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A sanha do capital para se apropriar do nosso petróleo

ERA 1º DE ABRIL de 1964, em Ter-ras Brasilis. O que sobreveio não foi mentira, como a data poderia suge-rir. O golpe civil-militar, amplamen-te planejando e articulado com o im-perialismo norte-americano, tor-nou-se uma realidade desastrosa por longos 21 anos. Já se vai meio sécu-lo a contar do seu início. De coisas horríveis, indizíveis e irreparáveis, de crueldade e embuste se consti-tuiu esse período da história nacio-nal que alguns saudosistas equivo-cadamente proclamam como revolu-ção. Mentira plena!

Por força das circunstâncias, João Goulart comandava o país. Preten-dia instaurar reformas de base (ban-cária, fiscal, urbana, eleitoral, agrá-ria, educacional e outras), anuncia-das em comício na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964. Sua po-lítica reformista, embora longe esti-vesse de se configurar em ‘comunis-mo’, foi suficiente para que fosse ex-purgado pela direita. A grande im-prensa, organizações da sociedade civil, empresários, políticos influen-tes e a própria CNBB apoiaram o re-gime de exceção para evitar o avanço do comunismo, visto e pintado co-mo único voraz inimigo do povo e do Estado.

Ao procurar combater todas as possíveis expressões do comunismo, os militares escancararam as por-tas ao capitalismo internacional que, advindo do Norte (Estados Unidos) cavalgou livremente em terras bra-sileiras. E em sua descida para o Sul global fez vítimas outros países des-sa imensa América. O capitalismo aqui se agigantou, traduzindo-se em projetos de crescimento a qualquer custo e arrasando a nossa economia. O Brasil se atolou na dívida externa, passando de cerca de 3 bilhões de dólares em 1964 para quase 100 bi-lhões de dólares no final da ditadu-ra militar. Foi nesse contexto que o economista brasileiro Celso Furtado escreveu O mito do desenvolvimen-to econômico (1974), mostrando que o desenvolvimento não passava de uma versão maléfica de crescimento econômico limitado às elites, o que levava a população a grandes sacrifí-cios e a uma profunda carestia.

As consequências da ditadura mi-litar no Brasil são indescritíveis. Elas

poderiam ser classificadas em dois grandes grupos, embora evidente-mente estejam inter-relacionadas. Um conjunto de heranças violentas, de censura, perseguições civis e po-líticas, tortura, exílio, dor e mortes praticadas contra pessoas, famílias, grupos e organizações. Mas houve outro conjunto de consequências di-retamente vinculadas ao plano de desenvolvimento nacional concebi-do pelos donos do poder ditatorial. Plano que pretendia realizar um mi-lagre econômico, mas que, na ver-dade, produziu grave dívida interna e externa, submissão/dependência nacional e exclusão social. Ideologia que conclamava a amar o país sem mexer em suas profundas contradi-ções ou, então, forçava a abandoná--lo (“ame-o ou deixe-o”).

A ditadura militar produziu um trauma nacional. Múltiplos registros históricos relatam e comentam es-se pesadelo. Entre outros, vale res-saltar os seguintes: O livro Batismo de Sangue, de Frei Betto (transfor-mado posteriormente em filme); o livro Brasil nunca mais, com o pre-fácio escrito por dom Paulo Evaristo Arns; o documentário 1964 Um Gol-pe Contra o Brasil, de Alípio Freire; o documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares. Através da

força bruta da ditadura, naturalizou--se a violência social e muitas arbi-trariedades do Estado; destruíram--se identidades, violaram-se direi-tos e a dignidade humana de muitos foi anulada. Houve grande dizima-ção de populações indígenas, nor-malmente vistos como obstáculos ao desenvolvimento do país. A ditadu-ra também sequestrou símbolos na-cionais e utilizou-os como coberto-res das atrocidades.

O período da ditadura represen-tou o florescimento da mais fina flor do capitalismo selvagem, que pre-parou o terreno para o chamado ne-oliberalismo. Portanto, as heranças da ditadura são duras e perduram até nossos dias, associadas às he-ranças da escravidão. Há muita di-tadura que se traduz em corrupção política e econômica, em práticas de trabalho escravo, em programas colonialistas veiculados pela gran-de imprensa, em uma lógica perver-sa que se instaura pela via do mer-cado total, que transforma tudo em mercadoria.

É preciso resistir contra todas as formas de ditadura. De outra parte, sabe-se que a democracia tem seus grandes desafios. Ela não é um mo-delo pronto, uma herança dada, mas uma construção diária. É necessário aperfeiçoá-la, radicalizá-la e expan-di-la. Superar a mera democracia re-presentativa e fazer avançar a demo-cracia no aspecto econômico, jurídi-co, cultural, social, ambiental, enfim em todos os níveis e âmbitos.

Contra o mau uso da liberdade e da democracia, não cabe a ditadura, antes sim mais democracia e de me-lhor qualidade. A memória da dita-dura não pode ser apagada; os trau-mas não devem ser naturalizados e os torturadores não podem perma-necer impunes. A verdade e a justi-ça precisam continuar sendo busca-das não só por algumas comissões, mas por toda a sociedade a fim de construirmos benditas heranças na-cionais.

Dirceu Benincá é doutor em Ciências Sociais e pós-doutorando

em Educação.

Dirceu Benincá

Herança perversa dos anos de chumbo

crônica Luiz Ricardo Leitão

ATÉ OITO ANOS atrás, o petróleo descoberto no Brasil mal atendia as necessidades nacionais. Mesmo as-sim, como o preço do petróleo é in-ternacionalizado, suas margens de lucro eram fantásticas e desperta-vam interesses de todos os capitalis-tas. Segundo cálculo dos especialis-tas, o custo de produção de um bar-ril de petróleo, do pré-sal, nas piores condições, está em torno de 15 dóla-res. Com a obrigatoriedade de trans-ferência de royalties para a União e Estados, há um custo de mais 15 dó-lares, totalizando 30 dólares. Como o preço internacional é de 100 dólares, o lucro extraordinário de cada bar-ril de petróleo é de 70 dólares, ou se-ja 133% sobre o seu custo. A taxa mé-dia mundial do lucro na indústria é de 15%.

É essa renda extraordinária que o petróleo – e outros recursos minerais permitem – que deixam os capitalis-tas do mundo inteiro ensandecidos por sua apropriação privada!

As descobertas de mais petróleo no Brasil e as pesquisas do pré-sal coin-cidiram com o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso (FHC), totalmente subordinado aos interes-ses dos grandes capitalistas e das em-presas transnacionais.

O governo FHC promoveu uma verdadeira dilapidação da Petrobras. Caiu o monopólio da exploração do

petróleo. Mudou-se a Constituição e agora o petróleo pertence à empre-sa que extrair e que pode, inclusive, exportá-lo, cru. Como já estão fazen-do! Basta apenas pagarem a taxa de royalties ao Estado brasileiro. Até o ICMS sobre a exportação foi isentado pela lei Kandir.

Venderam as ações da Petrobras na bolsa de valores de Nova Iorque, e hoje se estima que o capital estran-geiro controle 40% do capital da em-presa. O Sr. Paulo Roberto Costa, agora preso pela Polícia Federal, sob acusação de corrupção e de tráfico de influência dentro da Petrobras, foi colocado lá como diretor pelo gover-no FHC. E até o genro do presiden-te FHC foi nomeado presidente da Agencia Nacional de Petróleo (ANP), para terem segurança e controle ab-soluto da política desejada.

O descalabro foi tanto, que che-garam a propor mudar o nome pa-ra PETROBRAX, para ser internacio-nalizada e mais palatável aos gringos que não conseguem pronunciar, pas-mem, Petrobras. Felizmente, a rea-ção nas ruas, barrou.

Com a eleição de Lula, em 2003 houveram mudanças significativas na política da Petrobras e o intento de recuperar o patrimônio para a na-ção brasileira, ainda que lentamen-te. Mudou-se a lei, de novo, e recupe-rou-se a propriedade do petróleo pa-

ra a União, e a sua exploração seria prioritariamente da Petrobras. E, em caso de parceria com outras empre-sas, haveria uma partilha da distri-buição do petróleo em partes iguais.

Mas a descoberta de que as reser-vas do pré-sal chegam a 70 bilhões de barris de petróleo, o que permite uma exploração de no mínimo de 50 anos, deixou de novo os capitalistas ouriçados. Imaginem o lucro extraor-dinário de 133%, ou se quiserem 70 dólares multiplicados por 70 bilhões de barris?

É isso que está sendo disputado pe-lo capital. Por isso acionaram seus cães de guarda no Congresso para criar uma CPI, que agitasse o mer-cado, que fizesse as ações da empresa cair. Assim, eles cairiam em cima co-mo hienas, para se apropriar do que sobrou da empresa.

E de sobremesa, se conseguissem tudo isso, ainda poderiam afetar as pesquisas eleitorais, e quem sabe, derrotar a presidenta Dilma. Mas is-so é sobremesa, o que eles querem mesmo é o lucro extraordinário. Bas-ta perguntar ao candidato Aécio Ne-ves qual o seu programa para a Pe-trobras. O objetivo é privatizá-la e entregar as reservas do pré-sal ao ca-pital estrangeiro. Como os quintas--colunas da ANP já foram antecipan-do, com a entrega de 60% das re-servas do campo de Libra, para a

Shell, Total e as empresas as chine-sas CNPC e CNOOC, no último leilão, embora a lei determinasse a priorida-de de exploração para a Petrobras.

Os erros existentes nos negócios da refinaria de Pasadena, no Texas (EUA), são apenas manipulações pa-ra esconder da opinião pública seus verdadeiros interesses. Aliás, quan-do Silvio Sinedino da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), eleito pelos petroleiros para o con-selho de administração da empre-sa, exigiu ainda em 2012, em sua pri-meira reunião, uma auditoria do ne-gócio, a imprensa burguesa não deu uma linha sequer. Por que retoma o assunto apenas agora?

O Brasil de Fato, junto com os movimentos sociais e os trabalhado-res da Petrobras, seguirá alerta em defesa da Petrobras como empresa pública. E em defesa da riqueza do petróleo para ser usado para as ne-cessidades de todo o povo brasileiro. Devemos honrar a mobilização de todo o povo brasileiro na década de 1950, que criou a Petrobras contra os interesses do capital estrangeiro e de seus porta-vozes locais – os mes-mos de hoje – e honrar tantos bata-lhadores históricos, como o briga-deiro Moreira Lima e Maria Augus-ta Tibiriçá Miranda, que lideraram aquela campanha. A Petrobras deve ser do povo!

de 24 a 30 de abril de 20142editorial

Às vésperas da Copa

O Brasil de Fato, junto com os movimentos sociais e os trabalhadores da Petrobras, seguirá alerta em defesa da Petrobras como empresa pública. E em defesa da riqueza do petróleo para ser usado para as necessidades de todo o povo brasileiro

Suspeito que haverá Copa, mas a desfaçatez dos calhordas me faz crer que nada será como antes após a farra da Fifa e dos consórcios abençoados pelos governos de Bruzundanga

O período da ditadura representou o florescimento da mais fina flor do capitalismo selvagem, que preparou o terreno para o chamado neoliberalismo

opinião

ESTAMOS A MENOS DE DOIS meses da Copa – e nada parece mu-dar no futebol de Bruzundanga. Embora os ventos da Copa das Mani-festações continuem a soprar desde 2013, inspirando iniciativas insóli-tas como o movimento do Bom Senso F. C., a estrutura do nosso espor-te é tão retrógrada e corrupta que suas velhas raposas sempre logram recompor-se dos reveses sofridos.

A CBF é o exemplo mor. Após a saída de Ricardo Teixeira, envolvi-do em um rumoroso processo de corrupção divulgado na Suíça, a enti-dade veio a ser presidida por um esbirro da ditadura, o anacrônico Zé das Medalhas Marin, que, agora, às vésperas da Copa, elegerá o carto-la paulista Marco Polo Del Nero seu sucessor no balcão de negócios do empório.

O saudoso João Saldanha costumava dizer, já nos anos de 1980, que a cartolagem brasileira estava matando a galinha dos ovos de ouro. Três décadas se passaram e suas palavras seguem mais atuais do que nunca. No eixo Rio-São Paulo, em especial, os estaduais recém-termi-nados ilustram sobejamente a incompetência e a ganância dos dirigen-tes, aliada à inépcia e à miopia das ‘autoridades’ públicas.

Até mesmo nas novas e superfaturadas ‘arenas’ erguidas para a Co-pa, as arquibancadas andam às moscas. No ‘Cariocão 2014’, dos 112 jogos realizados, 56 (ou seja, 50%!) tiveram menos de 500 pagantes – e três deles envolviam o Flamengo, clube de maior torcida do Rio (e do Brasil). É claro que o torcedor não é burro: quem é louco de sair de casa para ver seu time reserva jogar em Bangu, à tarde, sob um ca-lor de 42°, ou viajar até Volta Redonda, para assistir a um clássico contra o Bonsucesso, às 22h de uma quarta-feira, como fizeram 375 alucinadas criaturas?

Isso, porém, não significa que haja desinteresse pela bola. Ao con-trário: os bares continuam cheios nas transmissões de per pay view, da TV fechada, provando que o boleiro já fez sua opção. Afinal, para que enfrentar um sistema de transporte caótico, sem falar na violência crescente dentro e fora do estádio, se, afinal, ao preço de R$ 80, ele ve-rá apenas chutões e trombadas dos “guerreiros” da Brahma? É melhor acompanhar os espetáculos do futebol europeu, onde Messi, Iniesta, CR7, Neymar, Ribéry, Ibrahimovic & Cia. desfilam sua arte exuberante.

O pior, no entanto, é que a incúria e o cinismo dos cartolas se es-praiam de cima a baixo no outrora “país do futebol”. A começar pelas “escolinhas de base”, em que crianças e jovens estão expostos a diver-sos riscos, inclusive o assédio sexual, segundo revelou recente pesqui-sa do UNICEF. O resultado se vê no despreparo intelectual e emocio-nal da maioria dos atletas. Nos gramados, ignoram a parte tática, fa-zem faltas absurdas, simulam pênaltis teatrais e reclamam acintosa-mente dos árbitros (também ineptos). Fora de campo, só pensam em festas e dão declarações lamentáveis, como o goleiro rubro-negro Feli-pe, celebrando a vitória contra o Vasco com a pérola do ano: “Roubado é mais gostoso”.

O que o Sr. Aldo Rebelo, instalado no Ministério dos Esportes, pen-sa sobre tudo isso? E a ‘tchurma’ do Congresso, prestes a editar mais um projeto de anistia às dívidas dos clubes? Revivendo o triste ufanis-mo de 1970, até os canalhas cantam o hino e festejam os gols da sele-ção. Bem, suspeito que haverá Copa, mas a desfaçatez dos calhordas me faz crer que nada será como antes após a farra da Fifa e dos consór-cios abençoados pelos governos de Bruzundanga.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa –

Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),

Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Marina Tavares Ferreira • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 4301-9590 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfica: Taiga • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131–0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Hoover John/CC

de 24 a 30 de abril de 2014

mista do IPEA (entre centenas de possíveis fontes), que ofende Barros pesadamente, como se esse juízo fosse representativo do pensamento dos seus colegas. Tra-ta-se, na realidade, de um entrevistado suspeitíssimo, pois é um militante declarado do DEM, partido cujas opiniões sobre o governo federal e seus agentes são co-nhecidas por todos.

Curiosamente, o interesse do repórter pelo assunto surgiu logo depois de uma entrevista (ao portal Correio da Cidadania) em que Barros fez críticas à cobertura da mídia brasileira sobre os atuais conflitos na Venezuela. Nessa entrevista, ele assinala erros cometidos em maté-rias da Folha: a parcialidade em favor da oposição, a re-cusa em ouvir fontes do governo venezuelano e até in-formações equivocadas. Fica difícil, nesse contexto, dis-tinguir o eventual interesse jornalístico pelas atividades do Ipea em Caracas de um simples desejo de retaliação.

O fato é que a imprensa burguesa se sente muito des-confortável com o apoio de Brasília aos avanços polí-ticos e sociais em curso na Venezuela – e, mais ainda, quando vê um funcionário público brasileiro emitir opi-niões diferentes das suas.

Linchamento midiáticoA MISSÃO DO INSTITUTO de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), um órgão do Estado brasileiro, em Ca-racas se tornou um novo alvo na ofensiva da direita brasi-leira contra o governo da Venezuela. Em reportagens, edi-toriais e comentários, a mídia conservadora tem atacado a imagem do chefe daquela representação oficial do Bra-sil, o economista Pedro Silva Barros. Procura-se, por meio da manipulação dos fatos, apresentar o funcionário brasi-leiro como alguém que deixa de cumprir suas funções pú-blicas para fazer apologia ao chavismo.

A campanha de desmoralização – um verdadeiro lin-chamento midiático – foi iniciada pela Folha de S.Pau-lo ao afirmar, em tom de escândalo, que a missão do Ipea deixou de produzir os estudos econômicos que seriam sua principal função. O autor da “notícia” simplesmente omitiu o volumoso material que lhe foi apresentado por Barros. Esses documentos demonstram que o IPEA tem cumprido todas as suas tarefas a serviço do Estado brasi-leiro, promovendo a cooperação econômica, a integração regional e o conhecimento da realidade do país vizinho.

A intencionalidade do repórter da Folha se torna evi-dente ao reproduzir uma declaração de outro econo-

instantâneo

Igor Fuser

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A COMPANHIA HIDROELÉTRICA do Rio São Francisco (Chesf) sempre contou com o apoio e a defesa incondicional dos nordestinos. Ai de quem ousasse criticá-la. Além de seus fun-cionários, a grande maioria dos políticos locais, dos professores, das classes dirigentes, da mídia e da população, em geral, sairia em sua defesa.

Em várias áreas o legado da Chesf para o Nordeste é inegável. Todavia existem máculas na sua relação com as populações na-tivas que foram forçadas a sair de suas casas, de suas terras pa-ra dar lugar à construção dos grandes reservatórios de água de suas hidroelétricas. A justificativa era sempre em nome do “de-senvolvimento”.

Muitas decisões foram tomadas em nome da maioria, mas is-so, no entanto, não lhes garantiu caráter democrático. O princi-pio majoritário se justifica como um procedimento decisório de-mocrático quando os direitos das minorias dos atingidos (no ca-so, pelas barragens) têm os seus direitos preservados.

Existem temas de interesse do país, com decisões políticas to-madas, por exemplo, pelos representantes do povo no Congres-so Nacional, cujos custos e impactos atingem minorias da popu-lação. Nestes casos, o principio majoritário da decisão não ga-rante o seu caráter democrático.

A construção das barragens ao longo do Rio São Francisco ex-pulsou populações nativas, inundando várias cidades, e se cons-titui exemplo de decisões antidemocráticas, pois não levaram em conta os interesses dessas populações. Para situações rela-cionadas à questão energética, preconiza-se a necessidade de construção de consensos, o que significa o reconhecimento dos interesses divergentes que devem ser considerados e incorpora-dos no processo de negociação.

Questões sociais envolvendo a Chesf foram blindadas. Pouco debate ocorreu na sociedade. A companhia virou intocável, ina-tacável, devido a sua importância para a região. O direito das po-pulações afetadas (minorias) não se confunde com o direito da maioria – ambos podem ser exercidos democraticamente.

Por outro lado, todo o sistema elétrico brasileiro, desde o fi-nal do século passado, tem sofrido uma ingerência político--partidária nunca antes ocorrida com tal voracidade, que é ne-fasta para os objetivos, o trabalho e a atuação desse setor es-tratégico para o país. Verifica-se que as empresas do setor vira-ram moeda de troca nas transações de pura politicagem. Os di-rigentes dessas empresas são escolhidos dentre os apadrinha-dos pelos partidos da base aliada de sustentação política do go-verno. Depois é que se analisa se estes têm competência técni-ca para a função designada. Tudo, diz o governo, para manter a “governabilidade”.

Uma combinação de fatores trouxe para a Chesf uma agen-da negativa, onde quedas no fornecimento de energia se torna-ram recorrentes na região por falta de planejamento, de investi-mentos, de valorização de seus funcionários (substituídos mui-tas vezes pelos terceirizados). A demissão de seus quadros técni-cos contribuiu para a perda reconhecida da qualidade dos servi-ços prestados à população. Nos últimos anos, virou rotina o não cumprimento dos contratos de projetos vitais para a seguran-ça energética, especialmente o atraso na implantação de linhas de transmissão associadas às centrais de geração para conexão compartilhada (ICG). O que levou a própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a desabilitar a Chesf, impedindo que a empresa participe de leilões de linhas de transmissão. Ressalte--se que a Chesf foi à empresa que mais recebeu autos de infração (16 penalidades) nos últimos anos.

É inegável a responsabilidade das últimas administrações da Chesf pelo sentimento negativo existente na sociedade nordesti-na, devido ao grande desgaste da credibilidade da empresa. Res-ponsabilizar a questão ambiental pelos atrasos nas obras, co-mo vem sendo repetido pelos gestores, é uma ladainha que já não convence ninguém. Apenas mostra o despreparo e a falta de compromisso daqueles que dirigem esta empresa, outrora tão admirada.

O que acontece, hoje, com o grupo Eletrobras, incluindo a Chesf, revela o mesmo “modus operandi” perverso adotado pe-los governos para a privatização de outras estatais. O desgaste, a perda de credibilidade, e o sucateamento integram o roteiro que caminha a passos largos no processo de privatização de mais um patrimônio do povo brasileiro – se nada for feito para detê-lo.

Heitor Scalambrini Costa é professor da Universidade Federal de Pernambuco.

Heitor Scalambrini Costa

A credibilidade da Chesf

O desgaste, a perda de credibilidade, e o sucateamento integram o roteiro que caminha a passos largos no processo de privatização de mais um patrimônio do povo brasileiro – se nada for feito para detê-lo

A maior parte das pessoas (58%) não leu nenhum livro nos últimos 6 meses. O segundo tipo de livro lido mais ci-tado, depois de romance, foi a Bíblia. Cerca de 39% prefe-rem filmes de aventura ou ação, 38% gostam mais de co-médias e 20% romances — privilegiando as produções es-tadunidenses. Temática social e musical são os menos vis-tos (2%). Quanto ao teatro, 33% dos entrevistados pre-ferem comédia, enquanto 28% não sabe ou nunca assis-tiu. As exposições são atividades pouco procuradas: 14% frequentam exposições de artes, 26% nunca foram e 26% não gostam de nenhum tipo de exposição. Os gêneros mu-sicais prediletos foram o sertanejo, MPB, Forró, Gospel e Pagode; e as principais danças reportadas foram o Forró, a Dança de salão, Samba e Street Dance/Rap.

A TV aberta é o principal meio de adquirir informação (para 62%), e as novelas são a opção preferida de entre-tenimento nessa mídia. A internet foi citada por um terço dos entrevistados (superando a TV aberta e se destacan-do como principal meio apenas entre os estratos de renda acima de 5 salários mínimos).

Apesar das limitações de toda pesquisa, esse mergulho estatístico ajuda a entender o porquê, no Brasil de hoje, como diz a funkeira Valesca Popozuda, se bater de frente “é só tiro porrada e bomba”.

Hábitos culturaisENQUANTO DISCUTIA-SE se o professor de Brasília fez bem ou mal em incluir a letra de um funk na prova de filosofia, uma pesquisa raríssima envolvendo hábitos culturais do brasileiro era lançada.

Como acontece com todas as áreas relegadas ao Deus--dará, não temos uma base de dados confiável sobre a nossa produção cultural. Esse vazio motivou o Sesc, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, a investiga-rem os hábitos e práticas culturais do público brasilei-ro, através de uma pesquisa com 2.400 entrevistados em 25 estados.

No último dia 9 de abril, os resultados do mapa foram apresentados. Mais da metade (51%) não pratica ativi-dade cultural alguma (nos dias úteis a proporção che-ga a 85%).

Entre os entrevistados, 89% nunca foram a um con-certo de ópera ou música clássica em sala de espetácu-lo; 75% nunca assistiram a espetáculos de dança ou balé no teatro; 71% nunca estiveram em exposições de pin-tura, escultura e outras artes em museus ou outros lo-cais; 70% nunca foram a uma exposição de fotografia; 61% nunca presenciaram uma peça de teatro em qual-quer lugar e 57% nunca viram uma peça de teatro ou um show de música em uma sala de espetáculo.

Silvio Mieli

Mais Médicos supera metas com outros 3,5 mil profissionais

O Programa Mais Médicos está levando mais 3,5 mil profissionais para ampliar o atendimento em atenção básica em todo o Brasil, chegando a 13.235 médicos. Com isso, o governo garante assistência para mais de 51 milhões de brasileiros, ultrapas-sando a meta estabelecida para o primeiro trimestre deste ano – de 13 mil médicos atendendo a 44,8 milhões de pessoas. Mais de 70% dos 13.235 médicos estão alocados em regiões carentes de serviços públicos.

Embraer é condenada por trabalho precário de terceirizados

A 3ª Vara do Trabalho de Araraquara condenou a Embraer ao pagamento de R$ 3 milhões, devido a condições precárias de trabalhadores terceirizados dentro de sua fábrica na cidade de Gavião Peixoto (318 km de São Paulo). A fabricante de aviões

terá ainda 90 dias para fiscalizar as empre-sas que contrata, verificando se há equipa-mentos de proteção individual, treinamento adequado e garantia de jornada de trabalho segundo as normas legais. A empresa está sujeita a multa diária de R$ 5 mil por item e por trabalhador em situação irregular. Ainda cabe recurso contra a decisão, que teve como base problemas apontados pelo Ministério Público do Trabalho.

Italianos e franceses protestam contra políticas de arrocho

Manifestações realizadas no dia 12 de abril em Paris e Roma levaram às ruas das capitais europeias dezenas de milhares para protestar contra medidas de arrocho orça-mentário impostas por seus governos, após o início da crise no continente. Segundo os organizadores, 100 mil participaram das manifestações, organizadas por sindicalistas e partidos de esquerda.

França anuncia congelamento de salários e gastos sociais

O governo francês informou, dia 16 de abril, que os salários de funcioná-rios públicos serão congelados, assim como os subsídios sociais, dentro de um plano de contenção de gastos públicos de 50 bilhões de euros até 2017. O corte já havia sido anunciado em janeiro pelo presidente François Hollande, a pretexto de reduzir o défi-cit público a 3% do PIB.

Camponeses paraguaios encerram greve de fome

Depois de 58 dias em greve de fome, camponeses paraguaios acusados de matar seis policiais durante o Massacre de Curuguaty, em junho de 2012, conse-guiram no dia 12 de abril decisão judi-cial que garante aguardar o julgamento em prisão domiciliar.

fatos em focoda Redação

ERRATAA pedido da professora Roberta Traspadini,

autora do artigo “Autoritarismo e democra-

cia”, publicado na página 6 de nossa edição

passada, publicamos a seguinte retratação:

“O sociólogo FHC vinculado ao grupo do-

centes da USP foi sim perseguido e perdeu

sua cátedra após o Ato Institucional núme-

ro 5, em pleno período militar, junto com

outros intelectuais que, naquela ocasião,

faziam o estudo de O Capital junto com re-

nomados pensadores brasileiros. Já Emir e

Eder Sader não chegaram a ser presos, pois

conseguiram fugir antes do país.”

brasilde 24 a 30 de abril de 20146

Maíra Ribeiro da Terra Indígena Marãiwatsédé

em Alto Boa Vista (MT)

DO SONHO à lutaSonho é coisa séria para o povo Xavan-

te, que se autodenomina A’uwe Uptabi, ou povo autêntico (e que será designado neste texto como A’uwe-Xavante). Deci-sões importantes tomadas pelos anciãos de uma aldeia levam em consideração o que foi trazido através dos sonhos. São nos sonhos que os A’uwe-Xavante rece-bem conselhos, conhecimentos e infor-mações, seja de antepassados, de mensa-geiros espirituais ou dos seres criadores. Ali, podem antecipar situações no estado onírico para basear suas decisões. Assim, poderíamos inverter nossa frase inicial e afirmar que decisões importantes toma-das pelos anciãos de uma aldeia costu-mam ser levadas para consulta nos so-nhos. É necessário disciplina e prepara-ção para sonhar.

O cacique Damião Paridzané nasceu em Marãiwatsédé e nunca deixou de so-nhar com essa terra. Conta que, certa vez, sonhou que era indicado a liderar seu povo de volta a sua terra. Ele assumiu o compromisso no sonho e, assim, iniciou sua luta. Era década de 1980 e os indí-genas que foram deportados de sua ter-ra Marãiwatsédé em 1966, estavam dis-persos em várias aldeias A’uwe-Xavante. Seu primeiro passo foi reunir novamente seu povo. Foi através dos sonhos que en-tendeu todo o caminho que deveria per-correr para atingir seu objetivo.

Muitos anos se passaram, Paridzané é hoje um dos mais respeitados caciques A’uwe-Xavante. Seu sonho e a luta do seu povo culminaram na desintrusão com-pleta da Terra Indígena Marãiwatsédé em 2013. Mas há muito ainda a ser feito para a reconstrução da terra onde nasceu.

Vida mansa e dura O dia começa cedo na aldeia. Antes do amanhecer já há burburinho na trilha que dá no córrego. É o primeiro dos mui-tos banhos do dia. Logo cedo, ouve-se o canto dos waptés, adolescentes que estão no período de imersão na aprendizagem da cultura A’uwe-Xavante, anterior ao rito de passagem à vida adulta no qual furam suas orelhas. Os homens adultos e os anciãos trazem suas cadeiras e estei-ras para o centro da aldeia para discutir as questões importantes do dia no warã, reunião que ocorre diariamente ao ama-nhecer e ao entardecer. Não tarda, no entanto, para o movimento direcionar-se à escola estadual, onde vão chegando os professores, todos A’uwe-Xavante, e as centenas de estudantes.

Mês de março é tempo de colheita de arroz e milho nas roças familiares. No fundo das casas, as mulheres pilam o ar-roz colhido. Elas passam grande parte do dia no rio, lavando roupa e vasilhas e se banhando junto com as crianças. Elas também cuidam da casa, coletam lenha e frutas nos arredores e trabalham na roça.

A vida até parece pacata se não estivés-semos falando da Aldeia Marãiwatsédé. Ela é resultado da épica e sofrida luta a que esta comunidade se dedicou ao lon-go de cinco longas décadas para voltar à terra de onde foram tirados. Atualmen-te, é a maior aldeia A’uwe-Xavante, den-tre as mais de 200 que existem, com qua-se 1.000 moradores. São 87 casas dispos-tas em semicírculo, cujo centro tem mais de 500 metros de extensão e abriga vá-rios “campos” onde homens e mulheres jogam futebol no fim de tarde.

Este ano completa uma década des-de que a comunidade retornou para esta terra e fundou a aldeia. Em grande parte da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, a paisagem ainda é de pastos, áreas degra-dadas e construções demolidas, resulta-do dos anos de invasão. Marãiwatsédé

Marãiwatsédé: do sonho à luta, da conquista ao sonhoREPORTAGEM ESPECIAL As presentes iniciativas e as perspectivas futuras do povo A’uwe-Xavante em uma terra em reconstrução no Mato Grosso

“Estou trabalhando na cidade, com os outros vereadores, mas sou índio, nasci índio e sempre vou ser índio. Estou trabalhando para melhorar minha aldeia. Trabalho pro meu povo e para as nossas crianças”. Vanderlei Temireté, vereador A’uwe-Xavante

mantém há anos o título de Terra Indí-gena mais devastada da Amazônia Legal. Em 1992, dos 165.241 hectares (ha) de-marcados, 66 % eram floresta, 11 % eram cerrado e somente o restante estava de-gradado. Foi nesse ano que se iniciou um processo sistemático de invasão. 17 anos depois, 103.628 ha de mata e cerrado já haviam sido derrubados. Durante esse período, desmatamentos para abertura de pastos e lavouras, incêndios crimino-sos e caminhões carregados de toras de madeira saindo da área eram episódios corriqueiros na região.

Faz pouco mais de um ano que esse território é ocupado somente por indí-genas, mesmo assim, o risco de incên-dio na época da seca é enorme, devido à insistência de ex-invasores de quei-mar a área. Além disso, como o próprio povo A’uwe-Xavante usa o fogo de for-ma tradicional para caça, roça e ritu-ais, nas atuais condições ambientais lo-cais, a chance da queimada feita por eles sair do controle também aumenta. Atu-almente, o fogo é o fator que mais difi-culta o processo de regeneração natural da área. A degradação ambiental atin-ge diretamente a alimentação da comu-nidade. Para um povo que exerce a ca-ça e a coleta, a alimentação depende em

grande parte do equilíbrio do ecossiste-ma que habita.

Apesar de tudo, nestes dez anos, as primeiras mudas e sementes planta-das atrás das casas já dão frutos e som-bra nos quintais. A regeneração natural ocorre lentamente enquanto animais, como as araras, começam a aparecer. Em 2012, a comunidade conseguiu ele-ger o A’uwe-Xavante Vanderlei Temire-té (PSB) como vereador no município de Bom Jesus do Araguaia (MT). Temireté transita entre a aldeia e a cidade e leva as demandas da comunidade para a Câ-mara dos Vereadores e para o prefeito.

De todas as dificuldades que enfren-tam, porém, a insegurança é sem dú-vida a maior preocupação da popula-ção de Marãiwatsédé. Após a desintru-são há mais de um ano, os indígenas re-latam que já sofreram diversas amea-ças, principalmente o cacique da aldeia. No ano passado, uma ponte dentro da TI foi incendiada por não-indígenas. Os A’uwe-Xavante não são bem-vindos em algumas cidades próximas à aldeia e so-frem preconceito. Isso é algo esperado após um conflito nestas dimensões no qual o poder e a mídia locais se posicio-naram claramente contrários à desin-trusão da TI Marãiwatsédé. E por isso

mesmo, é importante que haja um tra-balho informativo e educativo na região para que a relação entre indígenas e não-indígenas consiga ser minimamen-te harmoniosa.

A tensão tomou maior proporção em janeiro de 2014, no mesmo mês de reti-rada das forças de segurança que faziam a proteção pós-desintrusão da TI, quan-do cerca de 300 pessoas retornaram e acamparam no Posto da Mata, local dentro da Terra Indígena onde se locali-zava o povoado não-indígena. O cacique Paridzané relatou que foi impedido pe-los invasores de chegar ao local e transi-tar livremente pelo seu território. Além disso, o posto de fiscalização da Funda-ção Nacional do Índio (Funai) dentro da TI foi incendiado.

Somente dois meses depois, foi realiza-da a operação de retirada dos invasores. As famílias retiradas foram alojadas em um ginásio de esportes e escolas da re-gião. As forças de segurança ainda deve-rão permanecer por tempo indetermina-do na TI Marãiwatsédé para averiguar o caso, garantir a segurança dos indígenas e coibir novas invasões. (CPT)

Maíra Ribeiro é da Articulação Xingu Araguaia (AXA).

da Terra Indígena Marãiwatsédé em Alto Boa Vista (MT)

Tendo em vista a ameaça concreta de reinvasão, a gestão territorial é um pon-to fundamental neste processo de reto-mada do território. Não só no âmbito de proteção do território, mas também pe-la necessidade de realizar o manejo ade-quado dos recursos que ainda restam e de recuperar aqueles necessários à so-brevivência física e cultural da comuni-dade indígena. Neste sentido, há muitas atividades sendo propostas pela comuni-dade e instituições parceiras, visando um modelo que alia as especificidades cultu-

rais com as práticas agroecológicas. A co-munidade já fez o Plano de Gestão Ter-ritorial junto à Funai e entidades parcei-ras, e já realiza excursões pela Terra In-dígena. Os i’rehi, guerreiros da aldeia, se organizam percorrendo regularmente a área e observando se há indícios de pre-sença não-indígena, como armadilhas de caça ou restos de acampamento.

Já as mulheres realizaram, no ano pas-sado, uma excursão de coleta, chama-da dzo’omori, que durou três dias. Es-sa atividade fez parte do projeto de etno-mapeamento e etnozoneamento inicia-

do ano passado junto à organização não--governamental Operação Amazônia Na-tiva (OPAN), em parceria com a Funai. Elas acamparam em fazendas retomadas e coletaram recursos, alimentos e maté-rias-primas para ornamentos. No Pos-to da Mata, chamado pelos indígenas de Mo’onipá, elas coletaram três variedades de inhame nativo (denominado mo’oni), muito apreciadas pelos A’uwe-Xavante. Foi uma surpresa boa para as mulheres e os anciãos, que não acreditavam que ain-da haveria essa diversidade numa área tão modificada. Elas estão animadas pa-ra fazer novos dzo’omoris, que já estão

(Re)conhecer para proteger

“É importante a gente pegar essa memória que os velhos têm. Levar eles no campo para mostrar como era a vivência deles na época, e mostrar o local das aldeias antigas também”

previstos no calendário de atividades da aldeia para este ano.

Pelo projeto de etnomapeamento, se-rão três oficinas neste ano onde serão fei-tos mapas mentais e viagens pelo territó-rio para reconhecimento e identificação das áreas importantes para a comunida-de, seja por seu valor histórico, espiritual ou pela presença de recursos como caça ou coleta. O resultado final será a produ-ção de mapas, definição de pactos de uso futuro, elaboração de estratégias de vigi-lância territorial e outras ações para pos-sibilitar melhores usos e compreensão do território pela comunidade. (MR)

Vista aérea da Aldeia Marãiwatsédé

Reprodução

Lilian Brandt

brasil 7de 24 a 30 de abril de 2014

Maíra Ribeiroda Terra Indígena Marãiwatsédé

em Alto Boa Vista (MT)

Visando a troca de experiências e aprendizado com outras comunidades, os A’uwe-Xavante têm investido em in-tercâmbios. Para este ano, haverá pe-lo menos um intercâmbio com um povo do Xingu. No ano passado, eles visitaram experiências da região, como no Projeto de Assentamento Jaraguá em Água Boa e em Campinápolis, e de outros povos in-dígenas como os Manoki em Brasnorte, também em Mato Grosso.

Um grupo de dez pessoas conheceu as experiências do povo Kisêdjê na TI Wa-wi, município de Querência, no vale do Araguaia, cujo histórico tem muitas se-melhanças. A TI Wawi também é um ter-ritório tradicional reconquistado pelos Kisêdjê, que contava com grandes áreas desmatadas das fazendas retomadas. As técnicas de reflorestamento apresenta-das chamaram a atenção dos A’uwe-Xa-vante para novas estratégias de recupe-ração ambiental. Uma dessas experiên-cias foi uma área que desde 1994 não é desmatada e que não pegou fogo, sendo possível a regeneração natural.

Os Kisêdjê como outros grupos do Xin-gu tem bastante experiência com asso-ciações e comercialização. Eles possuem uma cadeia produtiva bem estruturada do pequi, fruto tradicionalmente muito importante para os povos do alto Xingu. Hoje, além do consumo, os Kisêdjê be-neficiam o pequi de várias formas para a venda, como a extração do óleo e da cas-tanha e a produção de doce de pequi. Os A’uwe-Xavante aproveitaram as varie-dades de pequi que receberam neste in-tercâmbio, para plantá-las nas áreas de-monstrativas agroflorestais, de volta à al-deia.

Ainda no ano passado, um grupo de A’uwe-Xavante de Marãiwatsédé tam-bém participou da viagem organizada por entidades da Articulação Xingu Ara-guaia (AXA) para conhecer a experiên-cia da Cooperafloresta, em Barra do Tur-vo, no sul do estado de São Paulo. Esta é uma das mais bem-sucedidas cooperati-vas de camponeses agroflorestais no Bra-sil. Apesar de já terem feito diversas vi-vências e oficinas sobre sistemas agro-florestais, o plantio de cultivares jun-to com árvores ainda é algo novo e vis-to com desconfiança por muitos A’uwe--Xavante. A forma tradicional de plantio é a roça de toco, na qual corta-se um pe-daço de mata, queima, limpa e planta. Na vivência, eles ouviram relatos de agricul-tores da Cooperafloresta que, assim co-mo eles, faziam roça de toco, mas atra-vés dos sistemas agroflorestais, diversifi-caram ainda mais o que produzem num sistema mais sustentável. (CPT)

Maíra Ribeiro é da Articulação Xingu Araguaia (AXA).

Intercâmbios que valem mais que mil palavrasREPORTAGEM ESPECIAL Troca de experiências e aprendizado com outras comunidades

da Terra Indígena Marãiwatsédé em Alto Boa Vista (MT)

O sistema agroflorestal (SAF) tem se mostrado muito adequado para propor-cionar o reflorestamento com a produ-ção de alimentos. Assim, se combate du-as das principais dificuldades desde que retornaram ao seu território: a degrada-ção ambiental e a insegurança alimentar.

No fim do ano passado, juntamente com a OPAN, foram feitas duas áreas demonstrativas de plantio agroflores-tal nas quais foram plantadas sementes de árvores nativas e frutíferas, inclusive das variedades de pequi que ganharam dos Kisêdjê, consorciadas com mandio-ca. Cada área é respectivamente cuida-da por rapazes waptés e do grupo etá-rio Nodzo’u.

Além destas duas áreas demonstrati-vas, os A’uwe-Xavante já planejaram os plantios agroflorestais para o fim des-te ano. Uma das áreas será de casa-dão, nome regional dado para o plan-tio de SAF, misturando sementes e mu-das. Outra usará a técnica desenvolvida na região pelo Instituto Socioambiental

e agricultores chaves, que farão a repro-dução destas, na expectativa de que elas se espalhem com o tempo pela aldeia. Dentre as sementes que vieram, os an-ciãos identificaram uma espécie que ti-nha sido perdida nas roças A’uwe-Xa-vante de Marãiwatsédé, chamada Wa-duhöbo. Anteriormente, a Embrapa já havia doado variedades de tubérculos, raízes e hortaliças não convencionais, como batata-doce, araruta, ora-pro-no-bis e bertalha, além de variedades do milho A’uwe-Xavante. Outros parcei-ros também tem apoiado a comunidade com doação de mudas de plantas frutí-feras e de uso tradicional, além de esti-mular a multiplicação destas pelos pró-prios A’uwe-Xavante para conquista-rem autonomia quanto à agrobiodiver-sidade que utilizam.

O povo de Marãiwatsédé conta ain-da com um plantio mecanizado de ar-roz para abastecer toda a comunidade, num total de 30 ha, feito junto com a Fu-nai. Além da roça, da caça, da coleta e da pesca, os A’uwe-Xavante complementam sua alimentação com produtos do mer-cado, adquiridos nas cidades próximas com recursos de salários e pensões. (MR)

(ISA) de plantio mecanizado da mistura de sementes chamada de muvuca. Co-mo uma das principais ameaças à con-servação destas áreas são as queimadas na época da seca, será feito também um aceiro verde ao redor das áreas, plan-tando uma muvuca de sementes de es-pécies com características como resis-tência ao fogo ou que acumulam água.

Outros espaços muito importantes pa-ra a segurança alimentar são as roças e os quintais. As roças A’uwe-Xavante são familiares onde plantam milho e feijão, tendo variedades próprias destes, além de arroz, abóbora, melancia entre outros. Eles também plantam árvores e cultivos como mandioca e cana-de-açúcar nos quintais familiares atrás das casas.

Neste sentido, eles contam desde a fundação da aldeia com a distribuição por entidades parceiras de sementes e mudas para o enriquecimento destes quintais e roças. No fim de 2013, a Em-brapa – Empresa Brasileira de Pesqui-sa Agropecuária – distribuiu 36 varie-dades de feijão-fava (Phaseolus luna-tus L.) visando aumentar a diversidade dos cultivares usados nas roças. As se-mentes foram entregues a agricultoras

da Terra Indígena Marãiwatsédé em Alto Boa Vista (MT)

O Plano Político Pedagógico (PPP) pa-ra a escola estadual da aldeia para 2014 conseguiu incluir no calendário da esco-la, atividades de campo e oficinas de va-lorização da comida tradicional. O dire-tor da escola, Cosme Rité, conta que o plano foi uma construção coletiva da co-munidade e teve a orientação dos anci-ãos, de como eles pensam o futuro pa-ra as futuras gerações. Assim, em março já ocorreu uma primeira oficina de Dat-sá Uptabi, de alimentação tradicional, na qual as mulheres mais velhas ensinaram as alunas dos jovens grupos etários Aba-re’u e Nodzo’u a fazerem o bolo de milho tradicional.

As atividades de campo incluem plan-tios agroflorestais e excursões pelo ter-ritório, dialogando com os projetos que já desenvolvem na aldeia. Outra ativi-dade prevista no PPP é a elaboração de um calendário sazonal. Ali, serão levan-tadas as atividades anuais realizadas pe-la aldeia, como roça, caça, coleta e pesca, detalhando as épocas de plantio, colhei-ta e coleta, e os períodos nos quais se po-de pescar, quais caças estão disponíveis, entre outros.

Também será produzida uma pequena cartilha educativa sobre as plantas usa-das pelos A’uwe-Xavante. Essa cartilha será o resultado de um levantamento et-nobotânico feito pela escola para identi-ficar quais são as plantas medicinais, or-namentais e cerimoniais e seus usos, pa-ra apoiar o aprendizado cultural dos jo-vens A’uwe-Xavante. (MR)

da Terra Indígena Marãiwatsédé em Alto Boa Vista (MT)

Uma iniciativa que tem crescido na al-deia é a coleta de sementes. Em 2011, as mulheres, apoiadas pela OPAN, for-maram um grupo de coletoras da Rede de Sementes do Xingu, o Pi’õ Romnhá Ma’ubu’mrõiwa, nome sugestivo que sig-nifica Mulheres Coletoras de Sementes. Na Rede de Sementes do Xingu, articu-lada pelas entidades da AXA e outras da sociedade civil, grupos organizados de indígenas e camponeses coletam semen-tes de floresta, cerrado e cultivos para co-mercialização e troca para uso em áreas que serão reflorestadas na região. Sen-do a coleta de frutos e sementes uma ati-vidade tradicional feminina, não foi difí-cil para o grupo começar, com 11 mulhe-res. Hoje participam 78 coletoras, entre

crianças, jovens, adultas e idosas, per-tencentes a 13 famílias da aldeia e que co-letaram 123 kg em 2013.

Além da renda com a venda de semen-tes, o trabalho ajuda na gestão territorial, já que as coletoras passam a observar as árvores do território e os períodos de flo-ração e frutificação. As principais espé-cies coletadas atualmente são carvoeiro, favela, jatobá, caju e adubações-verde co-mo crotalária, fedegoso e feijão de porco. Na Rede de Sementes é necessário mape-ar onde estão as árvores-matrizes de se-mentes e seguir um plano de manejo pa-ra que a extração das sementes não seja predatória. Isso é ainda mais importante aqui, se pensarmos que se trata de uma terra devastada ambientalmente. Além do mais, as coletoras se comprometem a plantar parte das sementes que coletam.

Outro resultado interessante do grupo de coletoras é que se tornou um espaço

vida aos A’uwe-Xavante. Por fim, es-tas situações só ocorrem porque a cul-tura do coronelismo ainda persiste, le-vando pessoas a insistirem em atos sa-bidamente ilegais, ancorados na pro-teção que esperam de poderosos. Nes-te e nos últimos casos similares, como Raposa do Sol e os Awá-Guajá, a Justi-ça tem respeitado os direitos indígenas versados na Constituição Federal, não restando dúvida quanto à legitimidade do povo tradicional em acessar em se-gurança seu território reconhecido.

Mas lá na aldeia, distantes, mas não alheios à sua condição, o dia vai perden-do o brilho em Marãiwatsédé. As crian-ças, soltas até então pela aldeia, vão re-tornando para suas casas com o entarde-cer. Os homens e anciãos se reúnem no-vamente no centro para mais um warã. Ali, discutirão as principais questões do dia que passou e planejarão o dia seguin-te. Em seguida, voltarão às suas casas e sonharão. (MR) (CPT)

de encontro das mulheres fora do habitu-al. Nas reuniões regulares não se fala so-mente sobre a estruturação do grupo ou a qualidade das sementes, mas também é um momento no qual as jovens ouvem os conselhos e sermões das anciãs e ou-tros assuntos são discutidos. Dentro des-se grupo, elas também começaram a or-ganizar a comercialização do artesanato que produzem para uma loja no Rio de Janeiro.

É uma experiência que vem crescen-do ano a ano. Para os próximos anos es-tão previstas as construções de uma ca-sa de sementes, um espaço de formação do grupo e um viveiro para produção de mudas para o reflorestamento da própria aldeia e da Terra Indígena. Com a reve-getação natural e experimental na Ter-ra Indígena, a variedade e quantidade de espécies aumentam e também o trabalho das coletoras. (MR)

da Terra Indígena Marãiwatsédé em Alto Boa Vista (MT)

Além destes projetos que estão sen-do tocados e planejados, a comunida-de também tem investido em diferentes frentes. O cacique Paridzané elenca as suas prioridades: promover a proteção da sua terra, desenvolver a alimentação tradicional, fortalecer a Funai e melho-rar a saúde indígena, reflorestar a terra junto com as entidades parceiras, trazer a tecnologia útil para os jovens, a escola e a aldeia, e, por fim, que sejam respei-tados pela sociedade brasileira os direi-tos indígenas e a Constituição Federal. São muitas ainda as transformações ne-cessárias para o bem estar da sua comu-nidade, e de certa forma dos povos indí-genas brasileiros como um todo, mas a clareza quanto aos principais objetivos a serem trabalhados e a determinação para alcança-los é uma característica deste povo. Se a história de Marãiwat-sédé é marcada até os dias atuais por di-ficuldades, sofrimentos e ameaças, des-ta vez, a comunidade terá a calma e as ferramentas para trabalhar na constru-ção de um futuro cada vez melhor para seus descendentes na terra onde nunca mais deixarão.

Mas não podemos esquecer que se es-tamos falando de Marãiwatsédé é por-que trata-se de um caso emblemático dentro dos conflitos envolvendo indíge-nas no Brasil. A resolução da questão só ocorreu depois que esta já tinha tomado proporções gigantescas e houve perda e sofrimento tanto para posseiros quanto para indígenas, dois personagens erro-neamente considerados opostos já que estão do mesmo lado de um sistema ex-cludente. De começo, existe a falta his-tórica e persistente de uma política pú-blica de organização fundiária e refor-ma agrária no Brasil que deixa à pró-pria sorte famílias que só precisam de terra para morar e trabalhar, bem co-mo povos indígenas cuja própria ter-ra lhes é negada. Enquanto lutam por um mesmo espaço, as grandes fazendas

crescem, marginalizando ainda mais as pessoas da terra. Soma-se a isso a omis-são e lentidão do governo em dar uma resposta firme quando surgem irregu-laridades abertamente, como ocorreu no incentivo à ocupação da terra devol-

Da conquista ao sonho

Se a história de Marãiwatsédé é marcada até os dias atuais por dificuldades, sofrimentos e ameaças, desta vez, a comunidade terá a calma e as ferramentas para trabalhar na construção de um futuro cada vez melhor

Mulheres coletoras de sementes

Segurança alimentar e reflorestamento

Um projeto coletivo de escola

Os jovens Poredza’ono e Ö’wawe se enfrentam no Oi’ó

Maíra Ribeiro

brasilde 24 a 30 de abril de 20148

Igor Ojeda, Tatiana Merlino, Beatriz Macruz e

Caio Castor

– VOCÊ PODE explicar o que esse local significa para vocês?

O cacique Karaí Mirim Vitor Fernan-des, da aldeia Tekoa Pyau, da Terra Indí-gena Jaraguá, na zona norte de São Pau-lo, responde. Em guarani, sua língua. Os brancos não entendem. Então, diz, em português: “Respondi na minha língua porque aqui é um local sagrado”.

Chão de terra batida, pouca luz. De um lado, bancos de madeira, dois violões en-costados na parede e uma pequena ar-mação feita do mesmo material fincada no chão, servindo como uma espécie de altar. Do outro, mais bancos e uma fo-gueira cercada por cachorros que se es-quentam na manhã fria e chuvosa. Uma senhora de seus 70 anos fuma um ca-chimbo indígena. Ao lado, crianças brin-cam. Estamos na casa de reza da aldeia.

É nesse local que a comunidade se re-úne todas as noites para rezar, onde as crianças recebem seus ensinamentos re-ligiosos. É, também, onde as decisões im-portantes da comunidade são tomadas. Lá, por exemplo, discute-se sobre a cam-panha para pressionar o governo federal a demarcar os territórios Guarani locali-zados dentro da capital paulista.

Sim, os Guarani de São Paulo estão em campanha. Querem que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assine as Portarias Declaratórias das Terras Indí-genas Jaraguá e Tenondé Porã – esta úl-tima localizada em Parelheiros, no extre-mo sul do município – para que se dê iní-cio ao processo de desintrusão das áreas e indenização dos não-índios. Os Guara-ni exigem espaço suficiente para viverem bem, de acordo com seu modo de vida, e de maneira que possam preservar su-as tradições e cultura. Com a área reser-vada a eles atualmente, isso não é possí-vel, dizem. “Sem demarcação, sentimos como se estivéssemos presos numa gaio-la”, ilustra o cacique Karaí Mirim, de 33 anos.

Não é favela; é aldeiaA Terra Indígena Jaraguá, por exem-

plo, é a menor do país. Em 1,7 hectare de terra, área equivalente a menos de dois campos de futebol, vivem cerca de 700 pessoas, distribuídas em duas aldeias – com a demarcação, esse território fica-rá com 532 hectares. “O homem branco, quando passa aqui perto, diz que parece uma favela, mas não é. É uma aldeia in-dígena”, explica Nelson Soares, vice-ca-cique da Tekoa Pyau.

“Se tivéssemos condições de ter uma área mais afastada, não seria assim, se-ria o suficiente para vivermos bem.” Se-gundo ele, faltam médicos e sobram do-enças causadas pela poluição, falta de saneamento e pela quantidade de ca-chorros abandonados que circulam pe-lo local. “As crianças pegam sarna, tem diarreia, vômito.” Outro problema é a segurança das crianças, que, por conta da falta de espaço, frequentemente vão brincar próximo à estrada, aumentando o risco de acidentes.

A aldeia é cercada por muros. Seus li-mites são ruas, o Parque Estadual do Ja-raguá e a Rodovia dos Bandeirantes, que liga São Paulo ao interior do estado. As casas são simples e feitas de madeira. Poucas são de alvenaria. As ruas são de terra. Na entrada, caçambas cheias de li-xo amontoam-se pela calçada. Quando chove, como no dia em que a reportagem visitou a aldeia, a situação de precarieda-de em que vivem os indígenas piora, re-latam seus habitantes. A terra vira barro e a água invade as casas.

Nesses dias, dona Jandira, por exem-plo, não pode cozinhar. Ela não tem fo-gão, e costuma preparar os alimentos no fogo que acende do lado de fora de sua casa. Com chuva, não consegue fazer is-so. Precisa esperar para cozinhar na cre-che local. A mulher de 47 anos se aper-ta com o marido e três filhos em dois cô-modos. No quarto, há três camas enfilei-radas, encostadas à parede, roupas pen-duradas, televisão, utensílios de cozinha e uma sacola cheia de peças de artesana-to que ela tenta vender, nem sempre com sucesso. “Se tivéssemos mais terras, po-deríamos construir casas melhores. Po-deríamos plantar. Nós precisamos de mais terras”, resume.

Durante a noite, muitos medos pre-judicam seu sono. Medo de que o bran-co queime a casa dos Guarani, como já aconteceu com parentes de outras al-deias. Medo de que as crianças, que, por viverem em um território tão apertado

Índios de SP querem suas terrasSELVA DE PEDRA Espalhados por seis aldeias na periferia da capital paulista, integrantes do povo Guarani pressionam pela demarcação de seus territórios tradicionais

e, por isso, brincarem na rua, sejam alvo de algum tipo de violência. Como acon-teceu há um ano com um sobrinho de três anos de idade numa aldeia no Para-ná, desaparecido e encontrado dias de-pois com o corpo esquartejado. “Quando fecho os olhos, parece que estou ouvin-do alguém gritar: ‘Jandira, levanta, ma-taram a criança!’.” Nessas horas, acende um cachimbo e pede ajuda a Nhanderu, o deus da criação para os Guarani.

Neusa Poty Quadro, de 26 anos, é uma das lideranças da aldeia. Nascida no Pa-raná, mora há três anos em São Paulo. Magra, pequena e de fala baixa, ela con-fessa que muitas vezes, durante a noite, várias perguntas insistem em acordá--la. “Fico pensando em por que os bran-cos tiram nossos direitos. Será que fize-mos muito mal para eles? Erramos tan-to para que eles façam de tudo para tirar nossos direitos? Sei que não fizemos na-da de mal. Não fazemos nada para tirar o direito de ninguém. Me pergunto isso porque nunca ouvi uma história de que os índios fizeram um massacre contra os brancos”, lamenta.

Apesar de viverem em um território tão apertado e colado à área urbana da cida-de, a cultura Guarani tem sido mantida. Mas com dificuldades. Na escola da al-deia, as crianças aprendem os costumes, a língua e a tradição de seu povo. Porém, quando saem de lá, não têm onde colo-car em prática os ensinamentos. “Nosso livro didático era a natureza”, diz Alísio Gabriel Tupã Mirim, outra liderança.

ReintegraçãoPara piorar a situação, desde 2002 os

habitantes da aldeia Tekoa Pyau estão ameaçados por uma reintegração de pos-se, reclamada por duas pessoas que ale-gam ser proprietárias das terras ocupa-das pelos indígenas, apesar de a área ter

sido reconhecida como território guara-ni pela Fundação Nacional do Índio (Fu-nai). Segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2013 foi emitida uma decisão de reintegração de posse na primeira instância da Justiça Federal de São Paulo. Embora a determi-nação esteja suspensa, até o julgamento das apelações apresentadas pela União e pelo Ministério Público Federal é pos-sível que haja alguma modificação pelo Tribunal Regional Federal.

De acordo com o artigo 231 da Cons-tituição Federal, os atos administrati-vos que envolvem a posse de terras tra-dicionalmente ocupadas por indígenas são considerados nulos e extintos. As-sim, a emissão da Portaria Declaratória da Terra Indígena Jaraguá pelo Minis-tro da Justiça anularia o pedido de rein-tegração.

À espera da JustiçaEm resposta à solicitação da reporta-

gem, a assessoria de imprensa do Minis-tério da Justiça afirmou que o processo relativo à Terra Indígena Tenondé Po-rã “encontra-se atualmente em respos-ta técnica à diligência requerida pelo Mi-nistério da Justiça. Prazo de atendimen-to da diligência pela Funai: fim de abril.

Posteriormente o processo será remeti-do ao Ministério da Justiça para as devi-das análises nos termos do art. 2º, §10 do Decreto n.º 1775/96”. Segundo esse de-creto, cabe ao ministro da Justiça publi-car uma portaria declaratória que permi-te iniciar o processo de indenização dos ocupantes não-indígenas para devolver as áreas ao usufruto exclusivo das comu-nidades indígenas.

Em relação à Terra Indígena Jaraguá, a assessoria do MJ disse que “atualmen-te encontra-se na etapa do contraditório administrativo, sendo respondida tecni-camente as contestações apresentadas em face do procedimento de identifica-ção da referida TI, nos termos do Decre-to n.º 1775/96”. Ou seja, o processo seria enviado ao Ministério em seguida.

A campanha pela demarcação das ter-ras indígenas em São Paulo, chamada de Resistência Guarani SP, teve início no dia 16, quando cerca de 50 índios ocupa-ram o interior do Museu Anchieta, locali-zado dentro do Pátio do Colégio, no Cen-tro da cidade, onde passaram a noite. Pa-ra divulgar suas reivindicações, os indí-genas publicaram um manifesto em duas versões: uma em texto e outra em vídeo, em sua própria língua. Além disso, já cir-cula na internet uma petição a ser envia-da ao ministro da Justiça.

Dentro do museu, os índios dançaram, cantaram e tocaram instrumentos musi-cais, sob os olhares de funcionários e vi-sitantes não-índios. Um pouco antes do fechamento do prédio, distribuíram pan-fletos explicando os motivos da ocupa-ção. De acordo com o comunicado divul-gado por eles à imprensa, “interromper temporariamente as atividades do Mu-seu, que celebra o local de fundação da cidade e início da colonização, foi a for-ma encontrada pelos habitantes originá-rios de São Paulo para cobrar do Minis-tério da Justiça a emissão das Portarias Declaratórias que garantem a demarca-ção das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá, já reconhecidas pela Funai”.

Os Guarani se concentraram na noite do dia 15 na Aldeia Tenondé Porá, onde realizaram um ritual de reza. De lá, par-tiram em micro-ônibus no início da tar-de do dia 16 em direção à região central da cidade.

A Terra Indígena Tenondé Porã, no ex-tremo sul de São Paulo, abriga cerca de 1.400 índios, em quatro aldeias, duas em Parelheiros, uma em Marsilac e outra no município de São Bernardo do Campo. Hoje, a Funai reconhece que esse territó-rio deveria abranger 16 mil hectares.

Em Parelheiros, também é difí-cil manter a sobrevivência e a tradição Guarani. Durante a ocupação do Pátio do Colégio, enquanto fumava um ca-chimbo, Jera Guarani contou que a si-tuação é grave. “A base da sustentação da nossa cultura é a oralidade.” Os ensi-namentos são transmitidos, mas as con-dições das aldeias não permitem que se-jam aplicados. “Temos problemas para plantar mandioca e milho, que são a ba-se da nossa alimentação. Também não conseguimos caçar e pescar. Então, o que temos de comida vem do mercado, que são alimentos não saudáveis, com agrotóxicos, o que desestrutura a saúde do Guarani”, explica. Vivendo em áreas muito pequenas, os mais velhos sofrem com tristeza e depressão. “Há casos de dependência alcoólica, fome, desestabi-lização familiar”, enumerou.

Sentada ao seu lado, Aramirim Gua-rani explica o que significa para os Gua-rani ocuparem o Pátio do Colégio 460 anos depois da fundação de São Paulo. “Invadiram nosso espaço. Temos todo o direito de estar aqui, neste local onde morreram muitos Guarani. Nestas pe-dras, há o sangue do nosso povo.” (Re-pórter Brasil)

Sim, os Guarani de São Paulo estão em campanha. Querem que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assine as Portarias Declaratórias das Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã para que se dê início ao processo de desintrusão das áreas e indenização dos não-índios

Aldeia Tekoa Pyau, Terra Indígena Jaraguá

Ocupação Guarani no Pateo do Colégio, no centro de São Paulo

Repórter Brasil

Beatriz Macruz

de 24 a 30 de abril de 2014 9brasil

Eduardo Marettide São Paulo (SP)

APÓS CONSEGUIR criar, na semana passada, a Comissão Parlamentar de In-quérito (CPI) dos Pedágios, a oposição a Geraldo Alckmin na Assembleia Legisla-tiva de São Paulo tem agora um novo de-safio: superar a maioria do governo e fa-zer as apurações do colegiado chegarem a resultados concretos.

Uma vez criada, a CPI precisa ser ins-talada. Essa é a primeira que, em tese, se poderá investigar alegadas irregularida-des do governo tucano. No atual manda-to, o governador mantém a praxe de mo-bilizar a base de apoio para evitar a ins-talação de apurações que lhe possam ser incômodas. Os nove membros da comis-são, escolhidos segundo o critério da pro-porcionalidade, devem ser indicados pe-los líderes dos partidos, o que deve ser feito nos próximos 15 dias. A maioria do Palácio dos Bandeirantes, de 68 deputa-dos sobre um total de 94, assim, será re-fletida na comissão.

Segundo o deputado Antonio Men-tor (PT), autor da proposta de criação da comissão, um dos principais focos de investigação será esmiuçar o mode-lo de concessão pelo qual o governo es-tadual deu às empresas o direito de ex-plorar estradas e pedágios, um sistema do qual decorrem os altos preços das ta-rifas das praças paulistas. “Apenas a tí-tulo de comparação entre duas viagens com mais ou menos a mesma distância: o usuário paga R$ 9 de pedágio para ir de São Paulo a Curitiba, por rodovia federal, e R$ 70 até São José do Rio Preto pelas estaduais”, exemplifica.

O líder do governo Alckmin na Assem-bleia Legislativa, deputado Barros Mu-nhoz (PSDB), garante que a bancada do governador não teme as apurações e não pretende usar estratégias para evitar o funcionamento da CPI do Pedágio. “Vai funcionar e vai apurar que está tudo em ordem, tudo perfeito, como apurou a CPI da CDHU.”

Munhoz se refere à CPI instalada em 2009 para investigar supostas fraudes em licitações para a construção de ca-sas pela Companhia de Desenvolvi-mento Habitacional e Urbano (CDHU). O relatório final da comissão, a primei-ra instalada entre as requeridas pela oposição em 10 anos, não teve resulta-dos satisfatórios.

“O que se pode concluir é que a CDHU, assim como outros entes do governo es-tadual, representa uma verdadeira caixa--preta de onde pouco ou quase nada se consegue extrair. A CPI da CDHU, infe-lizmente, mimetizou o processo investi-gativo. Em outras palavras, fez de conta que investigou para tentar, assim, atestar a idoneidade de irresponsáveis gestores públicos em detrimento da defesa do erá-rio”, dizia o relatório do deputado Rober-to Morais (PPS) em 2009.

Barros Munhoz não esconde que a di-ferença de tratamento, dado pelo par-tido à CPI recém-aprovada na As-sembleia e à pretendida no Congres-so Nacional para apurar irregularida-des na Petrobras, é política. “Aqui, eu não apoio [a CPI dos Pedágios]. Brasí-lia é Brasília. Agora, eles, da oposição, apoiam CPI aqui e não apoiam lá”, diz. “Nenhum governo gosta de CPI. Nem o nosso, nem o deles. Mas investigar é obrigação do parlamento.”

O deputado Olímpio Gomes, o Major Olímpio (PDT), que assinou o requeri-mento de criação da CPI, demonstra ce-ticismo quando à efetividade das inves-tigações parlamentares de modo geral. “Com a constituição dos membros da CPI, o governo terá uma maioria folgada. Deixei de acreditar em CPI. Elas não fun-cionam nem no Congresso nacional, nem aqui. Faz sete anos que sou deputado e não vi nenhuma que apurasse qualquer coisa de concreta sobre temas de respon-sabilidade do governo estadual.”

Para Olímpio, nem o fato de a CPI dos Pedágios mexer mais diretamente no bolso dos usuários, será motivo pa-ra o resultado da investigação ser o que se espera. “O governador não quer nem saber de efeito público. Ele tem 68 de-putados na casa pra dizer amém para o que ele quer. Vai enterrar qualquer CPI exatamente porque tem coisas pelas quais o governo pode ser responsabili-zado em todos os níveis, improbidade, corrupção, tudo o que você puder ima-ginar”, afirma o pedetista. Para ser cria-da, a CPI contou com as assinaturas de

Com a CPI dos Pedágios, oposição a Alckmin quer investigação realPOLÍTICA Objetivo é superar a maioria do governo e apurar mecanismos e supostas irregularidades nos contratos e nos modelos das concessões das rodovias paulistas

24 deputados da bancada do PT, dois do PCdoB, do próprio Olímpio, Carlos Giannazi (PSOL), além dos deputados da base governista Afonso Lobato (PV), Rafael Silva (PDT), Rogério Nogueira (DEM) e José Bittencourt (PSD).

Modelo de concessãoOs oposicionistas na Assembleia que-

rem saber por que o modelo que conce-de a exploração das estradas se dá pelo maior valor da outorga, como da rodo-via Bandeirantes e do sistema Anchie-ta-Imigrantes, e quais os mecanismos. Segundo Mentor, o fator determinan-te que diferencia o preço dos pedágios de rodovias estaduais e federais é que, nessas últimas, o modelo prevê a con-cessão a quem oferecer a menor tarifa dos pedágios.

“O modelo do estado é oneroso, errado, obriga as empresas que concorreram na licitação a oferecer valores vultosos e es-se valor se reflete no preço do pedágio”, diz Mentor. “Tanto o modelo deles está errado que, nas últimas concessões, es-tão mudando para um modelo híbrido”. Em 2007, o então governador José Ser-ra adotou, para a licitação do trecho Oes-te do Rodoanel, um modelo misto, utili-zando valor de outorga combinado com um teto do valor do pedágio. A licitação da Nova Tamoios, em andamento, tam-bém adota esse procedimento.

O deputado Isac Reis (PT) menciona um efeito perverso do alto preço dos pe-dágios. “As cidades na região oeste, Ca-rapicuíba principalmente, sofrem com os motoristas que fogem do pedágio e vêm por dentro da cidade. Nós não ganhamos nada com isso.”

Um ponto específico que, de acordo com Mentor, os oposicionistas querem investigar é a prorrogação em contra-tos assinada em dezembro de 2006. “Es-sa prorrogação foi feita no apagar das lu-zes do governo, assinada pelo vice-gover-nador em exercício, Cláudio Lembo. Am-pliou os prazos de concessões em até oito anos”, lembra o petista.

Posteriormente, uma auditoria con-tratada pela Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) chegou à conclusão de que as concessionárias te-riam obtido ganhos indevidos que che-gariam a R$ 2 bilhões até 2012 com con-tratos celebrados para corrigir os cha-mados desequilíbrios.

Por meio da assessoria de comunica-ção, a Artesp informa que não comen-ta CPIs, mas não vê problemas em cola-borar com a comissão da Assembleia Le-gislativa. Diz, também, que as investiga-ções sobre os supostos ganhos indevidos estão em segredo de justiça a pedido das concessionárias.

Outro problema no modelo tucano, na opinião de Mentor, é a Taxa Inter-na de Retorno (TIR), índice que, em ou-tras palavras, implica no cálculo do lu-cro das concessionárias. Para o deputa-do, é preciso saber por que a TIR adota-da nas estradas federais gira em torno de 8%, enquanto o das estaduais alcan-ça 20%. Projeções superestimadas de gastos com impostos e cálculos de per-da do valor do pedágio para inflação são itens associados à TIR.

A RBA ouviu, nos bastidores, que al-guns parlamentares da oposição, diante das dificuldades de conseguir chegar a in-vestigações de fato contundentes pela CPI dos Pedágios, já trabalham com a possi-bilidade de apresentar um relatório para-lelo e encaminhá-lo ao Ministério Públi-co. Os trabalhos da comissão têm previ-são de se encerrar em 120 dias. (RBA)

do processo, conselheiro Antonio Roque Citadini, considerou válidos os argumen-tos da empresa de que pode haver exces-so de exigências técnicas no edital, indí-cio de que o certame pode estar direcio-nado – segundo a empresa denunciante, apenas a canadense Bombardier Trans-portation e a japonesa Hitachi atendem às exigências para material rodante exi-gido pela convocação.

O relatório de Citadini cita, como pon-tos a serem esclarecidos no edital, as exi-gências de qualificação técnica no ca-so do produtor do material rodante não participar como licitante, o excesso de especificações técnicas, o valor do pro-jeto e a composição, utilizado como ba-se para as exigências de qualificação re-ferentes ao patrimônio líquido e a garan-tia de execução do contrato.

Pesou, também, para a decisão de Ci-tadini, segundo o relatório, o fato de que

a licitação é, “ainda que indiretamente”, objeto da investigação sobre cartel para compras e prestação de serviço à Com-panhia Paulista de Transporte Metropo-litano (CPTM) e ao Metrô. “O que reforça a necessidade de análise plena do assun-to”, justificou. A Bombardier, citada pela PL Consultoria e RH, é uma das empre-sas envolvidas no esquema de direciona-

Ligação do Metrô ao ABC é suspensa pelo Tribunal de Contas de SP

CARTEL

DENÚNCIA Órgãos técnicos da Justiça vão analisar suspeita de direcionamento do edital em favor de duas empresas, únicas fabricantes de componente exigido no edital; plenário decidirá sobre licitação

mento de preços de licitações e pagamen-to de propina a agentes públicos que está sob investigação pelo Ministério Público Estadual e Federal e pelo Conselho Admi-nistrativo de Defesa Econômica (Cade).

O governo do estado abriria, no dia 16 de abril, a sessão de recebimento de ofer-tas por parte de empresas para partici-par do projeto, cujo contrato é estima-do em R$ 12 bilhões para conclusão das obras até 2018, mas agora terá de aguar-dar a análise dos órgãos técnicos do TCE e a votação do processo em plenário pa-ra poder seguir adiante. A data inicial pa-ra recebimento de propostas de empre-sas interessadas em operar a Linha 18 por 25 anos, em molde similar à conces-são da Linha 4-Amarela do Metrô, era 8 de abril, mas questionamentos ao edi-tal, considerado complexo pelas empre-sas do setor, levaram o governo estadual a adiar o processo. (RBA)

de São Paulo (SP)

O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE) acatou denúncia da empre-sa PL Consultoria e RH contra o edital de parceria público-privada para a constru-ção da Linha 18-Bronze do Metrô, que interligará o ABC Paulista à rede da capi-tal por meio de um monotrilho. O relator

O relator do processo, conselheiro Antonio Roque Citadini, considerou válidos os argumentos da empresa de que pode haver excesso de exigências

“O que se pode concluir é que a CDHU, assim como outros entes do governo estadual, representa uma verdadeira caixa-preta de onde pouco ou quase nada se consegue extrair”

Deputado Antonio Mentor, autor do pedido de convocação e presidente da CPI

Pedágio de Mairiporã na Rodovia Fernão Dias (SP)

ALESP

Reprodução

brasilde 24 a 30 de abril de 201410

Cláudio Silva

NO DIA 21 DE ABRIL, completou quatro anos do assassinato da liderança comu-nitária e ambientalista José Maria Filho, o Zé Maria do Tomé. Após oito dias, no dia 29 de abril, será realizada mais uma importante audiência do processo judi-cial que apura o homicídio.

Zé Maria foi assassinado com mais de vinte tiros, à queima roupa, próxi-mo a sua residência, na comunidade de Tomé, zona rural de Limoeiro do Nor-te (CE). O defensor de direitos huma-nos destacou-se na luta contra a pulve-rização aérea de agrotóxicos, na Chapa-da do Apodi, Ceará. Essa atividade, pro-movida por grandes empresas do agro-negócio, causa a contaminação da água, plantações e solo das comunidades da região. Além disso, provoca diversas do-enças nos trabalhadores das empresas e moradores. Essas denúncias encon-traram repercussões em ações judiciais, procedimentos do Ministério Público (Estadual, Federal e Trabalhista) e em inúmeras pesquisas acadêmicas.

Além das denúncias sobre as conse-quências do uso de agrotóxicos, José Maria Filho enfrentou diretamente as grandes empresas do agronegócio e de-nunciou irregularidades na concessão de terras nos perímetros irrigados da região. Esses perímetros provocam um processo de desapropriação (e mesmo expulsão) de pequenos trabalhadores rurais e concedem as terras para gran-des empresas exportadoras de frutas. Enquanto o estado do Ceará passa por uma de suas maiores secas, essas em-presas têm acesso à água em abundân-cias e condições facilitadas.

Na região da Chapada do Apodi es-tão instaladas empresas como Del Mon-te, BANESA, Nólem e Frutacor, esta úl-tima cujo proprietário é acusado de au-toria intelectual (mandante) do homicí-dio do defensor de Direitos Humanos, Zé Maria.

A morte de José Maria Filho não sig-nificou o fim da luta contra os danos so-

Quatro anos do assassinato de Zé Maria, uma luta contra os agrotóxicos e por justiça!

ciais e ambientais provocados pelas em-presas do agronegócio. Diversos movi-mentos sociais, organizações comunitá-rias, organismos da Igreja e pesquisado-res/as de Universidades Públicas conti-nuam os processos de análise, sistemati-zação e denúncias sobre esses impactos negativos.

Um pouco da história A luta de José Maria, em conjunto com

as organizações comunitárias, pesquisa-dores/as, movimentos populares e diver-sos apoiadores/as, gerou uma pressão social sobre a Câmara Municipal de Li-moeiro do Norte. Em 20 de novembro de 2009, foi promulgada a Lei 1.278/2009 que proibia a pulverização aérea no mu-nicípio. Essa iniciativa legislativa foi con-sidera inédita no Brasil e ganhou reper-cussão internacional, ao banir a pulveri-zação aérea de agrotóxicos.

As empresas do agronegócio da re-gião não cumpriam o disposto na Lei nº 1.278/2009. Então, José Maria Fi-lho torna-se referência nas denúncias sobre as ilegalidades das empresas do agronegócio.

Além disso, Zé Maria continuou, em conjunto com diversas organiza-ções, denunciando a contaminação das águas, do solo e ilegalidades, co-mo grilagens de terras, cometidas pe-las empresas do agronegócio. Todas es-sas denúncias são respaldadas por di-versos procedimentos judiciais e admi-nistrativos, como uma Ação Civil Pú-blica que obrigou a prefeitura de Limo-eiro do Norte a construir um sistema de abastecimento de água alternativo, pois a rede pública estava contaminada pelos agrotóxicos. Outro procedimen-to do Ministério Público Federal apu-ra denúncias de grilagem de terras das empresas do agronegócio em terras da União.

No dia 21 de abril de 2010, o defen-sor de direitos humanos foi assassinado, a poucos metros da sua casa, em típica ação de pistolagem.

A lei que proibia a pulverização aérea foi revogada em dia 20 de maio de 2010, um mês após o assassinato de Zé Maria.

A longa investigação…Logo após o assassinato, foi instaura-

da a investigação na Delegacia de Polí-cia Civil em Limoeiro do Norte. Advo-gados ligados à Rede Nacional de Advo-gados/as Populares no Ceará (RENAP/CE) se dedicaram ao acompanhamen-to das investigações, representando a família no procedimento. Porém, uma série de falhas e limitações foi aponta-da pelos advogados, tais como: não pre-servação do local do crime, demora nas perseguições, falta de estrutura na Dele-gacia local, dentre outras.

A limitação mais grave foi a demora na realização do exame de balística, que po-deria identificar a origem dos projéteis que ceifaram a vida de Zé Maria. Esse exame foi realizado meses após o homicí-dio. Ademais, as testemunhas afirmavam não se sentir seguras em prestar seus de-poimentos na Delegacia local.

Através da pressão social e do acom-panhamento do caso pela Comissão Na-cional de Combate à Violência no Cam-po (CNCVC), pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDH) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Inquéri-to Policial tomou novos rumos.

Poucos meses após o início das inves-tigações, o Inquérito Policial passou a ser conduzido pela Divisão de Homicí-dios, localizada em Fortaleza. Com essa mudança, o procedimento investigativo ganhou alguma celeridade e desenvol-veu um decisivo trabalho de inteligên-cia policial. Além disso, a atuação do Ministério Público Estadual, por meio do Grupo de Atuação Especial de Com-

bate ao Crime Organizado (GAECO), foi fundamental para conclusão da fase de investigação.

Em 26 de junho de 2012, mais de dois anos após a morte do defensor de di-reitos humanos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra João Teixeira Júnior (proprietário da empresa Fruta-cor), José Aldair Gomes Costa (geren-te da citada empresa), Antônio Wellin-gton Ferreira Lima e Francisco Marcos Lima Barros (os dois últimos morado-res da comunidade Tomé, que teriam dado suporte ao assassino) pelo homi-cídio. O primeiro denunciado é um dos mais importantes empresários do agro-negócio no Ceará. O suposto executor seria um conhecido pistoleiro da re-gião, assassinado em julho de 2010 em uma ação policial.

O processo e a expectativa do júri popular

O processo nº 7659-18.2010.8.06.0115, que tramita 1ª Vara da Comarca de Li-moeiro do Norte, é o que trata do homi-cídio de José Maria Filho.

Já foram ouvidas todas as testemunhas da acusação. No último dia 26 de feverei-ro, foram ouvidas quase 20 testemunhas da defesa. Nessa audiência, ocorreu a oi-tiva das testemunhas de José Aldair Go-mes Costa, Antônio Wellington Ferrei-ra Lima e Francisco Marcos Lima Barros Wellington. Espera-se que diversas tes-temunhas do réu João Teixeira sejam ou-vidas no próximo dia 29 de abril. Ainda faltam ser ouvidas algumas testemunhas por Carta Precatória, residentes fora co-marca onde tramita o processo.

Após as oitivas de testemunhas, será realizado o interrogatório dos acusados. Por fim, a juíza de Limoeiro do Norte proferirá a sentença de pronúncia, quan-do se decide se os réus vão ou não a jú-ri popular.

Na avaliação da acusação (Promoto-ria e Assistência) o processo segue em um importante ritmo, na expectativa que antes de junho de 2014 seja proferida a sentença de pronúncia. Ou seja, espera--se que a juíza da comarca de Limoeiro do Norte decida que os réus sejam julga-dos por um Júri Popular.

O caso Zé Maria é emblemático no con-texto dos crimes, assassinatos e violência no campo brasileiro. José Maria Filho foi assassinado por defender direitos huma-nos: direito ao meio ambiente, à terra e ao território, à saúde e à vida.

O Estado brasileiro já está em dívida com a Justiça, diante dos quase quatro anos sem uma resposta efetiva à socie-dade. As organizações de direitos huma-nos, movimentos populares, pesquisado-res/as que atuam na região, organismos da Igreja e diversos apoiadores acompa-nham o caso com atenção e preocupa-ção, esperando que ao final se faça jus-tiça, com a condenação dos responsáveis (mandantes e executores) pelo assassi-nato de José Maria Filho.

José Maria vive!

Claudio Silva é advogado, integra a Re-de Nacional de Advogados e Advogadas

Populares no Ceará e especialista em Eco-nomia e Desenvolvimento Agrário pela Uni-versidade Federal do Espírito Santo/ Escola

Nacional Florestan Fernandes.

VIOLÊNCIA Zé Maria do Tomé, líder comunitário e ambientalista, foi assassinado por denunciar as consequências da pulverização aérea de agrotóxicos e irregularidades na concessão de terras nos perímetros irrigados da região da Chapada do Apodi, Ceará

José Maria Filho enfrentou diretamente as grandes empresas do agronegócio e denunciou irregularidades na concessão de terras nos perímetros irrigados da região

No dia 21 de abril de 2010, o defensor de Direitos Humanos foi assassinado, a poucos metros da sua casa, em típica ação de pistolagem

Fotos: Camila Garcia

Homenagem realizada na Romaria “Luta pela Terra e Água na Chapada”, em 2012

Missa de sétimo dia realizada diante do Incra, em Fortaleza

cultura de 24 a 30 de abril de 2014 11

Maria do Rosário Caetanode São Paulo (SP)

GETÚLIO, O PRIMEIRO longa-metra-gem ficcional do cineasta João Jardim, chega aos cinemas brasileiros no Primei-ro de Maio, Dia do Trabalhador. A data foi escolhida a dedo. “Nossa intenção” – conta o cineasta, diretor de documentá-rios importantes como Janela da Alma e Pro Dia Nascer Feliz – é lembrar e ho-menagear as conquistas do trabalhador brasileiro na era Vargas”.

Gaúcho de São Borja, nascido em 1882, Getúlio deixou “a vida para entrar na História” de forma trágica. Acuado pela UDN, liderada por Carlos Lacerda, que ocupou, junto com a Aeronáutica, a linha de frente das investigações da morte do Major Vaz, o presidente deu um tiro no coração, no dia 24 de agosto de 1954.

O filme de João Jardim não cons-troi uma biografia do polêmico político gaúcho. Quem quiser conhecer a histó-ria completa do presidente morto há 60 anos, deverá buscar as fartas biografias e análises de seu governo impressas em li-vro. A intenção do cineasta é clara: “Des-de o início do projeto, estruturado há cin-co anos em sólidas pesquisas, nosso re-corte consistia em narrar os 19 derradei-ros dias do presidente”.

Getúlio Vargas, que fora revolucioná-rio em 1930 (derrotando a oligarquia café com leite) e tornou-se ditador em 1937, sendo deposto em 1945, voltaria ao poder nas eleições de 1950 (tomou pos-se em 1951). Não terminou o mandato. Morto, teve enterro que mobilizou multi-dões e construiu legado que, ainda hoje, se faz presente. Legado que está na im-plantação da siderurgia brasileira, nas leis trabalhistas e na criação da Petro-bras. Há que se lembrar que a maior par-te do exercício do poder de Vargas se deu no Estado Novo (1937-1945), regime di-tatorial que reprimiu as liberdades civis, torturou e matou os opositores e censu-rou a imprensa. No filme, este período é evocado pelo próprio Vargas, que relem-bra ter rasgado “duas Constituições”.

Carta-TestamentoGetúlio planejou seu suicídio? O fil-

me de João Jardim mostra Alzira Vargas (interpretada pela atriz Drica Moraes), filha predileta do presidente e sua auxi-liar direta, preocupada com as reações do pai ao cerco da “República do Galeão” (grupo político-militar que investigou o Atentado da Tonelero, já que nele mor-rera um quadro da Aeronáutica, o Major Vaz, e ferira Carlos Lacerda). Ao depa-rar-se com o rascunho de carta manus-crita pelo próprio pai, e nela encontrar indícios de que ele poderia recorrer ao suicídio, Alzirinha o interpelou. Getúlio (interpretado por Tony Ramos) tranqui-liza a filha ao garantir que ali estava ape-nas o esboço de um discurso.

A carta manuscrita do presidente será reelaborada por Maciel Filho, jornalista, assessor e grande amigo do presidente (“eles gostavam de ler e discutir Schope-nhauer”, lembra o ator Tony Ramos). O documento ganharia então o texto final que chegaria à posteridade como a “Car-ta-Testamento” de Vargas. Aquela que evoca as “aves de rapina” (“Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, que-rem continuar sugando o povo brasilei-ro, eu ofereço em holocausto a minha vi-da”) e garante: “Era escravo do povo e

hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém”. Pois, “meu sa-crifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate”.

José Soares Maciel Filho, ao reescre-ver a carta de Vargas, preservando os conceitos nela contidos e dando-lhe es-tilo mais depurado, não percebeu que ali estavam todos os indícios de que o pre-sidente pensava em recorrer ao suicídio? Por que não tentou demovê-lo, junto aos familiares mais próximos de Getúlio, in-cluindo a dedicada Alzirinha?

O thriller político, mesclado com dra-ma familiar, de João Jardim e de seu ro-teirista, George Moura (autor da minis-série Amores Roubados) teria criado li-cença histórica ao conformar Maciel Fi-lho (interpretado por Fernando Eiras) em papel tão passivo?

O diretor João Jardim garante que foi fiel aos documentos pesquisados e que são raras as licenças históricas abraça-das pelo roteiro. “Não houve” – asse-gura – “insensibilidade de Maciel Filho para com o gesto extremo de Getúlio”. Gesto que daria trágico desfecho aos 19 dias de tensão vividos no Palácio do Ca-tete. “Fomos fieis aos fatos”, assegura o realizador carioca.

“Todos que cercavam Getúlio pensa-vam que aquele texto, que ele manus-crevera e ao qual Maciel Filho dera re-dação final, seria usado em caso de as-sassinato do presidente. Temia-se que o Catete fosse invadido pelos militares, que conspiravam junto com Lacerda, e que desta invasão resultasse a morte de Vargas. O clima era tão tenso, que es-te desfecho parecia o mais evidente. A clareza do texto e sua transformação em Carta-Testamento é algo que seu deu a posteriori. Ler a carta, reescrita e dati-lografada por Maciel Filho, depois que o suicídio de Vargas era fato, traz uma clareza que não era possível naqueles dias de aflição e medo vividos pelo pre-sidente cercado por todos os lados.”

O cineasta recomenda a leitura dos dois textos originais preservados no Museu da República, que ocupa, hoje, o Palácio do Catete. Ou suas reproduções, numerosas na internet e até numa pla-ca, que Leonel Brizola, um dos herdei-ros do Trabalhismo varguista, fez im-primir em bronze.

“O texto manuscrito de Vargas é mui-to rancoroso. Nele, o presidente acua-do dá enorme ênfase à traição de mui-tos que estiveram ao lado dele. Já o tex-to revisto e datilografado por Maciel Fi-lho, e assinado por Getúlio Vargas, é mais elaborado. E perde muito do ran-cor do esboço original.”

Fontes de celuloidePara construir Getúlio como narrati-

va cinematográfica, João Jardim e seu

fotógrafo, Walter Carvalho (co-dire-tor de Janela da Alma), recorreram a muitas matrizes. O cineasta conta que Z, thriller político de Constantin Cos-tra-Gavras, foi uma das matrizes recor-rentes. “Buscamos neste filme a ten-são e a conspiração, suas marcas prin-cipais, além de recorrermos a muitos personagens e às cenas pela metade, já que a história não para, corre rápi-da por menos de 120 minutos.” Outra fonte foi o drama Domingo Sangren-to, de Paul Greengrass, por “sua pega-da documental” e concentração narra-tiva. Nunca é demais lembrar, diz ele, que “sou um documentarista e a ideia de realizar este filme nasceu quando eu filmava, em várias regiões brasileiras, o documentário Pro Dia Nascer Feliz, sobre os problemas enfrentados por alunos e professores em nossas escolas de primeiro grau”.

João Jardim cita ainda duas fontes inspiradoras. “Vi e revi, muitas vezes, O Profeta, de Jacques Audiard, um filme que se passa numa prisão e prende nos-sa atenção o tempo todo, pois é muito tenso”. Por fim, cita o longa-metragem que, aparentemente, nada tem a ver com Getúlio: O Sol, do russo Alexander Sokurov. “Tirei deste filme, sobre a so-lidão do imperador do Japão, o silêncio do protagonista”.

Quem for assistir ao primeiro longa ficcional de João Jardim verá que ele não é retórico. Alzira Vargas olha o pai, em sua agonia, e tenta dizer o que sente com poucas palavras, pequenos e tensos gestos. Dona Darcy Vargas (numa liber-dade poética, interpretada pela magér-rima Clarice Abujamra) diz uma ou du-as palavras. Maciel Filho também se faz presente sem apelar para a loquacida-de. Só Carlos Lacerda, que os defenso-res de Vargas chamavam de “O Corvo”, o incansável tribuno golpista, desfruta, no filme, do dom da palavra escandida em inúmeros programas de rádio e na TV preto-e-branco.

Walter Carvalho colabora com João Jardim na estruturação imagética da narrativa. Os momentos de maior tensão são aqueles que materizalizam na tela os pesadelos de Vargas. Ele vê militares, em

fileiras prussianas, subindo armados os degraus das escadarias do Catete. Acor-da suado, atordoado.

“Houve momentos” – conta João Jar-dim – “em que pensamos em filmar no pampa gaúcho, espaço tão caro ao imagi-nário de Getúlio, reminiscências de infân-cia daquele homem acuado”. Mas “mu-damos de ideia, pois o pampa está mui-to mudado e, além do mais, poderíamos quebrar o clima tenso que buscávamos”.

Filmar no Palácio do Catete, na mes-ma cama e com Tony Ramos trajando réplica do pijama usado pelo presiden-te, quando desfechou o tiro fatal no co-ração, significou para João Jardim “ex-periência única”.

“Todos nós sabemos que cinema é ima-gem e música. Para a imagem, as locações são fundamentais. Filmar no cenário real em que tudo se passou foi algo muito sig-nificativo para um realizador que, como eu, vem do documentário. Quanto à mú-sica, buscamos a colaboração de Federi-co Jusid, experiente profissional argenti-no, que atua na Espanha e nos EUA, pois queríamos um registro sinfônico que nos ajudasse a construir um thriller político, mesclado com drama familiar.”

Pegada documental A narrativa de João Jardim se respal-

dou em ampla pesquisa histórica, em tes-temunhos escritos de pessoas que estive-ram no palco dos acontecimentos (co-mo Tancredo Neves) e na consulta de dezenas de jornais. Em especial de Últi-ma Hora (pró-Vargas) e Tribuna da Im-prensa (lacerdista). Mas a guerra trava-da por estes dois veículos não ganha rele-vo no filme, já que abriria outra comple-xa frente narrativa.

“Nossa fonte principal foram os diários que Vargas escreveu, a partir de 1930, quando deixou o Rio Grande do Sul ru-mo ao Rio de Janeiro, com os revolucio-nários que puseram termo à República Velha, até 1942. Conversamos também com pessoas como Carlos Heitor Cony e com o filho de José Soares Maciel Filho, que nos ajudou muito. O clima daquele agosto de 1954, nós encontramos nos jor-nais. Mesmo que algo noticiado por eles fosse desmontado, desmentido, no dia seguinte, ali estava impresso o calor da-quele momento.”

Na narrativa fílmica, depois do suicídio de Vargas, João Jardim recorre a ima-gens reais do velório, seguido por gigan-tesco cortejo que levou o presidente ao avião que o transportaria do Rio de Ja-neiro até a sua São Borja natal. As ima-gens reproduzidas pertencem ao filme Glória e Drama de Um Povo, de Alfre-do Palácios, realizado no calor da hora, em 1954.

Quem quiser saber mais sobre a tra-jetória de Vargas, pode ver, em DVD, dois longas documentais: No Mundo em Que Getúlio Viveu, de Jorge Ilelli (1963), e Getúlio Vargas, de Ana Caro-lina (1974). Ou ler os dois volumes da recente biografia escrita por Lira Neto, para a Companhia das Letras. Ou, ain-da, rever a minissérie Agosto, da Rede Globo, baseada em livro de Rubem Fon-seca. Até para comparar, pois nesta sé-rie, Gregório Fortunato, o “anjo negro” (interpretado por Tony Tornado) tem papel de relevo. No filme, Gregório (in-terpretado por Thiago Justino) tem pre-sença mais contida. O thriller mesclado com drama familiar de Jardim centra--se, com ênfase especial, no Getúlio, de Tony Ramos, e em sua filha, Alzirinha (Drica Moraes em grande momento). Além deles, só o Carlos Lacerda, de Ale-xandre Borges ganha destaque.

Os últimos dias de GetúlioCINEMA Filme de João Jardim, que será lançado no Dia do Trabalhador, narra os 19 derradeiros dias de Vargas; a história começa em 5 de agosto de 1954, com o atentado da Rua Tonelero – que feriu Lacerda e matou seu segurança – e termina em 24 de agosto, com o suicídio do então presidente

Ficha técnicaGetúlio, de João Jardim. Com Tony Ramos, Drica Moraes, Alexandre Borges, Thiago Jus-tino, Alexandre Nero, Adriano Garib, Clarice Abujamra e numeroso elenco. Lançamento em primeiro de maio, com aproximadamente 200 cópias, em capitais e grandes cidades brasilei-ras. Duração: 110 minutos.

Ao deparar-se com o rascunho de carta manuscrita pelo próprio pai, e nela encontrar indícios de que ele poderia recorrer ao suicídio, Alzirinha o interpelou. Getúlio tranquiliza a filha ao garantir que ali estava apenas o esboço de um discurso

João Jardim recorre a imagens reais do velório, seguido por gigantesco cortejo que levou o presidente ao

avião que o transportaria do Rio de Janeiro até sua São Borja natal

Os momentos de maior tensão são aqueles que materizalizam na tela os pesadelos de Vargas. Ele vê militares, em fileiras prussianas, subindo armados os degraus das escadarias do Catete. Acorda suado, atordoado

Filmar no Palácio do Catete, na mesma cama e com Tony Ramos trajando réplica do pijama usado

pelo presidente, quando desfechou o tiro fatal no coração, significou para

João Jardim “experiência única”

Tony Ramos interpreta Getúlio Vargas na versão de João Jardim

Divulgação

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Adailtom Alves Teixeira

ESTIVE RECENTEMENTE na cidade de Londrina (PR), onde ocorreu o XIV En-contro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, com fazedores de teatro de 15 esta-dos. Além de debates, foi realizada uma mostra com os artistas da cidade. De lá, fui para Vitória (ES), acompanhar o Cur-ta Cena na Rua, realizado pelo Folgazões Cia. de Artes Cênicas.

Na cidade do Rio de Janeiro, vem ocorrendo desde fevereiro desse ano uma ação denominada de Arte Públi-ca – Uma Política em Construção, re-alizada por quatro coletivos em parce-ria com a prefeitura. São eles: Boa Pra-ça, Cia. Mystérios e Novidades, Off-Si-na e Tá Na Rua. Além de apresentações de artistas e grupos de diversas lingua-gens, vêm sendo realizados encontros semanais para discutir a arte pública na cidade.

A arte pública, que pode ser definida de forma sucinta como aquela que está acessível a todos em um espaço públi-co e que faz do transeunte um especta-dor de arte, tem crescido muito no Bra-sil. O teatro de rua, em específico, é uma

Arte pública em contraposição à repressão do mercadoOPINIÃO Existe uma luta em diversas cidades para que se tenham leis que regulamentem o uso dos espaços públicos e para que as autoridades não enquadrem os artistas como marginais

das manifestações que mais crescem em todo o país. Cada uma dessas ações vem tentando sensibilizar os cidadãos e hu-manizar as cidades, que têm se torna-do cada vez mais agressivas, sobretudo quando elas próprias entram na lógica capitalista, deixando de serem lugares de convívio para reforçar apenas o viés de mercado e de escoamento de merca-dorias. A cidade, ela própria, vem se tor-nando cada vez mais uma mercadoria. Nessa lógica de cidade-mercadoria, se inserem os grandes eventos que a trans-forma em um espaço para tudo, menos para os cidadãos que nelas residem.

A maneira de entender essa lógica perversa se deu recentemente na cida-de de São Paulo com o decreto 54.948, de 20 de março de 2014. Faz tempo que os artistas em São Paulo têm enfrentado problemas para disporem sua arte gra-tuitamente para os cidadãos. Depois de muita perseguição, apreensão de mate-rial ou instrumentos musicais, por con-

ta da Operação Delegada – ainda no go-verno Kassab – os artistas se uniram e realizam alguns atos públicos para rei-vindicarem seu espaço na sociedade. Com muita luta conseguiram um De-creto que veio facilitar o trabalho, mas não se contentaram e conseguiram criar junto à Câmara uma Lei pluripartidária para que pudessem exercer seus ofícios, a Lei nº 15.776/13. Mas a mesma gestão em que conseguiram tal proeza recuou e desferiu um tremendo golpe traiçoeiro. O decreto que regulamenta a supracita-da lei inviabiliza por completo as apre-sentações, deixando livre para elas ape-nas as nuvens e o cemitério. É a morte das artes de rua.

Existe uma luta em diversas cidades para que se tenham leis que regulamen-tem o uso dos espaços públicos e para que as autoridades não enquadrem os artistas como marginais. A cidade de Londrina (PR) é uma delas. Porto Ale-gre também aprovou recentemente uma

lei (esperamos e desejamos que sua re-gulamentação não tenha a mesma lógi-ca perversa que em São Paulo).

No Congresso também tramita um Projeto de Lei para regulamentar o uso dos espaços públicos abertos. É impor-tante frisar que todas as leis nada mais são do que dispositivos para garantir o que já é assegurado na Constituição Brasileira, no artigo 5º: o direito à livre expressão e o direito de ir e vir. Seria cô-mico se não fosse trágico.

Muitos são os artistas e coletivos que vêm se reunindo e lutando junto ao po-der público com o intuito de barrar es-ses absurdos em todo o país. Quando a cidade torna-se mercadoria, é preciso disputá-la todo o tempo. Disputá-la pa-ra que ela venha a servir aos interesses dos cidadãos e não aos interesses escu-sos do capital.

Adailtom Alves Teixeira é mestre em Artes, graduado em História; ator e diretor teatral.

Nessa lógica de cidade-mercadoria, se inserem os grandes eventos que a transforma em um espaço para tudo, menos para os cidadãos que nelas residem

Joan Mas/CC

Horizontais: 1. Índice pelo qual as taxas de juros cobradas pelo mercado se balizam no Brasil – País africano que acaba de instituir prisão perpétua para homossexuais – A “missão de paz” da ONU liderada pelo Brasil neste país completa 10 anos. 2. “Ligado”, em inglês – Grito do torcedor numa partida de futebol quando seu time está ganhando de goleada. 3.Necessita-se dele para enviar uma carta pelo Correio – Grupos formados por policiais que atuam nos morros do Rio de Janeiro intimidando e cobrando propinas de moradores – Frequência de rádio. 4.Forma carinho-sa que crianças no jardim de infância chamam as professoras – Órgão ligado à CNBB que orga-niza sem-terra em prol da luta pela reforma agrária – Órgão que comanda o futebol brasileiro. 5.A capital deste Estado (sigla) é Boa Vista – Registro de uma reunião – Organização das Nações Unidas. 6.A vaca muge e o gato (?) – Pele do carneiro – Sua capital (sigla) é Recife – Partido brasi-leiro. 7.Mês do ano – Risada na linguagem da internet. 8.Último estado a ser oficializado no Brasil (sigla) – Obama é o presidente deste país – Aqui. 9.Solitário – Protesto. 10.Catedral – A capital deste estado (sigla) é Porto Velho – “Dentro”, em inglês. 11. Durante a ditadura civil-militar brasi-leira, eles chegaram aos 200 por motivos políticos – Agrupamento da Polícia Militar de São Paulo conhecido por sua brutalidade.

Verticais: 1. Conjunto de elementos interconectados, de modo a formar um todo organizado – Entidade brasileira responsável pela organização de todo esporte no país. 2.”Ovo”, em alemão. 3.Molusco muito apreciado na alimentação - Unidades básicas de matéria que consistem num núcleo central de carga positiva envolto por uma nuvem de elétrons de carga negativa. 5.Ato que viola uma norma moral – Estado (sigla) governado pelo PSDB já há 20 anos. 6.Central de Movimentos Populares – Nome da lei que, ao menos no papel, aboliu a escravidão no país. 7.País na Europa que ao norte faz fronteira com França, Suíça, Áustria e Eslovênia ao longo dos Alpes. 8.Objetivo maior de uma partida de futebol. 9.Gíria usada por jovens para dizer que algo é im-pressionante – Serviço de Atendimento ao Consumidor. 10. Arma portátil de madeira destinada ao arremesso de flechas. 11.Sensível – Uma época foi usado como dinheiro. 12.Divisão de uma escola de samba – Jornal que ficou conhecido como “se espremer sai sangue” – Popularmente chamado de roda. 13.Abandonados. 15. “Casa”, em tupi – Verbo “to go”, em inglês. 16.Gíria tipi-camente paulistana para “irmão”. 17. De modo amplo a circulação de mercadorias em geral, e de modo mais estrito, o comércio ilícito. 18.Reserva de vagas para um determinado segmento.

Horizontais: 1.Selic – Uganda – Haiti. 2.On – Olé. 3.Selo – Milícias – AM. 4.Tia – CPT – CBF. 5.RR – Ata – ONU. 6.Mia – Lã – PE – PCB. 7.Maio – Rs. 8.TO – EUA – Cá. 9.Isolado – Ato. 10.Sé – RO – In. 11.Desaparecidos – Rota.Verticais: 1.Sistema – CBD. 2.Ei. 3.Lula – Átomos. 5.Crime – SP. 6.CMP – Áurea. 7.Itália. 8.Gol. 9.Animal – SAC. 10.Arco. 11.Doído – Sal. 12.Ala – NP – Aro. 13.Esquecidos. 15.Oca – Ir. 16. Mano. 17.Tráfico. 18.Cota.

PALAVRAS CRUZADAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

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américa latina 13de 24 a 30 de abril de 2014

da Redação

O ESCRITOR, romancista, contista, ro-teirista e jornalista colombiano Gabriel García Márquez morreu no último dia 17, aos 87 anos, depois de um quadro médi-co de pneumonia que o manteve hospita-lizado por uma semana.

García Márquez, ou apenas Gabo, ven-cedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, nasceu em 6 de março de 1927, em Aracataca, município produtor de bana-na localizado no departamento de Mag-dalena. Era filho do telegrafista Gabriel Eligio Garcia e da filha de coronel Lui-sa Santiaga Marquez Iguaran, tendo si-do criado até os oito anos de idade pelos avós maternos.

No final do ensino secundário, Már-quez foi para a capital Bogotá estudar Di-reito, ingressando na Universidade Na-cional da Colômbia. Tinha por objetivo agradar seus pais, mas dedicava boa par-te de seu tempo à leitura e ao descobri-mento de novos autores.

Após o assassinato do político Jorge Eliécer Gaitán, em abril de 1948, a facul-dade é fechada e Gabo desiste de se tor-nar um advogado, concentrando-se no jornalismo. Muda-se então para Barran-quilla, localizada ao norte, para traba-lhar como colunista e repórter do jornal El Heraldo.

Em 1954, após a controvérsia cria-da por uma série de artigos tratando do

naufrágio do A.R.C. Caldas, Gabo é en-viado a Paris como correspondente inter-nacional pelo El Espectador. Na Europa, passa a integrar o círculo de escritores e pensadores que deram vida ao conheci-do boom latino-americano (movimento literário, político e social que surgiu en-tre 1960 e 1970).

ObrasO reconhecimento internacional veio

com a publicação de Cem Anos de Soli-dão em junho de 1967. O livro é consi-derado sua obra-prima e transforma a América Latina na grande “pátria” do realismo mágico, colocando no mapa um Caribe inimaginável em outros lu-gares com história incrível de uma sa-ga familiar.

Garcia Márquez nunca abandonou su-as raízes ou a paixão pela região que ins-pirou sua obra mais famosa. Ao receber

Aos 87 anos, morre García MárquezLUTO Autor colombiano radicado na Cidade do México, que já vinha enfrentando problemas de saúde há algum tempo, não resistiu a uma pneumonia e veio a falecer no dia 17

ido vê-lo. E voltou a um silêncio profun-do e prolongado. Não ouvi de ninguém, de nenhum dos amigos realmente pró-ximos, menção alguma à demência se-nil. O que sim, sei, é que aquela memória prodigiosa de García Márquez não existe mais, e faz tempo.

Conta Jaime, agora, exatamente o que me contou em Cartagena: o prolongado e intenso tratamento com quimioterapia ao qual García Márquez se submeteu pa-ra superar um câncer linfático que o afe-tou em 1999 acabou de prejudicar de vez sua memória. Os efeitos começaram a se fazer sentir aos poucos, e se agravaram nos últimos seis anos.

Na verdade, tem sido fácil constatar is-so. Gabriel García Márquez sempre foi dono de uma memória sem limites, e es-sa memória se desvaneceu.

Lembro das muitas vezes que vi como ele interrogava alguém sobre determina-do tema – volta e meia aconteceu comi-go – e, anos depois, era capaz de rearmar a história ouvida como se tivesse sido vi-

vida por ele dois dias antes. Era capaz de descrever determinada rua de alguma ci-dade como se estivesse chegando de lá. Discutir com ele era, na imensa maioria das vezes, perder tempo: acabava sempre achando alguma prova inconteste de que sua memória era imbatível.

Assim ele escreveu tudo que escreveu. Disse, ao longo da vida, que não há uma só linha, em toda a sua obra, que não ti-vesse como ponto de partida um dado da realidade. Ou seja: um dado guardado, intacto, em sua memória.

Bem: essa memória se acabou. E, com ela, se acabou a escrita mais luminosa das últimas muitas décadas da literatura feita na América de todos nós.

Numa tarde de novembro de 2008, ele me disse, no jardim da sua casa: “Não es-crevo mais porque já não tenho ideias para escrever”. Brinquei, dizendo que era a mesma coisa que ele havia me dito ao longo de mais de 20 anos.

Já contei essa história em alguns tex-tos que escrevi sobre ele. O que não contei, porém, conto agora: ao ouvir meu comentário, Gabriel García Már-quez me olhou e disse num fio de voz: “Ideias, eu até que tenho, ou devo ter. Só que na hora de escrever não me lem-bro de nenhuma”.

Foi quando entendi que já não haveria mais livros do autor que certa vez disse que escrevia para que os amigos gostas-sem mais dele.

O pacto que nunca existiu volta a exis-tir. Jaime García Márquez disse o que achou que devia dizer. Nos dias seguin-tes, Jaime Abello, diretor da Fundação do Novo Jornalismo, criada e mantida por Gabriel García Márquez, resolveu acabar com essa história toda. Negou que o escritor padeça de demência senil, dis-se que não há nenhum diagnóstico médi-co indicando a doença, e que García Már-quez, aos seus 85 anos de vida, é apenas um ancião esquecediço (a palavra, em castelhano, foi ‘olvidadizo’), e que conti-nua desfrutando dele como amigo.

Melhor assim. Em algum lugar de seus longos silêncios Gabriel García Márquez deve abrigar, em vez daquela memória sem fim, a nostalgia de um tempo em que recordar era viver.

Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Este texto foi originalmente

publicado no dia 11 de julho de 2012, na página da Carta Maior.

lho se falam por telefone quase todos os dias, e que o tema das conversas é recor-rente: García Márquez pede que o ajude a lembrar fatos passados.

Disse que o irmão sofre de demência senil, um mal comum na família. Afir-mou que há anos ele não escreve nada, e que não tornará a escrever. Estive com Jaime em Cartagena das Índias outubro de 2010. Numa de nossas muitas conver-sas ele me disse que a doença do irmão estava em estado avançado.

Menos de um ano depois, estive com Mercedes e Gabriel García Márquez, em sua casa na Cidade do México. Foi uma conversa longa, de quase três horas. Du-rante esse tempo, ele falou muito pouco. Entrava em longos silêncios, mas cada vez que eu pressentia que estava alheio ao que Mercedes e eu dizíamos, ele inter-vinha. Eram comentários curtos, dispa-rados entre sorrisos. A certa altura, per-guntou por que meu filho Felipe, que es-tava comigo no México e ele conhece desde os quatro anos de idade, não tinha

Crônica de uma morte anunciadaEm texto publicado em 2012, Eric Nepomuceno, amigo de longa data do escritor, revela detalhes particulares de como Márquez e seus familiares lidaram com o surgimento da demência senil

na Suécia o Prêmio Nobel de Literatu-ra, vestia um liqui liqui (tradicional tra-je colombiano) e, em seu discurso falou de sua terra natal: “Sonho que agora, es-tirpes condenadas a cem anos de solidão tenham uma segunda oportunidade so-bre a terra”.

Outras obras, como O amor nos tem-pos de cólera e O general em seu labi-

rinto, dentre tantas outras, fizeram de García Marquéz uma referência mun-dial de literatura latino-americana. Re-cebeu – entre tantos outros – reconhe-cimentos como o prêmio Rômulo Gal-legos, a condecoração Águila Azteca, no México, e a ordem da Legião de Honra, em Paris.

Gabo sempre defendeu sua postura po-lítica. Rejeitou o intervencionismo esta-dunidense e o capitalismo. Fez amiza-des que levantaram polêmica, como seu amistoso laço com o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, a quem expressou sua admiração durante anos.

Sua doençaEm 1999, foi diagnosticado com um

câncer linfático. A respeito, o escritor declarou no ano de 2000, em uma en-trevista ao jornal El Tiempo, de Bogotá, o seguinte:

“Há mais de um ano fui submetido a um tratamento de três meses contra um linfoma, e hoje me surpreendo eu mes-mo da enorme loteria que foi esse trope-ço em minha vida. Pelo medo de não ter tempo para terminar os três volumes de minhas memórias e os livros de contos que tinha começado, reduzi ao mínimo as relações com meus amigos, desconec-tei o telefone, cancelei as viagens e todos os compromissos pendentes e futuros, e me coloquei a escrever todos os dias sem interrupção das oito da manhã até as du-as da tarde. Durante esse tempo, já sem qualquer tipo de medicação, minha rela-ção com os médicos se reduziu a contro-les anuais e a uma dieta simples para não passar do peso. Entre tantas, regressei ao jornalismo, voltei ao meu vício favorito da música e coloquei em dia minhas leituras atrasadas.”

Sua falta de saúde o obrigou a abando-nar a vida pública recentemente. No en-tanto, foi visto no dia 29 de setembro du-rante a inauguração de um salão de jo-gos na Cidade do México, quando Gabo foi convidado de honra; acompanhado de sua família, na ocasião, o escritor se mostrou animado. (TeleSur)

Eric Nepomuceno

Ninguém combinou nada com nin-guém, nada foi pedido a quem quer que fosse, mas existia uma espécie de pacto silencioso: não mencionar, fora de cír-culos absolutamente restritos e da mais rigorosa confiança, que Gabriel García Márquez perdia, pouco a pouco no prin-cípio, e rapidamente depois, a memória.

Começou há alguns anos. Mas foi a partir dos últimos quatro que o proces-so se acelerou. As declarações emocio-nadas de seu irmão caçula, Jaime, na se-mana passada, correram mundo e aca-baram escancarando o assunto. Ele não foi o primeiro a romper aquele pacto não declarado: um mês antes, o jornalista co-lombiano Plínio Apuleyo Mendoza men-cionou a perda de memória do escritor.

Há algum tempo circulam rumores so-bre o estado de saúde de García Márquez. São especulações de todo tipo, e o que fi-zeram Plínio Apuleyo Mendoza primeiro, e Jaime depois, serve ao menos para es-clarecer alguns pontos.

O jornalista, amigo de García Már-quez há mais de meio século, seu com-padre, foi mais contido. Relatou que du-rante um longo tempo os dois se falavam por telefone quase todas as semanas. E que, a partir de determinada época – ele não disse quando – García Márquez dei-xou de ligar. Daí em diante, já não se fa-laram. Sempre que ele telefonava para o México, ouvia alguma desculpa delicada e viável. A explicação veio, enfim, de um dos filhos de García Márquez, que contou que seu pai não reconhecia mais as pes-soas pela voz, só pessoalmente. E que por isso já não atendia as ligações.

Jaime foi caudaloso em suas declara-ções. Contou que ele e o irmão mais ve-

O reconhecimento internacional veio com a publicação de Cem Anos de Solidão em junho de 1967. O livro é considerado sua obra-prima e transforma a América Latina na grande “pátria” do realismo mágico

Andrés Reyes/Reprodução FN PI

O escritor colombiano Gabriel Garcia Marquéz

internacional de 24 a 30 de abril de 201416

lar de Donetsk em veículos blindados do exército ucraniano. A cidade teve a pre-feitura tomada por ativistas mascarados e armados com fuzis e rifles. Em Odessa, cidade banhada pelo mar Negro, houve também manifestações pró-Rússia. No local, separatistas proclamaram o surgi-mento da República Popular de Odessa.

Muro de BerlimPutin chegou a dizer à chanceler ale-

mã, Angela Merkel, que a escalada do conflito coloca a Ucrânia “à beira de uma guerra civil”.

Em resposta, o primeiro-ministro ucra-niano, Arseni Yatseniuk, afirmou que a Rússia “exporta terrorismo”, aludin- do às atitudes do Kremlin na porção leste do país, onde ativistas pró-Rússia se ma-nifestam contra Kiev.

“Nossos vizinhos russos querem cons-truir um novo muro de Berlim e voltar aos tempos da Guerra Fria”, disse o premiê.

Segundo Yatseniuk, o terrorismo seria o “novo produto de exportação” de Mos-cou. “Ao longo das últimas semanas, as autoridades russas se omitiram sobre seus grupos de sabotagem junto a ter-roristas locais, que dispararam com me-tralhadoras e mataram militares e civis ucranianos”, disse.

Além disso, os serviços de segurança ucranianos também denunciaram que os comandantes dos separatistas recebe-ram ordens do Kremlin de “disparar pa-ra matar”. (Opera Mundi)

de São Paulo (SP)

APESAR DAS TENTATIVAS, a Europa não conseguiria cortar a compra de gás russo, nem reduzir por completo sua dependência de energia em relação à Rússia, declarou recentemente o presi-dente russo, Vladimir Putin, em entre-vista ao Linha Direta, tradicional pro-grama russo de perguntas e respostas transmitido pela TV. De acordo com o chefe do Kremlin, seu país fornece cer-ca de 30% da demanda de gás natural da Europa.

“Claro, todos estão cuidando de di-versificar o fornecimento. Lá, na Euro-pa, eles falam sobre aumentar a inde-pendência do fornecedor russo”, disse Putin.” Do mesmo jeito, nós começa-mos a negociar e tomar medidas em di-reção à independência em relação aos nossos consumidores”, acrescentou à época.

Segundo a Reuters, a Europa tem condições de cortar as importações rus-sas no equivalente a 18 bilhões de dóla-res (R$ 40 bi) por ano, o que representa um terço do que é atualmente forneci-do pela Rússia. Por outro lado, Moscou tem se dedicado a estreitar laços com a Ásia nos últimos tempos.

No programa, Putin também ressal-tou ter esperança em alcançar um acor-do com a Ucrânia sobre as remessas de gás. Os esforços da Europa represen-tam uma tentativa de punir o Kremlin pelo seu posicionamento em relação a Kiev nos últimos tempos.

No início do mês, a empresa russa Ga-zprom, que tem ligações muito estreitas com o governo, anunciou dois aumen-tos consecutivos do preço do gás en-viado para a Ucrânia. Na ocasião, Kiev ameaçou levar a Rússia ao tribunal de arbitragem, numa disputa que já discu-tia as possibilidades do perigo nas en-tregas de gás para a Europa ocidental.

Tropas russas na CrimeiaNo mesmo programa televisivo, Putin

admitiu pela primeira vez que soldados russos já estavam na Crimeia antes e du-rante a consulta popular que aprovou a anexação da península ao território rus-so. “Nosso objetivo foi garantir as con-dições para um voto livre”, disse o líder à emissora, argumentando que os sol-dados com uniformes sem insígnia que apareceram na Crimeia no fim de feve-reiro eram, de fato, russos.

Contudo, ele afirmou serem absurdas as acusações de que as Forças Armadas russas estariam agindo agora no leste da Ucrânia, alertando que o governo interi-no “leva o país para o abismo”. Segundo Putin, os envolvidos nas ações de protes-

De acordo com o chefe do Kremlin, seu país fornece cerca de

30%da demanda de gás natural da

Europa

Europa depende de gás russo, diz PutinUCRÂNIA DIVIDIDA Em programa de perguntas e respostas, presidente também admitiu que Moscou tinha tropas na Crimeia antes de anexação e negou espionagem de cidadãos a Snowden

to “são todos cidadãos locais” e destacou que a Rússia “utilizará todos os meios” para ajudar a população de origem russa que vive no sudeste da Ucrânia a “definir seu próprio destino”.

De acordo com o líder russo, o Kremlin tem o direito de utilizar as Forças Arma-das na região, ainda que “espere não ter que fazer uso desse direito”, asseguran-do que a Otan não “lhe dá medo”. No en-tanto, dias atrás três pessoas morreram, durante ataque a uma base ucraniana em Maiupol, no sudeste da Ucrânia. Quanto a isso, Putin desconversou e respondeu que “tudo isto não passa de bobagem”.

“Somente com o diálogo — não com o uso de força militar, tanques e aviões — é que a ordem poderá voltar a ser impos-ta no país”.

Snowden Ex-analista da NSA e exilado em Mos-

cou desde agosto, Edward Snowden também fez uma pergunta a Putin du-rante o Linha Direta por meio de video-conferência.

“A Rússia intercepta, armazena e anali-sa informação sobre as conversas de mi-lhões de pessoas e considera o presidente justo e justificado este controle em mas-sa?” perguntou Snowden, em inglês.

“Estimado senhor Snowden, o senhor é um antigo agente. Eu também tive rela-ção com os serviços secretos. Vamos fa-lar em termos profissionais”, respondeu Putin. “Com certeza nós não permitimos tais [escutas] em escala massiva e des-controlada. E, em virtude da lei, isso não pode existir. Espero que nunca o faça-mos. Além disso, não temos nem dinhei-ro nem meios técnicos como nos Estados Unidos”, acrescentou.

Para o líder russo, “graças a Deus”, os serviços secretos se encontram sob rígi-do controle do Estado e da sociedade. “Nós temos uma regulamentação legal muito rígida sobre o uso pelos serviços secretos, incluindo as escutas de con-versas e a supervisão na internet”, ga-rantiu Putin, assegurando que o serviço secreto utiliza todos os meios técnicos a seu alcance para combater apenas o cri-me e o terrorismo.

Outras perguntasOutras curiosidades foram pergunta-

das ao presidente russo durante o progra-ma de televisão. Ao ser questionado por uma senhora aposentada se o Kremlin estaria interessado em recuperar o Alas-ca — território que o czar Alexandre II vendeu aos EUA em 1867 — Putin brin-cou: “Nosso país é setentrional. E 70% de nosso território se encontra nas regiões do Norte e dentro do círculo polar. Por acaso o Alasca se encontra no hemisfé-rio Sul? Lá também faz frio. Não nos es-quentaríamos”, respondeu.

Durante o programa, cidadãos apro-veitaram para fazer perguntas de cunho pessoal. Questionado se voltaria a ter uma vida conjugal, Putin respondeu: “Primeiro tenho que casar minha ex-es-posa, Liudmila Alexandrovna, depois pensarei em mim”.

No início deste mês, o Kremlin confir-mou no seu site oficial o divórcio do lí-der russo, apesar de ele e sua ex-esposa terem anunciado em junho passado que não estavam mais juntos. Putin se casou com Liudmila em 28 de julho de 1983. O casal morou durante vários anos na Ale-manha Oriental, onde o atual presiden-te trabalhou para o serviço de espiona-gem (KGB), da extinta União Soviética. (Opera Mundi)

do país, no ano passado, e que faz parte da coalizão do presidente interino, Alek-sandr Turchinov, do Fatherland.

No dia 16, ativistas ergueram as ban-deiras da Rússia e da República Popu-

Rússia usa crise para tentar recuperar território daURSS, diz vice-presidente do Parlamento ucranianoRuslan Koshulinskiy, do partido Svoboda – que faz parte do governo pró-Ocidente da Ucrânia – fala em “guerra midiática”

Vitor Sionenviado especial a Kiev (Ucrânia)

O vice-presidente do Parlamento da Ucrânia, Ruslan Koshulinskiy, afirmou em entrevista exclusiva a Opera Mundi, que a Rússia se aproveita de um movi-mento que pede mais autonomia para a região de Donetsk, no Sudeste, para ten-tar recuperar territórios perdidos com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ele diz que a Rússia, com esse objetivo, faz uma “guerra mi-diática” na área.

Koshulinskiy conversou com a repor-tagem, após participar de uma reunião parlamentar na qual o governo interino apresentou as medidas “antiterroristas” tomadas contra os separatistas no Leste e no Sul da Ucrânia.

De acordo com Koshulinskiy, o que di-ferencia a Crimeia de Donetsk é que, en-quanto a primeira desejava fazer parte da Rússia, a segunda região quer ser mais autônoma – sem se separar da Ucrânia.

Ele é do partido Svoboda, que ganhou força na época dos primeiros protestos

Putin chegou a dizer à chanceler alemã, Angela Merkel, que a escalada

do conflito coloca a Ucrânia “à beira de uma guerra civil”

Em resposta, o primeiro-ministro ucraniano disse: “Nossos vizinhos russos querem construir um novo muro de Berlim e voltar aos tempos da Guerra Fria

Putin destacou que a Rússia “utilizará todos os meios” para

ajudar a população de origem russa que vive no sudeste da Ucrânia a

“definir seu próprio destino”

Russos acompanham pronunciamento de Putin em telão na Praça Vermelha

Localização de focos de turbulência de ativistas pró-Rússia na Ucrânia

Para Ruslan Koshulinskiy, Rússia usa crise na Ucrânia para retomar territórios da antiga URSS

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