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A Revolução Partida ou A Velha Guarda

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Murilo Dias César

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UM SONHO ETERNO

A REVOLUÇÃO PARTIDA (ou A VELHA GUARDA), de Murilo D. César, não se limita a determinado espaço e tempo, mas passeia pela história dos povos. Se certo país é sugerido como cenário, a fábula de longe o extrapola, para falar de LIBERDADE. Não a “liberdade” de que fala o poder, seja qual for, mas da liberdade que reside nas profundezas do coração do homem e aflora diante responsabilidade que determinados indivíduos sentem em sua relação com o mundo. A liberdade de que fala a peça é a liberdade real, ou seja, a liberdade de ser, de pensar, de agir no sentido da evolução humana, do homem lutar por uma causa em que acredita e pela qual entrega sua vida.

Sem dúvida, a grande força dramática de A REVOLUÇÃO PARTIDA é a humanização dos personagens. Se fosse apenas mais uma “peça política”, cairia no lugar-comum, no óbvio e os personagens seriam reduzidos a simples estereótipos. Mas a grande arte de Murilo D. César foi dar aos personagens sangue, nervos, sentimentos, coragem, medo. São três homens que, embora em permanente conflito entre si, perseguem e lutam pelos mesmos objetivos.

O maior símbolo da peça – a meu ver, um grande e original “achado” - é um objeto de aparência inofensiva: uma serrinha, com a qual o Segundo Prisioneiro serra as grades de uma prisão de segurança máxima. Ainda que consiga serrar as grades da prisão, ele sabe que sua fuga será impossível. Assim mesmo ele serra as grades da prisão - e serra porque ele tem plena consciência de que o ato de serrar é um ato simbólico e sua afirmação de dignidade, resistência, de protesto e de luta pela liberdade.

Há na peça de Murilo D. César um autêntico sopro libertário que praticamente inexiste hoje em nossos palcos. Em A REVOLUÇÃO PARTIDA discutem-se idéias, enquanto a norma atual é pôr em cena questões psicológicas, dramas íntimos ou o escracho, ou seja, a velha e pura chanchada. Longe disso, esta grande obra teatral aborda temas que dizem, hoje e sempre, respeito a todos nós, seres humanos.

A REVOLUÇÃO PARTIDA é um belo e puro teatro. Um teatro inteligente.

Sebastião Milaré

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O PÚBLICO

A Revolução Partida ou A Velha Guarda esteve em curta temporada, em 2002, no Centro Cultural São Paulo. Motivo alegado pela direção: a agenda apertada permitia que cada peça lá apresentada permanecesse em cartaz naquele espaço por apenas um mês.

Seguem algumas opiniões de pessoas do público, tomadas por escrito na ocasião:

“Peça excelente. Comoveu a todos e um pouco mais a mim, talvez porque meu falecido pai era sindicalista e esteve três anos preso durante a ditadura militar.” (Maria Luísa Pereira, estudante universitária, biologia)

“Nada a declarar. Perfeita. Tristes e necessárias lembranças de uma época que já foi... ou será que continua?” (Iris Vieira, professora de história)

“Peça importantíssima, especialmente para os jovens. Trata de uma forma adulta, realista e irônica o tema da revolução.” (Roberto Hernandez, médico) “O que posso dizer desta peça? Só que me agarrou de começo ao fim.” (Dirceu Melo, analista de sistema) “Um tema atual, vivo. Adorei a iluminação. O sujeito que a criou e o autor são dois craques.” (Armando J. Silveira, editor) “Me fez pensar como é que eu me sentiria se estivesse presa e condenada a ser fuzilada e me deixou muito impressionada.” (não deixou nome, nem profissão) “Gostei muito da peça e do final otimista. A cena da carta é uma das melhores - talvez a melhor - do teatro brasileiro. Sem falar da serrinha... Essa “serrinha”, símbolo do otimismo e da luta permanente do ser humano pela sobrevivência - vai ficar sempre na minha lembrança.” (Juvenal Soares, radialista) “Excelente, já que me fez transportar para a cela e para a angústia dos dois condenados à morte.” (Maria Ester Ferreiras, estudante de Medicina) “Enxuta, compreensiva, limpa, precisa, sem exageros.” (Argemiro Herdad, advogado e professor de Direito Público) “Desta vez gostei muito, muito mesmo, pode acreditar, papai.” (Opinião de Maíra Bittencourt César, um pouco suspeita, já que essa espectadora é filha do autor...)

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A REVOLUÇÃO PARTIDA

(ou A VELHA GUARDA)

• PRÊMIO ARTUR AZEVEDO, CONCEDIDO PELA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. • PRÊMIO HERZOG DE ANISTIA E DIREITOS HUMANOS.

PERSONAGENS

• 1º Prisioneiro - 45 a 55 anos aprox.

• 2º Prisioneiro - Idem

• Capitã da Guarda - 35 / 40 anos. É dotada de certa beleza, certo encanto e certa fragilidade contrastantes com a rigidez com que cumpre a sua missão.

CENÁRIO

Dividido em planos.

Primeiro plano: cela subterrânea de prisão. A luz, inicialmente, penetra apenas o suficiente para que os personagens e o ambiente sejam visíveis, melhorando imperceptivelmente no decorrer da ação. Duas camas toscas e uma cadeira po-dem ser os únicos móveis de cena.

Segundo plano: Sala de interrogatório, uma mesinha sobre a qual está uma má-quina de escrever antiga, uma ou duas cadeiras. Luz típica.

Obs.: Um plano pode ser separado de outro por um jogo de luzes.

LOCAL

Um país não definido que o público deverá identificar pela própria ação da peça.

ÉPOCA

Não definida. Talvez década de 1930.

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ATO ÚNICO

BLACKOUT. OUVE-SE TRECHO DE “A INTERNACIONAL”, QUE LOGO É ABAFADO PELO SOM DE UMA SERRINHA RASPANDO UM OBJETO DE METAL. LUZ. PRISÃO. OS DOIS PRISIONEIROS CONVERSAM. O 2º PRISIONEIRO, PRÓXIMO ÀS GRADES, SEGURA UMA SERRINHA. PARECE TER INTERROMPIDO SEU TRABALHO DE SERRAR UMA DAS GRADES PARA OUVIR O 1º PRISIONEIRO.

1º PRISIONEIRO - (EMPOLGADO, PARECE REVIVER O EPISÓDIO QUE NARRA)…e então ele me mostrou o mandado de prisão… Naquele tempo se fazia questão absoluta do formalismo judicial... O capitão chegou bem perto de mim, encostou o mandado em meu peito e disse: “O senhor está preso!”…E gritou para os soldados: “Soldados, prendam este homem !”…Caí na risada! Os soldados então ficaram confusos, não sabiam o que fazer. Aí eu é que parti para o ataque: “Capitão, sabe com quem está falando? Se há alguém aqui que pode ser preso é o senhor!… Não percebeu ainda que o senhor está falando com o segundo comando da revolução?”... E falei duro com os soldados: “Soldados, nós estamos em maioria, com todos os quartéis ao nosso lado e em plena revolução popular! Vocês são inimigos da revolução? Inimigos do povo? Querem enfrentar o pelotão de fuzilamento?”…E, de novo, falei para o capitão: “O senhor está com a revolução ou com a contra-revolução?” (COMENTANDO) Fiquei com pena dele, estava derrotado… “Decida, capitão! Se estiver com a contra-revolução, vou demitir já o senhor de suas funções e ordenar aos soldados que formem pelotão de fuzilamento imediatamente!”… Então gritei para os soldados: “Viva a revolução!”…Os soldados compreenderam a senha e repetiram: “Viva a revolução!” … Faltava ainda o capitão: “Como é, Capitão? Viva a revolução?” (COMENTANDO) E que é que o capitão me respondeu? (BREVE PAUSA) “Viva a revolução!”. E todos nós juntos, em coro, gritamos: “Viva a revolução!”… O capitão e os soldados junta-ram-se a nós e lutaram bravamente ao lado do povo… (QUEDA-SE, PENSATIVO) Éééé… Bons tempos… Tempos heróicos… A revolução estava no sangue do povo… A revolução era a grande festa das massas… E o povo era o dono absoluto da festa…

2º PRISIONEIRO - (ENVOLVIDO PELA FALA DO OUTRO) Nós éramos apenas os organizadores da grande festa popular de libertação do povo…

1º PRISIONEIRO - Ninguém pode com o povo nas ruas…

AMBOS MERGULHAM EM SUAS RECORDAÇOES. O 1º PRISIONEIRO VOLTA AO PRESENTE.

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1º PRISIONEIRO - E você?

2º PRISIONEIRO - Que é que tem eu, burocrata?

1º PRISIONEIRO - Você também deve ter vivido grandes momentos durante a revolução.

2º PRISIONEIRO - (MODESTO) Não, não… Nada de espetacular… Fui um simples soldado da revolução. Só isso.

1º PRISIONEIRO - Deixe de modéstia! Você foi do comando supremo da re-volução… Fez parte do primeiro governo revolucionário… Todos nós pensáva-mos que, depois da morte do “velho”, você fosse o indicado para liderar o gover…

2º PRISIONEIRO - (CORTA, IRRITADO) Não quero falar nesse assunto!

1º PRISIONEIRO - (APROXIMA-SE DO OUTRO, PROVOCATIVO) E por que não quer?

2º PRISIONEIRO - Não quero e pronto! (BREVE PAUSA) Depois, que im-porta isso agora?

PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (VOLTA A RECORDAR) Naqueles dias de revolução, nosso povo era o povo mais livre do mundo…

ENTREGAM-SE, DE NOVO, A SUAS RECORDAÇÕES. DESTA VEZ, PO-RÉM, PELA POSIÇÃO QUE OCUPAM NO PALCO, PERCEBE-SE QUE ESTÃO SEPARADOS. LUZ EM FOCO SOBRE O 1º PRISIONEIRO, INDI-CANDO PLANO DA MEMÓRIA. ESTAMOS AGORA EM PLENA EFER-VESCÊNCIA REVOLUCIONÁRIA, NO MOMENTO EM QUE ELE FAZ VIOLENTO DISCURSO.

1º PRISIONEIRO - (DISCURSANDO) Em sua cegueira, a burguesia não per-cebeu ainda que o mundo dela desabou e que fomos nós, o povo, o povo revolu-cionário em armas, que pusemos abaixo o mundo da burguesia para construir-mos o nosso mundo! (APLAUSOS, GRITARIA) Nós, trabalhadores, nós o povo revolucionário, não queremos mais o diálogo que a burguesia nos negou por sé-culos. Queremos e vamos acabar de vez com a burguesia exploradora, liquidá-la como classe social, varrê-la para sempre de nosso país… (APLAUSOS. O ORADOR EMPOLGA-SE AINDA MAIS) Trabalhadores, é soada a hora da burguesia! O momento de nossa libertação chegou! Todo poder ao trabalhador, todo poder ao povo, todo poder à revolução popular! (CLÍMAX) A burguesia é o lixo da história e nós, o povo, agora, vamos jogar fora esse lixo! (APLAU-SOS, GRITARIA, ETC.) Nosso país, de hoje em diante, é o país do trabalha-dor!… “Quem não trabalha não come!… Abaixo a burguesia! Abaixo os capita-listas! Abaixo os contra-revolucionários! Todo poder ao trabalhador! Todo po-

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der ao povo!…” (ACLAMAÇÕES, APLAUSOS. O BARULHO VAI CES-SANDO AOS POUCOS. VOLTA A LUZ GERAL. O 1º PRISIONEIRO FALA COM SUA MENTE AINDA PRESA AO PASSADO) Tinha soado a hora da burguesia exploradora… Era a vez do povo, do nosso povo… (DEVANEIAM. O 1º PRISIONEIRO VOLTA AO PRESENTE) Foi assim que nós chegamos ao poder.

2º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Chegamos e… (AMARGO) saímos.

1º PRISIONEIRO - (IRRITADO) Saímos, não!… Nós estamos no poder para ficar!

2º PRISIONEIRO - (RINDO) Nós estamos no poder!… (RI NUM CRES-CENDO) Nós estamos no poder!… (CONTINUA RINDO) Burocrata, você tem cada uma!

1º PRISIONEIRO - (OBSERVA O OUTRO. NÃO RI. FALA COM CON-TIDA IRRITAÇÃO) De que você está rindo? (O OUTRO CONTINUA RINDO. O 1º PRISIONEIRO PERGUNTA MAIS ALTO, QUASE GRI-TANDO) Qual é a graça?

2º PRISIONEIRO - (AINDA RINDO, MAS COMEÇANDO A PARAR) Você disse: “Nós estamos no poder.”…Eu e você… no poder! (RI)

1º PRISIONEIRO - (AFIRMATIVO) Estamos mesmo!

2º PRISIONEIRO - (PÁRA DE RIR, IRRITADO) Estamos é aqui dentro!… Caia na realidade, homem! (IRÔNICO) Nós, no poder… (APROXIMA-SE DO OUTRO) Nós estávamos no poder. Agora, nós estamos é presos — e bem pre-sos — aqui dentro!

BREVE PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (PAUSADO, REFLETINDO) Entenda bem o que eu quero dizer… Não vejo o mundo pelo meu umbigo… Como classe, nós estamos no poder… Agora, como indivíduos, como simples indivíduos participantes de um processo histórico, nós estamos presos, reconheço.

2º PRISIONEIRO - Nem como classe nós estamos no poder… Puseram o povo na arquibancada… (EMPOLGA-SE, IRRITADO) Quem está no poder agora é a burocracia, a burocracia podre, carcomida, corrompida, os usurpadores, os…

1º PRISIONEIRO - (CORTA, VIOLENTO) Pára, pára, pára! Lá vem você de novo com sua ladainha. Não vamos chegar a um acordo nunca.

2º PRISIONEIRO - É… Tem razão… Não vamos mesmo, burocrata. (PAUSA. O 2º PRISIONEIRO REFLETE E DIZ PONDERANDO AS PALAVRAS) És amigo de Zeus e está aqui… (“REPRESENTA” DE UMA FORMA PROFUN-DAMENTE IRÔNICA) “A desconfiança dos amigos é uma prática que nasce com a tirania… Venera, respeita, fazei tuas orações, bajula tu o poderoso do dia.

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Para mim, Zeus e seus acólitos valem menos que nada!…” (BREVE PAUSA) “Odeio todos os deuses. Devem-me favores e tratam-me com iniqüidade!”… (QUEBRANDO O CLIMA, SEMPRE DE FORMA IRÔNICA) “Prometeu Acorrentado”, Ésquilo, adaptado naturalmente aos nossos duros tempos e cir-cunstâncias.

O 1º PRISIONEIRO FAZ UM GESTO, DEMONSTRANDO JÁ ESTAR HA-BITUADO A OUVIR CITAÇÕES DO OUTRO.

1º PRISIONEIRO - Vou te dizer uma coisa que está muito além de sua pos-sibilidade de compreensão: não é simplesmente nele em quem nós confiamos, mas no homem em quem as circunstâncias históricas levaram a revolução a de-positar toda sua confiança… Ele é, hoje, queiramos ou não, o símbolo vivo de nossa revolução… É importante se entender que…

DESCARGA DE FUZILAMENTO CUJO FORTE SOM, VINDO DE CERTA DISTÂNCIA, INTERROMPE A ARGUMENTACAO. PAUSA. TENSÃO. POR INSTANTES OS PRISIONEIROS FICAM PARALISADOS. ENTREOLHAM-SE SIGNIFICATIVAMENTE. REFLETEM.

2º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) O que você ia dizendo mesmo sobre “o sím-bolo vivo de nossa revolução”?

1º PRISIONEIRO - Nada, nada, esquece… (ALGO IRRITADO) Não dá pra argumentar com você. Não dá.

2º PRISIONEIRO - Não, não dá… (BREVE PAUSA. DESISTEM DE CON-TINUAR DISCUTINDO) Bem, vamos justificar a nossa bóia… (IRÔNICO) “Quem não trabalha não come”. (MOSTRANDO A SERRINHA) Você vem me ajudar? (O 1º PRISIONEIRO FAZ GESTO NEGATIVO E DE DESPREZO, AFASTA-SE E SENTA-SE NA CAMA, PENSATIVO) Por que não fazemos uma “frente única”?

1º PRISIONEIRO - É impossível fazer “frente única” com você.

2º PRISIONEIRO - Por que não? Nós estivemos juntos durante a revolução, se lembra?

1º PRISIONEIRO - As circunstâncias históricas objetivas eram completamente outras. Agora estamos do outro lado da barricada.

2º PRISIONEIRO - (CONCORDANDO COM UM GESTO) Ao trabalho, que “quem não trabalha não come”. (COMEÇA A SERRAR AS GRADES)

1º PRISIONEIRO - (OBSERVANDO, PROVOCADOR) O que é que me im-pede de denunciar você?

2º PRISIONEIRO - (PÁRA DE SERRAR) Ahn?

1º PRISIONEIRO - Perguntei o que é que me impede de denunciar você.

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2º PRISIONEIRO - (OLHA PARA A SERRINHA, SORRI) Nada, absoluta-mente nada, burocrata. (REFLETE) Ou, talvez, a solidariedade… A solidarie-dade entre dois ex-companheiros que combateram juntos na revolução… A soli-dariedade entre dois seres humanos presos…

1º PRISIONEIRO - Lá vem você com seu humanismo romântico, idealista, utópico… E, depois, você sabe lá quem sou eu hoje? Certas circunstâncias histó-ricas objetivas mudam as pessoas.

2º PRISIONEIRO - Certo! Não sei mais quem você é, mas sei muito bem quem eu sou… Não sabemos mais quem são hoje nossos companheiros de on-tem… E, pensando bem, que importa isso agora? Hoje em dia, meu caro buro-crata, em nosso país é impossível saber com certeza se quem está ao nosso lado é um contra-revolucionário, um agente da burguesia e do imperialismo, um delator, um espião… (BREVE PAUSA. PROVOCADOR) Você, por exemplo, é a favor da burocracia no poder. O que não sei — ou finjo não saber — é se você é um espião da burocracia… (O 1º PRISIONEIRO, OFENDIDO, COM ÓDIO ESTAMPADO NO ROSTO, ENCARA O 2º PRISIONEIRO. POR INSTANTES, PARECE QUE VÃO PARTIR PARA A BRIGA. PAUSA. TENSÃO. O 2º PRISIONEIRO RI. A TENSÃO SE DESFAZ.) Agora, com licença, que “quem não trabalha…”

MOSTRA A SERRINHA. VOLTA A SERRAR AS GRADES. O SOM DA SERRINHA AUMENTA, FUNDINDO-SE COM MÚSICA ELETRÔNICA. A LUZ GERAL VAI SE APAGANDO LENTAMENTE. FOCO DE LUZ FIXA-SE NUM DETERMINADO PONTO. USO DOS DOIS PLANOS:

PLANO DA SALA DE INTERROGATÓRIO:

A CAPITÃ DA GUARDA ESTÁ SENTADA E O 1º PRISIONEIRO ESTÁ EM PÉ OU VICE-VERSA. POR VEZES, SEM ESCONDER SEU CACOETE, A CAPITÃ PASSA UMA ESCOVA DE CABO LONGO NAS OMBREIRAS DE SEU UNIFORME, ENQUANTO OLHA PARA O 1º PRISIONEIRO DE MODO SIGNIFICATIVO, AGUARDANDO DELE RESPOSTA A UMA PERGUNTA JÁ FORMULADA. PODE HAVER UM FOCO DE LUZ VINDO DE CIMA.

PLANO DA PRISÃO: O 2º PRISIONEIRO ANDA LENTAMENTE PELA CELA, REFLETINDO.

1º PRISIONEIRO - (À CAPITÃ, COM CUIDADO, ESCOLHENDO AS PALAVRAS. EMBORA PROCURE OCULTAR, SEU ESTADO É DE VISÍ-VEL TENSÃO) Capitã, quero que fique muito claro que, em momento algum, pensei em fazer oposição à linha da liderança da revolução… Pelo contrário, eu apoiei e continuo apoiando a linha da liderança e as medidas tomadas como

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sendo absolutamente necessárias ao momento histórico atual. Mais ainda: fiz discurso manifestando leal e publicamente esta minha posição.

CAPITÃ - Claro, sabemos disso… Fique tranqüilo… O senhor, de fato, apoiou a linha de nossa liderança… (IRÔNICA) com palavras…

PAUSA. ENCARAM-SE. A TENSÃO AUMENTA. A CAPITÃ, DE NOVO, PASSA A ESCOVA NAS OMBREIRAS DO UNIFORME, ENQUANTO OBSERVA A REAÇÃO DO 1º PRISIONEIRO. PAUSA.

1° PRISIONEIRO - A verdade é que eu…

CAPITÃ - (CORTA) Os fatos! Analisemos friamente os fatos!… O senhor disse publicamente que apoiava as medidas tomadas pela nossa liderança… (INTENCIONAL, IRÔNICA) mas o tom de sua voz, seu semblante, a expressão de seu rosto, seus movimentos, seus gestos demonstravam nitidamente que o senhor alimentava sérias dúvidas sobre o que estava dizendo… Era visível, era muito claro para todos que o senhor duvidava do sucesso das medidas revolucionárias e, desse modo, o senhor instilou — ou tentou instilar — a dúvida, o veneno da dúvida nos seus companheiros de liderança e em quem estava ouvindo o seu discurso… Num certo sentido, o senhor estava contradizendo a si próprio… Aliás, há algum tempo vinha-se notando que, ao final dos discursos de nossos líderes, especialmente de nosso líder supremo, seu aplauso era fraco, sem entusiasmo, de má vontade, com poucas palmas… O senhor era sempre o último a começar a aplaudir e o primeiro a parar… Sem contar que, numa dessas ocasiões, notou-se uma expressão de enfado em seu semblante e um esboço de sorriso irônico em seus lábios... (BREVE PAUSA) Como a revolução poderia confiar em quem se comporta dessa maneira?… (PAUSA UM POUCO MAIS LONGA) E mais grave ainda: houve uma ocasião importante em que o senhor, sempre tão eloqüente, sequer se manifestou, muito embora lhe tenha sido dada a palavra…

1º PRISIONEIRO - Capitã: naquela ocasião “importante”, eu me manifestei sim e disse claramente que apoiava a liderança…

CAPITÃ - (IRRITADA) Disse que apoiava a liderança em três ou quatro frases, quatro para ser mais preciso — e parou por aí… E silenciou!…

1º PRISIONEIRO - Simplesmente porque não queria repetir o que os outros companheiros disseram antes de mim…

CAPITÃ - (SEMPRE INSINUANTE) Ou então tinha muito mais a dizer e, por isso mesmo, silenciou, o que é muito diferente…

1º PRISIONEIRO - (COM CONTIDA IRRITAÇÃO) Vamos direto ao ponto, Capitã: o que a senhora está pretendendo dizer afinal?

CAPITÃ - (FIRME) Aquele seu quase silêncio foi, na realidade, uma tomada de posição… de posição… conspirativa!… (BREVE PAUSA) Aquele seu quase

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silêncio foi… (SIGNIFICATIVO) um silêncio conspirativo. (PAUSADA, ATENTA ÀS REAÇÕES DO OUTRO) Em resumo, com aquele seu apoio titubeante às medidas da liderança e com aquele seu conspirativo silêncio, o senhor estava se colocando contra a linha da liderança na revolução… Numa palavra, ou se reconhece que a revolução tem sempre razão ou se está com a contra-revolução.

1º PRISIONEIRO - (REFLETINDO) Pode ser… Pode até ser que eu realmente tenha procedido assim, mas de modo algum tive essa intenção. Ao contrário, eu…

CAPITÃ - (CORTA) Acreditamos plenamente na sua boa intenção pessoal, íntima, subjetiva… Mas de boas intenções, como dizem os religiosos, o inferno está cheio… O que nos interessa é o resultado concreto, objetivo, prático de sua… (FINGE PROCURAR A PALAVRA) Vacilação!

1º PRISIONEIRO - (FORTEMENTE ATINGIDO) Vacilação?! (BREVE PAUSA. ENGOLE EM SECO. PROCURA REAGIR AO GOLPE) Vacila-ção!… A senhora tem certeza de que está usando a palavra certa?

CAPITÃ - Absoluta!… Esta é a palavra certa: vacilação!… O senhor, infe-lizmente, vacilou… (LONGA PAUSA. REFLETE) Vacilação… (APROXIMA-SE DO 1º PRISIONEIRO E O ENCARA, OBSERVANDO O EFEITO QUE A PALAVRA “VACILAÇÃO” PRODUZ NELE) Não vamos perder mais tempo. Queremos que o senhor faça uma “autocrítica positiva” de sua “vacilação”... O senhor está disposto a fazer essa autocrítica?

1º PRISIONEIRO - (DEPOIS DE BREVE REFLEXAO ) Estou… Apenas está me parecendo que esta palavra — vacilação — está um pouco…

CAPITÃ - (CORTA) Muito bem! Que é que o senhor então tem a nos dizer sobre a sua vacilação?

O 1º PRISIONEIRO, MUITO TENSO, REFLETE ANTES DE COMEÇAR A RESPONDER. A CAPITÃ PÁRA A FRENTE DO PALCO, DANDO-LHE AS COSTAS. A LUZ EM FOCO A ACOMPANHA. O 1º PRISIONEIRO SAI DE CENA E PASSA PARA O OUTRO PLANO, ONDE, SENTADO, ESCREVE UMA CARTA. NO MESMO LUGAR E NA MESMA POSIÇÃO EM QUE ESTAVA HÁ POUCO, É SUBSTITUÍDO PELO 2º PRISIONEIRO.

CAPITÃ - Vejo que com o senhor não há condições para uma negociação razoável: nem mesmo uma “responsabilidade moral” ou uma “culpa parcial” o senhor aceita… Assim as coisas se tornam muito complicadas… Quer dizer então que o senhor simplesmente se recusa a fazer sua “autocrítica”?

2º PRISIONEIRO - (DESAFIADOR, CONFIANTE EM SI) Recuso, claro. Posso e pretendo fazer minha autocrítica para mim mesmo, não para a burocra-cia e seus agentes. Não vou dar a vocês, burocratas, o que vocês querem.

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CAPITÃ - (MALICIOSA) O senhor quer fazer uma declaração formal e por escrito do que acaba de me dizer?

2º PRISIONEIRO - Com o maior prazer. Por favor, escreva. (A CAPITÃ COLOCA PAPEL NA MÁQUINA E DATILOGRAFA. O 2º PRISIONEIRO DITA, PAUSADO, REFLETINDO SOBRE SUAS PALAVRAS. ATENÇÃO: A MÁQUINA DE ESCREVER DEVE SER BEM ANTIGA) “Não cometi ne-nhuma das faltas ou dos “crimes” de que sou torpemente acusado… Fui, sou e serei sempre um revolucionário internacionalista e, como tal, ao contrário da burocracia no poder, defendo o princípio de que nossa revolução somente triun-fará se não se limitar exclusivamente ao nosso país, mas se ela se espalhar, como um rastilho de pólvora aceso, pelo mundo inteiro… Acusam-me de contra-re-volucionário e de inimigo do povo… Respondo: contra-revolucionários, traido-res e inimigos do povo são os burocratas do atual governo, principalmente o su-pra-sumo da mediocridade burocrática, o burocrata dos burocratas, sua excelên-cia, o supremo líder dos burocratas…”

CAPITÃ - (CORTA INDIGNADA, MAS CONTIDA) Protesto contra esse insulto ao nosso supremo líder revolucionário!

2º PRISIONEIRO - (FORMAL) Protesto rejeitado, Capitã. Por favor, conti-nuemos.

CAPITÃ - Que mais?

2º PRISIONEIRO - Ponto final. (A CAPITÃ BATE O PONTO FINAL, RE-TIRA A FOLHA DA MÁQUINA E A RELÊ COM ATENÇÃO, ENQUANTO O 2º PRISIONEIRO, NUM TOM DE DESPREZO E SARCASMO, DIRIGE-SE DIRETAMENTE A CAPITÃ, COMO SE PRETENDESSE INSULTÁ-LA, DECLAMANDO TRECHO DE “PROMETEU”) “Saiba, ó mensageira de Zeus, que não trocaria minha miséria pela tua servidão. Prefiro ser um prisioneiro condenado à morte, do que passar toda a minha vida como fiel lacaio de Zeus”. (BREVE PAUSA) “Prometeu Acorrentado”, Ésquilo. (COMO SEMPRE, CITA OBRA E AUTOR DE MODO MUITO PECULIAR)

CAPITÃ - (QUE, ATENTA À LEITURA, NÃO OUVIRA AS PALAVRAS DO 2º PRISIONEIRO) Que foi que o senhor disse?

2º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Estava apenas citando o trecho de “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, adaptado naturalmente aos nossos duros tempos e cir-cunstâncias.

CAPITÃ - (SEM INTERESSE, ESTENDENDO A FOLHA AO 2º PRISIO-NEIRO) Assine aqui, “por favor”.

2º PRISIONEIRO - Pois não. (ASSINA SEM LER)

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CAPITÃ - (IRÔNICA) Obrigada, cidadão. Esta é a segunda vez que o senhor assina a pena de morte. A primeira foi para decretá-la, A segunda é agora, para o senhor mesmo. O cidadão sente a ironia?

2º PRISIONEIRO - Junto com todo o primeiro comando revolucionário, as-sinei a pena de morte para os crimes dos contra-revolucionários contra o povo e não me arrependo. Assinaria, de novo, tranqüilamente. Agora, tenho certa dú-vida de que esteja assinando a minha própria sentença de morte. Talvez…

CAPITÃ - Pode ter certeza absoluta disso.

2º PRISIONEIRO - (COM DESPREZO) Se dependesse de você, sem dúvida. Mas você não manda nada. Obedece. É uma mera funcionária subalterna, uma burocrata a mais…

CAPITÃ - (EXPLODE) Traidor! Contra-revolucionário! Sou um soldado da revolução! (LEVANTA-SE, AGRESSIVA)Você está me insultando, canalha!

2º PRISIONEIRO - (APAZIGUADOR) Calma, Capitã! Por favor, não se exalte. Não quis ofender, acredite… Apenas analiso os fatos… Não vamos levar esse assunto pelo ângulo pessoal… Você está cumprindo muito bem o seu dever... Afinal você já tem a minha assinatura... (A CAPITÃ SORRI E ACALMA-SE.)

CAPITÃ - Afinal, por que o senhor nos chama de “burocratas”.

2º PRISIONEIRO - Porque vocês amam a papelada. Acreditam piamente que os problemas da revolução, do povo e do mundo podem ser resolvidos por decreto, assinando-se papéis… Uma boa penada, uma assinatura e tudo resolvido!… Que ingenuidade!… Segundo vocês, burocratas, nosso país não precisa do povo no poder, mas de um bom gerente… Depois da revolução, o povo deixou de existir para vocês…

A CAPITÃ FAZ UM GESTO DE DESPREZO. SORRI OLHANDO PARA O PAPEL ASSINADO. APANHA UM ENVELOPE, ENDEREÇA-O, COLOCA CUIDADOSAMENTE A DECLARAÇÃO DENTRO DELE E FECHA-O.

CAPITÃ - Esta sua declaração vai diretamente às mãos de nosso líder su-premo… Quanto mais depressa resolvermos o seu caso, melhor… (ENCARAM SE O 2° PRISIONEIRO OBSERVA ATENTAMENTE A CAPITÃ) Por que o senhor está me olhando desse jeito?

2° PRISIONEIRO - Capitã, sabia que a senhora é uma mulher bonita?

CAPITÃ - Mulher bonita, mulher feia, mulher nem bonita nem feia... Bobagem! Que diferença isso faz?

2° PRISIONEIRO - Fico pensando como uma mulher, bonita como a senhora, possa se prestar a esse papel de…

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CAPITÃ - (CORTA) O senhor está estranhando o quê?... Nós, mulheres, de armas na mão, também fizemos a revolução e, hoje, participamos do governo revolucionário… Temos os mesmos direitos e as mesmas obrigações que os homens… Podemos exercer as mesmas profissões, sem nenhuma distinção, sem nenhum preconceito…

2° PRISIONEIRO - (IRÔNICO) A revolução decretou (GESTO DE QUEM ASSINA ALGO) a igualdade absoluta entre o homem e a mulher…

CAPITÃ - Dispenso suas ironias de contra-revolucionário!… A revolução não decretou nada... Nós, mulheres, é que conquistamos os nossos direitos… (VISIONÁRIA) Um dia nosso país será governado pelas mulheres… A mulher, pela sua própria natureza, é muito mais compreensiva, muito mais intuitiva, tem mais sensibilidade que o homem…

2° PRISIONEIRO - (IRÔNICO) A capitã mesmo é um exemplo evidente dessa afirmação…

CAPITÃ - A revolução acabou de vez com os preconceitos contra a mulher… Não faz nenhuma distinção entre o homem e a mulher. A prova maior disso é que não poucas mulheres, por se revelarem inimigas do povo, foram “eliminadas fisicamente”, juntos com seus maridos e companheiros…

2° PRISIONEIRO - Tem razão, capitã: a revolução, ou melhor, os burocratas no poder não têm nenhum preconceito...

CAPITÃ - Burocratas!... Lá vem o senhor de novo com esse surrado jargão… (BREVE PAUSA) Estamos perdendo tempo com essa conversa inútil… Pode ir. Encerramos por hoje. O guarda lá fora vai levar o senhor de volta à sua cela…

O 2º PRISIONEIRO SEGUE EM DIREÇÃO À SAÍDA. VOLTA-SE.

2º PRISIONEIRO - (VOLTA-SE) Proponho um acordo com vocês burocratas.

CAPITÃ - Acordo? Que espécie de acordo, cidadão?

2º PRISIONEIRO - Um acordo não escrito, tácito, de cavalheiros… (PÁRA, ESPERANDO A RESPOSTA)

CAPITÃ - Prossiga.

2º PRISIONEIRO - Segundo você, essa minha declaração assinada já é mate-rial de prova mais do que suficiente para garantir o meu fuzilamento…

CAPITÃ - Sem dúvida nenhuma, cidadão.

2º PRISIONEIRO - (FAZENDO UM GESTO DE DÚVIDA) Então proponho um acordo provisório, momentâneo, de não agressão com vocês, ilustres buro-cratas, tigres de papel... Vocês não me interrogam mais, eu não os insulto… Es-tou certo de que será de nosso mútuo interesse que só voltemos a esse tipo de (IRONIZA) “diálogo” caso haja um fato novo, algo realmente importante a ser

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discutido entre nós. Caso contrário, vamos nos repetir infinitamente, o que será uma pura e dupla perda de tempo… Segundo você, tenho pouco tempo de vida e pretendo aproveitar muito bem esse meu pouco tempo… Sou, portanto, um ci-dadão muito ocupado

CAPITÃ - (IRÔNICA) Ocupadíssimo…

2º PRISIONEIRO - …e vocês, burocratas, também… (PAUSA. ENCARAM-SE) Então, Capitã, aceita o acordo?

CAPITÃ - Se meus superiores…

2º PRISIONEIRO - (CORTA) Aceitarem, você aceita. Ótimo!… Ou melhor, se o burocrata-mor aceitar… (SORRI. FALA SEMPRE MUITO SEGURO DE SI, SENHOR DA SITUAÇÃO) Então, a título provisório, nosso acordo entra em vigor imediatamente…

SORRI. ESTENDE A MÃO À CAPITÃ, QUE O ENCARA COM ÓDIO.

CAPITÃ - (GRITA, CHAMANDO) Guardas!

A LUZ SE APAGA. SOM DE MÚSICA ELETRÔNICA E DE SERRINHA FUNDIDOS. OS PRISIONEIROS ESTÃO EM SUA CELA, DISCUTINDO. O 2º PRISIONEIRO ENCERRA SUA ARGUMENTAÇÃO COM CITAÇÃO DE “PROMETEU”.

2º PRISIONEIRO - “…e novos potentados dirigem o Olimpo, onde o grande Zeus reina como um tirano”. (DE FORMA TÍPICA) “Prometeu Acorrentado”. Ésquilo. Naturalmente adaptado aos…

1º PRISIONEIRO - (IRRITADO, MAS ALGO CONTIDO) Pequeno burguês! Você continua um pequeno burguês, agora mascarado de esquerdista radical.

2º PRISIONEIRO - (COM A SERRINHA NA MÃO) Ainda vou assistir ao dia em que vocês, burocratas, vão dar as mãos e se abraçar aos imperialistas.

OUVE-SE DESCARGA DE FUZILAMENTO. ENTREOLHAM-SE. PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Sinto informar que você não vai assistir a coisa alguma. Depois de sua declaração, seus dias estão contados. Infeliz-mente… (ALÉM DA IRONIA, HÁ NO TOM DE SUAS PALAVRAS UMA CERTA SOLIDARIEDADE PARA COM O OUTRO)

2º PRISIONEIRO - (APÓS ABSORVER O CHOQUE DA DESCARGA DE FUZILAMENTO) Se eu não puder assistir, o mundo assistirá ao tragicômico espetáculo da aliança de vocês, burocratas, com os imperialistas na luta contra a libertação dos povos… (ALGO VEEMENTE, INFLUENCIADO PELO SOM DOS TIROS) Sempre digo e repito, ainda que isso me custe a cabeça: ou nós internacionalizamos a revolução e a estendemos a todos os povos do mundo, a começar pelos nossos vizinhos, como a única forma que temos de romper o

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bloqueio, ou… ou a revolução faz tantas concessões aos imperialistas pra sobre-viver, que ela se burocratiza, como já está acontecendo, e deixa de ser revolu-ção…

1º PRISIONEIRO - (VEEMENTE. A ESTA ALTURA, AMBOS JÁ SE ES-QUECERAM DO FUZILAMENTO) Vocês estão mesmo perdidos para a revo-lução! (INFLAMADO) Vocês não acreditam na coragem, na garra de nosso povo! Para vocês, nosso povo é uma sub-raça, incapaz de resistir ao bloqueio por suas próprias forças… (MENOS VEEMENTE) Será que você, com toda a sua experiência de vida e de luta, não consegue enxergar que a nossa vitória, hoje, contra o imperialismo é uma vitória necessariamente política e não uma vitória armada? Você não percebe que está é fazendo o jogo da contra-revolu-ção?

2º PRISIONEIRO - Eu sou um revolucionário profissional internacionalista — você é um patriota, um patriota-burocrata, eis aí nossa diferença… Estamos se-parados por um abismo ideológico… Não vamos chegar a um acordo nunca, bu-rocrata.

SOM DE NOVA DESCARGA DE FUZILAMENTO. ENTREOLHAM-SE SIGNIFICATIVAMENTE.

1º PRISIONEIRO - (TENSO, COM A MENTE VOLTADA PARA O SOM QUE ACABA DE OUVIR) É… Não vamos mesmo… (DESTA VEZ, A RE-PETIÇÃO DO SOM ABATE-OS UM POUCO MAIS E DESISTEM DE DIS-CUTIR. PAUSA. REFLETEM. ÀS TANTAS, O 2º PRISIONEIRO OLHA PARA A SERRINHA E FAZ UM GESTO INDICANDO QUE VAI VOLTAR AO TRABALHO. O 1º PRISIONEIRO SENTA-SE NA CAMA, PENSATIVO) Sabe que há uma boa possibilidade de nós também sermos fuzilados?

2º PRISIONEIRO - Sei. É por isso que estou trabalhando para dar o fora daqui.

1º PRISIONEIRO - (COM UM QUÊ DE PROVOCAÇÃO) Você muito mais do que eu.

2º PRISIONEIRO - Acho justamente o contrário: você mais do que eu, buro-crata… As necessidades históricas muitas vezes obrigam o poder a eliminar seus inimigos, mas também — e principalmente — seus amigos. Quem viver verá.

1º PRISIONEIRO - (JÁ MAIS DESCONTRAÍDO) Vamos supor o impossível, isto é, que você consiga sair daqui… Que é que você irá fazer?… Para onde vai?

2º PRISIONEIRO - Não acho tão impossível assim. Para isso, estou dando duro… (MOSTRA A SERRINHA E CONTINUA, IRÔNICO) Penso até que já estive em situações muito piores… (REFLETE, PAUSADO) Para onde irei?… Não posso ficar em meu país, não há condições no momento, reconheço… Sabe? Ultimamente tenho pensado muito na América do Sul, uma miséria da-nada. Talvez vá para lá… América Central, pior ainda!… África! Quem sabe? É

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um absurdo total: meia dúzia de brancos dominando milhões de negros… Um barril de pólvora, sem dúvida… (LONGE, REFLETINDO) Posso ir para qualquer país… Há miséria e exploração por toda a parte… (IRÔNICO) Sou um revolucionário internacionalista profissional e lugar para fazer a revolução é que não falta neste mundo, (IRÔNICO) graças a Deus… Vou estar também sempre de olho bem atento para o que se passa em nosso país… De fora, posso fazer uma análise mais fria, com o espírito mais crítico, mais científico da realidade de nosso país, sem a visão deformadora da proximidade e do envolvimento direto… Numa palavra, pretendo abrir lá fora duas frentes de luta: uma, contra a burguesia e o imperialismo; outra, contra a burocracia… (REFLETE) Vamos ver no que dá.

1º PRISIONEIRO - Desculpe, mas você é um megalomaníaco… Ou melhor, é louco mesmo.

2º PRISIONEIRO - Tolice! Nunca estive tão lúcido em toda minha vida… (REFLETE) Agora, com licença, burocrata, que “quem não trabalha…”

VOLTA A SERRAR AS GRADES. O 1º PRISIONEIRO OBSERVA-O COM SIMPATIA E, ATÉ MESMO, COM ADMIRAÇÃO. DEPOIS, APANHA PAPEL E CANETA, COMEÇANDO A ESCREVER. AS LUZES APAGAM-SE LENTAMENTE NESTE PLANO. PAUSA. LUZ NA SALA DE INTER-ROGATÓRIO, EM QUE ESTÃO A CAPITÃ E O 1º PRISIONEIRO.

CAPITÃ - Sentimos muito, mas a sua autocrítica foi considerada fraca, vacilante, contra-revolucionária, pela unanimidade da liderança. (PAUSA. ENCARAM-SE) Numa palavra, faltou o mais importante…

1º PRISIONEIRO - O quê?

CAPITÃ - Sinceridade!

1º PRISIONEIRO - (ALGO IRÔNICO) Aaah!… Se o problema é esse, posso fazer outra autocrítica… (IRÔNICO) muito mais sincera…

PAUSA. ENCARAM-SE.

CAPITÃ - Queremos que compreenda que estamos agindo com o senhor exatamente da forma que, acreditamos, o senhor próprio agiria se estivesse em nosso lugar.

1º PRISIONEIRO - Compreendo perfeitamente… Já revi minha posição “vacilante”, já reconheci meus erros… Faço outra autocrítica muito sincera…

CAPITÃ - (TATEANDO) Aconteceram fatos novos… Uma autocrítica, ainda que “muito mais sincera” agora não será mais suficiente…

1º PRISIONEIRO - O quê, exatamente, a liderança quer de mim?

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CAPITÃ - A liderança quer uma confissão.

1º PRISIONEIRO - Confissão?!

CAPITÃ - Exatamente. A liderança quer que o senhor confesse.

1º PRISIONEIRO - Mas confessar o quê?

CAPITÃ - (FRISANDO AS PALAVRAS) A liderança quer que o senhor confesse seu crime ou seus crimes contra a revolução.

1º PRISIONEIRO - (FORTEMENTE ATINGIDO) Crime?! Crimes?!… Mas… Mas… Que absurdo!

CAPITÃ - Não é tão absurdo assim…

1º PRISIONEIRO - Mas que “crime” ou “crimes” contra a revolução eu co-meti?

CAPITÃ - O senhor vacilou, se esqueceu?… Veja bem: ou se está totalmente com a revolução ou se está com a contra-revolução… Não há meio termo… Este é um momento de extrema gravidade para os destinos de nosso país e da revolu-ção: nossa pátria está bloqueada pelos imperialistas, os contra-revolucionários praticam toda espécie de sabotagem, nossa economia está destroçada, nossa in-dústria paralisada, os estoques de gêneros alimentícios completamente esgota-dos… Fomos obrigados a impor o racionamento alimentar… (REFLETE) A situação do povo, reconhecemos, é hoje pior que antes da revolução… O povo… (REFLETE) Por mais que expliquemos, o povo não consegue entender o que está acontecendo e, momentaneamente, está descontente… Assim, a liderança, por unanimidade, considerou sua vacilação, nas atuais circunstâncias, num momento histórico que exige de todos nós total união e solidariedade revolucionária, como sendo nada mais, nada menos, que … Traição!

1º PRISIONEIRO - (TERRIVELMENTE ATINGIDO) Traição?!

CAPITÃ - (ENÉRGICA E DEFINITIVA) CRIME DE ALTA TRAIÇÃO!

PAUSA. ENCARA O 1º PRISIONEIRO, QUE ESTÁ ATURDIDO, DERRUBADO. A CENA SE CONGELA NESTE PLANO E PASSA PARA O PLANO DA PRISÃO.

2º PRISIONEIRO - (ANDA PELA CELA, REFLETINDO) No plano pessoal, individual, subjetivo, fui derrotado… Como classe, talvez não... Lógico, esta não é a revolução dos meus sonhos… E daí?… Com todas as suas deformações, com todos os seus erros, a revolução deu um gigantesco salto em direção ao fu-turo… Depois da nossa revolução, a humanidade nunca mais será a mesma… É por isso que o burguês sente a terra tremer sob seus pés… (SOM DE FUZILA-MENTO, SOBRE O QUAL ELE PASSA A REFLETIR POR INSTANTES. PAUSA) Essas falhas, esses “desvios de rota”, mais cedo ou mais tarde, serão corrigidos e avançaremos ainda mais depressa, com muito mais velocidade…

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Quer os burocratas no poder queiram ou não, amanhã ou depois, a revolução se espalhará pelo mundo inteiro…

SENTE-SE EM SUAS PALAVRAS CERTA EMOÇÃO OU CERTO CONS-TRANGIMENTO — OU AMBOS — DECORRENTE DO SOM DE FUZI-LAMENTO QUE ACABA DE OUVIR. POR BREVE INSTANTE, PÁRA COMO SE ESTIVESSE À ESPERA DE OUTRA CARGA DE TIROS. COMO ELA NÃO VEM, VOLTA A ANDAR E A REFLETIR, MAS NÃO SE OU-VEM SUAS PALAVRAS.

SALA DE INTERROGATÓRIO:

CAPITÃ - (COM CONTIDA AGRESSIVIDADE) O que o senhor esperava?… O senhor conhece muito bem nossos métodos. Digo “nossos” porque foram seus também. (SARCÁSTICA) É de sua autoria o artigo “Princípios e Objetivos da Repressão Revolucionária”, se lembra? (TIRA DO BOLSO UMA FOLHA DE PAPEL E LÊ) “Nos interrogatórios dos inimigos do povo, dos contra-revolucionários, dos desviacionistas e dos fracionistas de direita e esquerda, a revolução utilizará o princípio da “repressão revolucionária”, que não reconhece quaisquer limitações ou inibições, sejam elas políticas, morais, psicológicas e até mesmo físicas. Numa palavra, para extirparmos pela raiz a barbárie contra-revolucionária, todos os métodos de repressão são válidos — todos, sem exceção.” (REPETE) “Todos, sem exceção…” (BREVE PAUSA) Reconhece que foi o senhor mesmo quem escreveu isso? (O 1º PRISIONEIRO MOVE A CABEÇA AFIRMATIVAMENTE, A CAPITÃ DOBRA CUIDA-DOSAMENTE O PAPEL, GUARDANDO-O NO BOLSO) Na ocasião em que escreveu essas palavras, o senhor estava no poder e apoiou a existência da lide-rança de que velhos companheiros seus confessassem seus “crimes” contra a revolução. (AMARGA) E quase todos eles confessaram… Quase toda a “velha guarda” confessou, se lembra?… Um pouco depois, estranhamente, o senhor começou a pedir “moderação”, quando se discutia o “afastamento” deste ou da-quele elemento nocivo, numa atitude dúbia, contraditória e suspeita, muito sus-peita, especialmente porque vinda do próprio autor do “Princípios e Objetivos da Repressão Revolucionária”… (BREVE PAUSA) Se lembra de todos esses fatos?

1º PRISIONEIRO - (MUITO ABALADO, AINDA SOB O EFEITO DA ACUSAÇÃO DE “TRAIÇÃO”, SOMADA ÀS “LEMBRANÇAS” MENCIO-NADAS PELA CAPITÃ) Me lembro… Me lembro, sim… (LONGA PAUSA. INDESCRITÍVEL O ESTADO DE ESPÍRITO DO PERSONAGEM: TALVEZ UM MISTO DE IMPOTÊNCIA, SOLIDÃO, DERROTA CULPA. AOS POU-COS, VAI SE RECUPERANDO E ENFRENTANDO A SITUAÇÃO. ESTÁ MUITO TENSO, MAS FALA COM SINCERIDADE E CAUTELA) Sou um revolucionário… Sou filho e neto de revolucionários… Meu pai e minha mãe foram revolucionários… Conheceram-se numa prisão; meu pai, aliás, morreu na

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prisão… Fui preso pela primeira vez aos treze anos de idade, por atividades re-volucionárias… Depois, aos quinze… Depois aos… (NÃO CONCLUI) Nem sei quantas vezes estive preso… Estive exilado por mais de…

CAPITÃ - (CORTA) Seu passado de revolucionário é publicamente conhecido e ninguém o está pondo em dúvida. Seu nome era uma lenda entre os revolucionários… Era… (REFLETE. HUMANIZA-SE UM POUCO) Talvez eu não devesse dizer isso… Eu tenho… Ou melhor, eu tive uma grande admiração pelo senhor… Nós éramos muito jovens quando estourou a revolução e não pudemos participar dela, mas fomos educados lendo os livros dos grandes revolucionários, como os seus livros… Livros que nos ensinaram a amar o nosso país, a dar nossa vida por ele, a lutar até a morte para preservar as conquistas da revolução… Houve sacrifícios imensos, nosso povo hoje está sendo terrivel-mente sacrificado, haverá sacrifícios maiores ainda… Mas, sem dúvida, este será um grande país… (VISIONÁRIA) Um grande país… Um país de paz, de harmonia, de compreensão entre os homens, de igualdade, de amor… (CONVICTA) Sim, de amor… (VOLTA AO PRESENTE COM CERTA RISPIDEZ) Mas não é esse o assunto que está em causa. Vamos adiante, por favor.

1º PRISIONEIRO - Fui membro do atual governo revolucionário… Digo tudo isso não por vaidade, mas para deixar bem claro que dediquei toda minha vida à revolução e que, como revolucionário, estou falando a verdade, nada além da verdade… Estou sinceramente arrependido e peço minha readmissão às fileiras da revolução… Considerando meu passado de revolucionário, creio que tenho direito a uma nova oportunidade de trabalhar pela nossa causa… Dou minha palavra de honra que serei ainda mais dedicado e farei todo o possível para ex-piar, pelo menos em parte, minha culpa… ou meus erros… ou meus crimes… (PAUSA. AGUARDA AS PALAVRAS DA CAPITÃ)

CAPITÃ - Acreditamos em sua sinceridade, mas…

1º PRISIONEIRO - (CORTA) Se eu… eu fizer a confissão de meu… meu crime… meus crimes… vou ser perdoado? A revolução vai permitir que eu re-torne às suas fileiras?

EXPECTATIVA.

CAPITÃ - Considerando seu passado de revolucionário, a liderança autorizou-me a ser absolutamente sincero com o senhor: sua sorte já está decidida. (BREVE PAUSA. A EXPECTATIVA AUMENTA) O senhor será julgado se-cretamente por um tribunal revolucionário e popular, e, sinto dizer, condenado.

1º PRISIONEIRO - Condenado?

CAPITÃ - Condenado a… a ser eliminado fisicamente.

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1º PRISIONEIRO - (SENTE A VIOLÊNCIA DO GOLPE) Condenado?!… Condenado a… a ser… “eliminado fisicamente”… Mas… Mas…

CAPITÃ - Os outros também foram julgados assim… secretamente… por um tribunal secreto, revolucionário e popular… O senhor estava no governo, no po-der, e não teve nenhuma palavra a favor de seus antigos companheiros, se lem-bra?

PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (DERROTADO, ABATIDO, MAS COMEÇANDO A ACEITAR A SITUAÇÃO) Depois de… Depois de tudo o que eu fiz pela revo-lução… Depois de… Não é justo que…

CAPITÃ - Analise a sua situação como um revolucionário… A decisão do tribunal será justa e revolucionária… Foi tomada em comum acordo entre o go-verno revolucionário e a justiça revolucionária… Mas como a decisão praticamente já foi tomada, de nada adianta discutirmos aqui esse assunto.

PAUSA.

1º PRISIONEIRO - Vacilei, confesso… Mas outros também vacilaram… Ou-tros até se opuseram às medidas da liderança…

CAPITÃ - Outros vacilaram, outros também se opuseram às medidas… E daí?… Eles não ocupavam a sua posição na liderança da revolução, não tinham a mesma obrigação sua de dar exemplo de lealdade, de firmeza, de apoio incon-dicional à linha de nossa liderança… Não tinham seu prestígio, seu poder de in-fluência… De que adiantaria à revolução apanhar um desses ilustres desconhe-cidos?

1º PRISIONEIRO - Quer dizer que estou servindo de “bode expiatório”?

CAPITÃ - De “bode expiatório”, não… De exemplo, sim… É diferente.

1º PRISIONEIRO - E qual é o interesse que eu sirva de (IRÔNICO) “exem-plo”?

CAPITÃ - Depois que resolvermos o seu “caso”, quem mais na liderança vai se atrever a hesitar, a vacilar, a negar total apoio às medidas revolucionárias ainda mais duras que estão para serem decretadas? Quem vai cometer o crime de va-cilação? Quem vai se opor à linha estabelecida pela nossa liderança?

BREVE PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Compreendi.

CAPITÃ - Perfeito! Estamos fazendo progresso… Continuemos.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Que mais a liderança ainda quer de mim?

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CAPITÃ - A pura e simples admissão verbal de seu crime ou de seus crimes não basta. A liderança da revolução espera agora que o senhor redija, espontaneamente, a confissão sincera e definitiva de seus crimes.

1º PRISIONEIRO - (SARCÁSTICO) “Crime” ou “crimes”?! Pensei que eu tivesse cometido apenas um único “crime”, o de “vacilação”… Poderia me in-formar quais os outros “crimes” que eu devo confessar… espontaneamente?

CAPITÃ - Por favor, reflita. Em razão do grave crime inicial de vacilação, que outros crimes ocorreram ou poderão ter ocorrido? A quem sua vacilação favoreceu ou pode ter favorecido?… Em que medida sua vacilação prejudicou a aplicação das medidas que então se discutiam?… Sua vacilação não favoreceu à contra-revolução, contribuindo para a formação de grupos de conspiradores terroristas, espiões e sabotadores?… O senhor não passou, portanto, a ter uma “responsabilidade moral” pela ação criminosa desses grupos?… Pense em tudo isso e em outras prováveis conseqüências de sua atitude vacilante e o senhor terá então material mais que suficiente para colocar em sua confissão… (MOSTRA RECORTE DE JORNAL) Como o senhor mesmo escreveu, “estamos criando uma nova ética…”E nessa “nova ética” a verdade tem pouco ou nenhum interesse para a revolução no momento histórico atual. O que realmente interessa é a utilidade. A verdade é relativa, variando no tempo e no espaço. A utilidade é absoluta. Pense nisso… e na nossa nova ética revolucionária.

1º PRISIONEIRO - E por que iria eu redigir minha “confissão espontânea e sincera” agora que já estou definitivamente condenado?

CAPITÃ - Porque nós acreditamos que o senhor, apesar de tudo, continua sendo um autêntico revolucionário… Veja bem: nós somos, hoje, o farol do mundo, a consciência da humanidade… Os olhos dos oprimidos do mundo inteiro estão voltados para nós… Somos a esperança de uma vida melhor para milhões e milhões de seres humanos, o exemplo para os trabalhadores de todos os países… Já imaginou se fracassarmos?… Quer contribuir para o nosso fracasso?… Já refletiu como o seu caso poderá ser deturpado e explorado pela imprensa burguesa? (SOM DE FUZILAMENTO. ENTREOLHAM-SE. PAUSA. A CAPITÃ, PREOCUPADO COM O EFEITO QUE O SOM POSSA PRODUZIR NO OUTRO, VOLTA À ARGUMENTAÇÃO) O senhor sabe muito bem que os imperialistas poderão tomar o seu caso como pretexto para jogar a opinião pública mundial contra a nossa revolução e criar um clima favorável à continuação do bloqueio, à intervenção armada e à restauração do capitalismo… Claro, este caso para o senhor é de extrema gravidade, vital… Mas para a huma-nidade, para a grande marcha da humanidade em direção a futuro melhor, para a libertação dos povos oprimidos, que importância tem?… Então o senhor, um revolucionário, vai permitir que o seu caso individual, historicamente sem ne-nhuma importância, sirva de arma mortífera para os inimigos da revolução? Se o senhor confessar, calará a reação nacional e mundial… Será sua última batalha

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contra o imperialismo, que não terá mais esse argumento contra a nossa revolu-ção… (BREVE PAUSA) Reflita, raciocine friamente, analise, use a dialética…

1º PRISIONEIRO - (EM DÚVIDA) É exatamente isso que tenho tentado fazer ultimamente: refletir, raciocinar, usar a dialética… Digamos que a liderança possa ter se equivocado… incidido num possível equívoco… Afinal, ninguém é infalível…

CAPITÃ - (PONDERADA) Admitamos que talvez este seja mesmo um equívoco da revolução… O senhor vai permitir que esse equívoco retarde o processo histórico, esmoreça a vontade de milhões e milhões de criaturas oprimidas no mundo inteiro, de fazer a sua revolução? Vai permitir que o derradeiro ato de sua vida, isto é, sua morte sirva à causa da burguesia e não à causa da revolução? (PAUSA. A CAPITÃ AGUARDA O EFEITO DE SUAS PALAVRAS) Enfim, se o senhor quer que sua morte seja a morte de um revolucionário, tem a obrigação moral e revolucionária de confessar seus crimes. E de confessar-se culpado… Lembre-se: o sucesso de seu processo para a causa da revolução está agora em suas mãos e depende de sua confissão espontânea e sincera… Além de tudo, sua confissão será uma arma poderosa para desmascararmos os contra-revolucionários que ainda se encontram enrustidos em nossas fileiras… (BREVE PAUSA) O senhor compreende, afinal, o sentido de sua confissão?

1º PRISIONEIRO - (CONFUSO, ATURDIDO, MAS ACEITANDO PARTE DA ARGUMENTAÇÃO) Compreendo… Acho que compreendo… Estou ten-tando compreender… Preciso pensar, de tempo para pensar… para refletir melhor…

CAPITÃ - O senhor sabe que o tempo da revolução é precioso… Mas pode ficar tranqüilo... O senhor terá algum tempo para refletir, não muito, mas o suficiente…

BREVE PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Obrigado. Posso ir então?

CAPITÃ - Só mais um minuto. A liderança revolucionária autorizou-me a apresentar ao senhor uma proposta de negociação.

1º PRISIONEIRO - Proposta para negociação?! Que tipo de negociação?

CAPITÃ - Eu mesma admiti francamente que talvez possamos estar errados. É uma hipótese. Caso essa hipótese seja verdadeira e o senhor faça sua confissão espontânea, o senhor poderá ser reabilitado “post-mortem”.

1º PRISIONEIRO - “Post-mortem”?

CAPITÃ - Depois de sua morte… O senhor poderá ser reabilitado… Ou me-lhor, sua memória poderá ser reabilitada futuramente… Não podemos precisar

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quando, porque tudo vai depender da conjuntura nacional e internacional da época em que a revolução tiver condições históricas objetivas de fazer sua auto-crítica, sua auto-avaliação… O senhor PODERÁ então ser reabilitado, caso estejamos errados hoje e o senhor faça sua confissão sincera… e seu nome voltará então ao “pantheon” da revolução. Seja como for, de uma coisa não tenha dúvida: as gerações futuras lhe prestarão o devido reconhecimento.

BREVE PAUSA.

1º PRISIONEIRO - Francamente, nem sei o que dizer sobre… (IRÔNICO) so-bre minha possível futura reabilitação, ou melhor, sobre a possível futura reabi-litação de minha memória… Pode ser até que me interesse, pode ser que não me interesse… (AMARGO) Talvez seja mesmo um “bom negócio”… Sei lá! (EXAUSTO) Preciso pensar, pensar, pensar…

CAPITÃ - Por hoje, nossa conversa está encerrada. Obrigada.

1º PRISIONEIRO - (VAI SAINDO. VOLTA-SE) O meu companheiro… quero dizer, meu colega de cela, ele… (IRÔNICO) ele também será levado a julgamento e condenado a ser “eliminado fisicamente”?

CAPITÃ - Ele não vai a julgamento: será pura perda de tempo. É o pior, o mais sórdido, o mais repugnante tipo de contra-revolucionário, um traidor, um inimigo do povo e da revolução... É indigno de ser levado a um tribunal revolucionário. Sem a menor dúvida, será eliminado fisicamente e pronto!… (BREVE PAUSA) Tem alguma coisa a me dizer sobre ele?

1º PRISIONEIRO - Não, não, nada, nada… (VAI SAIR. A CAPITÃ ABRE A PORTA E ORDENA A ALGUÉM QUE LEVE O 1º PRISIONEIRO DE VOLTA À SUA CELA. O 1º PRISIONEIRO SAI.)

A CAPITÃ REFLETE POR ALGUM TEMPO. A LUZ APAGA-SE LENTAMENTE. ESCURIDÃO. SILÊNCIO.

UM ÚNICO FOCO DE LUZ INCIDE SOBRE O 1º PRISIONEIRO, QUE ESTÁ DIANTE DE UM TRIBUNAL, INEXISTENTE EM CENA.

1º PRISIONEIRO - (PAUSADO, CONSCIENTE, SUTILMENTE IRÔNICO, DIRIGINDO-SE AO JUIZ OU JUÍZES, INEXISTENTES. PRONUNCIA AGORA SUAS ÚLTIMAS PALAVRAS ANTES DO VEREDITO) Apesar de estar consciente de que, historicamente, a confissão espontânea do acusado é uma prática medieval e inquisitorial de jurisprudência, mesmo assim a atitude que me vejo compelido a assumir diante deste tribunal revolucionário é a do mais completo e sincero arrependimento… Declaro-me, portanto, (SUTIL) “sin-ceramente arrependido”… (BREVE PAUSA) Vacilei, confesso, vacilei… E va-cilei covardemente num momento de extrema gravidade para os destinos de nossa revolução e de nossa pátria, muito embora outros também tivessem vaci-lado… A vacilação foi, sem dúvida, o meu grande crime, ou melhor, um dos

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meus grandes crimes, já que existiram outros… os quais, aliás, somente na fase de interrogatório e neste tribunal, tomei pleno conhecimento… Como esclareceu muito bem o cidadão promotor, com minha covarde atitude vacilante, estimulei, inconscientemente, as atividades criminosas dos dos contra-revolucionários e dos inimigos do povo, contribuindo “moralmente” para a formação de grupos de conspiradores, subversivos, terroristas, espiões e sabotadores, muito embora, faço questão de ressaltar, em toda minha vida jamais tenha entrado em contato com esse tipo de gente, o que, aliás, não invalida em nada a acusação... Confesso-me, portanto, culpado, política e legalmente, pelas atividades de sabotagem, de espionagem, de terrorismo, de conspiração e de subversão, mencionadas há pouco pelo cidadão promotor, apesar de não me lembrar de ter dado a quem quer que seja qualquer ordem nesse sentido e de só agora e na fase de interrogatório, como já disse, ter tomado conhecimento de tais atividades… Talvez o cidadão promotor tenha exagerado um pouco ao mencionar certas passagens, certos detalhes insignificantes deste ou daquele de meus diversos crimes… Mas o cidadão promotor foi, sem dúvida, absolutamente correto no geral... (BREVE PAUSA) Reconheço que vivemos hoje num processo histórico e revolucionário, do qual tive a honra de participar durante toda a minha vida… Em consonância com esse processo histórico este tribunal tem de ter, antes e acima de tudo, uma elevada consciência de sua missão histórica e revolucionária… Por isso mesmo, os vergonhosos e graves crimes de que me reconheço culpado, vários dos quais acabo de tomar conhecimento, exigem que me seja aplicado o castigo máximo... (BREVE PAUSA) A PENA DE MORTE! … E me impedem de pedir clemência a este digno tribunal… Pelo contrário, consciente do momento histórico em que estamos vivendo e de meu modesto papel nesse momento histórico, como revolucionário que, apesar de tudo, continuo sendo, peço, ou melhor, exijo justiça deste tribunal. Justiça e não cle-mência… Justiça revolucionária!

SILÊNCIO. A LUZ SE APAGA. PAUSA.

LUZ NO PLANO DA PRISÃO. O 2º PRISIONEIRO ESTÁ SERRANDO, COM MUITO ÂNIMO, UMA DAS GRADES, ATENTO PARA QUE O BA-RULHO EXCESSIVO NÃO CHAME A ATENÇÃO DOS GUARDAS. O 1º PRISIONEIRO, MUITO TENSO, ESCREVE ALGO COM CERTA DIFI-CULDADE. VÁRIAS VEZES SE DETÉM, PARA RECOMEÇAR EM SE-GUIDA. TERMINA E RELÊ O QUE ACABA DE ESCREVER. DEIXA A FOLHA DE LADO, ENTREGANDO-SE A UM ESTADO DE PROSTRA-ÇÃO. O 2º PRISIONEIRO, SEM PERCEBER O ESTADO DO COLEGA, CONTINUA SERRANDO. ESQUECE-SE. O BARULHO DA SERRA AUMENTA. DE REPENTE, O 2º PRISIONEIRO PRESSENTE O PERIGO, PÁRA E FICA NA EXPECTATIVA.

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2º PRISIONEIRO - (AO OUTRO) Será que eles ouviram desta vez? (PAUSA. O 1º PRISIONEIRO SEQUER O OUVIU. ESTÁ MUITO LONGE) Éééé… A gente se empolga, esquece que os guardas podem… (PÁRA DE FALAR. SO-MENTE AGORA PERCEBE O ESTADO DO OUTRO. APROXIMA-SE DELE) Será que os guardas ouviram? (FAZ A PERGUNTA MAIS PARA DESPERTAR O COLEGA DO TORPOR DO QUE PARA OBTER RES-POSTA) Será que eles ouviram? (REPETE AINDA UMA VEZ, BEM PRÓ-XIMO AO OUVIDO DO OUTRO, QUASE GRITANDO) Será que eles ouvi-ram?

1º PRISIONEIRO - (AINDA ASSIM NÃO RESPONDE DE IMEDIATO. SUPERA-SE A SI MESMO, PROCURANDO SAIR DE SEU ESTADO EM QUE SE ENCONTRA) Não… Não… Acho que não… (AINDA ESTÁ LONGE. RESPONDE COMO SE A PERGUNTA LHE SOASSE VAZIA, SEM IMPORTÂNCIA ALGUMA)

2º PRISIONEIRO - (COMPADECENDO-SE DO OUTRO E PROCURANDO AUXILIÁ-LO) Que desânimo é esse?! Vamos pra luta! Vamos pra luta! (SA-CODE-O) Vamos pra luta!… Quer saber de uma coisa? De agora em diante, não vou mais te chamar de “burocrata”, mas de “companheiro”… E não vou exigir nada em troca. Aceita?

1º PRISIONEIRO - (SORRI) Obrigado.

2º PRISIONEIRO - Olha, eu tenho refletido muito, trabalhado pouco… Bem, já refleti o que tinha de refletir, analisei o que tinha de analisar… Agora, é mãos à obra! (MOSTRA A SERRINHA) Dar duro para sairmos daqui… A gente vai sair daqui, claro que vai… Vem me ajudar, vem… Com nós dois trabalhando, a coisa vai ser sopa! (PERCEBE QUE NÃO CONVENCEU, INSISTE) Preciso de tua ajuda para sairmos daqui… Estou te pedindo: venha me ajudar. Vem.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO, MAS JÁ MAIS PRESENTE À SITUAÇÃO) Eu te ajudar?!… Ajudar?!… Você está doido!… Você não vê… não percebe que isso não adianta?… Não percebe que é impossível?

2º PRISIONEIRO - (VIBRANTE) Impossível coisíssima nenhuma! Nada, nada é impossível! Os reacionários também diziam que a revolução era impossível e nós fizemos a revolução, derrotando a polícia, o exército, a burguesia, a igreja, os latifundiários… Nada para um revolucionário é impossível! Nada!

PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (DEPOIS DE UM MOMENTO DE REFLEXÃO, LE-VANTA-SE, APROXIMANDO-SE DAS GRADES) Veja bem as grades. (SE-GURA-AS COM FORÇA, COMO SE PRETENDESSE VERGÁ-LAS) São grossas, muito grossas, fortes, fortíssimas… Não dá para serrá-las … Bem, di-

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gamos que você consiga… Vai levar tempo, muito tempo… (REFLETE) Quanto tempo ainda temos, esqueceu?… E você só pode serrar quando os guar-das não estiverem fazendo a ronda… Não reparou como é esse presídio quando trouxeram a gente para cá? No fundo do corredor, há um grande portão com bar-ras de ferro. Você vai ter também que serrar as barras, já que ninguém vai abrir o portão para você. Mas lá ficam guardas… (IRÔNICO) Você vai ter de pedir licença para eles para poder serrar… O pior é que o portão — suponhamos que você consiga passar por ele — não dá para fora, mas pro pátio e tem sempre guardas armados andando pelo pátio. Além disso, tem o muro que é alto pra burro… No muro, tem torres de vigia… Bem, suponhamos que você consiga pular o muro. Sabe o que acontece? Lá fora, há soldados com cães amestrados… Suponhamos que você passe por tudo isso… Tem cartazes com nosso retrato, contra a gente, especialmente contra você, espalhados pelo país inteiro… Se o povo te vir, ou te lincha ou te entrega à polícia… (PAUSA) Ééé… Estamos numa prisão de segurança máxima. Ninguém nunca antes conseguiu fugir da-qui… É impossível… Simplesmente impossível…

2º PRISIONEIRO - (ACEITANDO A ARGUMENTAÇÃO, COMPREEN-DENDO O OUTRO, TENTANDO ANIMÁ-LO PARA, NA REALIDADE, ANIMAR-SE) Escute, companheiro, escute… O momento histórico em que nós, nós dois, estamos vivendo obriga a gente a esquecer momentaneamente nossas divergências políticas e nos unir contra nosso inimigo comum…

1º PRISIONEIRO - Eles não são “nosso inimigo comum”!

2º PRISIONEIRO - A morte é o inimigo comum de todo ser humano!… Se você me ajudar, seremos dois… Seremos fortes, fortíssimos… E o importante é que estaremos lutando, lutando , lutando… Lutando!… Lutando até o último momento, até o último segundo!

1º PRISIONEIRO - (SEM SE CONVENCER, ABATIDO) É inútil… Tarde demais… É hoje… Hoje!… É hoje, se esqueceu?

PAUSA.

2º PRISIONEIRO - (NÃO RESPONDE. ENXUGA O SUOR DA TESTA. DEIXOU-SE CONTAGIAR PELO DESÂNIMO DO OUTRO) Se você me aju-dasse, seria bem mais fácil… Logo nós… (NÃO COMPLETA. VOLTA A SERRAR, MAS SEM O MESMO ÂNIMO. PÁRA. OLHA PARA O 1º PRI-SIONEIRO. O ESTADO PROFUNDAMENTE DEPRESSIVO DO OUTRO O INCOMODA. PAUSA. REFLETEM) Não, eu não me esqueci que é hoje. Como é que poderia esquecer? É hoje, é hoje, impossível esquecer!… Mas vou lutar até o último momento, até o último segundo. (SEU ESTADO DE ESPÍRITO, AGORA, ESTÁ EM CONTRADIÇÃO COM SUAS PALAVRAS: ELE TAMBÉM DEIXA-SE ABATER, EMBORA MENOS QUE O OUTRO) Que horas devem ser?

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1º PRISIONEIRO - Não sei… Mas não deve faltar muito.

LONGA PAUSA.

2º PRISIONEIRO - (COM UM TOQUE DE IRONIA) Você acha que vai ser mesmo às sete… às sete, em ponto?

1º PRISIONEIRO - Não sei… Nosso país melhorou muito com a revolução, mas ainda nunca fazem as coisas no horário… Pode ser que eles se atrasem um pouco… Pode ser que sejam pontuais… Nunca se sabe…

2º PRISIONEIRO - É… Pode ser… Nunca se sabe… Não somos pontuais mesmo… É a nossa tradição…

LONGA PAUSA.

1º PRISIONEIRO - (ESTÁ VISIVELMENTE COM MEDO. SUA VOZ, AGORA, TREME UM POUCO) Acho que está chegando a hora… Você… Você está com medo, companheiro?

BREVE PAUSA.

2º PRISIONEIRO - (REFLETE, FALA PAUSADAMENTE) Não sei, eu… Eu estou tenso, muito tenso, mas acho que não estou com medo… Sou um revolu-cionário internacionalista profissional — nunca fiz outra coisa — e a morte está sempre presente em minha vida, é o meu cotidiano, o meu ganha-pão… (IRÔNICO) Pensando bem, nossa situação não é tão ruim: na pior das hipóteses, seremos fuzilados. Mais do que isso eles não podem fazer… Percebe como são limitados? (BREVE PAUSA) Não, não estou com medo… Estou é tenso, muito tenso. É diferente.

1º PRISIONEIRO - (SINCERO) Pois eu estou é com medo mesmo, com muito medo…

LONGA PAUSA. O 1º PRISIONEIRO PROCURA REPRIMIR SEU MEDO, MAS NÃO CONSEGUE: SUAS MÃOS TREMEM UM POUCO, SUA VOZ TAMBÉM, TODO SEU SER MANIFESTA SEU ESTADO. O 2º PRISIO-NEIRO TENTA AJUDÁ-LO, SEM SABER, DE INÍCIO, COMO PROCEDER.

2º PRISIONEIRO - Desculpe perguntar… não tenho nada com isso… mas aquela carta que você escreveu antes de seu julgamento… para quem era?

1º PRISIONEIRO - Não era carta… (COM CERTA IRONIA) Era a confissão de “meus crimes”.

2º PRISIONEIRO - (COM CONTIDA E CRESCENTE IRRITAÇÃO) Não dá pra entender, não dá!… Mas por que diabo você “confessa”?… Você não co-meteu crime nenhum! (ENCARA O COMPANHEIRO, QUE NÃO RES-PONDE) Te ordenam que pare de pensar e “confesse”: Você pára de pensar — e “confessa”!… É isto que eu chamo de “disciplina de cadáver”… Você confia

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cegamente na atual liderança dos burocratas e então, nos últimos momentos de sua vida, você pára de pensar — e confessa!… É um absurdo!… O problema é que eu, pela minha própria natureza, não consigo parar de pensar nunca. Eu penso. E penso sempre pela minha própria cabeça… Essa sua confissão, essas absurdas confissões de vocês todos vai é causar danos incalculáveis, imprevisíveis ao nosso país e à própria causa revolucionária… Daqui a cinqüenta, sessenta, cem anos ainda estarão falando nessas tais “confissões espontâneas”…É um absurdo, um absurdo total!... (FORTE) Afinal, homem, me responda, por que… por que é que você confessa?

EXPECTATIVA. O 1º PRISIONEIRO REFLETE SOBRE O QUE IRÁ RES-PONDER.

1º PRISIONEIRO - (PONDERADO) Entenda bem: se tenho de morrer, pelo que estou morrendo?… Não acredito que exista algo, alguma coisa, outra vida depois desta vida; por isso mesmo, quando reflito sobre a minha morte já pró-xima, vejo um vazio à minha frente, um vácuo absoluto… Então eu sinto que minha vida teve um sentido, entende? E que agora tenho de dar um sentido à minha morte para que ela não caia no nada… Não tenho futuro… Mas também não tenho presente… meu presente é isso aqui (GESTO)… Por isso mesmo te-nho refletido muito, fazendo uma reavaliação de meu passado… Meu passado de revolucionário é a única coisa que me resta: não posso perdê-lo agora… E é pelo meu passado que confesso algo que fiz ou que não fiz, pouco importa… Com minha confissão, lá fora, os contra-revolucionários do mundo inteiro não poderão se aproveitar de minha morte; aqui dentro, a liderança revolucionária ficará ainda mais firme, mais coesa, com mais condições de levar adiante a obra da revolução… Não importa que a minha confissão seja verdadeira ou falsa — o que importa é que ela seja útil aos interesses da revolução… Para você, minha confissão é um absurdo, um absurdo total… Para mim, é uma atitude revolucio-nária correta, feita após objetiva avaliação dos fatos… Entende agora o sentido de minha “confissão”?

2º PRISIONEIRO - Entendo, mas não concordo. Continuo achando um absurdo.

1º PRISIONEIRO - Paciência…

LONGA PAUSA. SILÊNCIO. REFLETEM. QUASE IMPERCEPTIVEL-MENTE A TENSÃO RECRUDESCE E O MEDO VOLTA A APODERAR-SE DO 1º PRISIONEIRO, EMBORA ESTE TENTE SUPERÁ-LO. O 2º PRISIO-NEIRO PERCEBE O ESTADO DE SEU COMPANHEIRO E PROCURA AJUDÁ-LO.

2º PRISIONEIRO - Desculpe, companheiro, não tenho nada com a sua vida pessoal, mas… Mas você deixa alguém?

1º PRISIONEIRO - Como assim?

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2º PRISIONEIRO - Um parente… pai, mãe, irmão, tio, mulher… sei lá.

1º PRISIONEIRO - Bem, fui casado… Não legalmente, claro… (RECOR-DANDO) Naquele tempo, a gente não se importava com essas coisas: gostava, se juntava, estava casado e pronto… (MERGULHA EM SUAS RECORDA-ÇÕES) A gente nunca pôde ficar muito tempo junto… Antes da revolução, na clandestinidade, sempre fugindo da polícia, como é que a gente podia ter casa fixa, um lar? Impossível!… Cada um ia para um lado, a serviço da revolução… Se encontrava quando dava, de vez em quando… Mas a gente era feliz… De-pois, fomos presos, cada um numa prisão, em cidades diferentes… Depois veio a revolução e nós dois participamos do governo revolucionário… Depois, a luta contra os desviacionistas… (BREVE PAUSA) Mas aí a gente estava junto… junto e separado ao mesmo tempo… Era uma situação meio esquisita, meio in-definida…Foi então que fui preso e vim parar aqui.

2º PRISIONEIRO - (HUMANO) Como era ela?

1º PRISIONEIRO - (SAUDOSO, REMEMORANDO) Pensando nela agora, sua imagem me aparece como uma mulher alta, muito alta, não sei por quê… Na verdade, ela era meio baixinha, meio gordinha… Mas uma grande mulher, sabe?… Conheci “ela” na nossa primeira greve geral, sete anos antes da revolu-ção… (RECORDA O EPISÓDIO) Eu estava à frente de um piquete, quando vi três policiais espancando uma mulher com cassetete. A mulher resistia brava-mente e, mesmo apanhando, xingava os policiais…Me meti, claro: “Parem com isso, seus animais! Vocês estão matando essa mulher!”… A mulher era ela…

2º PRISIONEIRO - E eles pararam?

1º PRISIONEIRO - Pararam nada. Bateram em mim também. Apanhamos juntos!… Que surra levamos!… Foi assim que a gente se conheceu… Sabe? Ela sempre me dizia: “Nas manifestações populares, nas passeatas, não vou de porta-bandeira, mas vou engrossando a massa”… Mentira dela!… Podia come-çar engrossando a massa, mas acabava sempre de porta-bandeira… A revolução estava no sangue dela, entende?… Uma grande mulher!… Ela tem garra, muita garra! Uma revolucionária de corpo e alma!…

2º .PRISIONEIRO - Você se lembra quando viu sua mulher pela última vez?

1º PRISIONEIRO - Faz uns dois anos… A gente não tinha quase nada o que dizer… Ficamos olhando um para a cara do outro, sem assunto… De repente, ela me disse que estava grávida.

2º PRISIONEIRO - De você?

1º PRISIONEIRO - Francamente, não fiquei sabendo… Talvez sim, talvez não…

2º PRISIONEIRO - Por que você não perguntou?

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1º PRISIONEIRO - Não tive coragem… Ela sempre foi uma mulher muito in-dependente e àquela altura nós já estávamos meio separados… Nossas divergên-cias eram muito fortes… Ela apoiava totalmente a linha da liderança da revolu-ção. Eu também apoiava… (COMPLETA) em público. Em particular, nem tanto… Tinha certas dúvidas, mas não disse isso para ninguém. Só uma vez para ela… e aí então nosso relacionamento piorou de vez.

2º PRISIONEIRO - Nunca mais teve notícias dela?

1º PRISIONEIRO - (TÍMIDO) Ela me mandou este bilhetinho. (TIRA-O DO BOLSO) Faz uns três meses… A capitã da guarda me entregou. (PASSA-O AO OUTRO)

2º PRISIONEIRO - (SEM OUVI-LO, LENDO O BILHETE) “Fez sua autocrítica sincera? Ana.”

1º PRISIONEIRO - (SEM GRAÇA) Não é exatamente um bilhetinho de amor… Imagine que a capitã da guarda chegou a me insinuar que foi ela que me denunciou… Que absurdo!

REFLETE SOBRE O QUE ACABA DE DIZER. PAUSA. VOLTA A ABATER-SE. O 2º PRISIONEIRO OBSERVA A REAÇÃO DO COMPANHEIRO. DE REPENTE, OCORRE-LHE UMA IDÉIA.

2º PRISIONEIRO - (ENTUSIASMADO) Que mulher extraordinária!… Mas este bilhete… Este bilhete… (NÃO COMPLETA. DEIXA A IDÉIA NO AR)

1º PRISIONEIRO - Que tem o bilhete?

2º PRISIONEIRO - É um bilhete de amor! Um bilhete de amor, não percebeu?

1º PRISIONEIRO - Um bilhete de amor?!

2º PRISIONEIRO - (VIBRANTE) Claro! Claro! Como é que você não perce-beu? Olhe, veja bem o bilhete! (MOSTRA O BILHETE)

1º PRISIONEIRO - (SEM ENTENDER) Estou vendo…

2º PRISIONEIRO - Não dá pra você perceber nada?

1º PRISIONEIRO - Não…

2º PRISIONEIRO - Veja bem: o bilhete está escrito à mão!

1º PRISIONEIRO - E daí?

2º PRISIONEIRO - (COM CONVICÇÃO) Daí que ela podia muito bem ter escrito à máquina… mas preferiu escrever à mão, de seu próprio punho, com sua própria letra, com sua caligrafia, para que o bilhete se tornasse mais íntimo, mais pessoal, mais afetuoso, mais carinhoso, percebe?… É uma mensagem cifrada, sem dúvida!

1º PRISIONEIRO - Você acha?

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2º PRISIONEIRO - Tenho certeza! Esqueceu que nossa correspondência passa pela censura da prisão? Você acha que eles deixariam passar um bilhetinho de amor para você? Pense bem!

1º PRISIONEIRO - (PENSATIVO) Não.

2º PRISIONEIRO - Pois então!... (OBSERVANDO O BILHETE COM MUITA ATENÇÃO) Que mulher! Que mulher! (RI) Ela enganou a censura da prisão, fingindo auxiliar o trabalho dos burocratas!… Você é cego, homem? Você é cego?… Olhe, observe bem a palavra “sincera”.

1º PRISIONEIRO - Que é que tem ela?

2º PRISIONEIRO - É um adjetivo e um adjetivo pode ter as mais diferentes conotações… (EXPLICATIVO) A palavra “sincera” vem do latim “sinceru” e quer dizer, entre outras coisas, “cordial” — que, por sua vez, vem da palavra latina “cors, cordis”, terceira declinação, que significa “coração”; cordial, por-tanto, a palavra “sincera” quer dizer, etimologicamente e na realidade, “do fundo do coração”…

1º PRISIONEIRO - Você sabe latim?

2º PRISIONEIRO - Claro. Fui seminarista. Estudei latim diariamente, por seis anos, até ser expulso do seminário. (CONTINUANDO) Além disso, o adjetivo “sincera” quer dizer também “afetuosa”, “com afeto”… Sente como ela soube escolher muitíssimo bem as palavras?… Vamos agora interpretar a “forma grá-fica”… Volte a observar a palavra “sincera”.

1º PRISIONEIRO - (OBSERVANDO, SEM CONCLUIR NADA) Que é que ela tem?

2º PRISIONEIRO - Observou bem? Veja como ela está escrita muito diferente das outras… (LÍRICO) Há nesta palavra uma certa delicadeza de traço, de textura, uma leveza, uma sutileza, uma harmonia de linhas que se entrecruzam e se combinam num todo harmônico, num toque personalíssimo de ternura, de carinho, de meiguice, de carinho, de amor… Impressionante! Nunca vi coisa igual! Como é que ela consegue colocar numa palavra, numa só palavra, numa única palavra, toda a sua sensibilidade de mulher?… (O.T.) Você tem razão: é uma mulher extraordinária!… (BREVE PAUSA) Companheiro, esta mulher te ama… E te ama muito!

1º PRISIONEIRO - (DEIXANDO-SE ENVOLVER) Você… Você acha que ela me ama mesmo?

2º PRISIONEIRO - Caramba! E você ainda duvida? Vou decifrar a mensagem cifrada do bilhete para você… (LENDO, REFLETINDO, “DECIFRANDO”) “Fez… sua… auto… Note bem: “autocrítica”, embora seja uma palavra só, vale duas… Portanto, o bilhete tem, ao todo, seis palavras… Quer dizer que… Exa-tamente!… Isso mesmo! Perfeito!… Decifrei!… Companheiro, este bilhete tem

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de ser lido assim: “Eu te amo muito. Beijos. Ana”. (PASSA O BILHETE AO OUTRO)

1º PRISIONEIRO - (FELIZ, “RELENDO” O BILHETE) “Eu te amo muito. Beijos. Ana.”… (COM UM QUÊ DE DÚVIDA, AINDA) Tem certeza?

2º PRISIONEIRO - (CONVICTO) Absoluta!… Durante a revolução, fui perito em decifrar mensagens em código dos contra-revolucionários.

1º PRISIONEIRO - (MARAVILHADO, “LENDO” MAIS UMA VEZ O BI-LHETE) “Eu te amo muito. Beijos. Ana.”… Sabe, eu… Eu acho que ela… ela estava grávida de mim…

2º PRISIONEIRO - Mas é claro! Claro! Não tem a menor dúvida!

1º PRISIONEIRO - Então por que ela não me disse?

2º PRISIONEIRO - Porque você não perguntou, ora essa… Se ela não contou, é porque ela esperava ansiosa pela sua pergunta — e você não perguntou… Imaginou só a frustração dela?… Ela é uma revolucionária, uma mulher inde-pendente, você mesmo disse… Não quis te fazer uma chantagem sentimental, percebe? Não quis se aproveitar do fato de estar grávida de você para te obrigar a tomar uma posição política.

1º PRISIONEIRO - Como é que não percebi?… Como é que?…

2º PRISIONEIRO - É porque vocês, burocratas, têm viseiras, não enxergam um palmo diante do nariz.

1º PRISIONEIRO - (RELENDO O BILHETE) “Eu te amo muito. Beijos. Ana.” (SORRIDENTE, FELIZ) A criança será… será que é menino ou menina?

2º PRISIONEIRO - Você sempre quis ter um filho ou uma filha?

1º PRISIONEIRO - Uma filha. Não sei por quê, mas eu preferia que fosse me-nina… Mas se for filho, tudo bem…

2º PRISIONEIRO - Pois você tem uma filha, pode ter certeza.

1º PRISIONEIRO - Como será o nome dela?

2º PRISIONEIRO - Ana… Aninha… O mesmo nome da mãe.

1º PRISIONEIRO - Ana… Aninha… Vai ser uma grande revolucionária, como a mãe!…

PAUSA. O 1º PRISIONEIRO ESTÁ RADIANTE DE FELICIDADE.

2º PRISIONEIRO - (COM UM QUÊ DE IRONIA) ) Você me chamou de “companheiro”...

1º PRISIONEIRO - Chamei, chamei sim... (SORRI. REFLETE SOBRE A PALAVRA) “Companheiro”… Companheiro, será que você poderia me fazer um pequeno favor, um favorzinho?

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2º PRISIONEIRO - Se eu puder…

1º PRISIONEIRO - Pergunte de novo.

2º PRISIONEIRO - Perguntar de novo o quê?

1º PRISIONEIRO - Pergunte: Você está com medo, companheiro? (BREVE PAUSA).

2º PRISIONEIRO - Você está com medo, companheiro?

1º PRISIONEIRO - (DOMINANDO O MEDO E “VENCENDO”) Você disse “medo”, companheiro?… Não, não estou com medo… Eles podem ter razão, talvez até tenham razão, mas não vão me roubar este momento!… Este é o meu momento!… Eu não estou com medo, com medo nenhum!… Não estou com medo porque… porque não tenho esse direito… porque nós, revolucionários, somos feitos de outra massa!… (NUM CRESCENDO) Nós somos superiores!… Infinitamente superiores!… Recuso-me morrer como um burguês, tremendo, cagando de medo nas calças… Morro como um revolucionário!… E um revolucionário não se pertence!… Tem de dar exemplo ao mundo!… (NO AUGE) Eu não estou com medo!… (ALTIVO, SERENO, MUITO CONSCIENTE DE SI PRÓPRIO) Eu não estou com medo porque... porque nós, revolucionários, costumamos morrer de vez em quando… É a nossa tradição… É a nossa tradição, companheiro…

LONGA PAUSA.

2º PRISIONEIRO - Você está ouvindo? (OUVE-SE, AINDA DISTANTE, BARULHO DE MULTIDÃO) Você está ouvindo, companheiro?

1º PRISIONEIRO - Ouvindo?… Ouvindo o quê?

2º PRISIONEIRO - Psiu! Ouça! Ouça! (O BARULHO DA MULTIDÃO AU-MENTA GRADATIVAMENTE) O povo… O povo… O povo, companheiro! Você está ouvindo o povo?

1º PRISIONEIRO - (ESTRANHANDO, SEM ENTENDER) Estou… Estou ouvindo o povo…

2º PRISIONEIRO - (SUA VIBRAÇÃO E ENVOLVIMENTO AUMENTAM EM SINTONIA COM O BARULHO DA MULTIDÃO QUE SE APROXIMA) O povo! O povo!… Ninguém pode com o povo!… Todo poder ao povo! (O BARULHO AUMENTA) O povo se libertou da burocracia e está nas ruas!… Ninguém pode com o povo!… Agora a burocracia vai cair!… Vai cair de podre!… As massas estão nas ruas!… A História venceu! É a Revolução Política, companheiro!… Vamos punir aqueles que roubaram a revolução do povo!… A o povo está vindo para cá! (O BARULHO DA MULTIDÃO AUMENTA AINDA MAIS) A multidão está se aproximando!… Vamos jogar a

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burocracia no lixo da História!… O povo está chegando! Vitória! Vitória! Vitória!... Vencemos! Vencemos! Vencemos!…

VOZES DE MULTIDÃO - (SOMENTE AGORA PERFEITAMENTE AU-DÍVEIS) Morte aos traidores! Morte aos traidores! Morte aos contra-revolucio-nários!… Fuzilamento! Fuzilamento! Fuzilamento!… Viva o comando revolu-cionário!… Sabotadores! Traidores! Terroristas! Etc.

PERPLEXIDADE DOS DOIS PRISIONEIROS. NÃO ENTENDEM O QUE ACONTECE LÁ FORA. AOS POUCOS, O BARULHO DA MULTIDÃO VAI CESSANDO. SILÊNCIO. SOM DE PASSOS FORA DE CENA. A CAPITÃ DA GUARDA PASSA A CHAVE NA FECHADURA, RETIRA AS TRANCAS DA PORTA E ENTRA.

CAPITÃ - Estava havendo uma manifestação espontânea do povo lá fora, em apoio às medidas do comando da revolução e às decisões da justiça revolucionária… Espero que compreendam: não podemos impedir que o nosso povo se expresse livre e espontaneamente. Mesmo assim, pedimos à multidão que se dispersasse.

2º PRISIONEIRO - (AO 1º PRISIONEIRO) Um dia, companheiro… Um dia, nosso povo vai realmente se expressar livre e espontaneamente… Um di

CAPITÃ - (POLIDA, FORMAL) Desculpem-me incomodar os senhores. (AO 1º PRISIONEIRO) Sinto muito, mas cumpro o dever de informar que está na hora. O senhor está pronto?

1º PRISIONEIRO - (APRUMA-SE) Eu estou pronto.

CAPITÃ - Muito bem. Vamos.

1º PRISIONEIRO - (AO 2º PRISIONEIRO) Obrigado por tudo, companheiro. … Você até que é um bom ator. (SIGNIFICATIVO) Um bom ator…

2º PRISIONEIRO - (SEM RESPONDER À OBSERVAÇÃO) Até um dia, companheiro.

1º PRISIONEIRO - Até um dia, companheiro. (BREVE PAUSA) Nós, revolu-cionários, nunca seremos derrotados… Nunca!

CAPITÃ - (AO 1º PRISIONEIRO) Desculpe insistir, senhor, mas está na hora.

1º PRISIONEIRO - Que horas são?

CAPITÃ - (CONSULTA SEU RELÓGIO) Sete horas em ponto.

1º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Então vai atrasar um pouco… Até chegarmos lá e… (NÃO DIZ A PALAVRA) leva algum tempo.

2º PRISIONEIRO - (SARCÁSTICO) A burocracia está atrasada… A burocra-cia se atrasa sempre. Sempre.

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1º PRISIONEIRO - (SAINDO, AO 2º PRISIONEIRO) Até!…

CAPITÃ - (AO 2º PRISIONEIRO) A justiça revolucionária também tomou a decisão final a seu respeito. Volto em seguida.

A CAPITÃ SAI, ESCOLTANDO O 1º PRISIONEIRO. PAUSA. EXPECTA-TIVA INTENSA. O 1º PRISIONEIRO, PRONTO PARA SER EXECUTADO, APARECE NUM PONTO DO PALCO, SOB FOCO DE LUZ.

1º PRISIONEIRO - (EMOCIONADO, MAS SEM MEDO) O fato de eu ter adotado, inconscientemente é justo frisar, uma atitude criminosa, não significa que eu não ame o meu país, a minha querida pátria… Reconheço que hoje está surgindo uma geração nova, o homem novo, educado pelos sagrados princípios da nossa revolução… Surgem também os primeiros e profundos resultados da grande obra revolucionária… Esta minha fé no homem novo, no futuro de meu país e da humanidade me dão um conforto, uma firmeza e uma força que nenhuma religião poderia me dar… (BREVE PAUSA) É por tudo isso que deixar minha pátria neste instante me é infinitamente doloroso… o que não significa que eu negue a justa e correta sentença de eliminação física a que fui condenado… (BREVE PAUSA) Neste momento final de minha vida, vejo o horizonte… Não o meu horizonte, mas o horizonte de minha pátria… (VISIONÁRIO, NUMA ÚLTIMA, PROFUNDA E OTIMISTA REFLEXÃO) O horizonte de minha pátria é infinito… e belo!

A LUZ EM FOCO SOBRE O 1º PRISIONEIRO DESAPARECE. VOLTA A LUZ GERAL.O 2º PRISIONEIRO AGORA ESTÁ SÓ EM CENA. REFLETE . A TENSÃO AUMENTA AINDA MAIS. OUVE-SE, A CERTA DISTÂNCIA, DESCARGA DE FUZILAMENTO. PAUSA.

2º PRISIONEIRO - Nós, revolucionários, costumamos morrer de vez em quando… É a tradição, companheiro… É a nossa tradição… (QUEDA-SE, RE-FLETINDO. DECLAMA, NUM TOM PATÉTICO, TRECHO DE “PROME-TEU”). “É preciso que pagues aos deuses com a tua vida, companheiro, por este grave crime de amar a humanidade.” (CITA AUTOR E OBRA, DESTA VEZ NUM TOM AMARGO,TRISTE) “Prometeu Acorrentado”, Ésquilo, adaptado naturalmente aos nossos duros tempos e circunstâncias…

PAUSA. BARULHO NO CORREDOR. ENTRA A CAPITÃ.

CAPITÃ - (FORMAL. TRAZ UM PAPEL DOBRADO DENTRO DE UM ENVELOPE, QUE ABRE E LÊ. NOTA-SE EM SEU SEMBLANTE UM AR DE PROFUNDA INDIGNAÇÃO E DECEPÇÃO. LÊ, IRRITADA) A Suprema Corte Revolucionária, tendo julgado, de corpo ausente, o réu como incurso nos Artigo 58, parágrafos 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 10º, 11º e 13º do Código Criminal Revolucionário, sob as acusações de

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1ª Desenvolvimento de atividades ilegais, clandestinas e contra-revolucioná-rias;

2ª Tentativa de organização de insurreição armada e tomada de poder pela força, visando desmembrar parte do nosso território e violar tratados con-cluídos entre o governo revolucionário e estados estrangeiros;

3ª Manutenção de relações clandestinas e ilegais, com objetivos contra-revolu-cionários, com representantes de estados estrangeiros;

4ª Tentativa de…

2º PRISIONEIRO - (CORTA) Chega! Vamos ao que interessa!

CAPITÃ - (AINDA MAIS IRRITADA) ... considera, por unanimidade, o réu culpado de todos esses crimes, sem direito à apelação, e condena o mesmo réu à cassação de seus direitos políticos, à perda de sua cidadania, ao confisco de seus bens pessoais e ao banimento perpétuo”.

BREVE PAUSA.

2º PRISIONEIRO - (SORRI, TRISTE. DEPOIS, DIZ, IRÔNICO) Eu presumia isso…

CAPITÃ - Em cumprimento à decisão da justiça revolucionária, o ex-cidadão será levado à fronteira e de lá banido para o país que quiser lhe conceder asilo político… Nossa diplomacia já está tratando desse assunto. (SARCÁSTICA, COM ÓDIO CONTIDO) Vai para o estrangeiro, ex-cidadão, de onde nunca de-veria ter voltado.

2º PRISIONEIRO - Eu presumia isso…

CAPITÃ - Estou autorizada a dizer extra-oficialmente que, caso o ex-cidadão prossiga cometendo crimes contra a nossa revolução e o nosso país, o longo braço da justiça revolucionária irá alcançá-lo em qualquer parte do mundo. Portanto, ex-cidadão, daqui para a frente, sua vida vai depender única e exclusivamente dos interesses da revolução.

2º PRISIONEIRO - (IRÔNICO) Eu presumia isso também…

CAPITÃ - A justiça revolucionária, em comum acordo com o governo revo-lucionário, considerou que, no atual momento histórico, a sua “eliminação fí-sica” seria um grave e imperdoável erro político.

2º PRISIONEIRO - Em outras palavras, no momento valho mais para a buro-cracia vivo do que morto… Morto, viro lenda, mito… Vivo, sou apenas um ini-migo a mais…

CAPITÃ - Exatamente. (IRÔNICA) O governo revolucionário quer aproveitar esta oportunidade que as circunstâncias históricas lhe oferecem para mostrar ao mundo o tratamento humanitário que seus membros concedem a seu ex-

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companheiro, hoje um reles oportunista, contra-revolucionário e renegado. (APANHA A SERRINHA QUE O 2º PRISIONEIRO HAVIA DEIXADO EM LUGAR VISÍVEL, OBSERVA-A COM ATENÇÃO) O ex-cidadão pretendia fugir daqui usando isso? Ridículo! (RI DISCRETAMENTE) O guarda que te passou esta serrinha foi denunciado por seu colega e fuzilado em cumprimento a uma “medida disciplinar administrativa”. (VAI ATÉ AS GRADES E OBSERVA A QUE FOI PARCIALMENTE SERRADA) Nós sabíamos disso o tempo todo… O ex-cidadão sabia disso?

2º PRISIONEIRO - (SARCÁSTICO, TIRANDO A SERRINHA DAS MÃOS DA CAPITÃ) E vocês, burocratas, sabiam que eu sabia que vocês, burocratas sabiam?

CAPITÃ - (APANHADA DE SURPRESA) Então… Então por que o ex-ci-dadão estava…

2º PRISIONEIRO - (CORTA) Antes da revolução, numa prisão criei baratas; noutra, treinei ratos; noutra… (NÃO COMPLETA) Vocês, burocratas, não têm baratas nem ratos aqui. Logo…

O 2º PRISIONEIRO SORRI, ENCARANDO A CAPITÃ EM DESAFIO.

CAPITÃ - (IRRITADA) Bem, estamos perdendo tempo… Um carro lá fora está à sua espera… O ex-cidadão será conduzido à fronteira e depois… (GESTO) Agora, pode sair. O ex-cidadão segue pelo corredor que os guardas já foram instruídos a abrir os portões… E vai sozinho até o carro… Recuso-me a acompanhar o senhor, ex-cidadão… Por favor, não se demore. Com licença.

A CAPITÃ SAI, DEIXANDO A PORTA ABERTA. PAUSA.

2º PRISIONEIRO - (REFLETE SOBRE O QUE ACONTECEU E SOBRE SEU PRÓPRIO FUTURO, CITANDO “PROMETEU ACORRENTADO”) “Ai de mim! Ai de mim! A mim, os fados não consentem a morte porque ela será a minha libertação… Afinal, quando chegarão ao fim os meus tormentos?… Serão eternos?”... (BREVE PAUSA) É preciso suportar tão bem quanto possível a fúria do destino…” (ENCERRA, IRÔNICO, COM O BORDÃO DE SEMPRE) “Prometeu Acorrentado”, Ésquilo, naturalmente adaptado aos nossos duros tempos e circunstâncias. (POR INSTANTES, VOLTA-LHE À MENTE A ÚLTIMA FRASE DA CITAÇÃO DE “PROMETEU ACORRENTADO” E ELE MEDITA SOBRE ELA) É preciso suportar tão bem quanto possível a fúria do destino… Haverá destino?… Não importa. Temos também de lutar contra a fúria do destino… (BREVE PAUSA. O. T.) Para que país desta vez?… Para qualquer parte do mundo, sem passaporte… Seja lá onde for, a gente começa tudo de novo e, com a experiência que temos, não vamos repetir os mesmos erros… (OLHA EM TORNO, PELA CELA. REFLETE.) Acho que, desta vez, aprendemos a lição… (MUITO ANIMADO) Quem não erra não faz nada. Apesar de tudo, valeu a pena… Claro que valeu! (APRONTA-SE, RÁPIDO,

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PARA SAIR) A luta continua! (REFLETE POR UM INSTANTE E DIZ MUITO CONTIDO, MAS COM PROFUNDA CONVICÇÃO) Continua sempre! Sempre! (APANHA A SERRINHA, ESCONDE-A NA ROUPA E SAI EM DIREÇÃO AO PÚBLICO, DIZENDO A SI MESMO, À MEIA VOZ) A luta continua... A luta continua... Sempre... Sempre... Sempre...

O 2º PRISIONEIRO SAI PELA PORTA DOS FUNDOS DO TEATRO, DEIXANDO-A ABERTA. AINDA SE OUVE: “Sempre... Sempre... Sempre...” O SOM DA SERRINHA AUMENTA, ABAFANDO SUA VOZ E PERMANECENDO POR INSTANTES EM INTENSIDADE MÁXIMA. DEPOIS, DIMINUI LENTAMENTE ATÉ DESAPARECER. BLACK-OUT. OUVE-SE A MÚSICA “INTERNACIONAL”, ORQUESTRADA E CANTADA, QUE SERÁ TOCADA ATÉ O SEU FINAL.

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