobre os desafios atuais do ofcio de clio. No ano seguinte, foi publicado um artigo da

    mesma autora sobre dois arabistas: David Lopes e Pedro de Azevedo40.

    Em 2010, Srgio Campos de Matos e Joana Gaspar de Freitas colaboraram

    num projecto internacional, dirigido por Ilaria Porciani e Lutz Raphael, intitulado, Atlas

    of European Historiography The making of a profession 1800-2005,dando estampa o

    artigo denominado Portugal, que consiste numa panormica da historiografia

    Portuguesa desde a Academia Real da Histria at atualidade. Este trabalho inclui

    um clculo do nmero de historiadores profissionais portugueses, desde 1928 (eram

    catorze) at 2005 (altura em que havia 135)41.

    Recuemos ligeiramente na diacronia, retomando, neste momento, a referncia

    a trabalhos de ndole menos emprica, dotados de cariz essencialmente terico-

    conceptual, dos quais nos distanciamos mais, mas que so extremamente teis para a

    compreenso dos conceitos historiogrficos operatrios e foram publicados na ltima

    dcada. No ano 2001, Antnio Horta Fernandes concluiu a sua tese de doutoramento

    37

    Eurico Gomes Dias A Construo da histria medieval portuguesa na imprensa peridica portuguesa de oitocentos: Os exemplos de O Panorama e do Archivo Pittoresco. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2002 [Dissertao de Mestrado em Histria Medieval]. 38

    Sofia Gomes da Costa Vida e Obra do Conde de Sabugosa (1845-1923): Questes Historiogrficas Relacionadas com a Idade Mdia. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2004 [Dissertao de Mestrado]. 39 Este trabalho foi publicado em 2008, na Revista da Faculdade de Letras do Porto.Cfr: Judite de Freitas Ser historiador e cidado hoje. In Revista da Faculdade de Letras, Histria, volume 9, 3 srie, Porto: Faculdade de Letras, 2008, pp.357-374. 40 Cfr. Judite de Freitas David Lopes et Pedro de Azevedo: Deux contrastants arabo-islamologues dans l hitoriographie portugaise.In Portugal Marrocos.Dilogos culturais, Porto: Afrontamento, 2007, pp. 63-74. 41

    Cfr. Srgio Campos de Matos e Joana Gaspar de Freitas Portugal, in AAVV, Atlas of European Historiography The Making of a profession, Ilaria Porciani, Lutz Raphael, New York: European Science Foundation/ Palgrave Macmilan, 2010, pp.122-124.

  • 37

    sobre a teoria da histria em Ortega e Gasset42. Nesse ano, A. Marques de Almeida

    debruou-se sobre A escrita da Histria: questes de teoria e de problematizao43.

    Ainda em 2001, Fernando Catroga estudou a interligao de temticas como Memria,

    Histria e Historiografia44. Dois anos volvidos, o mesmo historiador analisou as

    Filosofias da Histria, interrogando escatologias e teleologias ao longo da especulao

    filosfica acerca do sentido da Histria45. Em 2006, o historiador debruou-se sobre a

    diacronia do conceito ciceroniano de Histria Mestra da Vida, concluindo que essa

    noo foi abalada na atualidade devido alegada crise da histria46. No entanto, o

    referido culor de Clio continua a defender a necessidade de uma funo social e cvica

    da histria. Em 2010, Fernando Catroga abordou a memria histrica e historiogrfica,

    uma vez mais, num trabalho intitulado Os passos do Homem no Restolho do Tempo47.

    Bem diferente o labor intelectual de Lus Ado da Fonseca, que, em 2004, se

    pronunciou-se sobre a inevitabilidade e necessidade de existncia das narrativas

    historiogrficas, num trabalho de natureza terica bastante oportuno e fundamentado,

    assente na reflexo crtica acerca dos excessos do ps-modernismo, parcialmente

    encarado como um dos responsveis da crise na dimenso social da escrita

    historiogrfica48.

    Em 2007, Francisco Manuel Ferreira de Azevedo Mendes concluiu uma tese de

    Doutoramento na qual se debruou filosoficamente sobre temticas como crise na

    teoria contempornea da Histria. Analisou os conceitos de passividade e teoria

    historiogrfica. Trabalhou a questo da ps modernidade na Historiografia

    Internacional, no se pronunciando sobre o caso portugus. O autor estudou uma

    conceo historiogrfica prpria da filosofia crtica ou epistemolgica da histria,

    comum a personalidades como Raymond Aron, Henri Irene Marrou, Michel Foucault,

    Paul Ricoeur e Paul Veyne49.

    Em 2010, Diogo Ramada Curto reuniu uma srie de artigos escritos

    anteriormente, subordinados teoria da histria e ao mtodo histrico. Este trabalho

    intitula-se Mltiplas Faces da Histria. Desde o ttulo, o historiador perfilha uma viso

    42 Cfr. Antnio Manuel Horta Fernandes A teoria da histria em Ortega y Casset. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2001 [Dissertao de Doutoramento em Histria e Teoria das Ideias, Especialidade de Histria e Teoria dos Paradigmas]. 43

    Cfr. Antnio Marques Almeida A escrita da Histria: questes de teoria e de problematizao. In Clio, Revista do Centro Histrico da Universidade de Lisboa, nova srie, vol. 5. Lisboa, 2000, pp. 9-18. 44

    Cfr. Fernando Catroga - Memria, Histria e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. 45

    Cfr. Fernando Catroga - Caminhos do Fim da Histria. Coimbra: Quarteto, 2003. 46

    Cfr. Fernando Catroga - Ainda ser a histria mestra da vida? In Estudos Ibero-Americanos, n. 2. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica, pp. 7-34. 47

    Fernando Catroga Os passos do Homem no Restolho do Tempo Coimbra: Almedina, 2010. 48

    Cfr. Lus Ado da Fonseca - As relaes entre histria e literatura no contexto da actual crise da dimenso social da narrativa historiogrfica, in Ftima Marinho (org.), Literatura e Histria, vol. 1. Porto: Departamento de Estudos Portuguese e Romnicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. pp. 267-287. 49

    Cfr. Francisco Azevedo MendesCrise e passividade na teoria contempornea da histria. A transformao do tpico da Coerncia Historiogrfica. Braga: Universidade do Minho, 2007 [Dissertao de Doutoramento em Histria/Teoria e Mtodos].

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    polidrica acerca do seu objeto de estudo, incentivando uma interdisciplinaridade com

    a Sociologia das representaes e a Antropologia do simblico. O autor confere

    relevncia s condies de produo dos discursos historiogrficos relacionadas com

    os contextos inerentes ao ofcio do historiador. Especifica trs: o contexto nacional, a

    crtica ao nacionalismo e a transcendncia da nao. Por outro lado, Ramada Curto

    advoga que o atraso historiogrfico portugus que diagnostica deve ser ultrapassado

    pelo controlo de modelos e mtodos de pesquisa e no pela pura e simples

    importao respetiva. O autor considera que a explicao e a interpretao so

    fundamentais em historiografia, que deve ter em conta uma conceo experimental e

    no reprodutiva da histria, assente numa tenso entre o individual e a estrutura. Por

    outro lado, Ramada Curto recebe influncias do filsofo Foucault, do historiador Roger

    Chartier e do antroplogo Cliford Greetz, entre outros50.

    Ainda em 2010, Maria Manuela Tavares Ribeiro coordenou um volume

    intitulado Outros Combates pela Histria, resultante de um colquio homnimo

    organizado pelo Centro de Histria do sculo XX, da Faculdade de Letras da

    Universidade de Coimbra. Numa das intervenes, transformadas em artigos,

    Fernando Catroga pronunciou-se sobre o Valor Epistemolgico da Histria da Histria,

    defendendo o carcter mediatizado do conhecimento historiogrfico, da reflexo sobre

    ele e a importncia da interpretao e da subjetividade dos historiadores neste

    processo51.

    Por outro lado, acercando-nos, de novo, do tema de eleio desta dissertao,

    as revistas de Histria do sculo XX no tm merecido, segundo cremos, estudos de

    conjunto no seio da Histria e Historiografia da Imprensa, que muito devem aos

    levantamentos de Lcia Veloso e s anlises, entre outros, de Jos Manuel

    Tengarrinha, impulsionador do ltimo trabalho citado.52

    Conhecemos apenas uma bibliografia muito til de revistas de Histria dos

    sculos XIX e XX, por Rosalina da Silva Cunha, que cita a Revista de Histria, que nos

    vai ocupar. Apenas existe, julgamos ns, um pequeno mas precioso estudo

    exclusivamente acerca da Revista de Histria, realizado no mbito de uma disciplina

    de ps-graduao de um Mestrado em Histria Contempornea, realizado na

    50

    , Diogo Ramada Curto Mltiplas Faces da Histria, Lisboa: Livros Horizonte, 2010. 51

    Cfr. Fernando Catroga Valor Epistemolgico da Histria da Histria, in Manuela Tavares Ribeiro (coord.) - Outros Combates pela Histria. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. 52

    Em 2011, Maria Sidnia Tavares realizou uma dissertao de mestrado sobre o Archivo Histrico Portuguez, que contribui para atenuar a lacuna assinalada, no que tange a trabalhos afins. Sobre este assunto ver: Maria Sidnia dos Santos Nunes Tavares Descobrimentos e Navegaes no Archivo Histrico Portugus, Lisboa: Faculdade de Letras, 2011 [Dissertao de Mestrado em Histria dos Descobrimentos e da Expanso].

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    Faculdade de Let