19
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA SINTAXE E SEMÂNTICA DO PORTUGUÊS PROFESSOR LEONEL Aluno: Yvantelmack Dantas Valério SCHWARZE, Christoph. La sémantique do verbe In: SCHWARZE, Christoph. Introduction à la sémanti- que lexicale. Tübingen: Narr, 2001 p. 89-113 A semântica do verbo 1. Uma análise introdutória: dormir e acordar 1 Os verbos dormir e acordar formam um pequeno campo lexical, em que, intuitivamente, dormir é o centro, enquanto acordar situa-se na periferia. Examinemos então o verbo dormir. 1.1. dormir: um verbo de estado, semanticamente opaco. A forma sintática canônica desse verbo é evidentemente: (1) SN dormir | x Para determinar a classe à qual pertence esse verbo, é necessário primeiramente perguntar-se qual a natureza geral das entidades designadas pelos verbos. Vimos que os nomes designam as categorias de indivíduos (espécies naturais, objetos geográficos, objetos fabricados etc.) ou as substâncias, e que os adjetivos designam as propriedades (qualidades, quantidades, disposições etc.). Há evidentemente exce- ções e casos pouco claros (o nome sono designa um indivíduo? o adjetivo diverso designa uma proprieda- de?), mas essas relações entre partes do discurso e categorias ontológicas são válidas para a vasta maioria das palavras. Quanto aos verbos, diremos que eles designam tipos de situação. Essa terminologia está baseada na seguinte concepção: em geral, uma frase, enunciada no discurso, designa uma situação. Há situações extremamente simples, como por exemplo a presença de um fenômeno meteorológico. Semelhantemente, um verbo, empregado no discurso, denota um fenômeno meteorológico dado, ancorado no tempo e no espaço. Quando digo (2) Chove afirmo, em geral, que cai água no lugar em que me encontro e no momento em que pronuncio essa frase. Quando digo 1 Quando possível, adaptaremos os exemplos ao português brasileiro. (N. do T.)

A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

  • Upload
    hathuan

  • View
    218

  • Download
    3

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA

SINTAXE E SEMÂNTICA DO PORTUGUÊS

PROFESSOR LEONEL

Aluno: Yvantelmack Dantas Valério

SCHWARZE, Christoph. La sémantique do verbe In: SCHWARZE, Christoph. Introduction à la sémanti-

que lexicale. Tübingen: Narr, 2001 p. 89-113

A semântica do verbo

1. Uma análise introdutória: dormir e acordar1

Os verbos dormir e acordar formam um pequeno campo lexical, em que, intuitivamente, dormir é o

centro, enquanto acordar situa-se na periferia. Examinemos então o verbo dormir.

1.1. dormir: um verbo de estado, semanticamente opaco.

A forma sintática canônica desse verbo é evidentemente: (1)

SN dormir | x

Para determinar a classe à qual pertence esse verbo, é necessário primeiramente perguntar-se

qual a natureza geral das entidades designadas pelos verbos. Vimos que os nomes designam as categorias

de indivíduos (espécies naturais, objetos geográficos, objetos fabricados etc.) ou as substâncias, e que os

adjetivos designam as propriedades (qualidades, quantidades, disposições etc.). Há evidentemente exce-

ções e casos pouco claros (o nome sono designa um indivíduo? o adjetivo diverso designa uma proprieda-

de?), mas essas relações entre partes do discurso e categorias ontológicas são válidas para a vasta maioria

das palavras. Quanto aos verbos, diremos que eles designam tipos de situação.

Essa terminologia está baseada na seguinte concepção: em geral, uma frase, enunciada no discurso,

designa uma situação. Há situações extremamente simples, como por exemplo a presença de um fenômeno

meteorológico. Semelhantemente, um verbo, empregado no discurso, denota um fenômeno meteorológico

dado, ancorado no tempo e no espaço. Quando digo

(2) Chove

afirmo, em geral, que cai água no lugar em que me encontro e no momento em que pronuncio essa frase.

Quando digo

1 Quando possível, adaptaremos os exemplos ao português brasileiro. (N. do T.)

Page 2: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

(3) Graniza2

afirmo a existência, no lugar e no momento em que falo, de um fenômeno meteorológico de outra natureza:

caem pedras de gelo. Ora, os verbos são capazes de exprimir esse tipo de diferença. Notemos que os ver-

bos, no nível lexical, não comportam ancoragem temporal ou espacial: não há verbo cujo sentido seja ‘cho-

ve aqui e agora’, mas ao contrário, a ancoragem não é fixada no nível lexical, uma vez que podemos dizer,

empregando os mesmos verbos:

(4) Amanhã, choverá durante todo o dia. (5) Granizou sobre os vinhedos. Ora, a maior parte das situações são mais complexas que essas definidas pelos fenômenos meteoro-

lógicos. Elas têm em particular que os indivíduos e substâncias participam de maneira constitutiva. Assim,

as situações designadas pelo verbo dormir não podem existir sem que haja um ser animado que se encon-

tre em estado de sono. Na definição de uma situação, há que se distinguir entre o tipo da situação e seus

participantes constitutivos. Em uma frase como

(6) O gato dorme O verbo dorme designa o tipo da situação que ocorre, e o sintagma nominal o gato designa o partici-

pante constitutivo.

Qual é então a classe a que pertence o verbo dormir? É simplesmente situação? Veremos a

partir de agora que temos interesse em fazer distinções mais específicas; isso porque dissemos que dormir

designa um estado. Em nossa notação canônica escreveremos então, no que concerne a dormir, que o va-

lor do atributo classe é estado.

Empregaremos este termo com o seguinte sentido:

Um estado é uma situação

não controlada por um agente e sem evolução interna. Essa definição não é plenamente compreensível no estado atual de nossa discussão, mas ela con-

tém os elementos que têm por função distinguir os estados de outras classes que nós introduziremos a se-

guir.

Quanto à descrição semântica de dormir, nós não podemos dizer, neste ponto da discussão, mais do

que isto:

(7) dormir

SN dormir | x

dormir (x) classe = estado

2 O verbo granizar é meio esquisito, mas está registrado no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa; em português usamos comumente cair granizo ou chover granizo, preferi manter o verbo granizar por questões puramente sintáticas. (N. do T.)

Page 3: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Mas como definir este estado? Vejamos o que fazem os dicionários. O PL parece querer eximir-se

do trabalho dizendo que dormir significa ”estar em estado de sono”, mas ele aceita o desafio de explicar o

nome sono. Veja o que ele diz:

(8) Estado de uma pessoa onde a vigilância se acha suspensa de modo imediatamente reversível. O PR adota o mesmo procedimento, mas ele é mais explícito, e certamente mais instrutivo, quando

se dispõe a definir o significado de sono:

(9) Estado fisiologicamente normal e periódico caracterizado essencialmente pela suspensão da vigi-

lância, pelo relaxamento muscular, pela diminuição da circulação e pela atividade onírica. Mas é esta definição que concerne à nossa faculdade de linguagem? Reportemo-nos a distinção que

introduzimos, em nossa discussão sobre a polissemia, entre as estruturas semânticas propriamente ditas e

nossos conhecimentos não-lingüísticos, organizados na estrutura conceitual. Esta distinção nos permite su-

por que nossa concepção de sono se encontra definida, de uma maneira ou de outra, no nível conceitual, o

que nos dispensa de dar esta definição ao nível semântico propriamente dito. Nós podemos então tratar

dormir da mesma maneira que nós havíamos feito com os adjetivos de cor: dormir é inanalisável ( ou: opa-

co) no nível semântico; seu significado lexical consiste em um tipo de acesso ao conceito de sono.

1.2. acordar: tipos de situação e papéis

O acordar se distingue de dormir de muitas maneiras. De um lado, sua forma sintática padrão é dife-

rente: há dois sintagmas nominais, SN1 e SN2. Esta complexidade sintática tem uma contrapartida no nível

semântico: acordar tem dois argumentos.

Uma segunda diferença: acordar não designa um estado. Com efeito, o tipo de situação à qual este

verbo se reporta tem uma evolução interna: ela comporta uma mudança. Essa mudança compreende dois

estados: um estado de início e um de resultado. Esses dois estados são caracterizados por se reportarem

ao mesmo tipo de situação, ‘dormir’, e eles têm o mesmo participante constitutivo. O estado de início é ca-

racterizado positivamente (A dorme), enquanto o estado de resultado é caracterizado de forma negativa (A

não dorme).

Chamaremos ação a classe à qual acordar pertence. Eis a definição:

Uma ação é uma situação controlada por um agente e que tem uma evolução interna.

Esta evolução interna pode ser, como é o caso aqui, uma mudança de estado psicológico, mas tam-

bém uma mudança de estado material (por exemplo abrir) ou mental (por exemplo descobrir), uma mudança

de quantidade (por exemplo aumentar), de posse (por exemplo dar) ou de lugar (por exemplo transportar)

etc.

Aproveitamos a ocasião para introduzir um terceiro tipo verbal: de atividade. São exemplos des-

se tipo verbal verbos como dançar, falar, correr etc. Eis sua definição:

Uma atividade é uma situação controlada por um agente, mas que não

possui uma evolução interna.

Page 4: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Teremos assim uma taxinomia dos tipos de situação que pode ser representada pela figura 1:

situação

estado atividade ação

dormir (x) dançar (x) acordar (x, y)

Fig. 1: Uma taxinomia dos tipos de situação

Um pouco de história Essa tipologia semântica do verbo cai na denominação de Aktionsart, termo alemão que se traduz

em português por modo de ação, modalidade de ação ou ordem de processo e que nós chamamos ti-

pos de situação, para prevenir eventuais mal-entendidos. A problemática dos tipos de situação tem consti-

tuído numerosos trabalhos, sobretudo no contexto dos tempos do verbo e dos advérbios de tempo.

O sistema de tipos de situação mais conhecido é o de Vendler (1967). Vendler distingue quatro as-

pectos, a saber: os estados (states), as atividades (activities), as realizações (em curso) (accomplishments)

e realizações (terminadas) (achievements). Em vez de explicar essas noções em detalhes, limitar-nos-emos

a citar os exemplos de Vendler:

(10) 3

states A knows B, A owns B, A is sick activities A is pushing a cart, A is running acomplishments A is running a mile, A is writing a letter achievements A reaches the summit, A wins the race

Para ver de perto a evolução ulterior da teoria dos tipos de situação, ver François (1985). Mas voltemos a nossa análise do verbo acordar. Estabelecemos os pontos seguintes:

� como valor do atributo classe esse verbo terá ação. � as situações designadas por esse verbo comportam uma mudança de estado. � esse verbo tem dois argumentos

Os papéis

Mas isso não é tudo. Devemos igualmente dar conta do fato de que o primeiro argumento de acordar

é o autor da mudança de estado e que o segundo argumento sofre essa mudança. Esse gênero de informa-

ção lexical se chama estrutura de papéis: os participantes constitutivos dos diferentes tipos de situação de-

terminam as regras. Eis a definição de papel.

Um papel é a maneira pela qual um participante constitutivo participa

da situação

3 A conhece B, A tem B, A está doente A está empurrando uma carroça. A está correndo. A está correndo uma milha. A está escrevendo uma carta. A alcança o topo. A vence a corrida.

Page 5: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Em princípio, os papéis podem ser definidos em níveis de abstração variáveis. Assim, em uma situa-

ção do tipo A vende B, A é o vendedor, mas também o agente. Procura-se, em geral, definir os papéis no

nível de abstração mais elevado, porém que permita predizer, em uma larga medida, a realização sintática

dos argumentos. Veja a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto

direto da frase:

(11) O bebê acorda seus pais de madrugada. Ora, esta realização sintática é perfeitamente predizível: quando um verbo tem dois argumentos, x e

y, e quando x está no papel de agente e y no de tema (para a explicação desses termos, ver abaixo), se x é

sujeito e y objeto direto, percebe-se que a frase está na voz ativa. Há toda uma teoria, chamada teoria da li-

gação, (ing. linking theory), que visa definir esse gênero de relação entre a estrutura argumental e as rela-

ções gramaticais; ver, por exemplo, os trabalhos reunidos em But/Geuder (1998).

Quanto a nossa análise semântica, nós exprimiremos as estrutura dos papéis mediante um atributo

papel, que tem por valores os termos agente, paciente e tema.

Podemos caracterizar os três papéis como se segue:

� O agente é aquele que cria e controla a situação. Ele é constitutivo das ações e das atividades.

� O paciente é aquele que se submete à situação ou dela se beneficia, sem criá-

la ou controlá-la. Ele é constitutivo de uma subclasse das ações. � O tema participa da situação de maneira não específica. Ele é constitutivo dos

estados e das ações. Vejamos alguns exemplos para ilustrar essas noções, veja as frases (12) e (13): (12) Jean empurra a bicicleta. Esta frase designa uma situação, na qual se distinguem dois participantes constitutivos, Jean e bici-

cleta. Jean está no papel de agente, enquanto bicicleta está no papel de tema: cf. a fig. 2.

situação agente tema Fig. 2: Jean empurra a bicicleta. (13) Um ladrão furta a bicicleta de Jean.4

4 Na tradução desse exemplo surge uma ambigüidade difícil de resolver: de Jean é objeto indireto ou adjun-to adnominal. No texto original o elemento é tomado como objeto indireto, semanticamente falando Jean desempenha o papel de paciente. (N. do T.)

Page 6: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Aqui, nós temos uma situação de tipo diferente; a que o verbo furtar exprime. Quanto à estrutura de

papéis, nós temos um agente (o ladrão), um paciente (Jean) e um tema (bicicleta); cf. a fig. 3

Fig. 3: Um ladrão furta a bicicleta de Jean.

Um pouco mais de história A noção de estrutura de papéis remonta a duas origens independentes, todas duas localizadas no

domínio da sintaxe do verbo: a teoria dos actantes de Tesnière (1959) e a gramática de casos de Fillmore

(1968). Historicamente anterior, sem ser precursor de Fillmore, Tesnière postulou que existe, entre o verbo

e os sintagmas nominais que gravitam em torno dele, uma relação estrutural, a de dependência, e funções,

que ele chama actantes. Os actantes são em número de três (Tesnière 1959: 104s).

o primeiro actante, semanticamente <<aquele que faz a ação>> o segundo actante <<aquele que sofre a ação>> o terceiro actante <<aquele que se beneficia ou se prejudica com a ação>> Fillmore propôs uma sintaxe fundada nos “casos profundos” (deep cases) Ele distingue seis casos;

citaremos literalmente as definições de (Fillmore 1968: 24s):

� Agentive, the case of the typically animate perceived instigator of the action identified by the verb.

� Instrumental, the case of the inanimate force or object causally involved in the action or state identified by the verb.

� Dative, the case of the animate being affected by the state or action identified by the verb. � Factitive, the case of the object or being resulting from the action or state identified by the

verb. � Locative, the case which identifies the location or spatial orientation of the state or action

identified by the verb. � Objective, the semantically most neutral case, ...things which are affected by the state or ac-

tion identified by the verb. As duas concepções, que, malgrado suas diferenças, são variantes da mesma idéia, tiveram um su-

cesso enorme: a de Tesnière (1959) é a base da gramática dita de dependência (all. Dependenzgrammatik),

teoria que tem desempenhado um papel importante, notadamente na Alemanha, pelo menos ente os ger-

manistas e romanistas. A teoria dos casos de Fillmore (1968) tem sofrido numerosas modificações. No que

concerne tanto ao nome caso (ou papel) quanto ao seu estatuto gramatical. Sobre a designação de papéis

temáticos (theta-roles), ela foi incorporada a diversos modelos da sintaxe gerativa. De outro lado, o conceito

de papel é de uma importância central em muitos modelos “cognitivos” do léxico; cf. Jackendoff (1985), Croft

(1998). Nos trabalhos mais recentes sobre a interface entre a estrutura lexical e a forma sintática, é muitas

vezes difícil de reconhecer suas origens mais distantes. Mas a idéia segundo a qual a informação conceitual

codificada no léxico determina, ao menos parcialmente, a estrutura sintática, está mais viva que nunca.

situação agente paciente tema

Page 7: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Vamos agora reunir todos os elementos necessários para formular a entrada lexical do verbo ador-

mecer, como segue:

(14) adormecer

SN1 adormecer SN2 | | x y

adormecer (ARG1, ARG2) classe = ação ARG1 = x

papel = agente ARG2 = y

papel = tema resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = não dormir (y) estado2 = dormir (y)

O verbo acordar se distingue do verbo adormecer unicamente pelo fato de que a seqüência dos es-

tados subjacentes à transformação expressa pelo verbo se acha invertida. Nós podemos então imediata-

mente formular a análise semântica desse verbo, assim:

(15) acordar

SN1 acordar SN2 | | x y acordar (ARG1, ARG2)

classe = ação ARG1 = x

papel = agente ARG2 = y

papel = tema resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = dormir (y) estado2 = não dormir (y)

Fig. 4: Agente, tema e mudança de estado.

1.3. pegar no sono5 e acordar-se6: ação versus processo

5 Em francês o verbo endormir (adormecer) pode ser empregado pronominalmente, em português não exis-te essa possibilidade, no entanto dispomos de um verbo usado de forma semelhante: pegar no sono, com o sentido de “adormecer”. Adormeci às duas da manhã. É claro que a correspondência não é perfeita, mas para efeitos de entendimento da teoria apresentada talvez seja suficiente. (N. do T.)

Page 8: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Os verbos deitar e acordar aparecem às vezes sob a forma pronominal que, para uma outra visão, é

o equivalente dos verbos al. einschlafen e aufwachen. Isso levanta a questão de saber como a voz prono-

minal se distingue, do ponto de vista semântico, da construção transitiva normal. A resposta se encontra a-

inda no nível dos modos da ação: enquanto que adormecer e acordar designam tipos de ação, pegar no so-

no e acordar-se designam processos. Definiremos esse modo de ação da seguinte maneira:

Um processo é uma situação ancorada no espaço e no tempo, não

controlada por um agente, mas que tem uma evolução interna.

Um processo se distingue então de uma ação e de uma atividade pela ausência de um agente (e por

conseguinte, de um segundo argumento) e de um estado pela presença de uma transformação interna.

Completemos então nossa taxinomia das situações introduzindo a categoria de processo (fig. 5)

situação

estado processo atividade ação

dormir (x) pegar no sono (x) dançar (x) acordar (x, y) Fig. 5: Uma taxinomia mais completa dos tipos de situação

Resumamos assim, sob a forma de matriz, as definições dos tipos de situação (fig. 6)

modos de ação papéis evolução interna exemplos

estado tema - A dorme processo tema + A aumenta atividade agente - A dança ação agente & tema + A abre um pote agente & paciente A esbofeteia B agente & tema & paciente A rouba B de C Fig. 6: Os tipos de situação

Vejamos agora as representações semânticas de nossos dois verbos, na voz pronominal: (16) pegar no sono

SN1 pegar no sono | x

pegar no sono (ARG) classe = processo ARG1 = x

6 Problema semelhante ocorre com o verbo acordar. A Gramática Normativa condena o uso desse verbo como pronominal (ninguém pode acordar a si mesmo), no entanto o vulgo utiliza muito expressões do tipo “Me acordei cedo hoje”, além disso o verbo está registrado no dicionário Aurélio e no Houaiss. É a esse uso que faremos referência nessa tradução. (N. do T.)

Page 9: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

papel = tema resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = não dormir (x) estado2 = dormir (x)

(17) acordar-se

SN1 acordar-se | x

acordar-se (ARG1) classe = processo ARG1 = x

papel = tema resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = dormir (x) estado2 = não dormir (x)

Fig. 7: Uma mudança de estado sem agente. Acrescentemos que não é necessário que (16) e (17) figurem no léxico do português, uma vez que se

pode derivá-los dos verbos de ação correspondentes, dormir e acordar. A derivação deve então suprimir um

argumento desses verbos: o agente.

Exercícios recomendados

� Reagrupar os verbos seguintes segundo seu grau de semelhança (muitas soluções são possíveis):

dar, proibir, obter, mandar, deixar, receber.

� Em que se assemelham e em que se distinguem esses verbos?

2. Os verbos de três argumentos

Os dois exercícios que precederam concernem à análise de dois pequenos grupos de verbos. O pri-

meiro é constituído dos verbos dar, receber e conseguir; esses verbos se distinguem daqueles que vimos

analisando pelo fato de possuírem três argumentos. O segundo grupo, que compreende os verbos mandar,

deixar e proibir, tem de particular o fato de que um dos argumentos não é um indivíduo, mas um tipo de a-

ção.

Page 10: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

2.1. dar, receber e conseguir

A semântica de dar e de receber assemelha-se muito à de dormir e acordar. Esses verbos designam

ações que envolvem uma mudança que consiste na transição de um estado dado a outro. As diferenças re-

sidem:

� na natureza dos estados (são estados de posse do tipo A tem B)

� no número de argumentos.

Os verbos dar e receber se distinguem entre si pela distribuição dos papéis, como o demonstra (18) e

(19):

(18) dar

SN1 dar SN2 a SN3 | | | x y z

dar (ARG1, ARG2, ARG3) classe = ação ARG1 = x

papel = agente ARG2 = y

papel = tema ARG3 = z

papel = paciente resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = ter (x,y) estado2 = ter (z,y)

(19) receber

SN1 receber SN2 de SN3 | | | x y z receber (ARG1, ARG2, ARG3)

classe = ação ARG1 = x

papel = paciente ARG2 = y

papel = tema ARG3 = z

papel = agente resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = ter (z,y) estado2 = ter (x,y)

Page 11: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Fig. 8: Paciente e agente Chama-se conversão a relação que existe entre dar e receber, isto é, o fato de que dois verbos de-

signam o mesmo tipo de situação, associando de maneira inversa os papéis às funções gramaticais. Um ou-

tro exemplo de conversão é constituído pelos verbos preceder e seguir

Quanto a conseguir, seu sentido é mais próximo ainda do de receber: o que distingue esses dois

verbos é uma simples nuance, se bem que se possa traduzi-los em alemão pelo mesmo verbo bekommen;

cf. (20) e (21):

(20) a. Eu recebi uma carta b. Ich habe einen Brief bekommen (21) a. Eu consegui uma bolsa b. Ich habe ein Stipendium bekommen Quando conseguir não pode ser traduzido por bekommen, é porque há razões de ordem sintática:

conseguir tem uma segunda forma sintática canônica, que o al. bekommen , diferentemente de erreichen,

não tem (22). Ele é usado ainda em uma estrutura argumental onde um dos argumentos pode ser uma pro-

posição:

(22) a. Eu consegui que me deixassem sair b. Ich habe {*bekommen, erreicht}, dass man mich abreisen lässt Em que consiste então a diferença entre receber e conseguir? Vejamos como os dicionários definem

esses dois verbos:

(23) PL: receber Entrar em possessão do que é dado, ofertado, transmitido, enviado. conseguir fazer com que concordem (aquilo que se deseja) PR: receber entrar em possessão de (qqc) por algo enviado, dado ou comprado etc. conseguir fazer com que concordem, ou que lhe dêem (aquilo que se quer ter) A diferença parece residir no papel assumido pelo sujeito: o sujeito de receber é um paciente puro e

simples, o sujeito de conseguir parece ser paciente e agente de uma vez. Com efeito, as definições

reproduzidas em (23) contêm os verbos concordar e dar, em relação aos quais o indivíduo dado como sujei-

to de conseguir é um paciente. Mas, por outro lado, o verbo concordar figura na expressão causativa fa-

zer com que concordem, cujo sujeito é evidentemente um agente. A análise de nossos exemplos confirma

o que sugerem os dicionários: em (21b), é necessário que eu tenha disputado a bolsa, e em (22a) eu devo

Page 12: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

ter interposto qualquer recurso visando à autorização de partir. Parece então não haver um, mas dois agen-

tes, o que faz com que lhe dêem alguma coisa e aquele que dá.

Ora, essa situação não é caótica como parece. É suficiente, com efeito, dar conta de que o verbo

conseguir tem de particular que seu sentido engloba em si um outro predicado, a saber causar, cujos

argumentos, como o próprio predicado, não têm expressão explícita. Eis como se podem representar os fa-

tos complexos

(24) conseguir

SN1 conseguir SN2 de SN3 | | | x y z

conseguir (ARG1, ARG2, ARG3) classe = ação ARG1 = x

papel = paciente ARG2 = y

papel = tema ARG3 = z

papel = agente resultado = mudança (estado1, estado2) estado1 = ter (z,y) estado2 = ter (x,y)

causar (ARG4, ARG5) ARG4 = ARG1

papel = agente ARG5 = mudança (estado1, estado2)

Essa representação é extremamente longa e complicada, razão suficiente para colocá-la em dúvida.

Mesmo que ela não seja falsa, ela tem o defeito de ser redundante. Se compararmos essa representação

com a de dar (18), veremos que ela a contém, é necessário apenas o predicado dar. Ora, posto que con-

cebemos o léxico como um conjunto de representações que têm entre si relações múltiplas, como a de he-

rança, podemos simplificar (24) acrescentando-lhe o predicado dar, e indicando que a mudança de estado

é causada por uma ação da parte daquele que se beneficia da mudança de estado; o predicado conse-

guir herda seus outros componentes semânticos do predicado dar, definido alhures, mais facilmente. Ve-

jamos então essa representação mais simplificada.

SN1 conseguir SN2 de SN3 | | | x y z

conseguir (ARG1, ARG2, ARG3) classe = ação causar (ARG4, dar (ARG3, ARG2, ARG1)) ARG4 = ARG1

papel = agente

Page 13: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

Fig. 9: Acúmulo de papéis 2.2. mandar, deixar e proibir

Os verbos mandar, deixar e proibir se distinguem de todos os outros verbos que vimos estudando até

aqui pelo fato de um de seus argumentos não ser um objeto, mas um tipo de situação. Contrariamente ao

caso de conseguir, que incorpora um predicado de ação específico, a saber dar, o tipo de situação que ele

tem por argumento não é especificado no nível lexical, e por conseguinte deve aparecer como constituinte

do nível sintático. Efetivamente, esses três verbos regem ora um sintagma nominal no infinitivo ora uma o-

ração subordinada introduzida por que. Aqui discutiremos o primeiro desses casos. As formas sintáticas ca-

nônicas terão então a seguinte forma:

(26) SN1 V a SN2 de SVinf 7

Do ponto de vista sintático, o infinitivo deve ter um sujeito, que não tem uma realização à parte. Ora,

cada um de nossos três verbos estipula que o sujeito invisível é idêntico ao objeto da frase anterior, ou seja,

o SN2. Chama-se controle esse tipo de relação entre o sujeito de um infinitivo regido por um verbo e outra

função gramatical regida pelo mesmo verbo. Em uma frase como (27), há controle do objeto direto, em (28),

temos um caso de controle do sujeito; em uma frase como (29), o sujeito do infinitivo não é controlado:

(27) Ele me proibiu de informar a vocês.

(28) Ele me prometeu me ajudar.

(29) É impossível distinguir quem ou o quê.

Uma outra propriedade partilhada por nossos três verbos é o fato de que eles conferem uma modali-

dade à proposição designada pelo infinitivo.

Então, como se distinguem esses verbos entre si? As diferenças são duas. De um lado, nossos três

verbos especificam de maneira diferente a modalidade que mencionamos: com mandar e proibir, essa mo-

dalidade é de necessidade, com deixar, é de possibilidade.

A segunda diferença consiste na presença de uma negação implícita em um dos três verbos: proibir,

contrariamente a mandar e a deixar, contém uma negação. Essa negação implícita recai sobre o infinitivo, o

que tem por conseqüência a seguinte equivalência:

7 Em português esses três verbos apresentam regências diferentes, desse modo a preposição indicada na representação sintática sofrerá alteração conforme o verbo. (N. do T.)

Page 14: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

(30) O médico me proibiu de fazer esporte = O médico me mandou não fazer esporte.

Antes de formularmos as representações semânticas, resta discutir o problema dos papéis. Se man-

dar, deixar e proibir designam ações, então seus sujeitos desempenham evidentemente o papel de agen-

te. O indivíduo designado pelo SN2 recebe a ação, está, portanto, desempenhando o papel de pacien-

te. Mas o que dizer do infinitivo? Pode-se, em princípio, atribuir-lhe o papel de tema, mas pode-se tam-

bém pensar que os infinitivos não devem ser caracterizados por papel algum. Sem entrar no debate da al-

ternativa, escolhemos a segunda possibilidade, ou seja, em nossa representação, o equivalente do infinitivo

não comportará o atributo papel.

Eis então a representação semântica de nossos três verbos.

(31) mandar

SN1 mandar SN2 SVinf | | | x y p mandar (ARG1, ARG2, ARG3)

classe = ação ARG1= x

papel = agente ARG2= y

papel = paciente ARG3= p

ação = p ARG4 = ARG2 papel = agente

resultado = modalidade necessidade = p

Surpreenderá talvez o fato de o quarto argumento (ARG4) não estar associado a nenhum predicado.

Com efeito, a proposição p, que não é especificada no nível lexical, deve conter um predicado do qual

ARG4 é argumento. Renunciando a tornar explícita essa exigência, nós nos satisfaremos em fazer alusão à

disposição tipográfica, faremos o mesmo na representação que segue:

(32) deixar

SN1 deixar SN2 SVinf | | | x y p deixar (ARG1, ARG2, ARG3)

classe = ação ARG1= x

papel = agente ARG2= y

papel = paciente ARG3= p

ação = p ARG4 = ARG2 papel = agente

resultado = modalidade possibilidade = p

Page 15: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

(33) proibir

SN1 proibir SN2 de SVinf | | | x y p proibir (ARG1, ARG2, ARG3)

classe = ação ARG1= x

papel = agente ARG2= y

papel = paciente ARG3= p

ação = p ARG4 = ARG2 papel = agente

resultado = modalidade necessidade = ¬p

Essas representações pedem um segundo comentário: é correto especificar a proposição que fun-

ciona como objeto dos verbos especificados como sendo de ação? Na seção III. 1.1, dissemos que dor-

mir pertence à classe dos estados; essas análises nos levam a concluir que uma expressão como man-

dar alguém dormir é semanticamente incorreta, o que é evidentemente falso. É preciso então determinar a

classe dessa proposição de maneira mais liberal, por exemplo, como um estado? Mesmo assim, encon-

traremos problemas: mandar alguém se casar não seria uma expressão semanticamente correta. O dilema

se resolve quando se prevê na semântica lexical um princípio de acomodação: quando uma mãe manda

seus filhos dormirem, na realidade ela os está mandado prepararem-se para dormir. Pode-se, então, em-

pregar um predicado de estado como um predicado de ação, quando, entre o estado nomeado e a ação re-

almente designada, há uma relação de causa e efeito. Será necessário evidentemente deixar claros os de-

talhes desse princípio de acomodação: ele não permite de modo algum dizer qualquer coisa.

3. O verbo francês em uma perspectiva comparativa e tipológica.

Quem aprendeu uma língua estrangeira sabe que, do ponto de vista comparativo, não é suficiente

conhecer as simples equivalências lexicais. Assim o alemão kommen equivale na maioria dos contextos,

mas não sempre, ao francês venir (vir); cf. por exemplo:

(34) a. Nach einer Stunde kamen sie an einen Fluss

b. Em aproximadamente uma hora, eles {?vêm, chegam} a um rio.

(35) a. Diese Kisten kommen in den Keller

b. Essas caixas {*vêm, vão} para a adega.

Os significados lexicais dos dois verbos não equivalem senão parcialmente: o significado dêitico do

português vir ‘mover-se para o lugar onde se encontra o locutor’ é mais nítido que no alemão kommen. Em

outros casos, há um tipo de bifurcação: para traduzir pedir em alemão, é necessário sempre decidir entre

bitten e fragen. Chama-se contrastes esse gênero de diferenças comparativas.

Page 16: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

3.1. Um contraste alemão-português

Os contrastes que mencionamos, por importantes que sejam do ponto de vista prático, são de um in-

teresse menor do ponto de vista da semântica lexical, uma vez que eles não marcam uma propriedade mais

geral. Em uma perspectiva puramente sincrônica, eles ocorrem ao azar.

Mas há também contrastes sistemáticos entre o português e o alemão, e justamente esses contras-

tes se situam no nível dos verbos. O primeiro a descobri-los foi Malblanc (1944). Ele observa que os verbos

de movimento, tais como entrar, sair etc., têm múltiplas traduções: fahren, betreten, stürmen etc.: cf.

(36) a. O carro entrou na fazenda.

b. Das auto fuhr in den Hof

(37) a. Os turistas entram na cripta.

b. Die Touristen betraten die Krypta

(38) a. O touro entra na arena.

b. Der Stier stürmte in die Arena.

Do que se conclui que o francês é mais “abstrato” que o alemão, e ele explica isso por uma pretensa

diferença na evolução intelectual das duas línguas, análoga à dos humanos: o alemão, língua jovem, seria

ainda presa aos dados sensíveis, enquanto que o francês, língua velha, teria atingido um alto grau de abs-

tração, sinal da maturidade intelectual.

3.2. Uma tipologia geral dos verbos de movimento

Mas a verdade importante desse gênero de observação não tem sido posta em relevo a não ser pelo

lingüista americano L. Talmy (Talmy 1975, 1985). Analisando a maneira pela qual diferentes línguas organi-

zam a descrição de mudanças de lugar, ele propôs um esquema conceitual segundo o qual cada mudança

de lugar é constituída pelos seguintes elementos:

� um deslocamento (motion)

� um objeto deslocado (figure) um objeto que realiza ou sofre um movimento

� um centro (ground), um lugar ou um objeto em relação ao qual o movimento é definido

� uma trajetória (path) uma linha virtual sobre a qual se efetua o movimento

� e uma maneira (manner) como movimento se realiza

Duas idéias constituem o essencial do pensamento de Talmy. A primeira diz respeito à relação entre

os elementos conceituais da mudança de lugar e as categorias sintáticas, em particular o verbo. Segundo

sua terminologia, as línguas “lexicalizam” esses conceitos associando-os às categorias sintáticas. Ora, a le-

xicalização pode se fazer segundo muitos esquemas (lexicalization patterns). Assim os significados do ver-

bo entrar repousa sobre o esquema “trajetória - verbo”, ao passo que o verbo andar representa o esquema

“maneira - verbo”.

A segunda idéia é a de que uma língua dada pode preferir um dos esquemas de lexicalização e que,

por tanto, é possível estabelecer uma tipologia com base nos esquemas de lexicalização. Ele estabelece

Page 17: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

então uma tipologia fundada nas categorias lexicais em que esses conceitos espaciais são lexicalizados.

Ele distingue três tipos de línguas: as línguas “de maneira” (manner languages), as línguas “de trajetória”

(path languages) e um terceiro tipo, as línguas “de objeto movimentado” (figure languages) que não nos in-

teressam no presente contexto.

Ora, as línguas “de maneira” lexicalizam a maneira pelo verbo, a trajetória é expressa pelo que Talmy

chama de satélites, ou seja, os advérbios, os sintagmas preposicionais ou os afixos. A língua que ele esco-

lhe como exemplo é o inglês, mas o alemão é uma outra língua do mesmo tipo; cf. (39). A língua escolhida

por Talmy como ilustração é o espanhol, mas o francês (e o português) apresenta o mesmo tipo.

(39) a. português

entrar a cavalo

verbo satélite

TRAJETÓRIA MANEIRA

b. alemão

hinen reiten

satélite verbo

TRAJETÓRIA MANEIRA

(40) a. Ele entrou subindo no balcão

b. Er kam über den Balkon hereigeklettrt

É necessário esclarecer que o português também possui verbos que indicam a maneira do movimen-

to, tais como dançar, galopar, andar, navegar, trotar. Mas, diferente de seus equivalentes alemães e ingle-

ses, esses verbos, com raras exceções (por exemplo glisser) não podem reger um sintagma indicando o lu-

gar de chegada; em uma frase como (41), no parque não designa o lugar de destino do deslocamento, mas

o espaço no qual o deslocamento é produzido:

(41) Ela anda no parque.

3.2.1. Uma generalização

Os tipos lexicais estabelecidos por Talmy não estão restritos aos verbos de movimento. Encontram-

se contrastes sistemáticos comparáveis em outros domínios conceituais, como por exemplo os verbos que

indicam pôr em funcionamento (42) e seus contrários (43).

(42)

alemão português

das Radio anschalten abrir o posto

den Wasserhahn aufdrehen abrir o torneira

ein Feuer anzünden acender um fósforo

die Scheinwerfer anstellen acender os faróis

Page 18: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

(43)

alemão português

das Radio ausschalten fechar o posto

den Wasserhahn zudrehen fechar o torneira

ein Feuer ausmachen apagar um fósforo

die Scheinwerfer abschalten apagar os faróis

Nesses exemplos, a mudança de estado é expressa em alemão por satélites (an, auf, aus, zu,

ab),enquanto que em português, são os verbos que a exprimem (abrir, acender, fechar, apagar). O verbo

alemão, assim como os verbos de movimento, exprimem a maneira (schalten, drehen, züden, stellen, bem

como machen que é aqui um tipo de verbo de maneira como os outros).

Encontra-se o mesmo contraste em verbos que designam a ação de fazer desaparecer alguma coisa;

cf. por exemplo:

(44)

alemão português

den Schmutz abreiben encobrir a sujeira

das Etikett abkratzen encobrir o rótulo

das Sägemehl wegfegen encobrir a serragem

Nesses exemplos, o alemão designa ainda a mudança de estado pelos satélites (ab, weg), o portu-

guês pelo verbo (encobrir), e a maneira, expressa pelo verbo alemão, não tem expressão em português.

Lembrando que os verbos de maneira, em português, podem igualmente servir de tradução para os

verbos de maneira em alemão; mas a trajetória não pode ser especificada no mesmo sintagma verbal (Ehrig

1991):

(45)

alemão português

den Schmutz abreiben esfregar a sujeira

das Etikett abkratzen esfregar o rótulo

das Sägemehl wegfegen esfregar a serragem

Para formular de maneira explícita a generalização em questão, pode-se recorrer à noção de mudan-

ça de estado ou de situação: pode-se analisar os deslocamentos como sendo mudanças de situação local,

a ação de ligar ou desligar os aparelhos, as máquinas etc. como mudança entre atividade e não-atividade, e

a ação de encobrir (e de fixar) um objeto como estados de adesão ou de presença. Mas esta generalização

ainda não está pronta.

Para encerrar esse capítulo consagrado à semântica do verbo, relembremos que os verbos podem

ser de uma complexidade semântica considerável, como, por exemplo, a possibilidade que têm de reger e-

lementos que são equivalentes a frase (infinitivos, orações subordinadas), de incorporar outros verbos, de

especificar modalidades e de introduzir negações implícitas.

Page 19: A semântica do verbo - .:: GEOCITIES.ws ::. a frase (11), onde o primeiro argumento de acordar é o sujeito e o segundo o objeto direto da frase: (11) O bebê acorda seus pais de

4. Sobre a estrutura global do léxico verbal

Dar uma visão do conjunto do léxico verbal de uma língua como o francês seria uma tarefa árdua que

nós não poderíamos cumprir aqui. Limitemo-nos então a dizer isso: assim como os nomes e adjetivos, os

verbos podem ser agrupados segundo dois pontos de vista: o ponto de vista cognitivo ou conceitual, e o

ponto de vista semântico propriamente dito. Uma categorização baseado nas categorias conceituais gerais

distinguiria entre os verbos de movimento (ir, vir, chegar...) de transferência (dar, receber...) de percep-

ção (ver, ouvir, entender..) de comunicação (dizer, falar, mandar...) e os verbos epistêmicos (saber,

crer...) Uma classificação fundada nos tipos semânticos distinguiria os verbos segundo o número de argu-

mentos, segundo o tipo de situação que eles designam (verbos de estado, de ação etc); distinguiria os ver-

bos negativos (proibir, ignorar...), os verbos modais (poder, dever...), os verbos dêiticos (ir, vir...) e ou-

tros.

Assinalemos que as duas classificações não são independentes uma da outra. Assim, os verbos de

transmissão são normalmente de três lugares, os verbos epistêmicos têm normalmente um argumento de

tipo proposicional etc. Certos semanticistas, como Jackendoff (1985), acreditam mesmo que a estrutura le-

xical é idêntica à estrutura conceitual. Mas os contrastes que existem entre as línguas faladas por comuni-

dades culturalmente assemelhadas não são compatíveis com tal identificação, a menos que se queira afir-

mar que falar línguas diferentes é viver em sistemas cognitivos diferentes. E o que dizer dos bilíngües? dis-

põem de dois sistemas conceituais diferentes? Uma teoria semântica segundo a qual o significado lexical

baseia-se no sistema conceitual, embora não seja inteiramente determinado por ele, permite evitar dilemas

desse gênero.

����������� ��� �� ��� �������� �� � � �� �� ��� � �� ��� � ������� � �� �

������������ � �� ��������� �� �� � ������� ��� ��� ����� ��������

��� �� ������ ���� ��� ����� ����� �� �� ���� � ���� ����� ��������� �

����� ����� � ����� �� ������ �� �� ���� �������� � ����!� ��� �� �

��� ������� ���"� � � ����������� ��� �� �� � �� ����� �#������ ������ ���� �

������ �����$�� �� ��� ��� �����%�� ��� ������!���&� ����%���'��� �