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A Senhora Aparecida da Nave Fria Aparição mariana ou cabala política?

A Senhora Aparecida da Nave Fria

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Em 1845, uma suposta aparição da Virgem a um pastor na freguesia dos Mosteiros, concelho de Arronches, esteve na origem de grandes movimentações populares que obrigaram à intervenção das autoridades civis e eclesiásticas. Milagre ou manobra política numa zona onde as aparições viriam a repetir-se?

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A Senhora Aparecida da Nave Fria Aparição mariana ou cabala política?

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Uma alameda paranormal?

Existe uma estreita faixa de terreno que se estende entre a freguesia de Mosteiros, no

concelho de Arronches e o ayuntamiento de La Codosera, na província de Badajoz,

numa extensão de uma dezena de quilómetros, cruzando a fronteira entre Portugal e

Espanha a que, com propriedade e à semelhança da Tornado Alley norte-americana, se

poderia chamar Alameda das Aparições.

Contam-se, de facto, notícias de quatro aparições marianas, além dum outro relato de

acontecimentos supostamente paranormais mas sem carater de hierofania, ocorridos

ao longo de exatamente um século nesse breve trato de terreno repartido entre os

dois países.

Destes quatro acontecimentos, três tiveram lugar além da raia e foram já objeto, por

razões de ordem vária, da atenção de diversos autores e entidades laicas e religiosas e

um deles esteve mesmo na origem da construção dum santuário, importante centro

de peregrinação e devoção transfronteiriça (Senhora das Dores de Chandavila), com o

beneplácito da cúria diocesana de Badajoz, apesar desta não se ter, até à data,

pronunciado oficialmente sobre a suposta aparição da Virgem.

Relativamente ao quarto, o único caso verificado do lado de cá da fronteira, não nos

foi possível encontrar quaisquer referências além das que mais à frente se

apresentam, apesar das repercussões que o mesmo teve a nível local e regional.

Não é propósito do presente trabalho averiguar da veracidade ou fraude do sucedido

nem dos condicionalismos políticos ou sociológicos envolventes dos fenómenos mas,

simplesmente, aproximar num mesmo relato fatual uma série de acontecimentos

invulgares, naturalmente próximos pela sua natureza e localização.

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As aparições da Nave Fria

Corria o ano de 1845.

No país profundamente dividido, saído havia poucos anos dum conflito fratricida,

contavam-se já as espingardas para a guerra civil que se deixava adivinhar. Das cinzas

de sete séculos do regime abolido tardava em erguer-se a fénix prometida,

precocemente trinchada por cartistas e setembristas, com alguma cutelaria da baixela

de D. Miguel.

No ainda jovem distrito de Portalegre o panorama refletia o estado do reino. A

instabilidade política, agravada pela ameaça da fome e atiçada pelas medidas

modernizadoras do governo de Lisboa, traduzidas para o comum das gentes no

agravamento dos impostos, alimentava a animosidade dos povos contra os Cabrais e o

governo de Lisboa. Neste ambiente de crise generalizada, raiando a anarquia, um

singularíssimo facto viria a concitar as atenções das autoridades civis e eclesiásticas do

distrito, apanhadas de surpresa pelas repercussões do fenómeno.

Tudo terá começado em meados de Maio, se bem que as informações a que vamos

recorrer datem de Setembro, altura em que os acontecimentos tinham já assumido

proporções preocupantes, quer para a Igreja quer para o Governo, representado na

pessoa do governador civil substituto, Francisco Maria de Freitas Jácome.

Não existe, disponível na documentação do Governo Civil de Portalegre por nós

compulsada, qualquer referência aos acontecimentos, anterior a 9 de Setembro. Data,

com efeito, deste dia a primeira comunicação do magistrado para o Vigário-Geral do

bispado:

Por assim o exigir um objeto do Serviço Público da maior transcendência, tomo

a liberdade de rogar a Vossa Senhoria queira amanhã impreterivelmente achar-

se neste Governo Civil a fim de conferenciarmos e tomarmos oportunas

providências sobre o assunto a que alude, e que pode não sendo prevenido a

tempo tornar-se de grandes e funestíssimas consequências para a ordem

pública.1

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Para os mesmos efeitos, logo no dia seguinte, ofício de igual teor seria expedido para o

Delegado do Procurador Régio:

Por bem do serviço público rogo a Vossa Senhoria queira hoje pelas duas horas

da tarde comparecer neste Governo Civil onde há a tratar objeto de grande

transcendência acerca do qual muito convém ouvir a sabia opinião de Vossa

Senhoria.2

Da primeira destas convocatórias se deduz ter havido comunicação prévia das

autoridades diocesanas relativamente ao que vinha a suceder no concelho de

Arronches, onde uma suposta aparição da Virgem Maria continuava a atrair um

número crescente de devotos, provenientes não só das cercanias mas também de

áreas mais distantes, nomeadamente dos distritos de Évora e Beja, pelo que Freitas

Jácome se viu na contingência de solicitar a colaboração das respetivas autoridades no

sentido de estancar o fluxo de peregrinos que demandava o sítio da recente

mariofania, como se entende da correspondência remetida, em 12 de Setembro, aos

governadores daqueles distritos:

Tendo certos hipócritas do Concelho de Arronches feito chegar a várias partes a

notícia da aparição de Nossa Senhora a um pastor do termo daquela vila junto

a uma azinheira, aonde edificaram um nicho tosco, em que colocaram uma

imagem da Virgem tendo conhecidamente em vista além dos fins políticos de

que há veementes suspeitas locupletar-se à sombra da devoção dos fieis que ali

concorrem e iludidos deixam avultadas esmolas e ofertas; e convindo pôr

quanto antes termo aos meios fraudulentos por que aqueles impostores têm

conseguido atrair a concorrência dos povos não das circunvizinhanças mas

ainda mais afastados e não menos obstar a plantação dum cisma religioso que

já começa por isso que ali arrogam censurar ao governo pela dispensa de

alguns dias santificados fazendo aliás acreditar que as pessoas que se acharem

no sítio da aparição nos mesmos dias ainda hoje santificados são desobrigados

de assistir ao sacrifício da missa tomo a liberdade de oficiar a Vossa Excelência

rogando-lhe por bem do serviço público e em honra da religião santa que

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professamos queira expedir as precisas ordens para que as autoridades

eclesiásticas e administrativas do distrito a cargo de Vossa Excelência

despreocupando convenientemente os chefes de famílias obstem pelos meios

suasórios a que no lugar da aparição acima dita continue a numerosa

concorrência que até hoje se tem observado com ofensa da honestidade e da

moral pelos escândalos que se cometem em ajuntamentos de centenares de

pessoas de ambos os sexos que lá pernoitam promiscuamente enquanto não se

poem em pratica providências mais enérgicas de que vai lançar se mão.3

Pretendia-se, como acima ficou registado acautelar os excessos de diversa ordem que

punham em causa não só os bons costumes mas, principalmente, as diretivas

governamentais e a própria Igreja, ameaçada pela apostasia. As notícias da suposta

aparição e das movimentações populares que se sucederam, inicialmente assinaladas

pelas autoridades eclesiásticas, tinham entretanto chegado à capital, o que levou o

Ministro do Reino a solicitar, por duas vezes, informações mais detalhadas do

Governador Civil substituto, pedido a que Freitas Jácome viria a dar resposta em 16 de

Setembro, recapitulando o até então sucedido:

Tenho presente o ofício de Vossa Excelência datado de 13, e por mim recebido

em 15 do corrente assim como já anteriormente tinha recebido outro sobre

igual assunto em 8 do mesmo mês. Para satisfazer pontualmente ao que Vossa

Excelência em um e outro exige, tenho que ocupar hoje a Vossa Excelência com

a extensa e porventura fastidiosa narração do singularíssimo facto da Senhora

aparecida em Arronches, dando a Vossa Excelência amplo e circunstanciado

conhecimento dele, como agora cumpre especialmente depois que, por

subsequentes ocorrências, é forçoso julga-lo de alguma consequência. A três

quartos de légua de distância daquela vila e no sítio que chamam – Nave Fria –

existia e existe ainda um miserável, sem teres nem consideração alguma,

vivendo apenas de um pequeno e insignificante rebanho de gado que ele

mesmo pastoreava. Este indivíduo, posto que um pouco imbecil e visionário, era

contudo geralmente conceituado por homem de boa vida e costumes, sendo

com efeito a sua conduta, em realidade ou aparência, isenta de toda a suspeita.

Pelos finais de Maio, se bem me lembro, começou este homem a divulgar que

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Nossa Senhora lhe havia aparecido na herdade denominada – do Rebolo – em a

Freguesia dos Mosteiros pertencente ao Concelho de Arronches, e expunha o

facto pela maneira seguinte: Dizia que andando ele a pastorear o seu rebanho

naquele sítio, aí junto de uma azinheira lhe aparecera uma senhora de manto,

muito honesta, e trazendo nos seus braços um menino muito lindo, e muito

formoso que esta senhora o chamara, e que aproximando-se ele

respeitosamente com o seu chapéu na mão, ela o mandara cobrir, dizendo-lhe

(formais palavras) – cobre-te Francisco -; e continuando depois a falar se

queixara da maldade dos homens no tempo presente, e da sua falta de fé, e

nenhuma observância da santa lei de Deus, seu santíssimo filho. Que por este

motivo, e principalmente, por se lhe haverem, contra sua vontade, e por culpa

também dos governantes tirado os dias santos, estava para vir um grande mal

ao mundo; que finalmente, declarando-lhe a senhora isto, lhe ensinara umas

certas orações, cuja reza muito lhe recomendou assim como que nada dissesse

do que tinha visto e ouvido exceto a quem o procurasse de propósito para esse

fim. Logo que isto assim se divulgou pelas freguesias vizinhas, foi o homem

procurado por muitas pessoas, e a todas elas referiu o facto da suposta

aparição da Virgem, e indicando-lhe o sitio onde a vira, a ele começou a

concorrer muita gente, erigindo ali um nicho ou espécie de oratório, feito de

cortiça, colocando nele uma estampa da imagem de Nossa Senhora, que

rodearam de flores e de várias imagens de barro, e de algumas outras

estampas, e assim elevou o fanatismo de um, e a hipocrisia de outros um altar a

veneração pública para onde desde logo entraram a concorrer os povos em

tanta afluência e em tão grande número que já nos princípios de Julho último

dias houve em os quais ali se juntaram talvez mais de 300 pessoas de um e

outro sexo, rezando as suas orações, e cantando em voz alta o Bendito e

Louvado. Logo que tive conhecimento desta ocorrência oficiei ao benemérito

vigário geral do bispado, para acordarmos sobre o modo mais pronto de acabar

com um semelhante embuste, que decerto ou tinha já na sua origem vistas e

fins sinistros, e políticos, ou quando chegue a tomar grande incremento

provavelmente os viria depois a ter, aproveitando os sectários do usurpador

(únicos que eu suponho capazes disso) este belo ensejo, que se lhes oferecia

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para tentar alguma coisa em favor do príncipe proscrito, estando pois de acordo

com o vigário geral, imediatamente dirigi ao administrador do respetivo

concelho o oficio constante da copia nº 1 (vide of. n.º 134 de 3 de Julho de 1845)

e nele como Vossa Excelência verá lhe ordenava como medida urgente, e para

de pronto se tomar, a demolição do nicho ou altar de cortiça, fazendo-se por

essa ocasião conhecer aos minimamente crédulos toda a falsidade dos

embustes, e boatos espalhados pelos hipócritas e pelos fanáticos.

Demolido o nicho no dia 4 de Julho próximo passado, e tomadas outras medidas

que o benemérito vigário geral julgou mais convenientes, e oportunas quanto à

parte espiritual, foi a estampa da imagem da Senhora conduzida para a igreja

de Arronches, e ali se conserva ainda, tendo-se também arrecadado uma

pequena porção de dinheiro (2.500 réis) produto das esmolas dadas ao

princípio. Pouco depois de ordenada e feita a demolição do oratório e não

obstante intervir neste negócio a competente autoridade administrativa e

eclesiástica, alguns vizinhos daquele lugar se atreveram a erigir outro, e ainda

com mais aparato e ostentação do que o primeiro, chegando-se a declarar que

se algum fosse demolir o novo altar não só seria tido por herege, mas até

despedaçado ali mesmo.

Tendo noticia desta nova ousadia, e sempre desejoso de acabar logo ao

principio e por uma vez com tais escândalos e embustes, dispunha-me a

empregar medidas um pouco mais fortes e enérgicas e quando efetivamente ia

já a ordená-las, alguns dentre os nossos amigos políticos lembrarão que não

convinha então empregar por modo algum a força que decerto iria prejudicar as

eleições no distrito, porque os nossos adversários se aproveitariam desse facto

para nos desacreditar de irreligiosos e ímpios. Não era essa a minha opinião,

mas tive que recuar e ceder, visto que o governador civil proprietário seguira

também o parecer daqueles que não queriam se empregasse a força pelo

prejuízo que poderia resultar às eleições.

O negócio ficou então como estava e continuaram as peregrinações ou

romarias dos povos circunvizinhos e segundo consta ainda doutras partes mais

remotas, sendo a concorrência assaz numerosa e tal o fanatismo da gente que

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concorre que o lugar da suposta aparição é hoje tido por milagroso e santo, e o

imbecil do pastor, como um verdadeiro santo também, a quem eles por tal

forma respeitam e veneram que se não cobrem diante dele e quando passa lhe

fazem genuflexões! Vão constantemente ouvi-lo à sua própria casa e é ali junto

dela que ele lhes faz as suas práticas em um tosco e mal alinhavado discurso

todo cheio de inépcias, sandices e contradições o que não obsta a que o oiçam e

acreditem retirando-se somente depois que todos sucessivamente uns após

outros lhe terem beijado a mão, e dando-lhe cada um sua esmola que nunca é

menos de 10 reis; e o miserável imbecil depois de a receber lança a todos a

bênção!

Este, Excelentíssimo Senhor, é com toda a exatidão o facto e posso assegurar a

Vossa Excelência que o fanatismo está ali no maior auge possível. Acreditam-se

milagres que não existem por tal forma que ali não vai cego que não veja, mudo

que não fale, coxo que não ande e doente que não sare! Este embuste talvez

que ao princípio não tivesse um fim politico. Entretanto hoje há uma grande

probabilidade ou antes quase certeza de que o bando miguelino, e porventura

de acordo com a sociedade feita o espreitam e lhe dão culto e o promovem para

tirar dele todo o partido possível. Esta a minha opinião e direi também a Vossa

Excelência com a franqueza que costumo que não julgo como alguns entram

nisto os Setembristas; entretanto cumpre estar de guarda e prevenido para

obstar a qualquer tentativa contra a tranquilidade e ordem pública. Quanto ao

lugar do fanatismo estou convencido que sem o emprego de meios muito mais

fortes e enérgicos nada ali se consegue. Antes de terminar este ofício devo

comunicar a Vossa Excelência que em virtude das participações que tive de

Arronches e constam do ofício por cópia n.º 2 (ofício do administrador de

Arronches datado de 9 de Setembro) fiz uma conferência na secretaria deste

governo civil com o benemérito vigário-geral, juiz de direito substituto, doutor

delegado do procurador régio e administrador do concelho e aí foi concordado

se seguissem as medidas que lhes indiquei.

Page 9: A Senhora Aparecida da Nave Fria

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Estas medidas foram que antes de se empregar a força se usasse de meios de

persuasão, despreocupando os povos e fazendo-lhes ver por todos os modos

possíveis as falsidades dos embustes dos hipócritas, que se obstasse até com

expressa proibição a que o povo dos outros concelhos fora de Arronches e

doutras partes mais remotas concorresse no lugar da suposta aparição, a fim de

que por este modo se torne mais diminuto o número de concorrentes e por

consequência mais fácil de fustigar quando preciso seja. Estes arbítrios contudo

serão oportuna e convenientemente tomados pelas autoridades administrativa

e eclesiástica dos respetivos concelhos, às quais concorrentes e por

consequência mais fácil de fustigar quando preciso seja. Estes arbítrios contudo

serão oportuna e convenientemente tomados pelas autoridades administrativa

e eclesiástica dos respetivos concelhos, às quais se expedirão circulares como

Vossa Excelência pode ver da cópia n.º 3 (ofícios da 2.ª repartição deste

governo civil aos administradores de n.os 208 a 225). Se eu tiver a honra e a

ventura de que estas medidas mereçam a aprovação do governo de sua

Carta da Herdade do Rebolo com indicação do local das aparições

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majestade continuarei no emprego delas e doutras semelhantes, usando para

este caso somente de um poder discricionário que Vossa Excelência me não

recusará. Em atenção à importância do objeto de que se trata, ouso pedir a

Vossa Excelência uma resposta a este meu ofício assim como a indicação do que

mais é mister se faça.4

Face ao exposto poderemos concluir que entre maio e setembro de 1845 se verificou

um crescimento das romagens populares ao local da aparição, unanimemente

reconhecida como fraude por parte das autoridades eclesiásticas e civis cuja ação

repressiva, levada a cabo no mês de julho com a demolição do oratório e a tentativa

de desvio do culto para a matriz de Arronches, se revelou contraproducente, a avaliar

pela reação popular materializada na construção de um novo oratório. Goradas as suas

intenções, pretendeu o governador civil substituto reagir com recurso a medidas mais

enérgicas, do que foi dissuadido pelos amigos políticos, mais atentos às repercussões

que uma ação violenta poderia ter nos resultados eleitorais.

A verificar-se a hipótese proposta por Freitas Jácome, permanecia sem resposta a

questão da identidade dos responsáveis pelo aproveitamento político dum vulgar

esquema fraudulento. Dos possíveis implicados o governador civil excluía com

convicção os setembristas, atribuindo aos miguelistas a paternidade da maquinação,

em flagrante contradição das estreitas afinidades ideológicas entre a Igreja e o regime

deposto em 1834, tanto mais que o prior dos Mosteiros, padre Francisco Xavier

Sardinha, sem dúvida o mais prejudicado pelas revelações do Mouquinho, era

reconhecidamente um seguidor fiel do príncipe proscrito. Numa terceira hipótese

implicava o governador civil substituto a sociedade – leia-se coalizão – aliança

contranatura entre a resistência miguelista e o radicalismo liberal, assumindo deste

modo a existência ativa duma quarta força no xadrez político.

No terreno, as iniciativas parenéticas da Igreja no sentido esclarecer o embuste

deparavam com a resistência das populações locais, como sucedeu no concelho de

Marvão, de acordo com as informações transmitidas pelo vigário-geral do bispado:

Tenho a honra de acusar o ofício de Vossa Senhoria datado de 25 do corrente

acompanhando cópias doutros do vigário da vara em Marvão, e do pároco do

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Salvador de Aramenha pelos quais consta o procedimento escandaloso e

porventura subversivo de um tal Tomás de Aquino que ousou levantar vozes

contra as autoridades eclesiásticas e civis na ocasião em que o dito pároco,

cumprindo seus deveres demonstrava aos fregueses que eram estultos e

embusteiros os boatos que tendem a propagar a falsa noticia da aparição da

Virgem no termo de Arronches; e nesta data oficio ao administrador do

concelho de Marvão a fim de ser autuado e entregue ao poder judicial o dito

Tomás de Aquino para ser corrigido devidamente.5

Destes factos daria conhecimento o governador civil ao Ministério do Reino, em ofício

datado de 7 de outubro:

Por participação do vigário-geral deste bispado chegou ao meu conhecimento

que querendo o pároco de S. Salvador de Aramenha, termo da vila de Marvão,

dar cumprimento a ordens superiores e ler à estação da missa conventual uma

pastoral do dito vigário, bem como um ofício que em desempenho de ordem

circular deste governo civil lhe havia dirigido o administrador do respetivo

concelho, no qual se tratava de despreocupar os povos, e demonstrar-lhes a

impossibilidade da aparição da Virgem Nossa Senhora a um pastor do termo de

Arronches, como acintosamente se tem propagado, um tal Tomás de Aquino,

afastando-se da ordem e respeito devido às autoridades constituídas, levantara

vozes contra o dito pároco, que foi interrompido no seu discurso, em que não

pôde mais continuar. À vista de semelhante participação fiz logo oficiar ao

mencionado administrador, ordenando-lhe em termos positivos, que procedesse

a investigar o facto, e depois formasse o competente auto, que deve reclamar à

autoridade judicial, para os efeitos legais.6

Apesar das medidas tomadas, a situação não terá sofrido melhorias assinaláveis pelo

que as autoridades terão decidido cortar o mal pela raiz, isto é, afastar o vidente. A

detenção decorreu sem problemas como ficou registado no pedido de agradecimento

de Freitas Jácome, dirigido ao general comandante da 7ª Região Militar:

Tenho a honra de passar as mãos de Vossa Excelência por cópia a portaria do

Ministério do Reino de 9 do corrente acerca da apreensão do visionário

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Mouquinho no sítio da Nave Fria, termo de Arronches, rogando a Vossa

Excelência queira transmitir ao alferes Baptista de Cavalaria 3 oficiais inferiores

e mais praças daquele corpo, assim como ao furriel Simão de Carvalho e cinco

soldados destacados na dita vila que acompanham a força empregada naquela

diligência a expressão de louvor de sua majestade pelo acerto e prudência com

que na mesma se houveram.7

Apesar do afastamento do suposto vidente e da presença das forças da ordem, a

população não desarmava, continuando a acorrer ao local em ostensivo desrespeito

das autoridades, sem temor de eventuais punições, como relatavam os ofícios da 2ª

repartição da secretaria do Governo Civil para o Ministério do Reino, em 30 de

setembro:

Segundo a participação que me dirigiu o administrador do concelho de

Arronches em seu ofício de 2 do corrente continuam (ainda que em menor

número) as peregrinações ou romarias do sítio da suposta aparição de Nossa

Senhora no termo daquela vila. Entretanto o dito Administrador tem hoje à sua

disposição um destacamento de 40 baionetas do 6.º de Caçadores para o

coadjuvar na dispersão do arraial e repressão dos abusos que lá se praticavam;

e creio que semelhante embuste acabará inteiramente logo que aquele

funcionário autue e faça processar (como lhe insinuo) os que de novo tentarem

perpetuá-lo.8

E em 14 de outubro:

No sítio da Nave Fria termo de Arronches foi autuada uma mulher que foi

colocar um crucifixo em uma espécie de altar, para servir de veneração à

suposta virgem aparecida naquele sítio. O auto foi relaxado à autoridade

judicial.9

Uma vez detido, Francisco Mouquinho foi enviado para a capital, à disposição do

respetivo Governador Civil, para internamento no Hospital de S. José:

Com este será apresentado a Vossa Excelência Francisco Mouquinho do termo

de Arronches, que se acha alienado, e vai em cumprimento da portaria do

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Ministério do Reino de 19 do corrente, entrar no Hospital de S. José para ali ficar

debaixo da vigilância de Vossa Excelência.10

Registe-se do acima transcrito que a fama das aparições chegara a Lisboa onde o

governo legislou no sentido de silenciar o Mouquinho cujo discurso continuava a

incendiar os ânimos de grande número de pessoas e a alimentar os receios dos

cartistas. Não foi, contudo, possível localizar na coleção de legislação do ano de 1845 a

mencionada portaria.

Considerava, no entanto, o governador civil substituto, atento à persistência das

manifestações de fé na Herdade do Rebolo, ser insuficiente a expatriação do vidente

pelo que, retomando a sua proposta de atuação inicial, oficiou ao general comandante

da 7º região militar, em 1 de outubro:

Em aditamento ao meu ofício N.º 73 datado de hoje cumpre-me ponderar a

Vossa Excelência que não obstante haver-se efetuado a diligência a que o

mesmo alude no termo de Arronches, julgo todavia necessária uma força

permanente no sítio da suposta aparição de Nossa Senhora a fim de impedir

que de ora em diante continue a gente iludida a concorrer ali, reincidindo-se no

mesmo fanatismo e embuste que o governo de sua majestade leva a peito

acabar e por isso requisito a Vossa Excelência se sirva de dar as convenientes

ordens para que no indicado sítio seja estacionada uma força de cavalaria ou

infantaria conforme Vossa Excelência julgar mais pronto, capaz de afastar dali

os concorrentes.11

Na sequência do requerido foi deslocada para o sítio da suposta aparição um

destacamento de 40 baionetas do 6.º de Caçadores para o coadjuvar na dispersão do

arraial e repressão dos abusos aí praticados.

Em Lisboa, a admissão de Francisco Mouquinho no Hospital de S. José levantara,

entretanto, um problema à administração daquela unidade. De acordo com a

legislação então em vigor, competia às autoridades administrativas concelhias

submeter os indivíduos portadores de sintomas de perturbação mental a um exame

médico comprovativo da alienação. Comprovada a doença, não tendo o paciente

meios de fortuna, como era o caso, ser-lhe-ia passado um atestado médico

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comprovativo da enfermidade que funcionava como guia para tratamento gratuito em

S. José.

Ora, o internamento do Mouquinho não preenchera esses requisitos já que não lhe

fora passado o competente documento comprovativo da doença, documento que a

comissão administrativa do hospital veio a solicitar a Freitas Jácome após o

internamento do vidente. Pressionado entre o incumprimento dos preceitos legais e a

obediência às ordens, o governador respondeu como se segue:

Tenho a honra de acusar a receção do Oficio de 11 do corrente em que Vossa

Excelência a pedido da Comissão Administrativa do Hospital de São José,

requisita os documentos relativos à alienação do visionário Mouquinho, na

forma do que dispõe a portaria circular do Ministério do Reino de 18 de

Novembro de 1842; e em resposta ao mesmo ofício cumpre-me expor a Vossa

Excelência que sendo-me ordenado em portaria do mesmo ministério datado de

19 de Setembro último, cuja cópia remeto, que fizesse apreender o dito

Mouquinho, que se considerou alienado, e por isso devia ser entregue no

Hospital acima dito, julguei desnecessárias quaisquer diligencias para

comprovar a alienação, porquanto é este um caso excecional e em que ou se

provasse aquele estado, ou se não provasse, o meu primeiro dever era cumprir

as ordens do governo transmitidas a este governo civil pela citada portaria de

19 de Setembro, na qual o mencionado Mouquinho já vinha qualificado como

visionário e alienado de espírito. À vista pois do que exponho, concluo por dizer

a Vossa Excelência, que o indivíduo em questão lá existe no hospital, aonde

pode sofrer qualquer exame e oferecer irrefragável testemunho da sua

demência, constituindo-se por si um documento vivo e autêntico.12

Conclui-se então que, doente ou são, o Mouquinho que já vinha qualificado como

visionário e alienado sempre haveria de ser internado ou sequestrado, dependendo

das opiniões. Com o vidente ausente e a tropa presente foram perdendo força as

romagens, situação já visível em princípios de novembro, pelo que o governador civil

titular, João Bernardo de Sousa, entretanto regressado a Portalegre, oficiava no dia 3

ao general comandante da 7.ª Divisão Militar:

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Tenho presente o ofício de Vossa Excelência datado de 30 de Outubro último

acerca do destacamento estacionado em Arronches; e respondendo sobre o

objeto do mesmo ofício cumpre-me assegurar a Vossa Excelência que nesta

data exijo informações do respetivo administrador do concelho; se bem que me

parece que cessaram já os motivos, pelos quais foi requisitada aquela força; se

porém ela ainda necessária no dito concelho à vista da informação que obtiver

darei conhecimento a Vossa Excelência.13

Poucos dias depois, confirmando o gradual regresso à normalidade, João Bernardo de

Sousa reportaria ao mesmo destinatário informação do administrador do concelho de

Arronches segundo o qual se tornara desnecessária a presença de tanta tropa:

Em desempenho do que prometi no meu ofício de 3 do corrente acerca do

destacamento de cavalos estacionado em Arronches cumpre-me certificar a

Vossa Excelência que segundo informa o respetivo administrador, aquela força

pode ser mandada retirar reforçando o piquete de cavalaria lá postado com

mais quatro cavalos. Por esta ocasião repito a Vossa Excelência a requisição

constante do meu ofício de 25 do mês passado sob o N.º 92.14

Com a mesma rapidez com que havia surgido, extinguiu-se o fervor religioso que ao

longo de seis meses tinha irradiado da freguesia dos Mosteiros para uma vasta área da

província. No distrito de Portalegre, à semelhança do que ia acontecendo pelo país

fora, a situação política e social degradava-se, com augúrios de nova guerra civil como

que em cumprimento das revelações apocalípticas do vidente da Nave Fria.

Meses depois, em abril de 1846, amplificado pelo ódio visceral aos Cabrais, o grito do

mulherio da Póvoa do Lanhoso far-se-á ouvir em todo o Portugal. Em Portalegre, o

governador João Bernardo de Sousa abandona o cargo, sucedendo-lhe Miguel Joaquim

Caldeira de Pina Castelo Branco que, logo nos primeiros dias do seu mandato, veio

reacender a polémica sobre o acontecido, como se verá do seu ofício dirigido ao

administrador do concelho de Arronches:

Sirva-se Vossa Excelência mandar intimidar o ex-administrador desse concelho

Francisco de Pina Gouveia, e bem assim o administrador das obras e recebedor

das esmolas da suposta senhora aparecida nesse concelho, Eugénio Martins,

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para que na próxima futura quinta-feira, que se hão-de contar 18 do corrente,

compareçam impreterivelmente neste governo civil, acompanhados de todos os

papéis e recibos existentes em seu poder, das quantias que têm entregado por

conta do que ficou devendo das esmolas que recebeu feitas à dita suposta

senhora.15

Recuperava-se deste modo a hipótese anteriormente adiantada por Freitas Jácome de

tudo não passar dum esquema fraudulento. Poder-se-á, por outro lado, concluir da

existência de livros de escrituração, ter havido um projeto, ainda que incipientemente

estruturado, de consolidação da devoção, nomeadamente com a edificação dum local

de culto.

A convocatória do governador civil não terá sido atendida com a prontidão desejada já

que dias depois, a 26 de junho, este voltaria a insistir junto do magistrado de

Arronches para que fossem intimados os responsáveis pelos dinheiros da aparição:

Sirva-se Vossa Excelência fazer intimar a Eugénio Martins, recebedor das

esmolas que o ano passado se deram à Senhora supostamente aparecida no

sítio da Nave Fria, e a Belchior Pereira Curvo, depositário do produto da venda

de vários objetos que naquele mesmo sítio foram achados a fim de que um e o

outro no prazo da lei façam apresentar neste governo civil as quantias por que

são responsáveis, sob pena de proceder-se legalmente contra eles.16

O exame das contas a que então se procedeu no governo civil veio confirmar a

existência de irregularidades contabilísticas em consequência do que, a 3 de agosto, o

governador dirigiu ao administrador do concelho de Arronches o ofício seguinte:

Envio a Vossa Senhoria a inclusa certidão passada à vista do livro em que se fez

a escrituração do pertencente à suposta senhora aparecida no sítio da Nave

Fria, a fim de que sendo por Vossa Senhoria remetida ao agente do Ministério

Público, se proceda judicialmente contra Eugénio Martins pela quantia de réis

146.270, de que pelo referido documento se mostra devedor.17

À semelhança de Eugénio Martins também Belchior Pereira Curvo viria a ser intimado

para pagamento de 1.000 reis em falta na quantia de que era depositário:

Page 17: A Senhora Aparecida da Nave Fria

17

Constando dos assentos feitos no livro competente que Belchior Pereira Curvo

dessa vila, na qualidade de depositário do dinheiro, produto da venda de vários

objetos pertencentes a suposta senhora aparecida no sitio da freguesia dos

Mosteiros, era devedor de réis 170.837 e havendo realizado a entrega somente

de 169.837 réis, vindo portanto a restar a quantia de mil reis, cumpre que Vossa

Senhoria faça intimar imediatamente o referido Belchior Pereira Curvo, para

que no prazo legal entregue neste governo civil a predita quantia de mil réis,

pena de procedimento.18

A verba de 146.270 réis sonegada por Eugénio Martins não viria a ser recuperada,

como é sabido graças a uma relação dos bens extorquidos pelos elementos da Junta

Revolucionária do Porto, elaborada após as convulsões da Patuleia que viriam remeter

ao esquecimento os acontecimentos da Herdade do Rebolo. Quanto a Francisco

Mouquinho, manteve-se internado, até princípios de outubro de 1846, no Hospital de

S. José donde saiu graças à singular intercessão relatada em ofício do governador civil

para o seu congénere de Lisboa, com data de 1 daquele mês:

Em Portaria de 23 de setembro último me foi participado pelo Ministério do

Reino a representação da Comissão Administrativa da Misericórdia e Hospital

de S. José dessa capital e de Vossa Excelência – diz que constava que Francisco

Mouquinho, bem conhecido neste distrito pelas visões da Senhora aparecida no

concelho de Arronches, estava restabelecido da sua alienação – havendo por

isso Sua Majestade a Rainha por bem ordenar que a comissão lhe permitisse a

saída do hospital para regressar a sua casa, sendo entregue nessa capital a

pessoa autorizada pelo administrador do concelho d`Arronches para o

transportar aos seus lares. Se Vossa Excelência julgar conveniente poderá

enviar-se ordem a Manuel de Albuquerque Caldeira, residente na Rua do

Patrocínio à Boa Morte n.º 32 que por dias está a sair dessa capital para o

poder mandar receber ao hospital, que vem na sua companhia, evitando-se

assim despesa que o administrador será obrigado a fazer, não tendo o pobre

Mouquinho com que a satisfazer.19

Page 18: A Senhora Aparecida da Nave Fria

18

As aparições de La Codosera

Na tarde do dia 27 de maio de 1945, duas meninas de La Codosera, Marcelina Barroso

Expósito, de 10 anos e Augustina González, sua prima, dirigiam-se daquela localidade

para a de Marco, que lhe fica a curta distância, para fazer um mandado à mãe da

primeira.

Ao passarem pelo local conhecido por Chandavila, a pequena Marcelina entreviu um

vulto escuro sobre um castanheiro que ficava a curta distância do caminho e, sem dar

importância de maior ao avistamento, continuou o seu percurso.

Porém, no regresso, ao verificar que o vulto ainda lá continuava, Marcelina

encaminhou-se para o local, de modo a poder observá-lo mais de perto e, ao chegar

junto da árvore, conseguiu distinguir claramente, envolta num manto negro recamado

de estrelas, cercada de raios de luz, a figura de Nossa Senhora das Dores, visão não

partilhada pela sua companheira. Chegada a casa, incapaz de guardar o segredo,

contou à mãe o sucedido e o relato depressa se espalhou pela localidade, logo agitada

pela notícia da aparição.

A 4 de junho, pela manhã, Marcelina teve de novo a visão da Virgem que lhe mandou

que voltasse nessa mesma tarde porque teria que fazer um sacrifício na presença de

todos os circunstantes. Chegado o momento, perante uma assistência de mais de um

milhar de espetadores, espanhóis e portugueses, a Senhora desceu lentamente do céu

e colocando-se em frente do castanheiro onde a pequena a vira pela primeira vez,

convidou Marcelina a percorrer de joelhos a distância que as separava, dizendo-lhe

que nada receasse porque estenderia para ela um tapete de juncos e ervas para que

não se magoasse.

Desde o local onde se encontrava, Marcelina iniciou uma marcha estática por entre as

alas dos presentes que se afastavam para lhe dar passagem, até chegar junto do

castanheiro onde permaneceu cerca de dez minutos, tantos quantos durou o êxtase

em que teve a visão de uma igreja em cujo altar se encontrava a Virgem que lhe

perguntou se queria ir com ela, manifestando-lhe o desejo que se erguesse naquele

Page 19: A Senhora Aparecida da Nave Fria

19

lugar uma capela em sua honra. Findo o transe e totalmente alheia ao sucedido, a

pequena voltou para junto das amigas, verificando-se então que os seus joelhos não

apresentavam quaisquer lacerações.

O destaque que estes acontecimentos mereceram da imprensa espanhola da época

deu origem a que muitos milhares de pessoas se dirigissem ao local na esperança de

partilhar das visões de Marcelina, o que supostamente terá ocorrido repetidas vezes,

com diferentes sujeitos, de entre os quais foi alvo de especial registo o caso de Afra

Brígido Blanco, com 17 anos à época dos acontecimentos. Afra teve a primeira das

suas visões da Virgem no dia 30 de maio, isto é, três dias depois da visão da pequena

Marcelina, não sendo notórias diferenças entre as experiências místicas de ambas.

Contudo, no caso de Afra, viriam posteriormente a manifestar-se fenómenos de

estigmatização.

Santuário de Chandavilla

A uma terceira vidente, de seu nome Dolores, ficou a dever-se a demarcação do local

para a construção do templo. Entrada em êxtase, após uma visão da Virgem, Dolores

traçou com passadas que mediam exatamente um metro cada, um quadrado de 17 x

17 m no local indicado pela aparição.20

As aparições de 1945 foram apenas os mais recentes duma série de fenómenos

localizados. Se bem que sem a mesma projeção mediática, existem registos de

anteriores casos de aparições na área de Chandavila,21 sendo o mais conhecido o de

Page 20: A Senhora Aparecida da Nave Fria

20

Francisco Pérez Bonacho, Pachuco, cabreiro, homem simples pouco ligado às coisas da

fé, que afirmou ter visto a Virgem e Jesus Cristo, anteriormente às visões de Marcelina.

Antes deste, em junho de 1870, no sítio de Valleseco, não longe do local onde se ergue

hoje o santuário de Chandavila, outra criança afirmou ter assistido a uma aparição da

Virgem, tendo-se mesmo celebrado uma missa campal no sítio da suposta aparição.

A este rol de fenómenos paranormais acresce ainda a existência, a cerca de meio

quilómetro do santuário de Chandavila e igual distância da fronteira, duma casa hoje

em ruínas conhecida por Casa del Miedo. De acordo com testemunhos de antigos

moradores, a casa era palco habitual de estranhos fenómenos: louças misteriosamente

partidas, portas que abriam apesar de fechadas à chave, objetos que se deslocavam.

Porém, nem só os moradores eram vítimas das assombrações. Conta-se que certo

carreteiro ao passar um dia pelo local na sua carroça, foi surpreendido pela atitude das

A Casa del Miedo de La Codosera (Fotografía: A. Briz)

mulas que se negavam terminantemente a passar em frente da casa, apesar das

pancadas com que o homem as tentava arrancar ao enguiço. Sem saber que mais

fazer, Manuel Estrela – era este o seu nome – chamou o patrão que não conseguiu

Page 21: A Senhora Aparecida da Nave Fria

21

melhor resultado, acabando por levar duas sonoras bofetadas dadas por mão invisível.

Quiseram uns ver nisto obra do demo que ali assentara arraiais, forçando a

intervenção da Virgem; entenderam outros ser manha de contrabandistas. A verdade,

só aquelas ruínas à beira da estrada a poderiam contar…

Page 22: A Senhora Aparecida da Nave Fria

22

Bibliografia

1 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl.151, of. 61, 9 de Setembro de 1845 (GC066)

2 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl.151, of. 62, 10 de Setembro de 1845 (GC066) 3 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl.151 v., of. 61, 9 de Setembro de 1845 (GC066) 4 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Correspondência expedida

para o Ministério do Reino pela 2ª repartição da secretaria, 1843/1849, fl.117 e ss., of. 94, 16 de Setembro de 1845 (GC139) 5 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl. 152 v., of. 70, 27 de Setembro de 1845 (GC066) 6 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Correspondência expedida para

o Ministério do Reino pela 2ª repartição da secretaria, 1843/1849, fl.120, of. 102, 7 de Outubro de 1845. (GC139)

7 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl. 154., of. 78, 14 de Outubro de 1845 (GC066)

8 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Correspondência expedida para

o Ministério do Reino pela 2ª repartição da secretaria, 1843/1849, fl.120, of. 99, 30 de Setembro de 1845. (GC139)

9 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Correspondência expedida para

o Ministério do Reino pela 2ª repartição da secretaria, 1843/1849, fl.121, of. 104, 14 de Outubro de 1845 (GC139)

10 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e circulares dirigidas

aos Administradores Gerais, 1841/1851, fl. 64, of.30, 29 de Setembro de 1845 (GC134)

11 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl. 153 v., of. 75, 1 de Outubro de 1845 (GC066)

12 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e circulares dirigidas

aos Administradores Gerais, 1841/1851, fl. 64, of.32, 18 de Outubro de 1845 (GC134)

13 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl. 157 v., of. 94, 3 de Novembro de 1845 (GC066)

14 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios dirigidos a autoridades

diferentes pela 2ª repartição, fl. 158, of. 97, 11 de Novembro de 1845 (GC066)

15 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e mais correspondência

com os Administradores de Concelho, 1846/1851, fl. 12 v., of. 134, 15 de Junho de 1846 (GC111)

16 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e mais correspondência

com os Administradores de Concelho, 1846/1851, fl. 16 v., of. 157, 26 de Junho de 1846 (GC111)

17 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e mais correspondência

com os Administradores de Concelho, 1846/1851, fl. 22, of. 228, 3 de Agosto de 1846 (GC111)

Page 23: A Senhora Aparecida da Nave Fria

23

18

Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e mais correspondência com os Administradores de Concelho, 1846/1851, fl. 23, of. 245, 7 de Agosto de 1846 (GC111

19 Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil do Distrito de Portalegre. Ofícios e circulares dirigidas

aos Administradores Gerais, 1841/1851, fl. 70, of.45, 1 de Outubro de 1846 (GC134)

20 CORDERO ALVARADO, Pedro. Historia viva de La Codocera. La Codocera: Ed. Granja El Cruce, 2003.

21

RUBIO MUÑOZ, Luís Alonso. QUÉ OCURRIÓ EN LA CODOSERA? - CHANDAVILA. Disponível em: http://www.historiadelacodosera.es/chandavila.htm