A Singularização

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    A SINGULARIZAO ATRAVS DE SMBOLOS RELIGIOSOS NO ROMANCE

    CAIMDE JOS SARAMAGO

    QUEVEDO, Carindia do A. Marques.Trabalho realizado para a disciplina de Crtica Literria do Programa de Ps-Graduao em Letras daUniversidade de Passo Fundo (PPGL). Aluna do Programa de Ps-Graduao em Letras da UPF;Licenciada em Letras/Ingls e suas respectivas Literaturas pela Universidade de Passo Fundo (UPF,2009); ([email protected]).

    RESUMO

    Jos Saramago um autor que surpreende em cada nova obra, causando no leitor sensao

    de estranhamento diante de suas verses da Histria. Dessa forma, o presente ensaio tem por

    objetivo analisar de que modo se d a singularizao no romance Caim, no que se refere religio.

    Palavras-chave: Caim. Singularizao. Jos Saramago. Religio.

    INTRODUO

    Muitos escritores abordam a religio em suas obras, mas poucos autores o fizeram

    de forma to contundente, controversa e satrica como Jos Saramago, escritor portugus,

    que se destacou no mundo ficcional devido ao seu modo inovador e polmico de escrever.

    Suas obras reinventam fatos histricos importantes com uma viso extremamente crtica, no

    intuito no de rememorar, mas de refletir sobre o passado, utilizando-se, muitas vezes, de

    ironia, de sarcasmo, e, at mesmo, de certo humor. A maneira como Saramago constri

    seus enredos, buscando re-inventar a histria, quando se trata de fatos histricos, bem

    como o modo como organiza a esttica da obra, causam uma reao denominada como

    estranhamento (CHKLOVSKI, 1973) no leitor.

    Na maioria de seus romances, Saramago ataca a religio, principalmente o

    Cristianismo, atravs da criao de personagens e enredos que visam ridicularizao e

    depreciao da instituio religiosa, bem como da verso da Igreja a respeito do evangelho.

    No romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), o autor busca descrever o Novo

    Testamento, apresentando um Jesus Cristo to humano quanto qualquer outro homem, com

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    as mesmas fraquezas e necessidades desse, tirando-lhe a divindade. Em seu romance,

    Caim (2009), Jos Saramago volta-se ao Antigo Testamento e procura recontar as histrias

    mais marcantes dessa parte da bblia, atribuindo-lhes novas verses. As histrias giram em

    torno de uma personagem principal, Caim1, filho de Ado e Eva que foi castigado por Deus a

    ficar errante pelo fato de ter matado Abel, seu irmo. Nessa obra, Jos Saramago procura

    fazer uma crtica violncia presente na Bblia e mascarada pela Igreja, bem como

    obedincia cega que levou Caim a cometer o crime e que leva tantos seres humanos a

    cometerem atrocidades em nome de Deus.

    Assim, o leitor, ao ler Saramago, tem a possibilidade de perceber objetos conhecidos

    de uma maneira diferente, como se os estivesse descobrindo, e no reconhecendo, mas os

    percebendo em sua singularidade. Essa sensao de particularizao do objeto que

    desencadeia o estranhamento (ostraniene) no leitor. Esse termo foi criado pelo estudioso

    russo Viktor Chklovski, em 1917, que juntamente com outros pesquisadores criaram umnovo mtodo de anlise literria a partir de uma abordagem lingustica, segundo o qual as

    obras literrias deveriam ser estudadas a partir de sua literariedade, isto , daquilo que lhe

    confere sua qualidade literria, que constitui o conjunto de traos distintivos do objeto

    literrio. Dessa forma, o terico refutava as teorias literrias vigentes que tinham cunho

    historicista, impressionista, tendencioso e que estudavam o texto a partir de elementos

    externos, focalizando outras cincias na anlise, como a filosofia, psicologia, a sociologia.

    Denominados formalistas russos, esses estudiosos, dentre eles Jakobson e Chklovski,

    acreditavam que a arte tem por funo desautomatizar as sensaes e experincias

    humanas, para particulariz-las a partir de uma linguagem difcil, que obscurece a forma do

    objeto e prolonga a percepo, ou seja, faz com que o leitor estranhe aquilo que parece

    comum e habitual, provocando a sensao do objeto como viso e no como

    reconhecimento. Na obra de Jos Saramago, h vrios elementos que provocam essa

    sensao, tambm conhecida como singularizao.

    O presente estudo, desse modo, ter como corpus o romance Caim de Jos

    Saramago publicado em 2009, uma vez que, nesta obra, se destaca o uso de elementosreligiosos para a instigao do estranhamento. A pesquisa ter carter descritivo-qualitativo

    e buscar mostrar de que forma se d a desautomatizao da percepo atravs dos

    smbolos religiosos presentes no corpus.

    1 importante comentar que os nomes de pessoas e lugares so escritos com inicial minscula no romance, massero escritos da forma tradicional no artigo, a no ser quando em citaes diretas da obra.

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    1. A HISTRIA DE CAIM COMO VISO E NO RECONHECIMENTO

    1.1Estranhando a histria

    No romance Caim, a primeira forma de singularizao d-se atravs da histria

    contada, que destoa, em muitos aspectos, inclusive em relao aos fatos transcorridos, da

    verso bblica, aqui entendida como o comum, o habitual. Antes do incio do romance, na

    folha de rosto, Saramago cita um trecho bblico que se refere a Caim e Abel (SARAMAGO,

    2009, p.7)2: Pela f, Abel ofereceu a Deus um sacrifcio melhor do que o de Caim. Por

    causa da sua f, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as sua ofertas. E

    pela f que Abel, embora tenha morrido, ainda fala. (Hebreus, 11,4). Logo abaixo da

    citao, em letras maisculas, est a seguinte inscrio: livro dos disparates, que causa

    uma nova percepo no leitor, ao qualificar o livro bblico citado como algo despropositado,

    absurdo. Isso rompe com a imagem sagrada da bblia, rebaixando-a a um livro de absurdos.

    Alm disso, a histria contada pelo autor mostra novas verses dos principais

    acontecimentos do Velho Testamento, como a provao de Abrao, a destruio de Babel,

    a condenao de Sodoma e Gomorra, o episdio do bezerro de ouro de Moiss, a runa de

    Job, a saga de No e a construo da arca, todos acompanhados de perto por Caim, que

    passa a ter o poder de viajar atravs do tempo. Em cada um desses episdios, h

    mudanas provocadas por esse novo personagem que, no decorrer de cada experincia,

    fica mais certo da crueldade, orgulho e injustia divina, destoando contundentemente do

    personagem bblico.

    No episdio a provao de Abrao, Deus ordena que ele leve seu filho a

    determinada montanha e o mate, como prova de sua obedincia. Na hora do sacrifcio,

    Caim quem impede que o holocausto se cumpra e no o anjo enviado por Deus, como

    ocorre no texto bblico. No romance de Saramago, o anjo alega ter tido um problema

    mecnico na asa direita, alm de haver-se perdido no caminho, o que o teria levado a

    chegar alguns segundos depois, decisivos para o desenlace, que poderia ter sido trgico.

    Extremamente irnico, o autor prossegue a histria na qual o anjo continua sua misso que entregar um recado de Deus a Abrao, no qual o Senhor diz que o premiar pela sua

    obedincia cega. Como concluso desse fato, Isaac, o filho que seria sacrificado, questiona

    o pai sobre esse Deus, sobre sua crueldade e rancor: E se esse senhor tivesse um filho,

    tambm o mandaria matar (p.82). Abro, ciente da maldade divina, responde: O futuro o

    dir (p.82). Ento Isaac, demonstrando sua revolta e preocupao diante de um Deus to

    2Esta citao foi retirada de Caim, 1 edio da Companhia das Letras. As demais citaes desta obra feitas nodecorrer do trabalho sero identificadas somente pelo nmero da pgina, uma vez que pertencem a essa edio.

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    vingativo e autoritrio conclui: (...) a questo sermos governados por um senhor como

    este, to cruel como baal, que devora os seus filhos (p.82).

    Esse mesmo tipo de atitude adotada por Deus testemunhado por Caim no episdio

    da destruio da torre de Babel, na qual o Senhor sente-se desafiado pelo fato de alguns

    homens desejarem chegar ao cu e, com medo de que isso os tornasse iguais ou maioresdo que ele, confundiu-lhes as lnguas (p. 86) e enviou um furaco que destruiu o

    monumento. importante atentar para a crtica contida nessa passagem do romance, que

    desacomoda o leitor e, at mesmo, produz um efeito impactante, como na seguinte

    afirmao: O cime seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem,

    preferiu dar voz inveja, est claro que o senhor no suporta ver uma pessoa feliz. (p.86).

    Caim continua sua viagem que ultrapassa os limites do tempo e do espao e

    presencia, dessa forma, muitas outras histrias, nas quais a imagem comumente conhecidade Deus destruda, atravs de afirmaes carregadas de crticas e ironias. Em Sodoma e

    Gomorra, onde os costumes sexuais se relaxaram por igual, os homens com os homens e

    as mulheres postas parte (p.94), Caim presenciou o grande extermnio, no qual todos

    morreram carbonizados, inclusive as crianas, como castigo e forma de purificao. No

    episdio do bezerro de ouro, ele acompanha a ira do senhor que, por ter sido substitudo por

    a esttua de um filhote bovino, ordenou um massacre no qual morreram cerca de trs mil

    homens. Em seguida, Caim conhece um homem rico e bom chamado Job, que cai na

    desgraa e perde tudo o que tem devido a uma aposta que Deus fez com o diabo, na qual osenhor colocou Job nas mos de Satans para provar a fidelidade de seu servo. Por fim, a

    personagem acompanha a famosa histria da arca de No, mudando-a radicalmente.

    Revoltado com a maledicncia divina e o seu modo autoritrio de manipular os seres

    humanos, Caim, que estava na arca para ajudar no povoamento do novo mundo, j que

    Deus queria fazer uma limpeza na terra, agiu de modo contrrio ao que dele se esperava e

    matou todos os integrantes da arca, destruindo a humanidade e os planos de Deus, que, no

    crime de Caim, pde ver tambm os seus.

    Por fim, cada fato contado nesse romance concorre para a quebra da imagem da

    Bblia como um livro sagrado, que narra fatos envolvendo um ser divino. Alm disso, as

    prprias histrias so modificadas com o intuito de romper com a imagem sagrada enquanto

    reconhecimento, criando uma ruptura e proporcionando ao leitor uma sensao nova e

    singular.

    1.2 O sagrado torna-se profano

    Percebe-se, ainda, a manifestao do estranhamento atravs da personagem Deus,o qual assume uma face cruel, vingativa e orgulhosa, o que rompe com a tradicional ideia de

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    um deus-pai bondoso e altrusta. Essa nova personalidade atribuda ao Senhor comea a

    manifestar-se logo na sua briga com Ado e Eva, no paraso, quando, por ter sido

    desobedecido e com medo da sabedoria adquirida por eles, os castigou, amaldioando-os,

    principalmente mulher. O enredo e a maneira como os fatos transcorrem no romance

    mostram um Deus que era misericordioso e bondoso apenas com quem fosse dcil e

    obediente. Isso pode ser percebido no trecho que relata a passagem de Caim pelas cidades

    de Sodoma e Gomora, durante a destruio dessas, quando uma mulher em fuga, no

    segue o conselho de Deus que havia dito para no olhar para trs ou seria destruda

    tambm. Ao desobedecer, ela transformada numa esttua de sal: possvel que o senhor

    tivesse querido punir a curiosidade como se se tratasse de um pecado mortal, mas isso

    tambm no abona muito a favor da sua inteligncia (p. 97). Nesse sentido, h, na obra,

    indcios que confirmam a contrariedade de Deus com relao curiosidade do ser humano,

    como se essa qualidade fosse algo prejudicial soberania do Senhor, pois a partir do

    momento que o homem adquire conhecimentos e realiza descobertas, comea a desalienar-

    se e a revoltar-se contra qualquer forma de autoridade, mesmo a divina.

    A maldade de Deus evidenciada na obra em vrias outras circunstncias, j

    referidas e em cada uma apresenta-se um Senhor completamente desvirtuado e muito

    prximo de todos os maus sentimentos humanos. Desde o incio do romance, cada atitude

    do grande pai e, principalmente, cada fala sua, busca demonstrar autoritarismo, orgulho,

    inveja, dio, preconceito com os seres humanos; em momento algum, h manifestao de

    qualquer sentimento bom ou nobre relacionado a Deus. Um dos fatos mais significativos na

    obra e que j foi comentado anteriormente, quando o Senhor faz uma aposta com Lcifer

    a fim de provar sua soberania e, para tanto, sacrifica um homem de bem, e dos mais fiis s

    leis divinas. Esse ato pode agredir violentamente a crena do leitor, que passa a confundir

    Deus e Demnio, j no conseguindo distinguir qual deles representa o mal, como se

    ambos estivessem do mesmo lado, como se o Senhor fingisse ser bom, o que destri por

    completo qualquer referncia de bondade e justia que pudesse ser relacionada a Deus. A

    seguinte afirmao concorre para a desmoralizao divina, na qual o Senhor comenta sobre

    o que fez a Job:

    Dobrou-se a minha autoridade, reconheceu que o meu poder absoluto,ilimitado, que no tenho que dar contas seno a mim mesmo nem deter-mepor consideraes de ordem pessoal e que, isto digo-to agora, sou dotadode uma conscincia to flexvel que sempre a encontro de acordo com oque quer que eu faa. (p.149)

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    A seguir Deus prossegue, falando, ento, sobre sua relao com o satans: Sim,

    como sat, mas a este j lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando

    deixo-lhe uma vtima nas mos para que se entretenha, e isso lhe basta (p.153). Assim, no

    decorrer da obra todos os acontecimentos concorrem para a desvirtualizao da imagem de

    Deus, tornando-o to ou mais cruel do que o prprio demnio, com quem inclusive realiza

    negcios e apostas.

    1.3 O pecador torna-se heri

    Finalmente, outro personagem responsvel por causar estranhamento Caim, o

    protagonista da narrativa. necessrio, entretanto, esclarecer que h profunda diferena

    entre o perfil da personagem bblica e o daquela criada por Jos Saramago, ou seja, entre o

    Caim, jovem cruel que mata seu prprio irmo, Abel, por cimes de sua relao com Deus e

    sendo castigado pelo Senhor a vagar pelo mundo; e caim

    3

    , apresentado como mais umavtima de Deus, verdadeiro culpado pela morte de Abel, j que se o Senhor tivesse aceitado

    as oferendas de Caim, esse no teria matado o irmo.

    O Caim apresentado por Saramago um homem desafiador e inconformado com a

    arrogncia divina. Apesar de responder da mesma maneira que o Caim bblico pergunta

    de Deus sobre o seu irmo: Era eu o guarda-costas de meu irmo? (p.34), o Caim de

    Saramago no se deixa intimidar pela presena do senhor e, ao ser acusado por Deus de

    matar Abel, imediatamente se defende, dizendo: Assim , mas o primeiro culpado s tu, eu

    daria a vida pela vida dele se tu no tivesses destrudo a minha. E continua:

    Como tu foste livre para deixar que eu matasse abel, quando estava nassuas mos evit-lo, bastaria que por um momento abandonasses asoberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses,bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, queaceitasses a minha oferta com humildade. (p. 34)

    Caim destri a imagem de bondade e de misericrdia que comumente relacionada

    a Deus. Atravs de seu discurso, ele derruba os argumentos divinos, fazendo o Senhor

    perder a razo e mostrar sua verdadeira face. Deus, ento, admite sua parcela de culpa na

    morte de Abel e, para no continuar sentindo-se culpado, entra em acordo com Caim, ao

    oferecer-lhe uma compensao por no ter impedido o crime: sua proteo. Com esse

    3Nesse caso, optou-se pela escrita com inicial minscula, tal qual faz o autor no decorrer da obra, para salientara diferena entre o personagem bblico e o do romance de Jos Saramago.

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    gesto, demonstra-se o quanto Deus era orgulhoso e no admitia estar em dvida com

    ningum.

    Alm disso, Caim, ao cumprir o seu castigo de ser eternamente errante, passa a

    testemunhar os grandes acontecimentos do Antigo Testamento, bem como as inmeras

    crueldades praticadas pelo prprio Deus ou em nome dele. O Caim, condenado no textobblico, torna-se um heri no texto de Saramago ao intervir em diversos desses fatos,

    modificando-os. A ele dado o poder de salvar ou matar, j que responsvel por impedir

    que Abrao matasse o prprio filho, por concorrer diretamente para o fracasso dos planos

    de Deus, ao matar todos na arca de No, impedindo que houvesse uma nova humanidade.

    Mesmo tendo assassinado pessoas inocentes para afrontar a Deus, o enredo se organiza

    de tal modo que torna esse crime algo necessrio e no condenvel, pois o Senhor j havia

    praticados piores atos e necessitava ser detido. O carter de Caim prevalece sobre o de

    Deus, pois o primeiro no demonstrou prazer em ver o sofrimento humano, no matou porvingana ou para provar sua fora; apenas teve coragem de fazer aquilo que era o correto:

    parar a loucura divina.

    possvel afirmar que Caim possua ndole virtuosa, uma vez, que no decorrer do

    romance, essa personagem demonstra grande piedade pelas pessoas castigadas por Deus,

    alm de revoltar-se ao presenciar cenas to violentas permitidas por algum que deveria

    proteger, mas que, na verdade, era um senhor autoritrio, que s protegia aqueles que lhe

    obedeciam com veemncia. Um acontecimento que comprova a retido do carter doprotagonista quando, diante da possibilidade de ficar dono de uma cidade, casado com

    uma bela mulher, mas com a condio de ter de matar o marido dessa, que j o havia

    tentado assassinar, Caim argumenta: No, lilith, no mo peas, no mo ordenes, j tenho a

    minha parte de assassnios (p.69).

    Desse modo, o desenlace trgico causado por Caim, assemelha-se ao seu primeiro

    crime: no de sua natureza matar, Deus quem o motiva a levantar suas mos contra o

    prximo. Assim, Deus o grande culpado por todas as desgraas narradas nessa obra,

    cabendo ao filho de Ado e Eva a tarefa de det-lo, o que torna Caim o heri da histria, da

    qual antes era o vilo. nessa inverso de papis que se encontra a maior ruptura contida

    nessa narrativa, relacionada no apenas com a viso de religio habitual, como tambm,

    com as imagens que simbolicamente a representam.

    Por fim, imprescindvel fazer um comentrio a respeito da linguagem e dos

    recursos grficos utilizados pelo autor na construo do texto e de seus sentidos, j que

    concorrem diretamente para a sensao de estranhamento que o romance provoca. Alm

    do uso de uma linguagem peculiar que se autorreferencia e da sua conhecida no utilizao

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    dos sinais de pontuao tradicionais, Saramagovai mais longe ainda em sua ousadia no

    que se refere grafia do texto, escrevendo os nomes prprios com inicial minscula. Tal

    recurso visual talvez seja mais uma maneira de ironizar a sociedade e suas regras, muitas

    sem sentido e sem lgica, representando apenas aparncias. Desse modo, a linguagem do

    cotidiano desautomatizada, dando lugar viso dos objetos enquanto singulares, e o leitor

    exposto a um novo modo de experiment-los, de senti-los em sua percepo esttica. O

    hbito a um tipo de pontuao e de grafia de nomes prprios rompido no momento em que

    no se d o reconhecimento, pois o uso de recursos grficos inusitados rompe com as

    convenesautomatizadas em nossa mente, sendo necessrio deter-se diante da obra por

    tempo prolongado para compreend-la. O romance, assim, cumpre sua funo enquanto

    arte, devolvendo ao leitor a sensao de vida.

    CONSIDERAES FINAIS

    Toda obra literria apresenta, com maior ou menor representatividade, elementos

    que lhe garantem desautomatizar as impresses cotidianas, tornando-as singulares,

    passveis de serem vistas, sentidas e no apenas reconhecidas. Nas obras de Jos

    Saramago, possvel encontrar, sem grande esforo, vrios recursos atravs dos quais se

    causa estranhamento: a linguagem, densa e carregada de simbologias, as personagens, os

    enredos, polmicos e crticos e, at mesmo, os sinais grficos concorrem para isso.

    Na obra Caim, assim como em outros textos desse autor, a grande ruptura est na

    forma como a religio vista e apresentada. O pblico leitor surpreendido por um enredo,

    uma linguagem que destroem esteretipos divinos, tornando-os humanos e pecadores.

    Alm disso, em Caim h uma inverso dos papis que representam o bem e o mal, ou seja,

    o pecador Caim torna-se o heri, que assume a responsabilidade de destruir os planos do

    vilo, Deus. Tambm, relevante para a singularizao, o modo como o texto pontuado e

    o fato de o autor utilizar letras minsculas em nomes prprios.

    Desse modo, pode-se afirmar que a obra analisada provoca essa sensao

    duradoura de conhecimento do objeto devido a muitos fatores, em especial religio e s

    relaes estabelecidas a partir dela. A cada pgina lida, o leitor sente-se diante de uma

    nova histria que, muitas vezes, choca-o e traz novas sensaes e novas maneiras de ver.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionsio de Oliveira(Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973, p. 39-56.

    SARAMAGO, Jos. Caim.So Paulo: Companhia das Letras, 2009.