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1  A Simbologia e a Praxis do Uniforme Sérgio Veludo Coelho / Liberato .¶. PARTE I Introdução  A importância do uniforme e do seu estudo liga-se à própria evolução da arte da guerra e dos sobressaltos da História. À medida que a tecnologia militar se desenvolvia e as tácticas evoluíam, também os uniformes passavam gradualmente da elegância esplendorosa para os actuais sistemas miméticos de camuflagem. O desenho dos uniformes militares, no passado, parecia estar arredado de todos os conceitos de conforto e ergonomia. Só nos inícios do século XIX tais factores começaram a ser levados em conta, mesmo no que se refere à moda civil em geral. A necessidade ditou que os uniformes tivessem cores disruptivas, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando foram introduzidas mortíferas novidades no campo de batalha. Foi a pólvora sem fumo, o cada vez maior alcance das armas ligeiras e pesadas, o fogo autom ático, os novos explosivos, que obriga ram as tropas a diluírem -se no terreno. No Somme e em Verdun, em 1916, foram as primeiras e sangrentas lições desta nova forma de fazer a guerra. Centenas de milhares de mortos, franceses, ingleses e alemães, chacinados por algumas dezenas de metros de frente, provaram que a infantaria já não podia carregar impunemente sob o

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 A Simbologia e a Praxis do Uniforme

Sérgio Veludo Coelho / Liberato .¶.

PARTE I

Introdução

 A importância do uniforme e do seu estudo liga-se à própria evolução da arte

da guerra e dos sobressaltos da História. À medida que a tecnologia militar se

desenvolvia e as tácticas evoluíam, também os uniformes passavam

gradualmente da elegância esplendorosa para os actuais sistemas miméticos

de camuflagem.

O desenho dos uniformes militares, no passado, parecia estar arredado de

todos os conceitos de conforto e ergonomia. Só nos inícios do século XIX tais

factores começaram a ser levados em conta, mesmo no que se refere à moda

civil em geral. A necessidade ditou que os uniformes tivessem cores

disruptivas, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando foram

introduzidas mortíferas novidades no campo de batalha. Foi a pólvora sem

fumo, o cada vez maior alcance das armas ligeiras e pesadas, o fogo

automático, os novos explosivos, que obrigaram as tropas a diluírem -se no

terreno. No Somme e em Verdun, em 1916, foram as primeiras e sangrentas

lições desta nova forma de fazer a guerra. Centenas de milhares de mortos,

franceses, ingleses e alemães, chacinados por algumas dezenas de metros de

frente, provaram que a infantaria já não podia carregar impunemente sob o

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fogo de metralhadoras e artilharia pesada, sendo obrigada a definhar dias a fio

em trincheiras fétidas.

Mas até pouco antes, a cor, o corte, o estilo e mesmo a elegância do uniforme

eram a marca distintiva do ofício de soldado. Isto não impedia que os unifo rmes

fossem concebidos de maneira a oferecer protecção contra golpes ou

estocadas de armas brancas. Na Idade Média, a armadura, parcial ou

completa, cumpria esta função. Mas para o soldado de infantaria era

extremamente difícil usar o pesado lorigão de cota de malha ou armaduras

integrais, apanágio dos cavaleiros. A partir do século XV, a infantaria, que

ressurge como corpo disciplinado e eficaz (refiram-se os famosos alabardeiros

suíços e os tercios espanhóis), equipa-se com pequenas couraças de torso ou

vestuário grosso, feito com materiais resistentes como couro espesso e

camadas de tecido reforçado. Contudo de pouco lhes servia contra setas e

virotões de besta, e muito menos contra projécteis de armas de fogo. Assim

estas couraças e vestuários reforçados foram caindo em progressivo desuso,

até aos fins do século XVII, quando o mosquete e o arcabuz, aliados à

artilharia, começaram a decidir a sorte dos exércitos em combate.

 Ao longo do tempo, o uniforme, além de peça de vestuário militar, preencheu

capazmente múltiplos e variados objectivos. Serviu para distinguir o militar do

civil, embora a moda e alguns caracteres destes dois mundos tão distintos se

tocassem e não raras vezes se influenciassem. No entanto, esta distinção

criava e mantinha uma auréola mista de rudeza e exuberância, reputação

tradicionalmente associada ao homem de armas. Este efeito acentuou -se

quando o uniforme começou a ser usado não somente para distinguir o soldado

em geral, mas para diferenciar regimentos e outros tipos de unidade entr e si.

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Quando, na Europa, os regimentos de infantaria e cavalaria eram formados a

expensas próprias da grande aristocracia, esta era usualmente a criadora dos

uniformes das suas próprias unidades, alcançando -se níveis de exotismo e

exuberância a roçar a excentricidade (Schick, 1993, p. 6). A centralização

estatal dos exércitos nacionais levou à uniformização da aparência do soldado,

mas não impediu que as unidades de milícias e de voluntários, muitas vezes

desvinculadas de regras e imposições ministeriais, também criassem os seus

próprios fardamentos, igualmente exuberantes. Esta situação era exemplar no

exército dos Estados Unidos onde, por volta de 1880, os regimentos de

voluntários ostentavam uma aparência profundamente inspirada no estilo

prussiano. As unidades de primeira linha pautavam-se por uniformes discretos

que pouco haviam mudado desde a Guerra da Secessão (Nicholson, 1973, p.

53).

Também uma aparência intimidatória, acessória à própria constituição física do

soldado, podia ser criada pelo uniforme . Assim, nos exércitos europeus,

durante os séculos XVIII e XIX, era comum nos corpos de granadeiros, para

além da grande estatura do soldado, o uso de altos e volumosos gorros de pele

de urso, típicos da Grande Armée napoleónica, ou coberturas em forma de

mitra como as usadas pelos exércitos britânico, prussiano ou russo. Adicionado

a estes acessórios, verificava-se ainda o uso de uniformes com ombreiras

largas e polainas até meio da coxa, que com um calçado pesado conferiam ao

indivíduo uma aparência ainda mais corpulenta, enfatizada quando integrado

em compactas colunas de infantaria ou cavalaria.

Mais recentemente, o uniforme reflecte um ponto de vista pragmático e,

simultaneamente, desencantado da vida militar. Desde a Guerra dos Boers até

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hoje, tornou-se menos importante distinguir regimentos uns dos outros, sendo a

ocultação das tropas um factor fulcral no campo de batalha. Seja a selva, a

floresta europeia, o deserto ou zonas urbanas, qualquer um destes ambientes

exige ligeireza e mobilidade, caracter ísticas fundamentais do uniforme moderno

(Mollo, 1993, p. 7).

O contexto teórico da uniformologia

Os uniformes e o vestuário militar em geral possuem um elevado valor histórico

e também artístico. Dado a escassez frequente desses materiais,

representativos de momentos ou períodos da História, devem ser considerados

bens valiosos do Património Histórico-Militar, assim como os acervos

documentais, iconográficos e artísticos com esta matéria relacionada.

Pode-se definir como uniforme militar, o vestuário próp rio e específico, que por 

via da legislação, concessão, hábito ou moda, foi usado por diferentes

exércitos durante a História.

Criou-se assim uma diferenciação entre o vestir na sociedade civil e o da

instituição militar, baseada em alguns factores:

y Como resposta à exigência social de distinguir os membros de um colectivo,

que estaria ao serviço de um Estado, ideologia, religião ou poder económico.

y Pela necessidade de distinguir, num campo de batalha, as tropas de um

exército e os seus inimigos.

y Como consequência directa da própria actividade militar, recheada de

incomodidades e sobretudo riscos.

y Como sinal externo de disciplina e organização da estrutura e sociedade

militar, principalmente tomando em conta o factor económico, já que é

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obviamente vantajoso aplicar critérios gerais e sistemáticos na dotação de

uniformes e equipamentos padronizados. Uma correcta aplicação destes

princípios, tem reflexos positivos nos factores eficácia e desempenho.

O conceito de uniforme apareceu em finais do século XVII, solidificou-se ao

longo dos séculos XVIII, XIX e XX, tornando-se um atributo da transição da

Idade Moderna para o período contemporâneo, no que respeita à instituição

militar.

Durante todo este tempo, o uniforme vai evoluindo através de diversas fases,

traduzidos nos seguintes factores:

y Por razões funcionais e práticas, adequando a sua forma, cor e materiais

utilizados na confecção, ás condicionantes ambientais e climatéricas, mais a

necessidade de adaptação ao combate, ás tácticas e estratégias militar es e

à própria evolução do armamento.

y Pelas circunstâncias políticas, sociais e económicas, tanto ao nível interno

do Estado, como ao nível externo, que influem, muitas vezes de forma

decisiva, na adopção de figurinos ou de cânones estéticos. Estes podem

harmonizar-se de acordo com uma ideologia específica, similar ás das

potências que detêm a hegemonia em dado momento histórico, casos da

França, Inglaterra ou Prússia.

y Pela evolução das técnicas e indústrias têxteis, assim como o surgimento e

aplicação de novas fibras e materiais para confecção de fardamentos.

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y Pelas interacções entre a moda civil e o vestuário militar, cuja relação se

torna um facto pela adopção de figurinos militares pela sociedade civil, ou

vice-versa.

Desde um ponto de vista historiográfico, do estudo da uniformidade como o

conjunto do vestuário militar, podem-se extrair uma série de parâmetros, os

quais são de interesse essencial, para compreender de maneira conceptual o

significado do uniforme militar e a sua relação directa com a Hist ória e a

sociedade.

Esses parâmetros podem surgir em cinco pontos básicos:

y O nível de legislação, entendendo-se uma maior ou menor corrente de

decretos e outros tipos de emanações oficiais, que estabelecessem normas,

estruturas, figurinos ou equipamentos, assim como decretos que exigiam o

cumprimento de disposições anteriores que teriam sido pouco ou nada

respeitadas, ou seja, ordens do exército aonde se incluíam planos de

uniforme e aonde também se regulamentava o uso e atavio dos mesmos.

y O nível de cumprimento das legislações e acatamento prático do que era

decretado. As tentativas sucessivas de uniformizar eficientemente o Exército

Português, são frequentemente ignoradas, mesmo durante a 2ª metade do

século XIX, dando origem a vários decretos e ordens do dia, impondo a

disciplina de uso do uniforme. Um dos alvos deste tipo de situações era a

própria oficialidade, que por variadas razões, se furtava amiudadamente a

usar os seus uniformes, ou submetendo-os a variações, ao gosto dos

caprichos ou luxos ostentatórios de cada um.

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y A diversidade dentro da uniformidade, significando uma maior ou menor 

diferença entre vários tipos de unidades. No caso português, e para o século

XIX, a diversidade cingiu-se ás variações das golas, canhões, forros e vivos,

existindo um elevado índice de padronização dos designados grandes

uniformes (parada, campanha e manobras), cingindo -se ás cores azul ferrete

e castanho pinhão (panos saragoça). È claro que não referem as variações

nas coberturas de cabeça, correames, armamento e outros tipos de

equipamento, que irão estar presentes ao longo deste trabalho.

y A funcionalidade do uniforme, que se define como a adaptação do mesmo

ao serviço e ao campo de batalha. A racionalização do uniforme e

consequente funcionalidade pode ter a sua ori gem no abandono dos

combates em ordem cerrada, mercê do desenvolvimento dos sistemas de

armas e correspondente aumento do poder de fogo. A funcionalidade dos

uniformes do Exército Português foi alvo, de muitos e variados artigos de

natureza crítica em publicações institucionais, como a Revista Militar ou a

Revista de Infantaria.

y A aceitação social do uniforme seria um valioso ponto de análise, ficando

como ponto de referência para futuros estudos, dada a sua importância no

contexto da história social e das mentalidades.

Como apontamento, referimos as condecorações, que pela sua importância

institucional, simbológica e artística são inerentes ao uniforme. A condecoração

é um reflexo material das acções e méritos do soldado. Ao longo das épocas,

este tipo de adornos evoluiu nas formas e nos objectivos, e além de premiar o

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mérito, independentemente do critério, acabava por simbolizar regimes,

ideologias ou instituições.

As fontes documentais e iconográficas: um contexto geral

 A análise de um uniforme militar não pode ser levada a cabo sem dados fiáveis

e seguros, embora surjam lacunas de difícil ou impossível resolução, devido ao

desaparecimento frequente de algumas fontes materiais, que permitem a

comprovação das fontes escritas ou iconográficas. Mesmo assim, deve-se

proceder a uma investigação cuidada, tendo em conta os períodos históricos

em estudo e a sua relação com as respectivas fontes.

Dentro da problemática das fontes em análise, podem-se extrair dois grupos

principais:

I-  Fontes escritas, manuscritas ou impressas.

y Documentos 

- Públicos: estatais, institucionais de domínio público.

- Privados: de instituições ou pessoas particulares.

y Imprensa, obras escritas e literárias, memórias ou monografias  

y Correspondência manuscrita ou publicada (de carácter público ou privado) 

II- Fontes iconográficas

y Materiais gráficos, gravuras, desenhos ou fotografias.  

y Materiais plásticos como pintura ou escultura.  

y Materiais dinâmicos como o cinema ou o vídeo.  

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A Cultura das Aparências

Uma das leituras fundamentais para a teorização da uniformologia, num

contexto geral, encontra-se na obra de Daniel Roche ³La culture des

apparences, Une histoire  du vêtement XVII-XVIII siécle´ , publicada pela

Librairie Arthéme Fayard, em 1989. O capítulo IX, intitulado ³La Discipline des

apparences: le prestige de l¶uniforme´ , apesar de, cronologicamente, tratar os

séculos XVII e XVIII, permitiu-nos retirar algumas leituras aplicáveis à época

que o nosso estudo contempla.

O século XVII, vira ainda em conflitos como a Guerra dos Trinta Anos, ou a

Guerra da Restauração, a policromia do vestuário militar, resultado de tipos

indefinidos de recrutamento, do uso intenso de mercenários e da quase

inexistência de exércitos nacionais, a não ser o aparelho militar sueco de

Gustavo Adolfo, e posteriormente o exército de Luís XIV.

  A intensificação do uso da arma de fogo e das suas pólvoras, criou a

necessidade de se distinguir os regimentos no campo de batalha, agora

submerso em densos lençóis de fumo, levando à uniformização dos vestuários

a nível regimental, e mais tarde, a nível de exército, com o surgimento dos

exércitos nacionais do absolutismo. Assim, já no século XVIII, assistem-se a

mudanças funcionais como resposta ás exigências tácticas do campo de

batalha, que se podem resumir da seguinte maneira:

y Distinção das unidades no campo de batalha.

y Evitar confusões em combate, no meio do fumo denso da mosquetaria e da

artilharia.

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y Generalização do uso de fardamentos de cor uniforme em cada unidade,

padronização das coberturas de cabeça (tricórnios, bicórneos e

posteriormente a barretina), dos acessórios e sinais materiais de

reconhecimento.

O uniforme vai substituir a imitação da moda e da necessidade individual,

surgindo uma impulsão de regulamentos colectivos, que toma lugar com o

advento do absolutismo (Antigo Regime).

O vestuário do soldado, em todos os graus hierárquicos, vai-se tornar num

símbolo de classe, socialmente tendente a sobrepor -se à sociedade civil, por 

vezes de modo discriminatório. O uniforme torna-se num sinal de

reconhecimento para aqueles que o envergam e para os que estão de fora, o

que contribui, para a partir do século XVIII, solidificar o espírito de corpo, os

exércitos nacionais, o mundo militar, mesmo quando este se tornar num factor 

de revolução.

O uniforme fixa a hierarquia, a partir dos seus paramentos, dentro das próprias

variações impostas pelos planos de uniformes e mudanças regulamentares, ³ il 

soumet   les esprits à l¶habit et non à l¶homme´  (Roche, 1989, p.213). O

fardamento identifica o portador com o personagem social que o uniform e, num

sentido abrangente, estabelece.

Do quartel para a parada e desta para o campo de batalha, o uniforme vai

adquirindo o seu prestígio, e segundo Daniel Roche, irá atingir a maturidade na

sociedade igualitária (liberal) do século XIX (Roche, 1989, p.21 4).

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A disciplina do uniforme

Esta definição implica várias realidades que somadas, constituem a essência

do soldado. O imperativo disciplinar impõe uma moldagem do corpo e do

espírito, contextos nos quais o uniforme desempenha um papel essencial, em

termos da educação e controle da força individual do soldado.

O objectivo fulcral da uniformização, deixa de ser unicamente o

reconhecimento das tropas no terreno e passa ater um papel formativo no

desempenho e combatividade das unidades militares.

O uniforme está no cerne da lógica da estrutura militar, a partir de uma época

em que a guerra se torna o essencial da continuação de uma política

estratégica. Assim, cada vez mais o uniforme veste o soldado para confrontos

crescentemente letais; ao longo dos tempos o fardamento vai ter que se

adaptar às transformações tecnológicas que sucessivamente aparecem no

campo de batalha: a espingarda de pederneira, a de percussão, o fuzil de

agulha, as armas de repetição e retrocarga, a metralhadora, a artilharia de fogo

rápido. Definitivamente o campo de batalha era cada vez mais perigoso para o

soldado.

O vestuário militar, símbolo e fonte de eficácia no combate (nos séculos XVIII -

XIX), vai-se impondo como meio de poder social. Pode derrubar e erguer 

regimes, governos, reis e repúblicas. Pode conferir poder aos cidadãos,

quando estes se constituem em milícias, guardas nacionais ou unidades de

voluntários, como foi o caso português na primeira metade do século XIX. O

uniforme como símbolo, pode afirmar um projecto político (as tristemente

célebres SS de Hitler, são disso um exemplo).

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Os efeitos políticos, sociais e científicos da disciplina militar, de que o uniforme

é uma das bases, podem-se traduzir de várias maneiras:

y O exército podia tornar-se numa escola de cidadania, de que são exemplos

as forças armadas saídas da Revolução Francesa e do consulado

napoleónico.

y O surgimento de conceitos médicos e pedagógicos sobre a condição física,

onde o treino deve exacerbar a resistência, sendo possível ao uniforme

permitir esta correlação de forças.

y O uniforme deveria contribuir para modelar o gesto e a atitude, já que

passou a estar frequentemente no centro de uma imaginação utópica e

voluntarista do social.

y A postura a que obriga o uniforme revela o trabalho individual do corpo e

simultaneamente a aquisição de princípios de rigor e de sentimento

colectivo.

O uniforme inscreve-se numa nova delimitação do espaço público, criando

distâncias e instaurando códigos de comportamento e padrões sociais. Ele vai

encarnar totalmente o espírito da sociedade militar, esta que sobrevive,

constitui e se justifica nas crises e nas conturbações das ordens interna e

externa.

 A introdução do uniforme regulamentar pôde implicar, a partir de meados do

século XIX, ao surgimento de vectores como a medicina militar, o conceito de

higiene colectiva, tanto do corpo como dos materiais.

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Na cadeia que une todos os elementos da estrutura militar, a disciplina, atavio

e apresentação correcta do uniforme, permitem transmitir o sentido de brio e de

propriedade, aplacar os arremedos de contestação e moldar os hábitos

pessoais do soldado. Isto levava a algumas tarefas educadoras do militar: polir 

botões, couros, chapas de cinturão ou de barretina, limpar o mosquete, a

baioneta ou o sabre, lavar as suas roupas e o seu c orpo. Esta cadeia de

gestos, quando imposta, podia transformar o soldado em objecto de exposição

ou de parada, mas nos séculos XVIII e XIX, o aparato ainda permitia ter 

influência táctica no campo de batalha, pelo impacto moral. O exército, era

também o único local colectivo em que desempenhos de carácter feminino se

entrecruzavam com as tarefas eminentemente masculinas, ou seja, num

exército em campanha, o soldado cozinha, lavava a sua roupa interior, cosia e

remendava o seu fardamento.

Os exércitos nacionais, alguns de conscrição como o francês (La Nation aux 

armes), começaram a significar os depósitos de recrutas, os quartéis fixos, o

conceito de caserna como o local de habitação do soldado, e tal contribuiu para

a separação do militar do civil, do masculino do feminino.

Os métodos de recrutamento também vão influir na vontade individual de cada

soldado, com profundas implicações na sua aparência: as sortes, as levas, os

 press gangs (sistema compulsivo de recrutamento usado na Grã-Bretanha, até

aos inícios do século XIX), que também implicavam vários tipos de isenções,

normalmente insertas em esquemas de corrupção do sistema. Assim, muitos

dos contingentes formavam-se a partir de indigentes, aventureiros e marginais,

que recrutados contra a sua vontade não propiciariam altos índices de

preparação militar, com consequentes lapsos e lacunas na disciplina e no

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atavio do vestuário, a menos que sujeitos a regimes férreos de disciplina,

frequentemente com recurso à violência física e psicológica (como sucedia no

exército britânico sob o comando de Wellington, ou as  pranchadas, usadas no

Exército Português até meados do século XIX). Mesmo assim o uniforme

deveria assumir um papel não negligenciável por altura da leva de recrutas, e

mesmo que superficial era um catalisador decisivo para aceitar um

compromisso.

Posteriormente, o gesto e a atitude do recruta deviam ser modeladas pelas

práticas regimentais. Frequentemente, a uniformização do homem e da sua

unidade dependia das características do recrutamento, do comando, da

diversidade de práticas aculturantes, ligadas ao lugar e ás zonas de

destacamento, aos meios materiais e ás circunstâncias.

No quotidiano, podem-se aplicar dois princípios fundamentais, que

condicionam o uso do uniforme:

y Separar, para impor a ética militar e o senso de hierarquia.

y Unir, para tornar visível um senso de pertença comum, o espírito de corpo.

 Assim, o uniforme é paradoxal, porque gera níveis de distinção, da socied ade

civil, entre as próprias Armas de um exército e entre a elite e as tropas comuns,

e porque também faz surgir um senso de conformidade, através das

hierarquias, do espírito de corpo e da noção de colectividade.

  A hierarquia exige a aplicação de regras e stritas no domínio do vestuário

militar, ou seja, os uniformes básicos dos oficiais, sargentos e soldados

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tenderam a ser similares, mas os paramentos, os acessórios e os distintivos

marcariam a diferença.

 A unicidade, a uniformização tornam-se num espelho de obediência e eficácia.

Quando a estrutura de topo, ou seja o aparelho de Estado e as cadeias de

comando, falha, o conceito acima referido torna -se de difícil aplicação e o

desleixo surge.

A Guerra, verdade do uniforme

  A guerra e as suas campanhas revelam a verdade do uniforme, na sua

funcionalidade, é o campo de experiências onde por vezes se revelam os

caprichos dos decretos de fardamento, é aonde se vê a sua resistência aos

condicionalismos aleatórios do clima, os excessos do uso ou a pura e simples

inadaptação.

Os tecidos podem favorecer o corte e o feitio, mas os tintos tendem a ceder 

perante o desgaste, face aos rigores do clima, ás marcas que a terra deixa,

mais o fogo, o sangue, o suor, a urina, o sol, a pólvora.

  A descoloração geral é rápida, os uniformes tomam um tinto indefinível, os

azuis esverdeiam, os vermelhos resistem, mas esmaecem e tornam-se

acastanhados, os alvadios ficam amarelados e irrervesívelmente sujos.

Um exército fazia-se uniforme sob as intempéries, mais rapidamente do que os

tecidos podiam resistir. Era quase um milagre que as indústrias tintureiras dos

séculos XVIII e XIX garantissem a durabilidade dos tintos dos uniformes.

Para o soldado em campanha, (e o português não é excepção) contava

sobretudo ter a barriga cheia, a astúcia e o expediente de se abastecer um

pouco por todo o lado, quando a intendência falhava. No caso do soldado de

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infantaria, este devia velar pelos seus pés e consequentemente pelo calçado

(Em 1917 e 1918, as tropas portuguesas na Flandres vão padecer de  pés frios,

doença surgida pela má qualidade dos botins de ordenança, que apodreciam e

deixavam os pés do soldado imersos em água pútrida e lama, durante dias a

fio. Isto levava, por vezes, a gangrenas e consequentes amputações).

Quando em campanha, faltava ou se destruía uma peça de fardamento, não

era raro substitui-la por outra peça retirada de um cadáver, de um ferido ou

mesmo de um prisioneiro e depois restava retomar a marcha, conforme se

estivesse, com peças de todas as espécies, como deve ter sucedido com a

retirada de Napoleão, da Rússia em 1812.

Com chuvas intensas, as águas encharcavam os uniformes, mesmo com

capotes e oleados, restando ao soldado aguentar estoicamente e proteger a

cabeça com uma pesada barretina, que mais pesada se tornava, conforme os

feltros ou os couros se encharcavam. Quando o clima deteriorava as peças

mais vulneráveis do uniforme (fardas, casacos, jaquetas e calças), o soldado

fazia prodígios de costura, mesmo usando materiais dos locais onde decorria a

campanha.

Uma necessidade constante do soldado era e é a roupa interior e o problema

que se tornava a sua lavagem ou reposição, já que o uso prolongado de roupas

interiores sem muda, implicava o surgimento de doenças à base de micoses e

viroses.

Um uniforme desconfortável, pesado e justo, como os que caracterizavam os

exércitos do Antigo Regime e início do liberalismo europeu teria sido um

suplício para o soldado em marcha apeada, a cavalo ou na carreta de artilharia.

 As lãs grosseiras dos uniformes sufocavam as tropas debaixo de intenso calor,

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ou ensopavam-se com as primeiras chuvas, causando uma terrível sensação

de desconforto. Era nesta situação que o soldado tinha de entrar em combate,

por vezes já profundamente desmoralizado.

  A sociedade militar é atravessada por correntes múltiplas e o espírito de

coesão profissional coexiste com factores de agressividade, tensão, lutas. O

uniforme enquadra-se mais no primeiro caso do que no segundo, já que não é

necessário um exército para desencadear uma guerra. Ele revela uma

sociedade guerreira aos olhos da sociedade civil, simboliza a autoridade do

Estado, realça a glória do soldado, a honra do regimento, a solidariedade do

colectivo. É um sinal de igualdade numa sociedade de desigualdades.

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