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RDS VII (2015), 2, 247-270 A sociedade comercial como empresa social – breve ensaio prospetivo a partir do direito positivo português * 1 PROF. DOUTOR DOMINGOS SOARES FARINHO Sumário: 1. Razão de ser e sequência. 2. Enquadramento do tema. 3. A noção jurídica de empresa social em Portugal: 3.1. A referência nominal à noção jurídica de empresa social; 3.2. As empresas sociais de inserção; 3.3. As consagrações substantivas de regimes aproximados aos propósitos da empresa social. 4. As sociedades comerciais como empresas sociais: 4.1. A (im)possibilidade de prossecução do lucro. 5. O direito a constituir respeitante à empresa social: 5.1. O critério de determinação da natureza empresarial: 5.2. Elementos diferenciadores de um regime jurídico das empresas sociais: 5.2.1. Vantagens da sociedade comercial como empresa social. 6. Conclusões. 1. Razão de ser e sequência Neste breve ensaio pretendo fixar o sentido normativo do conceito de “empresa social” no ordenamento português e apurar se a “sociedade comer- cial”, enquanto tipo de pessoa coletiva, é ou pode ser uma empresa social. Em qualquer caso, isto é, quer como direito constituído, quer como direito a constituir, pretendo também determinar quais as vantagens, de uma perspetiva de governo institucional, em utilizar a sociedade comercial como forma de empresa social, e quais os mecanismos que devem ser criados para que essa fun- ção possa ser bem sucedida. Evidentemente estes últimos objetivos dependem da noção de empresa social que encontrarmos no sistema jurídico português e nos propósitos que o legislador tiver para ela. * O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org). Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 247 Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 247 14/10/15 11:27 14/10/15 11:27

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A sociedade comercial como empresa social – breve ensaio prospetivo a partir do direito positivo português*

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PROF. DOUTOR DOMINGOS SOARES FARINHO

Sumário: 1. Razão de ser e sequência. 2. Enquadramento do tema. 3. A noção jurídica de empresa social em Portugal: 3.1. A referência nominal à noção jurídica de empresa social; 3.2. As empresas sociais de inserção; 3.3. As consagrações substantivas de regimes aproximados aos propósitos da empresa social. 4. As sociedades comerciais como empresas sociais: 4.1. A (im)possibilidade de prossecução do lucro. 5. O direito a constituir respeitante à empresa social: 5.1. O critério de determinação da natureza empresarial: 5.2. Elementos diferenciadores de um regime jurídico das empresas sociais: 5.2.1. Vantagens da sociedade comercial como empresa social. 6. Conclusões.

1. Razão de ser e sequência

Neste breve ensaio pretendo fi xar o sentido normativo do conceito de “empresa social” no ordenamento português e apurar se a “sociedade comer-cial”, enquanto tipo de pessoa coletiva, é ou pode ser uma empresa social. Em qualquer caso, isto é, quer como direito constituído, quer como direito a constituir, pretendo também determinar quais as vantagens, de uma perspetiva de governo institucional, em utilizar a sociedade comercial como forma de empresa social, e quais os mecanismos que devem ser criados para que essa fun-ção possa ser bem sucedida. Evidentemente estes últimos objetivos dependem da noção de empresa social que encontrarmos no sistema jurídico português e nos propósitos que o legislador tiver para ela.

* O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org).

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Para atingir as minhas pretensões adotarei a seguinte sequência metodoló-gica: para começar apresentarei um breve enquadramento. A partir dele ten-tarei fi xar a noção de empresa social no ordenamento jurídico português. De seguida concentrar-me-ei na questão fundamental colocada à sociedade comer-cial pela noção de empresa social a que chegaremos: a limitação na distribuição dos lucros. De seguida analisarei, no quadro do direito já constituído os pró-ximos passos em matéria do direito a constituir, da perspetiva da adequação de um regime jurídico para a sociedade comercial enquanto empresa social face aos objetivos que o legislador pretende atingir. Este último aspeto permitirá revisitar alguns dos traços fundamentais do bom governo societário e determi-nar como eles satisfazem ou não de forma acrescida os objetivos do legislador e o que deve ser feito para adequar a sociedade comercial à função de empresa social.

2. Enquadramento do tema

O empreendedorismo social é uma expressão que tem surgido na lingua-gem política e científi ca portuguesas nas últimas décadas, acompanhando um fenómeno global. Emergente do Terceiro Setor (da Economia Social ou Não Lucrativa1), o conceito de empreendedorismo social visa descrever os casos de empreendedorismo que não podem, ainda assim, ser reconduzidos aos casos habituais que este setor integra, por se encontrarem a meio caminho entre as expressões institucionais clássicas do setor – as sociedades cooperativas, as fun-dações, as associações – e as pessoas coletivas utilizadas para prosseguir o lucro, maxime, as sociedades comerciais2. Nesta medida, o empreendedorismo social seria uma mutação verifi cada sobre o dna destas realidades jurídicas, um híbrido entre elas3.

1 Neste artigo não me preocuparei em distinguir as duas expressões, utilizando-as em sinonímia, para signifi car um setor da economia que não é nem público, nem busca o lucro como objetivo principal da sua atividade. Assim prefi ro utilizar o termo Terceiro Setor, como termo-chapéu. Para uma distinção, baseada em divergências histórico-culturais, entre Economia Social, de ins-piração continental, e Setor Não-Lucrativo, de infl uência anglo-saxónica, cf., Defouny, Jacques, Introduction: from third sector to social enterprise, in Borzaga, Carlo, e Defourny, Jacques (ed.), The Emergence of Social Enterprise, London, Routledge, 2001, p. 1 ss..2 Há, aliás, quem integre as empresas empresas sociais no denominado Quarto Setor, cf. http://www.fourthsector.net (última visualização 30.08.2015).3 Neste sentido, cf. Kelly, Marjorie, e White, Allen, Corporate Design – The Missing Business and Public Policy Issue of Our Time, Boston, Tellus Institute, Novembro 2007, disponível em: http://

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A literatura especializada sobre o tema tem procurado recortar o conceito de empreendedorismo social em torno de indicadores que permitam identifi car este tipo de fenómeno. Uma das primeiras e mais detalhadas propostas surgiu através da EMES Network4, que apresenta 9 indicadores da presença de uma empresa social5:

a) Uma atividade continuada de produção de bens e/ou de venda de ser-viços;

b) Um alto grau de autonomia;c) Um nível signifi cativo de risco económico;d) Um nível mínimo de mão-de-obra remunerada;e) Um propósito explícito de benefi ciar a comunidade;f) Uma iniciativa lançada por um grupo de cidadãos;g) Um poder de decisão não baseado na propriedade do capital;h) Uma natureza participativa, que envolve as pessoas afetadas pela ativi-

dade; ei) Uma distribuição limitada de lucros.

Muitas outras instituições fornecem critérios para determinar ou identifi car uma empresa social. A OCDE defi ne desde 1999 uma empresa social como “any private activity conducted in the public interest, organised with an entre-preneurial strategy, but whose main purpose is not the maximisation of profi t but the attainment of certain economic and social goals, and which has the capacity for bringing innovative solutions to the problems of social exclusion and unemployment”6. A defi nição da OCDE é muito semelhante à que encon-tramos em “The Social Business Initiative”, lançada em 2011, onde pode ler-se que a Comissão Europeia entende poder qualifi car-se como empresa social as empresas:

www.fourthsector.net/attachments/17/original/CorporateDesign.pdf?1229665694 (última vis-ualização em 30.08.2015).4 A EMES Network é uma rede de instituições de ensino superior e de investigação que desen-volvem a sua atividade nas áreas da economia e do empreendedorismo social, resultante de um projeto de investigação promovido pela União Europeia, entre 1996 e 1999 sobre a “emergência de empresas sociais na Europa”.5 Cf. Defouny, Jacques, Introduction..., cit., in Borzaga, Carlo, e Defourny, Jacques (ed.), op. cit., p. 16 a 18.6 Esta defi nição foi reafi rmada num documento conjunto da OCDE e da Comissão Europeia, de 2013, sobre empreendedorismo social. Cf. Policy Brief on Social Entrepreneurship, p. 3, disponível em: http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=738&langId=en&pubId=7552 (última visualiza-ção em 2015.08.13).

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a) cujo objectivo social ou de sociedade, de interesse comum, justifi ca a acção comercial, que se traduz, frequentemente, num alto nível de ino-vação social;

b) cujos lucros são reinvestidos principalmente na realização desse objeto social;

c) cujo modo de organização ou sistema de propriedade refl ecte a sua missão, baseando-se em princípios democráticos ou participativos ou visando a justiça social”7.

A partir destes elementos indicadores podemos propor uma noção subs-tantiva e uma noção formal de empreendedorismo social, só me importando a noção formal no âmbito deste artigo, enquanto forma jurídico-legal, preferindo para esta última a designação de empresa social.

Assim, como noção material, empreendedorismo social é uma atividade: i) de interesse social, geralmente inovadora ii) gerida de forma empresarial iii) cujos lucros são principalmente reinvestidos no fi m prosseguido e iv) cujo modo de organização se baseia nos princípios democrático e participativo. O ponto ii), que está presente, ainda que com distintas formulações, em todas as noções de empresa social avançadas, é problemático, na medida em que integra o defi nido na defi nição. Contudo, não parece ser possível escapar a uma noção de empresa, de comércio ou de empreendedorismo para tentar comunicar uma ideia que na verdade é simples: a empresa social não procura a maximização do lucro, mas procura a efi ciência na utilização dos recursos disponíveis para prosseguir o seu objeto, num contexto de mercado. Esta preocupação implica um modo de gestão desses recursos que é característica da atividade empresarial do setor lucrativo e é este aspeto que se pretende convocar com a característica indicada em ii) e que, como notei, surge em todas as noções de empresa social propostas pelas várias instituições.

Enquanto noção formal, a empresa social é um ente que utiliza a persona-lidade coletiva para ter uma existência jurídica autónoma, de modo a prosse-guir uma atividade com as características acima indicadas. Em tese poder-se-ia defender que esta forma jurídica da empresa social poderia ser algo novo na dogmática da personalidade coletiva, mas, como se verá, na maioria dos casos o legislador optou por reconduzir a empresa social a um dos tipos clássicos de

7 Cf. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões: Iniciativa de Empreendedorismo Social – Construir um ecossistema para promover as empresas sociais no centro da economia e da inovação sociais, p. 2, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2011:0682:-FIN:PT:PDF (última visualização em 2015.08.13).

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pessoa colectiva ou, pelo menos, a híbridos deles resultantes. Em qualquer dos casos – novo tipo de pessoa coletiva ou um dos tipos clássicos – do que se trata é de analisar se os indicadores que entendemos deverem estar presentes para que se possa falar de empresa social encontram-se reunidos em algum regime jurídico do ordenamento português e o que traz de acrescido esse regime às possibilidades permitidas pelos normais regimes das várias pessoas coletivas.

Assim, a análise que me proponho fazer implica, em primeiro lugar, deter-minar se o legislador tipifi cou os requisitos para que estejamos na presença normativa de uma empresa social. Caso não o tenha feito não podemos real-mente falar da presença da fi gura num ordenamento jurídico. Note-se que isto não signifi ca que fi quemos amarrados a um regime jurídico que se organize em torno do nomen juris “empresa social”, bastando-nos apenas que os critérios que aqui apresentamos estejam reunidos. Em segundo lugar, importa analisar o que pretende o legislador com esse regime jurídico. A priori devemos pre-sumir que o legislador pretende promover os fi ns prosseguidos pelas empresas sociais e, consequentemente, fomentar a sua utilização, através dos regimes que cria. Deste modo, enquanto conceito jurídico-normativo, a “empresa social” deve servir para, sobre o regime jurídico das pessoas coletivas já existentes ou a criar, acrescer a promoção de certos fi ns que não são possíveis ou facil-mente prosseguidos através dos regimes jurídicos pré-existentes. Em especial, no âmbito deste breve ensaio, o fundamental para mim é discernir uma von-tade inequívoca do legislador em criar um regime jurídico específi co através do qual a sociedade comercial possa ser utilizada para constituir uma empresa social com alguns ou todos os caracteres que elenquei acima. A escolha recai sobre as sociedades comerciais pois, como veremos de seguida, as sociedades comerciais são historicamente em Portugal o tipo de pessoa coletiva menos utilizado como veículo habitual para o empreendedorismo social no sentido aqui adotado. Importa perceber quais as razões desta ausência: se isto acontece por razões legais, por algum impedimento normativo, ou se decorre apenas de uma especial vocação das demais formas jurídicas privadas para o empreende-dorismo social.

3. A noção jurídica de empresa social em Portugal

3.1. A referência nominal à noção jurídica de empresa social

No ordenamento jurídico português há apenas duas referências nomi-nais a empresas sociais. A mais recente surge na Portaria n.º 97-A/2015, de 30 de março, integrada numa Prioridade de Investimento (PI) do Programa

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Operacional (PO) Inclusão Social e Emprego (ISE) intitulada “Promoção do empreendedorismo social e da integração profi ssional nas empresas sociais e da economia social e solidária para facilitar o acesso ao emprego”. A que conceito de empresa social se refere o autor da norma não é possível saber, pois a Por-taria não o indica, mas pode assumir-se que pretende convocar o regime das empresas sociais de inserção, a segunda referência nominal a este instituto. Com efeito, existe no ordenamento jurídico português um instituto jurídico que é considerado uma empresa social. Refi ro-me às empresas de inserção (dora-vante, empresas sociais de inserção), que se integram numa já longa tradição europeia de empresas sociais destinadas a assegurar a integração de desempre-gados de longa duração e outros tipos de desempregados com características específi cas. Nos termos da Resolução do Conselho de Ministro (RCM) n.º 49/2008, de 6 de março, as empresas de inserção, reguladas pela Portaria n.º 348-A/1998, de 18 de junho, são consideradas empresas sociais. Apesar de a alínea m) do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 13/2015, de 26 de janeiro ter revogado a Portaria n.º 348-A/1998, o mais curioso é que o âmbito da Prio-ridade de Investimento prevista na Portaria n.º 97-A/2015 parece destinar-se justamente às empresas sociais de inserção o que explicaria a disposição do n.º 4 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 13/2015, que aprova “os objetivos e os princípios da política de emprego e regula a conceção, a execução, o acompa-nhamento, a avaliação e o fi nanciamento dos respetivos programas e medidas”, ao dispor que “[à]s respostas sociais proporcionadas por empresas de inserção continuam a aplicar-se, por um período de 90 dias após a entrada em vigor do presente decreto-lei, as disposições da Portaria n.º 348-A/98, de 18 de junho, e do Despacho n.º 87/99, de 5 de janeiro”. Estamos, pois, numa situação estranha: há uma referência à empresa social no ordenamento jurídico portu-guês que parece remeter, contudo, para um regime que deixou entretanto de vigorar para novas empresas sociais de inserção, estando apenas vigente para as empresas sociais já existentes, nos termos das regras das alíneas do n.º 2 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 13/2015, de onde decorre que a única noção e regime de empresa social vigente no nosso ordenamento jurídico existe, neste momento, com termo certo.

A noção jurídica de “empresa social” aparece-nos pois como aparece em geral no ordenamento jurídico português a noção de “empresa”: como “sublinguagem comunicativa” nas palavras de Menezes Cordeiro8. Ela desti-na-se a congregar normativamente um conjunto de elementos com relevância jurídica que de outro modo seriam muito difíceis de manusear. A sua impor-

8 Cordeiro, António Menezes, Direito Comercial, Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 2012, p. 325.

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tância como elemento interpretativo deve ser por isso aferida em cada caso concreto9. No caso da empresa social, o legislador, no único diploma legal que a refere, regula o seu desaparecimento por referência ao único regime jurídico que a Administração Pública lhe dedicou, um regime jurídico, como vimos, entretanto revogado. O cenário positivo de partida é, no mínimo, confuso.

3.2. As empresas sociais de inserção

Como acabámos de ver, o revogado regime das empresas sociais de inser-ção, nos termos do Decreto-Lei n.º 13/2015, continuará a vigorar até “[a]o termo do período mínimo de sete anos em curso, previsto na alínea d) do n.º 4, do Termo de Responsabilidade, Modelo A (apoios ao investimento e ao fun-cionamento), anexo ao Despacho n.º 87/99, de 5 de janeiro; ou até [a]o termo do ciclo de inserção em curso, sempre que o projeto já tenha ultrapassado o período mínimo de sete anos referido na alínea anterior”. Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Portaria n.º 348-A/1998: “[p]ara efeitos do presente diploma são empresas de inserção as pessoas colectivas sem fi ns lucrativos que tenham por fi m a reinserção sócio-profi ssional de desempregados de longa duração ou em situação de desfavorecimento face ao mercado de trabalho, e que revistam, nomeadamente, uma das seguintes formas...”. As formas previstas nas alíneas do n.º 1 do referido preceito são: associação, cooperativa, fundação e instituição particular de solidariedade social. O n.º 1 do artigo 5.º completa ainda a con-formação destas empresas explicitando que elas “funcionam segundo modelos de gestão empresarial”, o que surge como redundante uma vez que dada a qualifi cação de “empresas”, esperar-se-ia que a sua gestão fosse “empresarial”. Com isto suponho que deve entender-se que a gestão visa a efi ciência da utili-zação dos recursos da pessoa coletiva, em contexto de mercado concorrencial, tal como já havia referido acima.

Da leitura combinada dos artigos 4.º e 5.º da Portaria n.º 348-A/98 resulta que uma empresa social (de inserção) é i) uma pessoa coletiva, ii) sem fi ns lucra-tivos, (iii) que prossegue um fi m de interesse social (reinserção sócio-profi ssio-nal de desempregados de longa duração ou em situação de desfavorecimento face ao mercado de trabalho) e é (iv) organizada e funciona segundo “modelos de gestão empresarial”. Esta análise revela que na até agora única fi gura expres-samente qualifi cada como empresa social no ordenamento jurídico português a prossecução do lucro é impedida, revelando um entendimento de empresa

9 Cf. Cordeiro, António Menezes, op. cit., pp. 325 e 326.

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social mais restritivo do que as noções que nos têm servido de premissa analítica e até, como veremos melhor adiante, limitativa face ao conceito de economia social resultante da Lei de Bases da Economia Social. Ela enquadra-se no que podemos designar a primeira vaga europeia de empresas sociais, cujo escopo esteve particularmente ligado à inserção profi ssional de desempregados ou de trabalhadores com necessidades especiais10, mas que entretanto tem sido supe-rada quer por infl uência da União Europeia e da OCDE, quer por infl uência anglo-saxónica.

Nesta medida, o conceito de empresa social que podemos extrair do orde-namento jurídico português não é muito distinto de uma certa prática europeia meridional que convive com a diversidade que encontramos nos ordenamentos jurídicos de infl uência romano-germânica e anglo-saxónica. Face ao conceito que podemos retirar do tratamento jurídico da realidade portuguesa importa criticar os seus traços principais, começando, desde logo, pela opção aparen-temente restritiva de apenas considerar-se como empresas sociais uma modali-dade muito específi ca e circunscrita de empreendedorismo social.

Antes de avançarmos importa, porém, analisar com um pouco mais de detalhe o lugar das instituições particulares de solidariedade social na discussão conceptual sobre empresas sociais.

3.3. As consagrações substantivas de regimes aproximados aos propósitos da empresa social

Existe no ordenamento jurídico português um regime jurídico que apela a um conceito que, em boa medida, partilha os mesmos elementos característicos da empresa social e cujo regime prossegue parcialmente os mesmos objeti-vos que um putativo regime das empresas socais. Referimo-nos às Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e ao regime jurídico decorrente do Estatuto11 respeitante a esta qualidade de pessoas coletivas. Com efeito, no que diz respeito aos seus elementos defi nidores, encontramos a prossecução de fi ns de solidariedade social12, encontramos a proibição de distribuição de lucros13 e

10 Cf. Defourny, Jacques, e Nyssens, Marthe, Conceptions of Social Enterprise and Social Entrepre-neurship in Europe and the United States: Convergences and Divergences, in Journal of Social Entrepreneur-ship, Vol. 1, n.º 1, 2010, p. 37 ss..11 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 9/85, de 9 de janeiro, 89/85, de 1 de abril, 402/85, de 11 de outubro, 29/86, de 19 de fevereiro e 172-A/2014, de 14 de novembro.12 Cf. os artigos 1.º e 1.º-A do EIPSS.13 Cf. o artigo 1.º do EIPSS.

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encontramos, em muitas delas, um modo de organização que se subordina aos princípios democrático e participativo, onde avultam as associações de solida-riedade social14 e as cooperativas de solidariedade social15. No que diz respeito às fi nalidades prosseguidas pelo Estatuto das IPSS, especialmente se recordar-mos que, por força do seu artigo 9.º, todas as IPSS são automática e simulta-neamente pessoas coletivas de utilidade pública, o legislador atribui-lhes, com a combinação destes dois regimes jurídicos, especiais vantagens fi scais16 e de contratação pública17.

É certo, contudo, que as IPSS e, de modo mais vasto, as pessoas coletivas não lucrativas, onde ainda se integram as fundações, associações e cooperativas que não sejam IPSS, não são geridas, necessariamente, de forma empresarial, embora nada obste a que isso aconteça18. Creio que é exatamente este incentivo ao elemento de gestão empresarial que surge na alínea d) do n.º 1 do artigo 4.º do regime jurídico das empresas sociais de inserção ao permitir-se que uma IPSS possa ser qualifi cada como tal. O que distingue uma normal IPSS de uma IPSS que possa ser qualifi cada como empresa social é, por um lado, o fi m de solidariedade social específi co – “a reinserção sócio-profi ssional de desem-pregados de longa duração ou em situação de desfavorecimento face ao mer-cado de trabalho” e, por outro lado, a obrigação de adotar “modelos de gestão empresarial”. Ora, tendo em conta que o fi m específi co das empresas sociais de inserção está já compreendido nos fi ns gerais das IPSS, previstos no artigo 1.º-A do Estatuto das IPSS, apenas a exigência de modelos de gestão empre-sarial surge como elemento diferenciador das IPSS enquanto empresas sociais. A defi nição deste elemento torna-se ainda mais importante.

14 Cf. o artigo 52.º e ss. do EIPSS.15 Cf. Decreto-Lei n.º 7/98, de 15 de janeiro.16 As vantagens fi scais derivam do estatuto de pessoas coletivas de utilidade pública que lhes é automaticamente reconhecida após o registo, nos termos do artigo 8.º do EIPSS.17 É o próprio legislador a prever um tratamento específi co face às IPSS no artigo 4.º do Estatuto das IPSS. Este tratamento específi co conhece vários desenvolvimentos, dos quais o principal exemplo é a exclusão ou considerável simplifi cação dos principais serviços prestados pelas IPSS nas matérias em que o Estado está obrigado a utilizar procedimentos pré-contratutais de seleção dos co-contratantes.18 Para uma análise desta possibilidade no domínio fundacional, cf. o meu Empresa e fundações: uma união mais forte?, in Revista de Direito das Sociedades, Ano IV (2012), 4, p. 805 ss..

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3.4. A noção de empresa social e a Lei de Bases da Economia Social

Não é fácil determinar se a Lei de Bases da Economia Social (LBES)19 pressupõe uma noção de empresa social. A Lei refere-se, no seu artigo 4.º, a entidades que integram a economia social, mas não se refere explicitamente a empresas sociais. Daqui decorre, contudo, que as empresas que possam ser consideradas entidades da economia social são, evidentemente, reconhecidas pela Lei de Bases da Economia Social e, como tal, benefi ciam do regime geral que aí é previsto. Esta integração parece ser confi rmada face à formulação da Portaria n.º 97-A/2015, na medida em que aí se refere a “[p]romoção do empreendedorismo social e da integração profi ssional nas empresas sociais e da economia social e solidária para facilitar o acesso ao emprego” (negrito e sub-linhado meus) como se empresas sociais e empresas da economia social fossem qualifi cações distintas que contudo podem aplicar-se a uma mesma empresa. A formulação da Portaria não está, contudo, isenta de equívocos.

Certo parece ser, no que diz respeito ao lugar das sociedades comerciais no espectro de empresas sociais, que a LBES assume que as sociedades comerciais não estão excluídas à partida da economia social, embora pareçam estar excluí-das da noção de empresa social que resulta do regime jurídico das empresas sociais de inserção. Com efeito, se por um lado encontramos discriminados nas alíneas do artigo 4.º da LBES todos os tipos clássicos de pessoas coletivas que prosseguem fi ns não lucrativos e que vão para além das IPSS (que, aliás, surgem também discriminadas autonomamente, confundindo tipos de pessoas coletivas com qualifi cações de tipos), por outro, encontramos também, nos termos da alínea h) do artigo 4.º da LBES “[o]utras entidades dotadas de personalidade jurídica, que respeitem os princípios orientadores da economia social previstos no artigo 5.º da presente lei e constem da base de dados da economia social”. Ora, ao analisarmos “os princípios orientadores da economia social” tal como o legislador os prevê no artigo 5.º da LBES, encontramos, sem surpresas, os ele-mentos que recenseei supra como os elementos característicos apontados pela EMES Network, Comissão Europeia, OCDE e outras instituições. Além disso encontramos também de modo explícito dois traços característicos da inter-venção legislativa sobre as empresas sociais: a criação de uma especial relação com o setor público (cf. artigo 9.º da LBES) e a previsão de um regime fi scal mais favorável (cf. artigo 11.º da LBES). As bases para um potencial regime das empresas sociais parecem estar lançadas.

19 Aprovada pela Lei n.º 30/2013, de 8 de maio.

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Porém, por outro lado, parece haver grande concordância doutrinal sobre a impossibilidade de proibir a distribuição de lucros nas sociedades comerciais, o que impede a sua qualifi cação como empresa social, tomando como referência o único regime jurídico de onde resulta tal conceito no nosso ordenamento jurídico.

Pode entender-se, ainda assim, que a Lei de Bases da Economia Social serve hoje de enquadramento ao que pode vir a ser um tratamento administra-tivo e legislativo da empresa social, mas que está ainda por acontecer e, como tal, deixa a pairar inúmeras dúvidas normativas não fornecendo qualquer tipo de orientação prática para os agentes jurídicos. Não é neste momento possí-vel retirar do ordenamento jurídico português uma noção jurídica de empresa social para além daquela que resulta do regime jurídico das empresas sociais de inserção e, assim sendo, a questão fundamental, no que diz respeito ao direito positivo aplicável às sociedades comerciais, é a de saber se estas podem ser enti-dades sem fi ns lucrativos, rectius, entidades em que se proíba a distribuição total de lucros.

4. As sociedades comerciais como empresas sociais

4.1. A (im)possibilidade de prossecução do lucro

É pacífi co na esmagadora maioria dos sistemas jurídicos que a organização e a gestão de uma pessoa coletiva maioritariamente orientada para a maximização do lucro dos investidores, sejam eles associados, sócios, ou de outro tipo, não é compatível com a prossecução, a título principal, de fi ns de interesse social, que obrigam à consideração e prossecução de interesses muito para além dos interesses daqueles que investiram na atividade económica da pessoa coletiva. Contudo, isto não signifi ca, a priori, que as pessoas coletivas que prossigam fi ns de interesse social não possam distribuir de modo restrito lucros da sua ativi-dade. Porém, o conceito de empresa social que podemos retirar do ordena-mento jurídico português proíbe, pura e simplesmente, a prossecução do lucro, pelo que a questão da medida possível da sua distribuição fi ca imediatamente prejudicada. Resta-nos apenas investigar se é possível constituir uma sociedade comercial em que fi que proibida a distribuição de lucros assim se conseguindo cumprir indiretamente a proibição regulamentar de prossecução do lucro.

É interessante ver como se coloca a questão em ordenamentos jurídicos comparados. Muitos ordenamentos jurídicos resolvem a questão tal como o ordenamento jurídico português: limitando indiretamente a qualifi cação como empresas sociais a tipos de pessoas coletivas cujos regimes impedem a prossecu-

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ção do lucro e deste modo excluindo sociedade comerciais ou similares. Outros ordenamentos, contudo, admitindo como empresas sociais quaisquer pessoas coletivas fi xam um valor máximo para a repartição de lucros ou exigem que essa repartição seja residual.

Através da lei de autorização legislativa n.º 118 de 15 de Julho de 2005, o Parlamento italiano autorizou o Governo a legislar, no prazo de um ano, sobre “la disciplina dell’impresa sociale”, o que veio a ser feito através do Decreto-lei n.º 155 de 24 de Março de 2006, que aprovou tal regime. Aí pode ler-se, no n.º 1 do artigo 1.º que “[p]ossono acquisire la qualifi ca di impresa sociale tutte le organizzazioni private, ivi compresi gli enti di cui al libro V del codice civile, che esercitano in via stabile e principale un’attività economica organizzata al fi ne della produzione o dello scambio di beni o servizi di utilità sociale, diretta a realizzare fi nalità di interesse generale, e che hanno i requisiti di cui agli arti-coli 2, 3 e 4”. Contudo, uma leitura mais atenta deteta um problema: a questão do lucro. A lei italiana prevê que possam adquirir a qualifi cação de empresa social todas as organizações privadas, incluindo as do Livro V do Código Civil, onde se encontram previstos os vários tipos de sociedades comerciais, porém, para estas prevê o artigo n.º 2247 que deve haver o propósito de divisão de lucros (“scopo di dividerne gli utili [entre os sócios]). Ora, o artigo 2.º da lei italiana das empresas sociais depois de no seu n.º 1 prever que os lucros da empresa apenas podem servir para o desenvolvimento da atividade estatutária ou aumento do património, vem preceituar no seu n.º 2 que “[a] tale fi ne e’ vietata la distribuzione, anche in forma indiretta, di utili e avanzi di gestione, comunque denominati, nonche’ fondi e riserve in favore di amministratori, soci, partecipanti, lavoratori o collaboratori”. Nesta medida, o problema no que diz respeito às sociedades comerciais, a partir da lei italiana e para qualquer ordenamento que prossiga uma metodologia normativa semelhante, coloca--se da seguinte forma: podem as sociedades comerciais não prosseguir o lucro podendo assim ser qualifi cadas como empresas sociais ou deve aligeirar-se a proibição de repartição de lucro, permitindo alguma – ainda que residual – divisão de lucros? Nos demais casos típicos – associação, fundação e (sociedade) cooperativa – a prossecução do lucro é proibida. Sabemos já a resposta positiva a esta questão em Portugal, mas importa avançar um pouco mais, não apenas com o intuito de podermos criticar a solução positiva, mas também de forne-cermos argumentos para novas soluções de direito a constituir, desde logo no quadro da Lei de Bases da Economia Social.

A lei italiana não é a única a proceder deste modo (e a ter inspirado a lei portuguesa das empresas de inserção, que vêm aliás referidas parcialmente no n.º 2 do artigo 2.º da lei italiana e remontam a uma lei anterior, de 1991, res-peitante às cooperativas de solidariedade social italianas). Encontramos uma

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outra experiência jurídica que convoca os caracteres da empresa social deter-minando também a proibição da distribuição de lucro. É o caso da Espanha, desde 1999, com a “cooperativa de iniciativa social”. Contudo, encontramos também experiências em que apesar de se pretender evitar a utilização da empresa como um modo de maximização do investimento, não se proíbe a distribuição de lucros, embora se proceda a restrições muitos fortes. Isso mesmo acontece na Bélgica desde 1996, com a “societé à fi nalité sociale”20; na Grécia desde 1999; em França desde 2002, com a “société coopérative d’intérêt collectif”21; e na Inglaterra desde 2004. Também nos Estados Uni-dos, desde pelo menos 2008, a tendência tem sido a criação de regimes jurí-dicos de empresas sociais em que é admitida uma medida residual de distri-buição de lucros, como são os casos da “low-profi t limited liability company (L3C)”, “benefi t corporation”, e “fl exible purpose corporation (FPC)”22. Existem mesmo casos de utilização da designação “empresa social”, sem que juridicamente exista qualquer limitação à distribuição de lucros, limitando-se o regime jurídico a regular atividades empresariais com fi nalidades de inte-resse social, como sucede na Finlândia23. Por fi m, podemos ainda encontrar situações, nos antípodas do pioneirismo italiano, em que a noção jurídica de “empresa social” é praticamente ignorada pelos ordenamentos jurídicos, como é o caso relevante da Alemanha, que parece ser justifi cado, num qua-dro mais vasto, pelas especifi cidades da sua “economia de mercado social” e num âmbito mais restrito pelo dinamismo e funcionalidade dos regimes jurídicos já existentes para as várias entidades do terceiro setor, que permitem experiências materiais de empreendedorismo social a partir dos tipos insti-tucionais disponíveis24. O que não encontramos em nenhum caso de direito comparado é a possibilidade de proibir a distribuição de lucros para com isso poder admitir-se uma sociedade comercial ou outro ente semelhante (isto é, formado com o propósito de prosseguir o lucro) como empresa social. Em Portugal, apesar de haver controvérsia sobre se o lucro é um elemento essen-

20 Cf. Defourny, Jacques, e Nyssens, Marthe, Social Enterprises in community services, in Borzaga, Carlo, e Defourny, Jacques (ed.), op. cit., p. 47 ss.21 Cf. Defourny, Jacques, e Nyssens, Marthe (ed.), Social Enterprise in Europe: Recent Trends and Developments, Working Paper n.º 08/01, EMES Network, p. 20 ss., disponível em: http://orbi.ulg.ac.be/bitstream/2268/11568/1/WP_08_01_SE_WEB.pdf (última visualização em 2015.08.12.22 Reiser, Dana Brakman, Theorizing Forms for Social Enterprise, p. 7 ss., disponível em http://ssrn.com/abstract=2166449 (última visualização em 2015.08.13).23 Cf. Defourny, Jacques, e Nyssens, Marthe (ed.), op. cit., p. 17 ss., disponível em: http://orbi.ulg.ac.be/bitstream/2268/11568/1/WP_08_01_SE_WEB.pdf (última visualização em 2015.08.12).24 Cf. Defourny, Jacques, e Nyssens, Marthe (ed.), op. cit., p. 22 ss., disponível em: http://orbi.ulg.ac.be/bitstream/2268/11568/1/WP_08_01_SE_WEB.pdf (última visualização em 2015.08.12).

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cial de uma sociedade25, parece ser possível defender que, face à noção de sociedade prevalecente no ordenamento jurídico português, uma sociedade que estivesse proibida de distribuir lucros integraria uma cláusula nula, que sempre poderia ser arguida por qualquer sócio, frustrando-se tal proibição, e, como tal, não sendo possível qualifi cá-la como uma pessoa coletiva sem fi ns lucrativos26.

De uma perspetiva de direito a constituir, a opção deve ser, em meu enten-der, a de acompanhar as soluções comparadas que classifi cam como sociais as empresas em que é possível uma moderada a residual distribuição de lucros, fi xando mesmo, por vezes, essa proporção. Em especial, avulta para mim como bom elemento comparado, o valor das “Community interest companies”, cujo regulador limita neste momento a distribuição de lucros a 35%27. Esta opção parece-me preferível por duas razões que se encontram relacionadas. De uma perspetiva teleológica, já aqui frisada, a única função de uma intervenção legis-lativa através do conceito de empresa social é a de agregar pessoas coletivas que pretendam prosseguir fi ns sociais através de estratégias comerciais desenvolvidas no mercado. Nesta medida, poder integrar no conceito de empresas sociais tipos de pessoas coletivas que permitam a prossecução do lucro, ainda que resi-dualmente, permite prosseguir este fi m ao mesmo tempo alargando o número de possibilidades de estruturas legais disponíveis, o que permite apurar os meca-nismos de bom governo institucional. Por outro lado, e como segunda razão, a possibilidade de integrar pessoas coletivas que possam prosseguir o lucro, ainda que moderadamente, é uma forma de incentivar a utilização de tipos de pessoas coletivas cuja estrutura e o modelo de governo evoluíram através do aperfeiçoamento de mecanismos em regra distintos dos mecanismos utilizados pelas pessoas coletivas de fi ns não lucrativos. Este aspeto pode ser atrativo para muitos investidores que queiram prosseguir fi ns sociais, mas estejam sobretudo

25 Neste sentido, cf. a contraposição apresentada por João Miguel Ascenso, cf. Ascenso, João Miguel, As sociedades não lucrativas. Breve análise dos direitos dos sócios aos lucros, in Revista de Direito das Sociedades, Ano III (2011), n.º 3, pp. 826 e 827.26 Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, cf. Vasconcelos, Pedro Pais de, A participação social nas sociedades comerciais, Coimbra, Almedina, 2006, p. 82; cf. também Ascenso, João Miguel, op. cit., p. 845.27 Cf. ponto 6.3. do documento Offi ce of the Regulator of Community Interest Companies: Information and guidance notes – Chapter 6: The Asset Lock, Outubro de 2014, disponível em: https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/fi le/416360/14-1089-community-interest-companies-chapter-6-the-asset-lock.pdf (última visualização em 2015.08.17).

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familiarizados com estruturas institucionais que permitam a prossecução do lucro28. Este é o caso em Portugal das sociedades comerciais.

Note-se que a decisão futura do legislador de criar um regime jurídico das empresas sociais que integre também pessoas coletivas que prossigam o lucro, embora com uma limitação substancial na sua distribuição, permite integrar as sociedades comerciais no leque de pessoas coletivas que podem ser empresas sociais, sendo dogmaticamente uma opção mais ortodoxa do que a alternativa: admitir um tipo de sociedades comerciais em que não exista distribuição de lucros. Nesta medida, numa futura intervenção legislativa é recomendável que nem se excluam as sociedades comerciais do regime das empresas sociais, nem se faça tal integração à custa da possibilidade de distribuição de lucros no âmbito de uma sociedade comercial29.

Deve notar-se que entendo que a Lei de Bases da Economia Social é com-patível com a solução que proponho e pode mesmo dizer-se que o legislador já a prenuncia. Com efeito, nos termos da alínea h) do artigo 4.º da LBES, não parece restar outra interpretação do que considerar que aí se abre uma porta para as empresas sociais sob forma societária comercial, pese embora a ausência de um regime positivo que o permita. De acordo com o preceito também inte-gram a economia social “[o]utras entidades dotadas de personalidade jurídica, que respeitem os princípios orientadores da economia social previstos no artigo 5.º da presente lei e constem da base de dados da economia social”. Ora, sucede que nas restantes alíneas do artigo 5.º estão previstas todas as formas jurídicas que o sistema jurídico português comporta, incluindo os diversos tipos de pes-soas coletivas – fundações e associações – bem como especiais qualifi cações

28 Sobre as vantagens da utilização de uma pessoa coletiva que prossiga o lucro como empresa social, cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, The Role of Social Enterprise, Vermont Law Review, Vol. 35, 2010-2011, p. 85 e ss.29 Esta foi a solução belga, com a criação da “sociedade de fi m social”, para o mesmo problema que encontramos em Portugal. Como escreve Michel Copiel, “Au plan des principes, en eff et, le droit belge contenait une lacune: en cas d’activité commerciale et d’absence de but de lucre de telles entreprise ne pouvaient normalement pas accéder à la personnalité morale. Pourquoi? D’une part, selon la conception qui dominait encore à l’époque, une ASBL [Association San But Lucratif ] ne pouvait avoir pour objet l’exercice à titre principal d’une activité commerciale et même, plus largement, d’une activité lucrative. D’autre part, l’option sociétaire théoriquement exclue, elle aussi, puisque l’absence de but de lucre des associés était contraire à l’article 1832 du Code civil, (devenu l’article 1 du Code des Societés) et à la specialité légale des sociétes. Au souci de rencontrer ces diffi cultés s’est ajouté, dans le monde de l’économie sociale, la volonté de la reconnaissance juridique qui consacre la specifi cité des entreprises marchandes à but social et, par voie de conséquence, stimule leurs création [das Sociedades de Fins Sociais], cf. Coipel, Michel, Les alternatives à l’ASBL pour l’exercice d’activités marchandes, in Coipel, Michel, e Marée, Michel, ASBL et activités marchandes, in Les Dossiers d’ASBL Actualités, 2009, n.º 8, Edi.pro, p. 111.

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como as cooperativas e as instituições particulares de solidariedade social, mas não se referem as sociedades comerciais. Tendo em conta os princípios orien-tadores da economia social que vêm prescritos no artigo 5.º da LBES, muito em particular o da alínea g), que não impede a distribuição de lucros, é possível defender que através da alínea h) do artigo 4.º da LBES são admitidas sociedades comerciais como entidades integrantes da economia social e, logo, passíveis de serem empresas sociais.

5. O direito a constituir respeitante à empresa social

Se de um ponto de vista do direito constituído da empresa social pouco há que possamos fazer com os elementos normativos de que dispomos no ordena-mento jurídico português nem por isso me parece que o tema se extinga aqui. Com efeito, se por um lado a noção de empresa social que podemos extrair do ordenamento jurídico português exclui as sociedades comerciais, por outro lado, de uma perspetiva do direito a constituir, não nos parece que a sociedade comercial seja de excluir. Existe, além do mais, um conjunto de elementos históricos e comparados que nos lança para uma discussão que julgo importante sobre os traços essenciais de direito a constituir respeitante à empresa social e muito em especial para o papel que aí deve ocupar a sociedade comercial. E, por outro lado, a Lei de Bases da Economia Social, enquanto direito consti-tuído que reclama regimes ainda por constituir também fornece elementos con-formadores ao legislador de desenvolvimento. Alguns desses elementos foram já referidos. De um ponto de vista histórico, o mais importante é, sem dúvida, o confronto entre o antigo mas ainda vigente regime das empresas sociais de inserção e as novas disposições da Lei de Bases da Economia Social. De um ponto de vista comparado, percebemos também que o cenário é sufi ciente-mente variado para poder inspirar o legislador em sentidos diversos, embora de uma perspetiva de integração europeia, a tendência esteja inequivocamente a favor de uma abertura das empresas sociais às sociedades comerciais ou entes similares, por infl uência anglo-saxónica.

As duas questões que pretendo abordar estão já indiciadas na Lei de Bases da Economia Social e dizem respeito a:

a) o critério para determinar a natureza empresarial das pessoas coletivas que pretendam qualifi car-se como empresas sociais; e

b) quais os elementos do regime jurídico que devem justifi car a autonomi-zação normativa das empresas sociais.

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O que pretendo demonstrar é que o conceito jurídico de empresa social que podemos retirar do direito constituído das empresas sociais de inserção não é o mais adequado face ao próprio sistema jurídico português e face ao ordena-mento jurídico da União Europeia e outros ordenamentos comparados. Outro deve ser o direito a constituir respeitante às empresas sociais.

5.1. O critério de determinação da natureza empresarial

Numa primeira abordagem o que parece mais estranho é ser precisamente a sociedade comercial a ser excluída de um conceito de “empresa”, mesmo que social. Com efeito, de um modo intuitivo, mas que tem boas razões a funda-mentá-lo, quando pensamos em empresas é em sociedades comerciais que esta-mos a pensar, mesmo que não tenhamos conhecimentos jurídicos. Seria, pois, normal assumir que ao cunhar-se o conceito jurídico de empresa social não fossem as sociedades comerciais sacrifi cadas, mas antes se afeiçoasse o cunho social à natureza jurídica e ao regime das (várias modalidades de) sociedades comerciais.

O que quer que seja a “empresarialidade” enquanto qualidade que pode ser reconhecida às pessoas coletivas, devemos investigar por que razão a associamos às sociedades comerciais, mais do que a qualquer outro tipo de pessoa coletiva.

No caso do direito português, como vimos, esse critério é lacónico, podendo ler-se na primeira parte do n.º 1 do artigo 5.º, que “[a]s empresas de inserção organizam-se e funcionam segundo modelos de gestão empresarial”. Pois bem, o que caracteriza a empresarialidade?

Creio que o critério a adoptar pelo legislador num futuro regime jurídico das empresas sociais já se encontra implícito da LBES: a prática de uma ativi-dade económica geradora de rendimentos através da presença no mercado em condições de concorrência30. Isto mesmo parece já decorrer da defi nição de economia social que o legislador fornece no n.º 1 do artigo 2.º da LBES quando afi rma que é “economia social o conjunto das atividades económico-sociais,

30 Este elemento caracterizador das empresas sociais é pacífi co na doutrina anglo-saxónica, cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, The Role of..., cit., p. 59; Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise the new Corporate Social Responsability?, in Seattle University Law Review, Vol. 34, 2010-2011, p. 1362 ss.. Na tradição europeia continental este critério não é tão claro, uma vez que o setor da economia social exclui legalmente em muitos países, como vimos, as pessoas coletivas que prosseguem o lucro atuando no mercado. Esta distinção está bem marcada no Policy Brief conjunto da Comissão Europeia e da OCDE sobre Empreendedorismo Social, cf. Policy Brief on Social Entrepreneurship – Entrepreneurial Activities in Europe, p. 3., disponível em http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=738&langId=en&pubId=7552 (última visualização em 28.08.2015).

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livremente levadas a cabo pelas entidades referidas no artigo 4.” e é aplicável tanto a pessoas coletivas não-lucrativas como a pessoas coletivas que procurem o lucro, ainda que exista uma limitação legal específi ca à sua distribuição.

O único aspeto que me parece ser de acrescentar no critério de delimita-ção do âmbito subjetivo de um futuro regime jurídico das empresas sociais é a exigência de que a atividade económica seja a atividade principal da pessoa coletiva em causa. Só este elemento pode justifi car que a pessoa coletiva deva organizar-se e ser gerida de um modo empresarial, entendendo-se com isto que é gerida para assegurar a efi ciência dos seus recursos face à oferta de bens ou serviços que disponibiliza no mercado. É este aspeto que deve merecer da parte do legislador um tratamento específi co que acresça ao já regulado para cada um dos distintos tipos e qualifi cações de pessoas coletivas referidas nas alí-neas do artigo 4.º da LBES. De outro modo, o regime das empresas sociais será redundante. Por outro lado, não se vê como se pode fazer uma exigência deta-lhada. Recorde-se que a noção de tipo ideal da EMES Network refere “[u]ma atividade continuada de produção de bens e/ou de venda de serviços” e “um nível signifi cativo de risco económico”, dois critérios que podem integrar-se na exigência de uma atividade económica desenvolvida a título principal. A noção da OCDE não vai além da exigência de “uma estratégia empreendedora [...] capaz de atingir certos objetivos económicos”. A noção da Comissão Europeia fi ca-se pela exigência de uma “ação comercial”. Creio não se pode ir mais longe. Mas o caminho percorrido demonstra bem como as sociedades comer-ciais, pelo modo como se organizam e desenvolvem a sua atividade, devem ser consideradas empresas, sendo o qualifi cativo “social” uma questão teleológica autónoma, que o legislador deve resolver noutra sede, a propósito da limitação de distribuição de lucros e aproveitamento de rendimentos.

5.2. Elementos diferenciadores de um regime jurídico das empresas sociais

Resta, em meu entender, uma última questão fundamental que o legis-lador deve resolver no que toca ao direito a constituir das empresas sociais. Se o legislador deve, na linha do que preceitua na Lei de Bases da Economia Social, fomentar a economia social, dedicando especifi camente a este deside-rato o artigo 10.º, então importa perguntar o que deve conter esse regime, isto é, o que pode o legislador trazer de novo, normativamente, face aos regimes jurídicos já existentes. A resposta já está parcialmente dada com o ponto ante-rior: se o legislador pretender avançar para uma solução legislativa integrada de tipo italiano, uma verdadeira lei das empresas sociais, então o foco terá que ser no desenvolvimento da qualidade de “empresarialidade” enquanto modo

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de prosseguir um fi m social. Será este o aspeto unifi cador de todos os regimes jurídicos que já existem para a constituição de pessoas coletivas. Para além desta esclarecedora qualifi cação um regime jurídico das empresas sociais tem, necessariamente, que conter incentivos à utilização de tal tipo de organização. Ou seja, o empreendedorismo, para além da forma jurídica utilizada, tem que ser recompensado de uma forma acrescida. Não poderá o legislador prevale-cer-se apenas dos regimes jurídicos destinados a compensar a prossecução de fi ns sociais não lucrativos, com todas as vantagens que isso traz para a satisfação do interesse público, é preciso algo mais: é preciso que um regime das empre-sas sociais incentive a prossecução de fi ns sociais através de mecanismos de mercado e integrados nesse mesmo mercado. Que mecanismos são estes? Para podermos responder a esta questão é forçoso que primeiro indiquemos quais os aspetos críticos que um regime jurídico das empresas sociais deverá conter. Isto é, que aspetos, como notei acima, são verdadeiramente diferenciadores na noção de empresa social face aos tipos de pessoas coletivas que lhes podem dar corpo. São, essencialmente, dois: um regime fi scal mais favorável e um regime de contratação pública específi co. É certo que o legislador pode ainda prever mecanismos específi cos de apoio à constituição e à capacitação das empresas sociais, o que aliás vem previsto na alínea a) do artigo 9.º da LBES, mas os dois mecanismos que referi anteriormente são aqueles que têm maior impacto na vida das organizações31. A Lei de Bases da Economia Social reconhece isto referindo-se expressamente a um regime fi scal mais favorável no artigo 11.º e referindo-se indiretamente à questão da contratação pública através da referên-cia, no artigo 12.º, aos serviços sociais de interesse geral, que conformam uma específi ca relação com o Estado. Este aspeto é importante tendo em conta a natural proximidade entre os fi ns de interesse geral das empresas sociais e os fi ns de interesse público do Estado, havendo assim um normal campo de colabora-ção e de atividades complementares.

De que modo, face aos elementos distintivos de um putativo regime jurí-dico das empresas sociais, pode a sociedade comercial trazer valor acrescido enquanto escolha de forma jurídica apropriada?

31 Cf. Comissão Europeia e OCDE, Policy Brief on Social Entrepreneurship – Entrepreneurial Activities in Europe, p. 7 e ss., disponível em http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=738&langId=en&pu-bId=7552 (última visualização em 28.08.2015).

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5.2.1. Vantagens da sociedade comercial como empresa social

A sociedade comercial só trará vantagens enquanto empresa social se, ainda que com a limitação de distribuição de lucros, os sócios possam prevalecer-se dos principais mecanismos de governo de uma sociedade comercial. A explica-ção para esta hipótese parte da premissa de que estes sócios são pessoas singula-res ou coletivas já com experiência no universo empresarial societário e, como tal, mais confortáveis com esta opção, ainda que orientada para a prossecução de fi ns sociais e só residualmente para a obtenção do lucro para os sócios. Por outro lado, há mecanismos de governo societário que, procurando salvaguar-dar a posição dos sócios através da boa saúde da sociedade, têm vindo a servir também de princípios orientadores do governo de entidades não lucrativas, havendo grande porosidade entre o governo de ambos os tipos de instituições32. Deste modo irei concentrar-me no modo como o fomento das empresas sociais se pode articular com as vantagens que a sociedade comercial pode trazer a este tipo de atividade.

De uma perspetiva de governo corporativo as vantagens de sociedade comercial podem ser bem compreendidas se olharmos para outros ordenamen-tos jurídicos que a admitem e que criaram mesmo variações específi cas para a sua encarnação enquanto empresas sociais. Iremos, sinteticamente, olhar para três exemplos: i) as norte-americanas “low-profi t limited liability companies”; ii) as inglesas “community interest companies”; e iii) as belgas “sociétés à fi na-lité sociale”.

a) Low-profi t limited liability company (L3C)

A primeira das experiências societárias utilizadas para desenvolver empresas sociais que podemos utilizar como comparador é a “low-profi t limited lia-bility company”. Como o próprio nome indica é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada e que permite apenas lucros reduzidos. Surgiu originariamente em 2008 no estado de Vermont e foi entretanto adoptada por mais oito estados norte-americanos33. Ela parte da estrutura clássica de uma LLC norte-americana (uma limited liability company, ou seja, uma sociedade de responsabilidade limitada) mas orienta-se para a prossecução de fi ns sociais. Os três requisitos a que a sua constituição deve obedecer são: i) prossecução

32 Sobre este aspeto cf., por todos, Hopt, Klaus J., e Hippel, Thomas von (org.), Comparative Corporate Governance of Non-Profi t Organizations, Cambridge, Cambridge University Press, 2010.33 Cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise..., cit., p. 1362.

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de fi ns caritativos ou educacionais; ii) não prossecução signifi cativa do lucro; e iii) não prossecução de fi ns políticos ou legislativos34. O principal objetivo da criação deste tipo de sociedade comercial é o de permitir captar investimento para programas específi cos em que também estejam envolvidas entidades não--lucrativas e que, à luz do regime fi scal norte-americano, benefi ciam de um regime muito favorável. Deste modo, também entidades de tipo societário e com possibilidade de distribuição residual de lucros poderiam captar investi-mento para programa elegíveis para regimes fi scais mais favoráveis ao mesmo tempo que permitiam um duplo objetivo de prossecução de fi ns sociais e um retorno residual do investimento35. Apesar de ainda estarem em evolução as L3C demonstram a utilidade de um híbrido deste tipo.

b) Community Interest Company

As community interest companies existem no Reino Unido desde 2005 e são também um híbrido. Por um lado devem prosseguir um fi m de inte-resse comunitário36, verifi cado por um regulador independente, mas por outro podem distribuir uma percentagem do seu lucro pelos seus sócios, embora esta distribuição esteja limitada por aquilo que é designado como o “asset lock”, e que signifi ca que o regulador assegurará que os bens e rendimentos da socie-dade serão principalmente utilizados na prossecução do seu fi m estatutário e não para benefício dos seus sócios37. A principal preocupação do legislador britânico foi a de aproveitar a confi ança corporativa existente face às típicas “limited liability companies” mas assegurar que a sua atividade poderia ser obri-gatoriamente devotada a um fi m social, assim conseguindo que sócios e inves-tidores apostassem na criação de uma sociedade, ao mesmo tempo que as partes envolvidas na prossecução de fi ns sociais teriam razões para confi ar na atividade deste tipo de sociedades.

c) Sociéte à fi nalité sociale

A experiência comparada normativamente mais próxima do que defen-demos para a realidade portuguesa é consubstanciada pela “societé à fi nalité

34 Cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise..., cit., p. 1362.35 Cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise..., cit., p. 1362 a 1364.36 Cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise..., cit., p. 1370 e 1371.37 Cf. Katz, Robert A., e Page, Antony, Is Social Enterprise..., cit., p. 1371.

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sociale” belga, introduzida no ordenamento desse país em 1996. De acordo com a alteração então introduzida ao Código das Sociedades belga, se alguma das formas societárias aí previstas não se destinar a prosseguir o enriquecimento dos seus sócios deve designar-se uma sociedade de fi m social38. Os estatutos devem estipular que os sócios não procuram qualquer benefício patrimonial ou apenas um benefícios patrimonial limitado39, defi nir de modo preciso o fi m social prosseguido pela sociedade40 e estipular um conjunto de obrigações res-peitantes à utilização de rendimentos, da qual ressalta a obrigação de cumprirem o limite de distribuição de lucros fi xado pelo Rei “en exécution de la loi du 20 juillet 1955 portant institution d’un Conseil national de la coopération, appli-qué au montant eff ectivement libéré des parts ou actions”41.

A sociedade de fi m social não conheceu o mesmo sucesso que a sociedade de interesse comunitário britânica, o que em boa parte pode ser explicado pelas diferentes tradições jurídicas e sociais de ambos os países. Em 1996, na Bélgica pretendia-se complementar a oferta institucional no terceiro setor, para além da ASBL, a associação sem fi ns lucrativos. Em 2005 no Reino Unido queria promover-se o empreendorismo social junto do mercado. As iniciativias legis-lativas refl etiram as distintas visões do empreendedorismo social em que estão imbuídas.

O que me parece, contudo, resultar claro da leitura combinada destes três exemplos comparados é que a utilização da sociedade comercial, através de um regime jurídico que crie um híbrido, sobretudo a partir da limitação da distri-buição de lucros e da previsão de incentivos fi scais e de contratação pública, é uma manifestação de enriquecimento da nossa economia social a partir do primeiro e segundo setores42. O legislador e a Administração Pública fi zeram já parte do seu trabalho, quer com a Lei de Bases da Economia Social, quer com o transitório regime das empresas sociais de inserção, que poderia ter sido um de muitos regimes de empresas sociais. O mercado onde se busca a maximi-zação do investimento e do lucro pode agora ser chamado a contribuir para a economia social através de um instrumento que lhe assegure confi ança, através

38 Cf. artigo 661.º do Código das Sociedades belga.39 Cf. artigo 661.º, 1.º do Código das Sociedades belga.40 Cf. artigo 661.º, 2.º do Código das Sociedades belga.41 Cf. artigo 661.º, 5.º do Código das Sociedades belga. À data de elaboração deste artigo a taxa está fi xada em 6%.42 Neste sentido, cf. Gottesman, Michael D., From Cobblestones to Pavement: The Legal Road Forward for the Creation of Hybrid Social Organizations, in Yale Law & Policy Review, Vol. n.º 26, n.º 1, 2007 p. 347; cf. Kelly, Marjorie, e White, Allen, op. cit., disponível em: http://www.fourthsector.net/attachments/17/original/CorporateDesign.pdf?1229665694 (última visualização em 30.08.2015).

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de mecanismos de governo corporativo conhecidos, colocados ao serviço de fi ns sociais e, residualmente, dando lucro. Pensamos sobretudo no trabalho desenvolvido no que diz respeito às relações inter-orgânicas e ao cumprimento de deveres fi duciários e de reporte, bem como à possível intervenção de regu-ladores. A sociedade comercial como empresa social surge, assim, antecipada através dos regimes comparados sucintamente apresentados acima, como uma evidência do desenvolvimento da economia social.

6. Conclusões

Está ainda por perceber se o legislador, no desenvolvimento das bases apro-vadas pela LBES, irá aprovar um regime das empresas sociais que funcione como um agregador dos regimes jurídicos respeitantes às várias entidades referidas nas alíneas do artigo 4.º da LBES, à semelhança do que fez o legislador italiano com a primeira lei das empresas sociais de 2006, elaborando os requisitos de gestão empresarial e a relação com o setor público e apresentando um regime fi scal específi co; ou se, ao invés, preferirá, a par dos regimes já existentes criar um novo regime jurídico especifi camente para o único tipo de pessoa coletiva não expressamente referido nas alíneas do artigo 4.º da LBES: as sociedades comer-ciais. A solução diversifi cada seria o resultado da própria evolução histórica do nosso sistema, com a grande prevalência da fi gura das Instituições Particulares de Solidariedade Social e a possibilidade de consideração do elemento empre-sarial pelas pessoas coletivas não lucrativas, mas tem contra si deixar a avaliação da natureza empresarial para um juízo administrativo em vez de para critérios legislativos. Já a opção unitária, desde que integrasse necessariamente critérios para determinar os elementos distintivos de gestão empresarial que tornariam os várias tipos de pessoas coletivas em empresas sociais, teria a vantagem de responder a uma questão clara e de fomentar a utilização desse tipo de técnicas e modelos de governo associados.

Os elementos normativos de que dispomos no nosso sistema jurídico res-peitantes à empresa social são, como vimos, confusos e, nesse sentido, con-traproducentes. O único regime jurídico nominalmente designado como de empresa social está neste momento revogado e em vigor apenas transitoria-mente, simbolizando o crepúsculo de uma primeira vaga de regimes jurídicos atinentes a empresas sociais na área da inserção profi ssional. É certo, como também vimos, que muitas IPSS, onde encontramos fundações, associações e cooperativas, reúnem os requisitos apontados por várias instituições interna-cionais e pela doutrina para serem consideradas empresas sociais, contudo, na ausência de um regime jurídico que traduza essa qualifi cação em estipulações

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normativas, as IPSS enquanto empresas sociais não trazem nada de novo. De fora, em todo o caso, fi cam sempre as sociedades comerciais, pois não podem ser consideradas empresas sociais nem à luz do único regime jurí-dico de empresas sociais, nem como IPSS, uma vez que em ambos os casos é excluída a possibilidade de prossecução do lucro. Por outro lado, a recente Lei de Bases da Economia Social, sem nunca se referir a empresas sociais, não fecha a porta a que sociedades comerciais integrem a economia social se respeitarem os seus princípios orientadores e mesmo que residualmente pros-sigam e distribuam lucros.

Ora, como creio ter demonstrado com a ajuda de alguns exemplos com-parados a sociedade comercial poderá desempenhar, se o legislador assim o entender, uma função importante enquanto ponte entre o mercado e o terceiro setor, despoletando mecanismos importantes de investimento social a partir de um tipo legal conhecido dos investidores e cujos modelos de governo estão preparados para promover a concorrência e a efi ciência, maximizando o fi m societário. Sucede apenas que com a sociedade comercial enquanto empresa social esse fi m não será apenas a maximização do lucro dos sócios, mas será, principalmente, a maximização de uma certo resultado social. Esta é a principal razão pela qual, olhando para o atual cenário das empresas sociais em Portugal e o modo como exclui as sociedades comerciais; e olhando para o horizonte projetado pela Lei de Bases da Economia Social e para elementos comparados, parece ser mais acertado reconhecer que é o próprio sistema jurídico português que recomenda, por razões de integridade e coerência, a previsão de um regime específi co para as empresas sociais, em que se reconheça o papel acrescido dos modelos de governo empresariais, isto é, de efi ciência em concorrência de mercado, na prossecução de fi ns sociais. Nesse regime, a sociedade comercial deverá ser um dos tipos de pessoa coletiva admitidos, não apenas por razões de diversidade que enriquecem o sistema, mas para permitir um natural pro-longamento da atuação empresarial de escopo lucrativo quando subordinada à prossecução de fi ns sociais.

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