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A REVOLUÇÃO RUSSA VISTA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA E COMPARADA Modesto Florenzano Novembro de 2007 Nesta exposição procurarei, com o olhar e a perspectiva do historiador de história moderna, que é a minha, comparar a Revolução russa com a francesa de 1789 e a inglesa de 1640. Não há necessidade de lembrar aqui que a Revolução russa já foi, e continua sendo, comparada a outras Revoluções, quer a ela anteriores no tempo, como, por exemplo, a norte-americana de 1776, quer a ela posteriores, como a chinesa de 1949. De minha parte, entre as muitas razões que poderia oferecer aqui para justificar o porquê de fazer a comparação com as Revoluções francesa e inglesa, e apenas com elas, mencionarei duas, uma razão de ordem histórica e outra historiográfica. Em termos de história, é impossível compreender bem, ou a fundo, a Revolução russa, fazendo-se abstração da francesa de 1789, bem como compreender esta última, fazendo-se abstração da Revolução inglesa de 1640. A presença da Revolução francesa e de seus desdobramentos nas mentes dos revolucionários russos é um fato bastante conhecido para ser enfatizado aqui. Basta observar que no caso dos dois maiores protagonistas de Outubro de 1917, Lênin e Trostky, foi o profundo conhecimento que ambos tiveram da Revolução francesa que permitiu a ambos elaborarem suas respectivas teorias revolucionárias. O historiador Eric Hobsbawm, em livro que trata da historiografia da Revolução Francesa, Ecos da Marselhesa..., assinala que “a luta da década de 1920 na União Soviética foi conduzida com acusações mútuas tiradas da Revolução francesa”, e cita a frase de um comunista francês que, tendo convivido em Moscou com revolucionários russos, ao voltar para a França, em 1920, declarou maravilhado: “Eles conhecem a Revolução francesa melhor do que nós!” Embora, sem dúvida, a presença da Revolução inglesa nas mentes dos revolucionários franceses de 1789, não foi tão generalizada e forte quanto a que acabamos de examinar, também não foi de pouca importância para não merecer ser lembrada aqui. Vejamos três exemplos: Mirabeau, que participara da tradução para o francês de uma história da Inglaterra, publicada em 1791 (Histoire d’Angleterre depuis l’avènement de Jacques I jusqu’à la Révolution... et enrichie de notes. Par Mirabeau), exprimiu, segundo

A Revolução Russa Vista Em Perspectiva Histórica e Comparada

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  • A REVOLUO RUSSA VISTA EM PERSPECTIVA HISTRICA E COMPARADA

    Modesto Florenzano

    Novembro de 2007

    Nesta exposio procurarei, com o olhar e a perspectiva do historiador de histria moderna,

    que a minha, comparar a Revoluo russa com a francesa de 1789 e a inglesa de 1640.

    No h necessidade de lembrar aqui que a Revoluo russa j foi, e continua sendo,

    comparada a outras Revolues, quer a ela anteriores no tempo, como, por exemplo, a

    norte-americana de 1776, quer a ela posteriores, como a chinesa de 1949. De minha parte,

    entre as muitas razes que poderia oferecer aqui para justificar o porqu de fazer a

    comparao com as Revolues francesa e inglesa, e apenas com elas, mencionarei duas,

    uma razo de ordem histrica e outra historiogrfica.

    Em termos de histria, impossvel compreender bem, ou a fundo, a Revoluo

    russa, fazendo-se abstrao da francesa de 1789, bem como compreender esta ltima,

    fazendo-se abstrao da Revoluo inglesa de 1640. A presena da Revoluo francesa e de

    seus desdobramentos nas mentes dos revolucionrios russos um fato bastante conhecido

    para ser enfatizado aqui. Basta observar que no caso dos dois maiores protagonistas de

    Outubro de 1917, Lnin e Trostky, foi o profundo conhecimento que ambos tiveram da

    Revoluo francesa que permitiu a ambos elaborarem suas respectivas teorias

    revolucionrias.

    O historiador Eric Hobsbawm, em livro que trata da historiografia da Revoluo

    Francesa, Ecos da Marselhesa..., assinala que a luta da dcada de 1920 na Unio Sovitica

    foi conduzida com acusaes mtuas tiradas da Revoluo francesa, e cita a frase de um

    comunista francs que, tendo convivido em Moscou com revolucionrios russos, ao voltar

    para a Frana, em 1920, declarou maravilhado: Eles conhecem a Revoluo francesa

    melhor do que ns!

    Embora, sem dvida, a presena da Revoluo inglesa nas mentes dos

    revolucionrios franceses de 1789, no foi to generalizada e forte quanto a que acabamos

    de examinar, tambm no foi de pouca importncia para no merecer ser lembrada aqui.

    Vejamos trs exemplos: Mirabeau, que participara da traduo para o francs de uma

    histria da Inglaterra, publicada em 1791 (Histoire dAngleterre depuis lavnement de

    Jacques I jusqu la Rvolution... et enrichie de notes. Par Mirabeau), exprimiu, segundo

  • um testemunho, sua vontade de instruir e influenciar a revoluo que se abria pela

    narrativa da precedente; nas memrias que Brissot, um dos lderes girondinos, escreveu

    antes de ir para a guilhotina em 1793, l-se: Esta idia de revoluo... passava com

    freqncia pela minha cabea... A histria de Carlos I e de Cromwell havia-me

    particularmente impressionado... No me parecia impossvel renovar esta revoluo;

    Napoleo, por sua vez, teria segredado a um intimo em 1797: No quero desempenhar o

    papel do general Monck (Citaes extradas do artigo de Olivier Lutaud Emprunts de la

    Rvolution Franaise a la premire Rvolution Anglaise, in Revue dHistoire Moderne et

    Contemporaine, dezembro de 1990).

    Ainda sobre a presena da Revoluo inglesa na francesa, e permanecendo

    simultaneamente nestes dois planos, o da histria e o da historiografia, considere-se a figura

    do historiador e poltico francs, Franois Guizot (1787-1874). Durante a Restaurao na

    Frana, mais precisamente na dcada de 1820, Guizot ao mesmo tempo em que proferia

    aulas no College de France, s quais muitos ouvintes assistiam, como o ento jovem

    Tocqueville, no se descuidava de preparar e apressar o fim da Restaurao, to grande era

    a sua convico de que isto estava, inevitavelmente, para acontecer. No foi, portanto, um

    mero acaso o fato de ter sido ele, Guizot, o primeiro a interpretar os acontecimentos

    polticos ocorridos na Inglaterra em meados do sculo XVII como uma Revoluo, numa

    publicao de 1826, precisamente intitulada Histria da Revoluo Inglesa de 1640.

    Guizot, estava absolutamente convencido que, assim como a Revoluo inglesa

    chegara ao fim com a Revoluo Gloriosa de 1688/9 o mesmo iria, mais cedo ou mais

    tarde, acontecer com a Frana. No tinham as duas Revolues, a inglesa de 1640 e a

    francesa de 1789, guardadas as devidas diferenas, passado pelas mesmas seqncias e

    fases? Com efeito, em ambas, uma vez derrubado o absolutismo (precipitado por um

    colapso financeiro dos respectivos Estados), abrira-se um perodo instvel de monarquia

    constitucional, no qual a iniciativa do poder passara ao Parlamento, mas por causa da

    irredutibilidade do conflito entre a Corte e o Parlamento, e suas respectivas foras sociais e

    poltico-militares de sustentao, o conflito desaguara em guerra civil e civil-internacional,

    com o que se chegara instalao de um regime revolucionrio e republicano, a uma luta

    de vida e morte entre revolucionrios moderados e radicais, seguindo-se a esta luta uma

    ditadura pessoal e uma reao no interior da revoluo vitoriosa; reao que na Frana,

  • conhecida como Termidor, aconteceu antes e no simultaneamente com a ditadura pessoal

    de Napoleo Bonaparte, como foi o caso com Oliver Cromwell na Inglaterra.

    Tendo em mente as trajetrias, ou parbolas, percorridas pelas Revolues inglesa e

    francesa, isto , derrubada do absolutismo, monarquia parlamentar, guerra civil, republica,

    reao termidoriana, ditadura pessoal, restaurao, superao da restaurao e

    encerramento da Revoluo no deixa de ser impressionante constatar que tambm na

    Revoluo russa, observam-se, mutatis mutandis, uma dinmica e uma seqncia

    revolucionrias de alguma maneira semelhantes quelas duas Revolues. Com efeito, no

    temos tambm no caso da Revoluo russa, uma vez derrubada a monarquia absolutista, um

    regime constitucional, embora muito breve e sob forma republicana, depois um regime

    revolucionrio-radical com guerra civil, sobrevindo a seguir, a reao termidoriana, a

    ditadura pessoal, esta de durao longa e depois da morte de Stalin, de carter colegiada, e,

    agora, isto , desde 1991, uma surpreendente e imprevista restaurao. Diga-se de

    passagem, na Revoluo francesa, Robespierre e Napoleo dividiram no tempo os papis

    que, na Revoluo inglesa, Cromwell desempenhou sozinho e simultaneamente, enquanto

    na Revoluo Russa, Stalin representou, de acordo com o historiador Isaac Deuscher,

    aqueles trs personagens, tendo desempenhado, sucessivamente os trs papis, o de

    Cromwell, Robespierre e Napoleo.

    A estas alturas j deve estar claro que estou tentando explorar menos as diferenas e

    mais as semelhanas entre as trs Revolues. Registremos, entre as muitas diferenas, em

    termos sociais, uma participao quase insignificante do campesinato na Revoluo

    Inglesa, ao contrrio de sua participao decisiva nas duas subseqentes; a presena

    fundamental da classe operria na Revoluo russa, mas inexistente nas outra duas pelo

    simples fato de no existir ainda o sistema fabril, o que no significa que o mundo do

    trabalho artesanal no tenha desempenhado um papel importante, sobretudo na Revoluo

    francesa, com os sans-culottes. Registremos, em contrapartida, entre as semelhanas, que,

    embora com intensidades diferentes, nas trs Revolues, entre as fileiras da classe

    dominante, a nobreza, sobretudo da franja mais alta, a aristocracia, havia ou um sentimento

    muito difuso de culpa, ou uma baixa auto-estima, ou, ainda, uma desconfiana com relao

    ao poder monrquico e deste ltimo para com a aristocracia; bem como havia, com relao

    ao Estado, esse fenomeno conhecido como alienao ou desero dos intelectuais.

  • Continuando, pois, com a comparao, com nfase na semelhana, lembremos que

    as historiografias das trs Revolues tm em comum o fato de estarem irremediavelmente

    marcadas pela diviso entre interpretaes a favor e interpretaes contrrias ao fenomeno

    revolucionrio. O que demonstra a impossibilidade de se produzir por muito tempo ainda,

    considerando que a Revoluo inglesa j tem trs sculos e meio de existncia,

    interpretaes que sejam neutras com relao ao seu objeto. Como lembrou o professor J.

    Dunn na Introduo de seu livro sobre Revolues no mundo contemporneo, Revoluo

    no um tema banal e revolues so acontecimentos especificamente no banais.

    Vejamos, nesse sentido, trs consideraes de historiadores, com posies ideolgicas

    distintas, a respeito de cada uma das trs Revolues.

    O historiador liberal-conservador Franois Furet, em livro de 1986, assim

    caracterizou a historiografia da Revoluo francesa: [seu] desenvolvimento comparvel

    ao desenvolvimento da prpria Revoluo: atravessada de contradies e de batalhas

    espetaculares, como se o carter teatral do evento tivesse sido legado a seus historiadores,

    nica parte no dividida de uma herana conflituosa. Por sua vez, o historiador liberal-

    progressista Lawrence Stone, em livro de 1972, tratando da historiografia da Revoluo

    inglesa escreveu: Pode-se afirmar com segurana que nenhuma controvrsia histrica nos

    ltimos cinqenta anos atraiu tanta ateno... [e] o terreno do desacordo parecia ser o mais

    abrangente possvel: desacordo sobre a definio dos termos usados para explicar os

    fenmenos em questo; desacordo sobre o que aconteceu; desacordo sobre o modo como

    aconteceu; desacordo sobre as conseqncias do que aconteceu. Uma tal ausncia de

    terreno comum verdadeiramente rara e sua manifestao pareceu colocar em dvida o

    direito do historiador de ser visto como um pesquisador emprico que fundamenta sua

    investigao sobre a razo e a prova. Por ltimo, mas primeiro no tempo, o historiador

    marxista Isaac Deutscher, em artigo de 1944, intitulado Reflexes sobre a Revoluo

    Russa, afirmava, Nenhum evento na histria da humanidade levanta tantas controvrsias

    violentas quanto as revolues... A controvrsia em torno de cada revoluo advm do fato

    evidente de que uma revoluo destri interesses estabelecidos, ideais, tradies e hbitos,

    empreendendo sua substituio por um modo de vida totalmente novo. S isso j bastaria

    para liberar todas as paixes e frias do corao e da mente humanas... O que mantm a

  • controvrsia viva, alimentando-a durante vrias dcadas, so a complexidade do fenmeno

    e seu carter multifacetado.

    Acrescente-se a isso que, como bem lembrou o historiador Christopher Hill, em O

    Mundo de Ponta-Cabea, A histria precisa ser reescrita a cada gerao, porque embora o

    passado no mude, o presente se modifica; cada gerao formula novas perguntas ao

    passado e encontra novas reas de simpatia medida que revive distintos aspectos das

    experincias de suas predecessoras e eis explicadas, tanto as polmicas que opem os

    historiadores das trs Revolues, quanto as incessantes re-interpretaes sobre elas.

    Voltemos, uma ltima vez, Guizot, e Frana da Restaurao, antes de falar um

    pouco sobre a atual Restaurao na Rssia. Quando, com as jornadas de julho de 1830, a

    monarquia restaurada dos Bourbons, foi derrubada e substituda pela nova dinastia de

    Orleans, praticamente todos os liberais franceses, seguindo Guizot, viram na Revoluo de

    julho de 1830 o exato equivalente, francs, da Gloriosa Revoluo, inglesa, de 1688/9.

    Tambm o jovem Tocqueville fez essa mesma leitura dos acontecimentos, por isso, mesmo

    contrariando o seu crculo familiar e de amigos, que permaneceram todos legitimistas, jurou

    fidelidade ao novo regime, convencido que estava de sua inevitabilidade histrica. Da

    porque, no segundo volume de A Democracia na Amrica, publicado em 1840, deu ao

    captulo XXI, o seguinte ttulo: Por que as Grandes Revolues se tornaro raras. O que

    prova que tambm Tocqueville chegou a compartilhar da interpretao formulada por

    Guizot segundo a qual o que aconteceu na Frana em 1830 representava o fim da histria.

    Mas, cerca de cinco anos depois, Tocqueville, diferentemente dos demais liberais, deu-se

    conta de que, como dir nas Lembranas sobre as jornadas revolucionrias de 1848, havia

    tomado o fim de um ato, isto , 1830, pelo fim da pea, isto , o encerramento do ciclo

    revolucionrio. Da seu clebre discurso s vsperas da Revoluo de 1848, anunciando sua

    chegada, e da sua aguda compreenso do acontecimento, ao contrrio da perplexidade de

    Guizot, e de tantos outros liberais, diante desta Revoluo, que, por no ter lugar no seu

    horizonte de expectativa da histria, foram incapazes de explicar.

    Como se v, a comparao entre os acontecimentos histricos irresistvel, e

    incontornvel, seja ao poltico, seja ao historiador, mas ela no deixa, contudo, de ser

    perigosa, pois tanto pode iluminar quanto obscurecer a compreenso do presente, como

    bem parece ter percebido Tocqueville, que, se em a Democracia na Amrica, constata que

  • quando o passado no ilumina mais o futuro o esprito marcha nas trevas, nas

    Lembranas, observa que em poltica se morre, com freqncia, devido ao excesso de

    memria. Como quer que seja, a partir da Revoluo francesa de 1789, a revoluo como

    possibilidade entrou na ordem do dia, e se, direita do espectro poltico, os conservadores

    passaram a teme-la e a exorciz-la, esquerda, liberal-democratas e socialistas, de todos os

    matizes, passaram a esper-la e at mesmo prepara-la.

    Tambm para lanar luz sobre a criao desse horizonte de expectativa da histria,

    aberto pela Revoluo francesa, e sobre o aparecimento do revolucionrio profissional, essa

    nova figura social, Tocqueville um testemunho precioso. Em O Antigo Regime e a

    Revoluo, assim lamenta o seu surgimento: uma raa que se perpetuou e se expandiu em

    todas as partes civilizadas da terra e que por toda parte preservou a mesma fisionomia, as

    mesmas paixes, o mesmo carter. Encontramos esta raa no mundo quando nascemos e

    ainda est sob nossos olhos.

    Na Revoluo russa, como se sabe, no s havia muitos revolucionrios

    profissionais e de todos os matizes, como havia mais de um partido organizado com esse

    fim, como foi o caso mais notvel de Lnin e do partido bolchevique. Em 23 de outubro de

    1917, o comit central do partido se reuniu para discutir o plano de insurreio apresentado

    por Lnin, que, de acordo com a descrio desse acontecimento, feita pelo historiador

    marxista Isaac Deutscher (no captulo sobre a Revoluo russa, para a New Cambridge

    Modern History) disse: Perdeu-se muito tempo... a questo muito aguda e o momento

    decisivo est prximo... temos agora o apoio da maioria. A situao poltica est agora

    perfeitamente madura para a passagem do poder. E Deutscher prossegue: Dois membros

    do comit central, Zinoviev e Kamenev, discpulos e amigos de Lnin, se opuseram

    insurreio. No dia seguinte reunio, eles declararam: Diante da histria, diante do

    proletariado internacional, diante da revoluo russa e da classe operria da Rssia, no

    temos o direito de jogar todo o futuro na carta da insurreio armada.

    Na Revoluo francesa, a jornada de 10 de agosto de 1792, que levou queda da

    monarquia e proclamao da Repblica, foi preparada de antemo por uma organizao

    revolucionria, criada dois meses antes, a Comuna Insurrecional de Paris. O fim da

    monarquia teria merecido o seguinte comentrio de Cambon, membro da Conveno

    Nacional, cortamos todas as pontes que nos ligavam ao passado. Esse era o desfecho

  • lgico de uma Revoluo cuja ideologia estava voltada para o futuro e cuja Declarao dos

    Direitos do Homem como disse Mirabeau aplicvel a todos os tempos, todos os lugares e

    todos os climas.

    Na Revoluo inglesa, ao contrrio, pelo fato de praticamente todos os seus

    revolucionrios, fossem moderados, fossem radicais, terem seus olhos postos no passado,

    numa suposta idade de ouro, no pde se desenvolver essa conscincia de rompimento com

    o passado. Mas, o fato de a ideologia que alimentou a Revoluo inglesa estar voltada para

    o passado no significa que foi menos revolucionria que a Francesa e a Russa, quer com

    relao ao questionamento da ordem existente, quer com relao sua destruio, como

    demonstraram de perspectivas diferentes dois livros luminosos, ambos publicados em 1972,

    As Causas da Revoluo Inglesa, de Lawrence Stone, e o j mencionado O Mundo de

    Ponta-Cabea, de Christopher Hill. Mas significa que, por estar voltada para o passado, a

    Revoluo Inglesa no pde ser tomada ou adaptada como exemplo para outros pases,

    pois, como observou, com muita perspiccia o historiador E. Hallet Carr, no belssimo

    ensaio, O lugar da Revoluo russa na histria escrito em 1967, por ocasio do

    cinqentenrio, diferentemente do que ocorre com o futuro, que pode ser compartilhado por

    todos, portanto, universalizado, o passado no pode, transcender o particular que o

    vivenciou.

    Vistas nesta perspectiva, isto , luz da autoconscincia que os sujeitos tem dos

    seus prprios atos polticos, as trs Revolues nos oferecem um estranho paradoxo, pois,

    se na primeira, na Revoluo inglesa, os protagonistas sequer parecem saber que esto

    fazendo uma Revoluo, e na ltima, na Revoluo russa, parecem saber exatamente o que

    esto fazendo, e podendo-se sustentar que os revolucionrios franceses de 1789, exibem um

    nvel de conscincia intermedirio s outras duas, eis que possvel duvidar que, em termos

    de controle sobre os acontecimentos e de resultados, esse contraste no nvel de conscincia

    dos atores tenha produzido graus de irracionalidade decrescentes entre elas.

    Deutscher, no texto j mencionado, cita a seguinte observao de Engels: Aqueles

    que se vangloriam de ter feito uma revoluo terminam sempre por descobrir no dia

    seguinte que no sabiam o que faziam e que a sua revoluo no se assemelha em nada

    quela que pretendiam fazer. E, acrescenta Deutscher, essa observao motivada pela

    experincia da Revoluo francesa, estava destinada a encontrar uma confirmao quase

  • que pontual nas vicissitudes da Revoluo russa e a se refletir nos atos, nas idias e nas

    iluses dos seus protagonistas.

    As iluses dos protagonistas, e o grau de irracionalidade, presentes em todas as

    revolues burguesas, se manifestaram na Revoluo russa como que em dose dupla, dado

    o fato dela ter sido ao mesmo tempo a ltima revoluo burguesa e a primeira proletria.

    Mais precisamente, no podendo ser nem efetivamente burguesa, nem efetivamente

    socialista, no pde evitar a degenerao, inevitvel; a residindo seu carter trgico e seus

    aspectos monstruosos.

    Tratemos agora, para encerrar, da Restaurao russa. Trs exemplos, retirados da

    Rssia atual, e recentemente veiculados na nossa imprensa, so suficientes para demonstrar

    a plena Restaurao em que vive o pas. Primeiro exemplo: uma associao, ou ONG,

    russa, intitulada Comit das mes dos Soldados, tentou sem sucesso em 2003 fundar o

    Partido nico das mes dos Soldados, que mereceu o seguinte comentrio de um

    jornalista russo: Finalmente um partido sobre o qual no preciso explicar nada a

    ningum. Isto porque a associao e sua tentativa de se transformar em partido, nasceram

    da indignao com a prtica da tortura generalizada a que so submetidos todos os recrutas

    que ingressam no Exrcito Russo e cujo servio teoricamente obrigatrio. No foram

    poucos os recrutas que sofreram danos irreversveis com as torturas, e que por causa disso

    se suicidaram. Segundo exemplo: nas escolas pblicas, cresce a cada dia o nmero de

    voluntrios que do aulas de religio, sob a alegao de que no se pode alcanar a

    verdadeira identidade russa sem conhecer o cristianismo ortodoxo. E o terceiro, j h

    analistas fora da Rssia que comeam a ver o governo Putin como neofascista, fazendo

    lembrar a Alemanha entre guerras. Ora, o que tudo isso indica seno o fato que, no

    executivo, na igreja e no exrcito, os trs pilares do Antigo Regime esto de volta? No se

    assiste, com efeito, ao espetculo de um presidente que acumula mais poder e to

    permanente quanto um czar, de uma Igreja que volta a doutrinar os russos num cristianismo

    retrgrado e obscurantista, e de um exrcito cujo barbarismo o mesmo da poca de

    Tolstoi (que conta o seguinte episdio para ilustra-lo; um oficial vendo um sargento

    espancar impiedosamente um soldado grita-lhe o senhor no leu a Bblia, e o sargento sem

    parar de espancar o soldado responde-lhe e o senhor no leu o regulamento)?

  • Neste momento, em que a Revoluo de 1917 cumpre seu nonagsimo ano, li mais

    de um artigo recente, tanto de especialistas em particular, quanto de jornalistas em geral em

    que se afirma com convico, direita, que a Revoluo de Outubro morreu, e, esquerda,

    que continua viva. Como vimos, isso inevitvel. Mas tambm absolutamente intil, pelo

    menos em termos de interpretao, de historiografia, pois tais escritos, no sendo crticos,

    em nada contribuem para o conhecimento histrico. Sendo crtica, uma interpretao, que,

    como tambm vimos, no pode deixar de se a favor ou contra Outubro de 1917, poder,

    contudo, e desde que tenha rigor, qualidade e imaginao, ser til e emitir luz capaz de

    provocar nossa imaginao e reflexo.

    Como ocorre, para dar um ltimo exemplo, com a interpretao oferecida por Isaac

    Deuscher em a Revoluo Inacabada, seu ltimo livro, publicado em 1967, ano do

    cinqentenrio da Revoluo russa e, tambm, lamentavelmente, de sua morte. Embora no

    livro l-se que a Revoluo russa de maneira nenhuma j chegou a seu termo final e que

    ela sobreviveu a todos os possveis agentes de restaurao, o que visto de hoje,

    evidenciaria que a interpretao est irremediavelmente datada e superada; tambm se l

    que O regresso dos Bourbons e dos Stuarts ensinou ao povo muito mais e melhor do que

    os puritanos, jacobinos ou bonapartistas o fizeram, que no existe caminho de volta ao

    passado; que o trabalho bsico de uma revoluo irreversvel e deve ser salvaguardado

    para o futuro. Sem querer, a restaurao reabilita, assim, a revoluo ou, pelo menos, as

    suas realizaes essenciais e racionais.

    S o futuro dir se isso poder ou no acontecer tambm com a Restaurao russa.