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1 A Sociologia da Crise Recente no Brasil: Breves Reflexões Por Volney Aparecido de Gouveia “O Estado fica estável quando produz panóplias de consciência” Grun, R. (2017) “A política é uma batalha para controlar o Estado”. Collins, R. (1994) O Brasil dos anos 10 tem se constituído em farto objeto de análise dos cientistas sociais, notadamente a partir do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República em abril de 2016. O rol de acontecimentos políticos, jurídicos e econômicos tem sido fecundo campo de experiências para se explicar o grande fenômeno de pessimismo que se abateu sobre o país a partir de 2014, quando a palavra "crise" se espraiou de várias maneiras, tanto pelo seu caráter econômico, manifestado na queda consecutiva da atividade econômica; jurídico, manifestado nos desdobramentos da operação Lava Jato; quanto social, refletido nas manifestações de rua que tomaram o país nas grandes e médias cidades a partir de 2013 e, mais recentemente, no acirramento das disputas políticas entre grupos de esquerda e direita do espectro ideológico. Haveria assim uma disputa sobre quem passaria a dominar o “discurso da narrativa” acerca da conjuntura de crise e das formas de sua superação. Algumas perguntas prévias para reflexão tornam-se necessárias como eixo para o delineamento dos argumentos acerca dos fenômenos aqui estudados: 1. Por que, a despeito dos indicadores socioeconômicos do país terem melhorado substancialmente desde o início dos anos 2000, o clima de desolação tem se espraiado por toda a sociedade? 2. Quais elementos sociológicos poderiam nos ajudar a compreender a dinâmica da crise e seus atores, enfatizando suas inter-relações? 3. No desenrolar da crise, quais as relações existentes entre classes sociais e suas representações à luz das interpretações de algumas correntes da Sociologia? Algumas hipóteses para estas perguntas são colocadas nos seguintes termos: 1. A partir de 2004, os avanços econômicos e sociais do país foram apropriados de forma distinta pelos atores sociais. Na margem, alguns se apropriaram mais que proporcionalmente dos benefícios econômicos do que outros, determinando graus

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A Sociologia da Crise Recente no Brasil: Breves Reflexões

Por Volney Aparecido de Gouveia

“O Estado fica estável quando produz panóplias de consciência” Grun, R. (2017)

“A política é uma batalha para controlar o Estado”. Collins, R. (1994)

O Brasil dos anos 10 tem se constituído em farto objeto de análise dos cientistas

sociais, notadamente a partir do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da

República em abril de 2016. O rol de acontecimentos políticos, jurídicos e econômicos

tem sido fecundo campo de experiências para se explicar o grande fenômeno de

pessimismo que se abateu sobre o país a partir de 2014, quando a palavra "crise" se

espraiou de várias maneiras, tanto pelo seu caráter econômico, manifestado na queda

consecutiva da atividade econômica; jurídico, manifestado nos desdobramentos da

operação Lava Jato; quanto social, refletido nas manifestações de rua que tomaram o

país nas grandes e médias cidades a partir de 2013 e, mais recentemente, no acirramento

das disputas políticas entre grupos de esquerda e direita do espectro ideológico. Haveria

assim uma disputa sobre quem passaria a dominar o “discurso da narrativa” acerca da

conjuntura de crise e das formas de sua superação.

Algumas perguntas prévias para reflexão tornam-se necessárias como eixo para

o delineamento dos argumentos acerca dos fenômenos aqui estudados:

1. Por que, a despeito dos indicadores socioeconômicos do país terem melhorado

substancialmente desde o início dos anos 2000, o clima de desolação tem se espraiado

por toda a sociedade?

2. Quais elementos sociológicos poderiam nos ajudar a compreender a dinâmica da crise

e seus atores, enfatizando suas inter-relações?

3. No desenrolar da crise, quais as relações existentes entre classes sociais e suas

representações à luz das interpretações de algumas correntes da Sociologia?

Algumas hipóteses para estas perguntas são colocadas nos seguintes termos:

1. A partir de 2004, os avanços econômicos e sociais do país foram apropriados de

forma distinta pelos atores sociais. Na margem, alguns se apropriaram mais que

proporcionalmente dos benefícios econômicos do que outros, determinando graus

2

diferentes de apoio ao governo destituído de Dilma Roussef e constituindo a base da

divisão entre aqueles que a apoiavam e os que se opunham a ela. Houve o acirramento

da disputa eleitoral de 2014 e o esgarçamento das relações políticas entre Executivo e

Legislativo, com brutal perda de apoio político com os avanços da Operação Lava Jato,

o que dificultou a agenda de recuperação econômica. Some-se a isto o “decopling” entre

o discurso e a prática da classe política, cujos indícios de envolvimento em

irregularidades foram ofuscados pela crise política e econômica: a maior divulgação e

disseminação de práticas corruptas cometidas por agentes públicos disseminou a crença

de que o Estado foi tomado de assalto e que, portanto, deveria o cidadão-eleitor

“esclarecido”, sem mecanismos diretos para reverter tais processos, apoiar-se na ação da

justiça como mecanismo de vingança.

2. A atuação de membros do judiciário1 e dos órgãos de investigação do Estado

(Procuradorias, Polícia Federal, Tribunais etc) apropriaram-se do “discurso da

honestidade e do combate à corrupção” a partir da deflagração das investigações do

âmbito da Operação Lava Jato, contando com apoio expressivo da imprensa na

divulgação – algumas vezes de forma ilegal – de suspeitas de corrupção em órgãos

públicos. Outra parte da sociedade, que podemos chamar de classe média organizada,

parece não ter se contentado com as melhorias de sua condição econômica e passou a

elevar - antes velado - o tom das críticas ao governo eleito de Dilma Rousseff em 2014.

Nestas perspectivas, apresenta-se neste artigo uma discussão sobre aspectos

teóricos e objetivos do dissenso nacional em torno da política e da economia. A

primeira parte procura apresentar elementos teóricos da ciência social que nos ajuda a

compreender as motivações dos atores para dominar determinado discurso apoiando-se,

por exemplo, nas interpretações de Grun (2011), Brass (2000), Boltanski (1999), Collins

(1994) e Bourdieu (1989). A segunda parte apresenta um breve panorama sobre a

evolução da economia no período pós 2002, procurando identificar elementos que

justifiquem o quadro favorável da economia e que produziram efeitos políticos e

econômicos como as eleições dos presidentes Lula (2006) e Dilma (2010 e 2014) e dos

elementos políticos e sociológicos que se interagiram para acirrar o conflito de classes,

1 Segundo Bourdieu (2012), “há um certo número de agentes sociais — entre os quais, os juristas — que

representaram um papel eminente e que construíram progressivamente essa coisa que chamamos de Estado, ou seja, um conjunto de recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social em conjunto, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque têm atrás de si a força do oficial”

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procurando na sequencia tratar brevemente dos aspectos que motivaram o acirramento

dos discursos e do dissenso nacional, sendo este um ponto de inflexão das correlações

de forças políticas. Por último, procura-se relacionar a crise com os elementos de

cultura e representações sociais numa perspectiva bourdieusiana e boltanskiana,

apresentando ao final algumas considerações finais.

1. Classes Sociais, Dominação, Diálogos e Conflitos: Abordagens Teóricas

Para a Ciência Social, as relações contratuais entre os agentes da sociedade não

possuem determinismos previamente conhecidos. Existem elementos subjetivos que são

aceitos relativamente sem ser questionados (taked for granded). A própria sociedade

institucionaliza visões de mundo e comportamentos os quais seus membros os seguem

sem, no entanto, questioná-los. Seria o caso de situações habituais e recorrentes do dia a

dia que, de tão reproduzidas, tornam-se “normais” ou “habituais”. Quando a construção

de um objeto não reflete a visão da sociedade, um problema social transforma-se em um

problema sociológico. A teoria da tradição do conflito, desenvolvida por Marx, e mais

recentemente a teoria das revoluções, que teve como expoente Max Weber passou a

interpretar a dinâmica social como multidimensional (não idealista) e sem um caráter

materialista, mas para o qual “o todo era uma mistura das partes em conflito” (Weber

apud Collins, 1994).

Segundo Collins (1994), outra categoria de análise de Weber são os grupos de

status. Setores organizados possuem sentimento de pertencimento e estão dispostos a

lutar por seus interesses. Para o autor, “classes são grupos que compartilham um

determinado grau de monopolização em algum mercado”. A base dos conflitos sociais

está nas relações de poder e não mais na propriedade.

A nova teoria do diálogo, desenvolvida por Bourdieu (1989), apresenta os

mecanismos de construção da lógica de dominação na sociedade em cinco formas: a

doméstica, que pressupõe que o grande (forte) ajuda ao pequeno (fraco) e o subjulga; a

cívica, que trata das relações políticas; a industrial, que busca continuamente ganhos de

escala na produção de riqueza; a comercial, na qual agentes compram barato e vendem

mais caro e inspirada, que trata das relações culturais. Para o autor, a dominação não é

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algo relevante desde que os atores se se contrapõem às maneiras de atuação da

dominação, cobrando-lhe coerência. Esta seria a lógica para os pequenos reivindicarem.

No entanto, para Boltanski (1999), a polarização política entre agentes é

resultado da construção de mitos, que estabelecem lógicas de justificação. As denúncias,

ou críticas dos representados aos representantes, produzem crenças. Por exemplo, a

lógica dos atores comerciais é a de que o bem só existe se os contratos forem

cumpridos; para o industrial, reduzir impostos é sempre melhor que mantê-los ou

aumentá-los, ainda que se comprometam os investimentos públicos; nas relações

cívicas, combater a corrupção só vale para quem estiver na política e não para o cidadão

comum. Em todos estes casos, a crença vale mais que o fato em si, o que impede a

reflexão e a mudança de conduta.

Ainda na perspectiva boltanskiana, alguns têm “direito” à dúvida e outros não

têm (fracos). Aqueles que têm o direito criam mitos e os legitimam, produzindo uma

“humanidade comum” na qual o seu não cumprimento gera conflitos. Para efeito de

analogia, o uso de expressões do tipo “mensalão”, “petrolão”, “imprensa golpista”,

“golpe”, por exemplo, podem ser “mitologias” criadas para legitimar a narrativa de

quem as pronuncia. Por dominarem o discurso, os detentores do poder econômico

(componentes do espaço) são menos permeáveis às denúncias (críticas). Já aos grupos

representados (componentes do campo), as denúncias ganham lógica e se auto-

justificam. É possível perceber sua lógica quando, por exemplo, os canais de

comunicação divulgam uma pauta seletiva: dependendo da sua visão política, o

tratamento dado nas coberturas é enviesado com o intuito de convencer pela construção

de uma lógica que só nos resta acreditar na versão apresentada; ou mesmo na política

quando candidatos de origem humilde são eleitos e recebem a crítica de que, para

exercer a política, dever-se-ia exigir curso superior para um suposto melhor exercício do

mandato. O poder é comandado pelo político (mídia, economia, judiciário) e o sistema

político perdeu o anteparo de um dos campos na contemporaneidade. Estes campos

brigam entre si para manter ou ampliar seus interesses. (Foucault apud Brass, 2000)

Esta lógica é similar à conceituação de denominação realizada por Foucault

(Foucault apud Brass, 2000). A denominação produz a institucionalização, que produz a

profissionalização de diversos segmentos que abordarão o tema. Existe uma lógica de

negação que visa reafirmar nossas posições contrarias sobre um tema. Por exemplo,

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quando se fala que se odeiam posições conservadores, estamos reafirmamos posições

contrarias que impedem o predomínio dos elementos negados. Quando se critica

Bolsonaro, seu domínio fica circunscrito à sua base de apoio, que não reflete o

pensamento coletivo. Assim, sua existência é importante para reafirmar a negação.

2. A Experiência Econômica Recente e o Ponto de Inflexão do Dissenso

A partir dos anos 2000, o Brasil avançou consideravelmente no combate à

pobreza (+20 milhões de pessoas saíram da miséria), na geração de emprego (+15

milhões de empregos gerados), na ascensão da classe C ao mercado de consumo (mais

de 35 milhões) e no controle das dívidas interna e externa (a dívida líquida do governo

brasileiro evoluiu de 60% do PIB em 2002 para 34% em 2014, uma queda de 26 pontos

percentuais. Por outro lado, nos anos recentes, mantivemos um ritmo de crescimento

econômico raquítico (média de 1,6% nos últimos 4 anos contra uma média de 4% no

período 2004-2010). Quanto à inflação, já no segundo governo Lula ela ficou em 5,1%

em 2010 e, ao final do governo Dilma (2014), evoluiu para 6,2%. No entanto, em 2015

a inflação subiu a patamares de dois dígitos e fortaleceu a percepção de crise. (BCB e

BNDES, 2017)

No campo das políticas sociais, as profundas transformações ocorridas na

sociedade brasileira recente, com a ascensão de novos atores sociais a partir das

políticas de inclusão social, geraram nos grupos beneficiados uma “consciência de

classe” que passou a exigir a consolidação de seus próprios direitos. A consolidação de

direitos reduziu a pobreza e ampliou as possibilidades de ascensão social, notadamente

por programas de distribuição de renda (Bolsa Família, ProUni, FIES, Minha Casa

Minha Vida, Luz para Todos, Pronaf, dentre vários outros).

Este conjunto de transformações econômicas e sociais permitiu que o

capitalismo brasileiro recente se consolidasse na medida em que inseriu no mercado de

consumo milhões de pessoas, construindo assim novos campos de atuação dos atores

sociais. Este capitalismo se reestruturou e apontou para novas dimensões sociais e

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construiu novas justificações, produzindo mais embates na sociedade2 e criando uma

nova consciência de classe: a de que a condição de pobreza, ou as dificuldades

econômicas, não eram fatalidades que condenam a maioria historicamente excluída.

Até o histórico sete a um da Alemanha sobre o Brasil na Copa do Mundo de

2014, o país vivia uma euforia há muito não existente: crescimento econômico, geração

de emprego e renda, combate à pobreza, emergência da chamada "nova classe média",

efeitos relativamente neutros da crise financeira americana de 2008, sede do país dos

jogos internacionais (Copa e Olimpíada), dentre outros. Enfim, parecia que tudo dava

certo!3

E eis que parece que tudo ruiu na sequência. Dois mil e quatorze seria o ponto de

inflexão para o pessimismo profundo! Tudo aquilo que parecia positivo parecia ter-se

desnudado e se transformado no pior dos mundos. Além da derrota acachapante no

campo de futebol, o campeonato das eleições de 2014 pôs o país num processo político

de profunda divisão! Ao final das apurações das urnas, o governo recém-eleito obteve

pouco mais de 1/3 (38%) de todos os votos (válidos, brancos, nulos e abstenções),

enquanto os outros 2/3 (62%) concentraram-se no candidato da oposição e nos votos

brancos, nulos e abstenções.

Já início do novo governo (2015), a inflação retomou fôlego em razão do

reajuste de preços públicos (água, luz, combustível etc) e da disparada do dólar (ainda

que sob o efeito de muita especulação de investidores); a taxa de emprego não só parou

de subir como passou a apresentar queda (construção civil, setor automotivo, indústria

etc). A utilização da estratégia de estímulos fiscais teve efeito limitado, pois os

2 Chama a atenção a liderança nas pesquisas de intenções de voto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, segundo o Instituto DataFolha (2017), cujo desempenho contrasta com a abordagem recorrente dos canais de comunicação tradicionais sobre a cobertura exaustiva de investigações contra a corrupção no Brasil, associando a corrupção como algo exclusivo dos governos Lula e Dilma, o que em tese deveria repercutir nas próprias intenções de voto. Este “decopling” entre desempenho eleitoral favorável e denúncia de corrupção mostra aparentemente que a percepção de parte do eleitorado é a de que “todos os governos se envolvem em corrupção, mas este pelo menos melhorou minhas condições de vida” (aspas do autor). 3 Nelson Rodrigues, em uma clássica crônica de 1958, expressou sua inquietação sobre o

comportamento do brasileiro em situações desafiadoras. O autor cunhou a expressão "complexo de vira-lata" para designar um comportamento característico do brasileiro que é o de ostentar picos de otimismo infundado em determinados momentos, seguidos de vales de desolação e sentimento de angústia. Estaria o brasileiro, segundo Rodrigues, sempre vivendo extremos de sentimento. Ao se referir à seleção brasileira de futebol, antes da partida contra a Suécia em 1958, disse ele: “o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética” (Rodrigues, 1958). Tal teoria se pôs à prova no Brasil recente.

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objetivos foram parcialmente alcançados. Se por um lado houve manutenção da renda e

do emprego, por outro o ritmo de expansão econômica ficou muito aquém do desejado,

pois as empresas acabaram por entesourar os ganhos obtidos com as desonerações

fiscais e não ampliaram os investimentos. A contribuição da Formação Bruta de Capital,

que considera basicamente a produção industrial doméstica acrescida as importações e

excluídas as exportações, foi negativa em 2012 e 2014 (-1,63% e -2,1%); e em 2011 e

2013 variou um pouco mais de 2%. (IPEA, 2016) Este desempenho fragilizou a

economia e contribuiu para piorar a percepção de crise econômica pela sociedade e

classe política como um todo.

A taxa de juros, importante referência para o financiamento da atividade

produtiva, já havia iniciado processo de elevação ainda no primeiro ano do governo

Dilma, acentuando-se no segundo. De abril de 2013 a agosto de 2016, a taxa básica de

juros, definida pelo Banco Central, praticamente dobrou (7,25% para 14,5%), e a

atividade econômica encolheu, no mesmo período, quase 13% (BCB, 2017).

A conjuntura de forte retração econômica iniciou uma reversão de expectativas

sobre as condições políticas do governo em continuar a gestão da economia. E, somada

ao aprofundamento das investigações no âmbito da Lava Jato, forjou o ambiente

político perfeito para a derrubada do governo. As alegações de que o governo vinha

praticando as chamadas “pedaladas fiscais” funcionaram como um biombo para

justificar o pedido de afastamento, ainda que não houvesse indícios claros de que a

então presidente Rousseff estivesse praticado crime constitucional. Deflagrou-se daí um

forte movimento de pressão política para seu afastamento, cujo mote seria o combate à

corrupção. O conservadorismo brasileiro reafirmou o discurso contundente da crítica,

como se tivesse seu monopólio natural para condenar determinadas práticas políticas.

Neste aspecto, a agenda do rigor moral parece ter sido uma "pegadinha" para expandir o

conservadorismo. Como corolário veio o discurso do rigor econômico, o qual se apoiou

no rigor moral para se reproduzir. Então, toda e qualquer suspeita tornou provável a

culpa daquele que estava sob suspeita.

O governo Dilma, ainda que legitimamente eleito em 2014, não ostentou apoio

político majoritário no seio da sociedade, o que exigia dele um discurso político mais

pacificador para se construir consensos acerca das medidas de ajuste econômico a ser

tomadas a partir de 2015. As condições de apoio parlamentar no Congresso também

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pioraram. A estratégia do primeiro governo Dilma consistiu em pacificar o país,

buscando, ainda que não o conseguisse, “acalmar a classe média e a imprensa, os dois

principais críticos de seu antecessor na Presidência da República” (Diap, 2014). No

entanto, na segunda experiência, as resistências ao governo eleito continuaram, tendo

em vista que na própria campanha se repetiu a forte oposição da classe média, da

imprensa e dos setores empresariais. Adicionalmente, os ajustes econômicos de

recuperação das finanças públicas que viriam a seguir serviriam de fator agravante para

o apoio político no Congresso, cuja nova composição tornou-se mais conservadora. Para

o Diap, “na eleição de 2014 a oposição cresceu, ficou mais coesa e tomou gosto por

criar dificuldades para o governo da presidente Dilma, que se reelegeu por uma margem

apertada de votos” (Diap, 2014).

As condições políticas deram eco e projeção às críticas ao governo, diminuindo

sua base de apoio no qual o ponto de inflexão foi quando o então presidente da Câmara

dos Deputados, Eduardo Cunha, aceitou o pedido de afastamento da presidente Dilma

depois que um grupo de parlamentares alinhados ao governo apoiou na Comissão de

Ética investigação sobre ele. Em represália, deu prosseguimento ao processo de

cassação ainda que não houvesse elementos jurídicos que o sustentasse. A partir deste

momento, inicia-se no país o que Foucault (1989) chamou de regimes de verdade: a

produção de notícias e eventos e a culpabilização indiscriminada sem provas

produzindo verossimilhanças que condenaram sumariamente sem provas irrefutáveis.

Assim, iniciou-se no país uma disputa pela apropriação do poder simbólico, uma

dominação do discurso a partir da ação do Estado. Como apontou Bourdieu (2012), “o

Estado se apresenta como uma espécie de reserva de recursos simbólicos, de capital

simbólico, que é ao mesmo tempo um instrumento para certo tipo de agentes e o objeto

de lutas entre esses agentes”. O governo que sucedeu a Dilma apresentou uma agenda

econômica social e econômica radicalmente diferente daquela que vinha sendo adotada.

Os setores empresariais e de comunicação, em sua maioria, passaram a aprovar esta

agenda e a difundirem pelos canais de comunicação, procurando convencer a sociedade

de sua relevância e pertinência. De fato há por parte dos agentes do Estado (judiciário,

Ministérios Públicos, Procuradorias, Polícia Federal) e do próprio Executivo a

utilização do discurso sobre necessidade de reformas sem levar em consideração os

anseios e interesses dos próprios atingidos pelas medidas, como os trabalhadores em

específico e os beneficiários de políticas públicas em geral. Tem-se então que as

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disputas pelo domínio da narrativa visam instituir um tipo de atuação do Estado em

defesa de grupos sociais específicos: a classe média, que deseja pagar menos impostos;

as camadas mais pobres da população, que desejam ampliar seu acesso aos serviços

públicos e ao emprego e à renda; as empresas, que reivindicam condições para

ampliarem a acumulação de capital; os bancos, que exigem o cumprimento dos

contratos e o pagamento dos juros da dívida pública; ou mesmo os canais de

comunicação, que utilizam o discurso da “mordaça à imprensa” mediante qualquer

tentativa do Executivo em encaminhar reformas do sistema nacional de comunicações.

Trata-se, então, de quais destes atores, com suas visões, predominarão na condução das

políticas de Estado e/ou para quem estaria este Estado atuando.

Na contramão da interpretação durkheimiana, não parece haver então espaço

para uma sociologia do consenso. Os históricos conflitos de classe no país ainda exigem

um longo período de tempo para superá-los. O contexto de assimetria social (sociologia

do conflito), ao contrário da coesão social proposta por Durkheim, deve produzir ainda

mais conflitos até que novos consensos sejam alcançados. Mas numa interpretação

bourdieusiana, não é possível entender o conflito se não se entender o consenso.

(Durkheim apud Collins, 1999).

A forte polarização política deflagrado no país ao final de 2014 criou novas

representações políticas. A persistência no discurso de retomar as políticas de

desenvolvimento social, deflagrada pelo governo afastado e abandonada pelo governo

de Michel Temer, reacende as chamas do senso de pertencimento de uma classe

excluída que passa a enxergar na reação da agora oposição (Partidos de Esquerda e a ex-

presidente Dilma Rousseff) uma alternativa viável e necessária em 2018.

3. Crise, Cultura e Representação

Para Bourdieu (1989), as classes são um “conjunto de agentes que ocupam

posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a

condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses

semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes” (Boudieu, 1989). No

caso brasileiro, as classes ascendentes perceberam melhoras efetivas em suas vidas e

elevaram assim sua consciência de classe, tornando-se de alguma medida menos

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permeáveis às críticas de setores mais conservadores da sociedade. As transformações

sociais no país, decorrentes da inclusão de milhões de brasileiros ao mercado de

consumo material e cultural, produziu a consciência de classe naqueles que,

historicamente e na sua maioria, estiveram majoritariamente alijados de renda e

emprego. Os avanços produziram mudanças de cognição social que foram percebidos

naqueles que reconheceram nos governos de esquerda a responsabilidade por sua

ascensão social. Estudo da FGV (2011) apontou que os 20% mais pobres tiveram no

período de 2001 a 2009 um aumento de renda de 49,5%, enquanto os 20% mais ricos

tiveram um aumento de 8,9%, atribuindo este desempenho aos programas sociais

adotados no período e à ampliação do acesso à educação.

Além da crise econômica, aprofundada pela crise política, seguiu-se a batalha da

informação. Até então ela tem sido conduzida pelos grandes veículos de comunicação

impresso e eletrônico e representado uma visão acerca do que parece “certo” ou

“errado”. Se seu papel é o de informar e formar, então se poderia imaginar que suas

ações estariam a serviço da “opinião pública”. Sua abordagem sobre economia e política

reflete seus interesses em proporção maior que o da responsabilidade de informar com

certa isenção, praticando o contraditório. As investidas midiáticas transformaram-se em

potente fio condutor de influência nas opiniões de seus espectadores, tornando-as

eficazes na difusão de uma cultura de “dominação” cujo discurso passou a ser aceito

como natural entre aqueles grupos que se colocam contra o governo legítimo.

Numa perspectiva krausiana, a dominação está na cultura e não na economia. As

dificuldades econômicas podem nem ser tão graves assim, mas se se propagar pelos

canais de comunicação que determinada situação econômica é grave, então o discurso

obtém grande aderência nos grupos sociais, notadamente naqueles contrários a quem o

próprio veículo de comunicação critica.4

Existe uma homologia nas dimensões da crise pós-2014. As razões das críticas

ao governo afastado pareciam similares, mas cada um dos atores (judiciário, classe

média, classe política, empresários, estudantes etc) as tinha não por um consenso de

grupo ou por certezas jurídicas, mas porque havia no país “um grande esquema de

4 Levantamento do LEMEP (2017) por meio do Manchetômetro mostra que a cobertura dos veículos de

comunicação é parcial. De janeiro de 2015 a maio de 2017, do total 6,8 mil notícias negativas publicadas sobre os governos Dilma e Temer no período, já considerando o tempo de mandato de cada um, 75% delas se concentraram no Governo Dilma e 25% no Governo Temer, evidenciando o engajamento dos veículos à agenda dos respectivos governos.

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corrupção nunca antes visto” (grifo do autor) e cujo crença espraiou-se por segmentos

sociais. O poder desta argumentação afastou qualquer análise racional sobre o exercício

do direito de defesa. Tornou-se um poder simbólico no qual vale mais a cultura

disseminada sobre o fato do que a veracidade do fato em si.

Temos aqui uma questão de digressão da representação. A heterogeneidade da

sociedade brasileira sob os aspectos sociais e econômicos, e suas homologias culturais,

coloca em xeque a teoria que pressupõe que na sociedade há representantes e

representados e que suas relações ocorrem dentro de regras simétricas de informação,

dando-lhe consistência (Teoria da Agência). Mas esta interpretação carrega

intrinsecamente o problema da assimetria de informação (Brass, 2000). Os

representantes, por meio da dominação do discurso ou narrativa sobre temas de seu

interesse, fazem os representados acreditarem nas versões apresentadas. No caso

brasileiro, o próprio afastamento da presidente Dilma Rousseff, sob o movimento pró-

impeachment, consistiu em disseminar a ideia de que havia no país um grande esquema

de corrupção capitaneado pela ex-presidente e seu mentor, não importando a veracidade

das acusações. E, mais recentemente, a mensagem do governo Temer acerca da reforma

da previdência difundida pelos canais de comunicação de que “se não fizermos a

reforma, a previdência quebra” (aspas do autor). Sob estes argumentos, tenta-se

convencer a sociedade da gravidade financeira do sistema previdenciário de forma a

sensibilizá-la a apoiar politicamente as mudanças do sistema, não importando se, em

longo prazo, as reformas terão o efeito de atender ao interesse de grupos específicos de

representantes (governos, empresas de planos de saúde, etc) e não ao interesse da

maioria dos representados.

Estes conflitos estão aderentes à interpretação de Bourdieu (1989) para o qual

desequilíbrios culturais produzem desequilíbrios sociais e/ou políticos. A questão

sociológica colocada então é a de tornar menos opaca esta relação entre representantes e

representados. Para o autor, os sistemas educacionais devem ser priorizados, ampliados

e melhorados para que se criem novas representações sociais. Seus membros passariam

a reivindicar novos status e novos consensos seriam estabelecidos. Em tese elevaria-se o

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nível de consciência coletiva acerca dos seus interesses, levando representantes e

representados a um novo patamar de relacionamento5.

O impasse da crise política e econômica no Brasil recente somente poderá

apresentar novos contornos se, da radicalização dos discursos dos diversos setores,

novos consensos forem construídos. Mas não parece que estamos próximos disto. O

consenso está distante porque o governo Temer não tem apoio popular, seus apoiadores

são apontados em denúncias de corrupção; as medidas econômicas propostas – ainda

que apoiadas por setores conservadores - sofrem forte resistência social; a Justiça, no

âmbito da Lava Jato, instrumentalizou-se e se transformou – aos olhos das classes

sociais mais privilegiadas – em mecanismo de condenação sumária sem o devido rito

transitado em julgado, o que tem promovido forte reação dos movimentos sociais e de

organismos internacionais. Este não reconhecimento da legitimidade do governo Temer

acirra os movimentos de resistência das classes sociais menos aquinhoadas, produzindo

impasses políticos e não produzindo consensos, muito pelo contrário. Parece que a

alternativa mais palatável é aguardar até 2018, quando um novo Executivo e Legislativo

será eleito. Este deveria convocar uma Assembleia Constituinte exclusiva para aprovar,

principalmente, uma profunda reforma política que possa garantir mais transparência na

gestão da coisa pública e mais agilidade na punição de condenados pela Justiça, sem

casuísmo, afogadilho ou jogos midiáticos para a plateia.

Referências

BCB. Série histórica da Dívida líquida e bruta do governo geral. Disponível em

<https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/seriehistDLSPBruta2008.asp> Acessado em

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