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Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN: 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Souza, Jessé The dual sociology of Roberto Da Matta: discovering our misteries or systematizing our own mistakes? Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, núm. 45, febrero, 2001 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo, Brasil Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10704503 How to cite Complete issue More information about this article Journal's homepage in redalyc.org Scientific Information System Network of Scientific Journals from Latin America, the Caribbean, Spain and Portugal Non-profit academic project, developed under the open access initiative

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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909

[email protected]

Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Ciências Sociais

Brasil

Souza, Jessé

The dual sociology of Roberto Da Matta: discovering our misteries or systematizing our own mistakes?

Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, núm. 45, febrero, 2001

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

São Paulo, Brasil

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10704503

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A SOCIOLOGIA DUALDE ROBERTO DA MATTA:Descobrindo nossosmistérios ou sistematizandonossos auto-enganos?

Jessé Souza

RBCS Vol. 16 no 45 fevereiro/2001

Apesar das observações críticas que serãodesenvolvidas no decorrer deste artigo, quero,antes de tudo, ressaltar a relevância da obra deRoberto Da Matta para a ciência social brasileira.Obra que se destaca pelo potencial inovador e pelacentralidade da reflexão filosófica, seja na indaga-ção acerca dos pressupostos da teorização científi-ca, seja no questionamento radical do que constituia singularidade de uma formação social.

Ao tentar descobrir “o que faz o brasil, Bra-sil”, Da Matta propõe o questionamento de temastais como o que é indivíduo?, o que é democracia?,o que são relações sociais?, como se comparasociedades? e, acima de tudo, como se percebeaquelas diferenças históricas e culturais que confe-rem uma especificidade toda própria a cada socie-dade singular? Essas questões são essenciais postoque remetem a uma reflexão de pressupostos,permitindo a discussão daquelas indagações pri-mordiais que, numa concepção de ciência “prag-mática” e empiricista, já estão respondidas a priori.E sabemos que é precisamente a expansão doespaço da reflexividade que caracteriza a atitudecientífica e é a discussão dessas questões primor-diais que permitem o pensamento crítico e inova-dor.

O dilema brasileiro para Roberto DaMatta

No caso de Da Matta, o fio condutor mesmode sua reflexão já apontava para o desejo desurpreender a realidade brasileira por detrás desuas auto-imagens consagradas. Assim, em Carna-vais, malandros e heróis (Da Matta, 1981), seu livromais importante, essa tentativa é empreendida apartir do estudo do cotidiano brasileiro, no estudodos seus rituais e modelos de ação portanto, que éonde podemos reencontrar nossos malandros enossos heróis.

Desde o início, o esforço comparativo já tem oseu “outro” privilegiado: os Estados Unidos. Interes-sa a Da Matta demonstrar, numa oposição que iráassumir inúmeras variações, por que nunca dize-mos “iguais mas separados” como lá, mas, ao con-trário, dizemos sempre “diferentes mas juntos” (DaMatta, 1981, p. 16). A comparação, nesse sentido,privilegia sempre o contraste, a contradição, e não ofamiliar, o semelhante, o co-extensivo.

O método é o estrutural, enfatizando as possi-bilidades de combinação alternativas e as ênfasesdistintas de elementos dominantes e subordinadosde cada sistema social analisado. Assim, as catego-

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rias mais gerais do raciocínio do autor, as deindivíduo e pessoa, articulam-se de forma peculiarem cada sociedade. O indivíduo, no Brasil, nãoseria uma categoria universal e englobadora comonos Estados Unidos, nem apenas o renunciante,como na Índia. O indivíduo entre nós seria o joão-ninguém das massas, que não participa de nenhumpoderoso sistema de relações pessoais.

O indivíduo, entre nós, se definiria pelaoposição com o seu contrário: a pessoa. Esta, porsua vez, se definiria como um ser basicamenterelacional, uma noção apenas compreensível, por-tanto, por referência a um sistema social onde asrelações de compadrio, de família, de amizade e detroca de interesses e favores constituem um ele-mento fundamental. No indivíduo teríamos, aocontrário, uma contigüidade estrutural com o mun-do das leis impessoais que submetem e subordi-nam. Desse modo, teríamos no Brasil, ao contráriotanto dos Estados Unidos quanto da Índia, umsistema “dual” e não um sistema unitário. A ques-tão essencial para Da Matta, portanto, já está posta:trata-se, no caso brasileiro, de perceber a “ domi-nância relativa de ideologias e idiomas através dosquais certas sociedades representam a si próprias”(Da Matta, 1981, p. 23). Nesse sentido, nossaespecificidade seria nossa dualidade constitutiva.

Na verdade, Da Matta (1991, pp. 24-29) procu-ra relacionar o que ele considera como sendo duasleituras da realidade brasileira que seriam vistascomumente como antagônicas: uma “instituciona-lista”, a qual destacaria os macroprocessos políticose econômicos, segundo a lógica da economia políti-ca clássica e implicando, por isso mesmo, algumaforma de diagnóstico pessimista do Brasil; e outravertente, a qual se poderia chamar de “culturalista”,cuja ênfase seria concedida ao elemento cotidianodos usos e costumes, da nossa tradição familísticaou “da casa”, na linguagem de Da Matta. Suaprópria perspectiva seria, portanto, superadora esintetizadora dessas perspectivas parciais, unindo-as e relacionando-as como duas faces de umamesma moeda, transformando essas visões unilate-rais num “dualismo” articulado.

Um olhar atento descobre que a cada umadessas perspectivas correspondem, respectiva-mente, uma “sociologia do indivíduo” — a vertente

institucionalista — e uma “sociologia da pessoa” —a vertente culturalista. Ao unir e relacionar as duasperspectivas dentro de um mesmo quadro dereferência teórico, Da Matta acredita ter percebidoa “gramática profunda” do universo social brasilei-ro. Veremos mais adiante que o acesso a essagramática exigiria a superação do próprio dualis-mo. Permaneçamos, no entanto, ainda um instan-te, dentro do próprio horizonte aberto pelo dualis-mo damattiano. Em que consiste esse dualismo ecomo Da Matta o constrói?

Vimos que seus termos mais abrangentes sãoas noções de indivíduo e pessoa. Esse é o dadofundamental e primário, na medida em que todosos outros são decorrência desse antagonismo fun-damental. Assim, outras dualidades importantespara Da Matta, como aquela entre a casa e a rua,por exemplo, que deu o título a um dos seus livros,são decorrentes da oposição entre indivíduo epessoa na medida em que indicam “espaços”privilegiados onde cada uma dessas modalidadesde relações sociais se realizariam.

À oposição entre a casa e a rua corresponderi-am, por sua vez, “papéis sociais, ideologias evalores, ações e objetos específicos, alguns inventa-dos especialmente para aquela região no mundosocial” (Da Matta, 1981, pp. 74-75). Nesse sentido,os nossos rituais são analisados e compreendidos apartir dessa oposição casa/rua e se distinguem entresi na forma e modo específico de lidar com esseantagonismo. Assim, a procissão religiosa teria suapeculiaridade no fato de permitir, durante um breveinstante, a supressão da dicotomia casa/rua. Osanto, para o qual a procissão é realizada, “eleva-se”acima da dicotomia, suspendendo suas lealdades esentimentos respectivos, criando, por alguns instan-tes, uma lealdade específica, sintetizadora, em rela-ção a um novo campo de ação: o do sagrado.

Na parada militar, por oposição, o mundodas casas não é irmanando na devoção ao santocomum, mas é de certa forma “invadido” peloEstado, que “recruta” e hierarquiza seus membrossob a forma de participantes humildes (os solda-dos), diferenciados (as autoridades) ou meros es-pectadores (o povo indiferenciado e tornado mas-sa). A singularidade do Carnaval, por sua vez,residiria no fato de a rua tornar-se casa por alguns

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dias. Uma casa que celebra em praça pública omundo da “cintura para baixo”, o qual em diasnormais é escondido dentro de casa, uma casa quetorna seguro ( sic) o ambiente desumano de com-petição hostil que caracterizaria a rua. Ao mesmotempo, a rua transformada em casa subverte tantoo código (hierárquico) da rua quanto o da própriacasa. Daí o Carnaval ser uma perfeita inversão darealidade brasileira: é uma festa sem dono numpaís que tudo hierarquiza (Da Matta, 1981, p. 116).

No entanto, é apenas no ensaio “Você sabecom quem está falando?” que encontramos umacondensação de todos os aspectos desenvolvidosna interpretação “damattiana” da realidade brasilei-ra. O ritual autoritário do “você sabe...”, ao contrá-rio dos anteriores, é um ritual cotidiano, do cotidi-ano hostil da rua, bem entendido, e no qualqualquer brasileiro, mesmo aquele que não brincaCarnaval, não assiste a paradas militares ou acom-panha procissões religiosas, se reconhece facil-mente.

Para Da Matta, o “você sabe...” põe a nu,revela à luz do dia um traço que o brasileiro nãogosta e prefere esconder. Afinal, o que viria à tonaaqui não seria mais a nossa celebrada e carnavali-zada cordialidade, mas, ao contrário, o verdadeiroe profundo “esqueleto hierarquizante de nossasociedade” (Da Matta, 1981, p. 142). Esse ponto éabsolutamente fundamental tanto para o argumen-to do autor quanto para a crítica que iremos fazermais adiante. É que, ao contrário da análise dosoutros rituais extracotidianos, os quais permitemum tratamento que enseja uma assepsia classifica-tória (entre casa, rua e outro mundo ou Estado,povo e Igreja) que parece algo arbitrária no seuesforço de fazer corresponder práticas a espaçossociais delimitados, o “você sabe...” condensa eunifica todos esses aspectos e lança a questãocentral da articulação e hierarquização específicade todos esses elementos. Afinal, como se combi-nam indivíduo e pessoa ou casa e rua? Qual é oelemento dominante e qual o subordinado?

Da Matta não responde a essa questão deforma clara. Ele muitas vezes prefere enfatizar ocomponente aberto dessa competição entre princí-pios de organização social, o que de resto, na suavisão, permitiria caracterizá-la como o âmago mes-

mo do “dilema brasileiro”. 1 No entanto, uma aná-lise atenta de sua obra permite coletar uma série deindícios interessantes para nossos propósitos. Aspalavras “esqueleto” e “núcleo” que Da Matta usaconstantemente para se referir ao componentehierárquico da formação brasileira são sintomáti-cas. Afinal “esqueleto” ou “núcleo” referem-se aalguma coisa escondida, a qual não seria imediata-mente visível como a pele ou a superfície que osrecobre, mas que nem por isso deixa de ser maisimportante e mais substancial que o componenteenvolvente.

E é precisamente a mesma lógica que umaanálise sistemática do ritual do “você sabe...” nosmostra. Senão, vejamos. O ritual envolve sempreuma oposição entre um dado individualizante aomesmo tempo mais visível e mais superficial, postoque o elemento universalizante e igualitário seria oúnico discurso oficial e legítimo, e um componentepessoal e hierárquico mais profundo e menosvisível (posto que não precisaria ser falado), masque é o componente mais decisivo e eficaz dodrama social em questão na medida em que resolveo conflito e restaura a paz hierárquica ameaçada.

É este último elemento, portanto, que DaMatta chama de “esqueleto” ou “núcleo” hierárqui-co, o elemento que atualizaria a gramática socialmais profunda de uma sociedade como a brasilei-ra. É a sua desagradável aparição no cotidiano querestaura a paz hierárquica perturbada por quemlevou a sério o princípio igualitário e teve de serlembrado “do seu lugar”. O ritual é “desagradável”precisamente porque verbaliza o que não deveriaser dito para ser eficaz, quebrando assim o pactosilencioso e cordial de uma sociedade em que cadaum efetivamente deve conhecer o “seu lugar”.

[...] no drama do “você sabe com quem está

falando?” somos punidos pela tentativa de fazer

cumprir a lei ou pela nossa idéia de que vivemos

num universo realmente igualitário. Pois a identi-

dade que surge do conflito é que vai permitir

hierarquizar.[...] A moral da história aqui é a

seguinte: confie sempre em pessoas e em relações

(como nos contos de fadas), nunca em regras

gerais ou em leis universais. Sendo assim, teme-

mos (e com justa razão) esbarrar a todo momento

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com o filho do rei, senão com o próprio rei. (Da

Matta, 1981, p. 167)

Assim, e esse ponto é absolutamente funda-mental tanto para a compreensão do argumento doautor quanto para a crítica que será feita adiante, é oelemento pessoal que é visto como dominante emrelação ao elemento abstrato, legal, que se refere aomundo dos indivíduos indiferenciados. Mas comoeles se articulam? Até onde a validade parcial doelemento impessoal tem alguma eficácia? Como sedá a combinação específica entre os dois princípios?

É como se tivéssemos duas bases através das quais

pensássemos o nosso sistema. No caso das leis

gerais e da repressão, seguimos sempre o código

burocrático ou a vertente impessoal e universali-

zante, igualitária, do sistema. Mas no caso das

situações concretas, daquelas que a “vida” nos

apresenta, seguimos sempre o código das relações

e da moralidade pessoal, tomando a vertente do

“jeitinho”, da “malandragem” e da solidariedade

como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa

unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A

pessoa merece solidariedade e um tratamento

diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito

da lei, foco abstrato para quem as regras e a

repressão foram feitos. (Da Matta, 1981, p. 169)

De acordo com essa ótica, a lei geral e abstratateria uma validade de primeira instância. Afinal, elapressupõe uma igualdade de “partida” que bempode ser confirmada como verdadeira no ponto de“chegada”, ou seja, nos casos concretos do dia-a-diae do cotidiano de todos nós. No entanto, em casode conflito, o caso concreto obedeceria a outros im-perativos que não àquele da lei geral. Precisamenteaqui entraria o componente das relações pessoais,do “capital” que se acumula em termos de contato einfluência. Seria como se as relações pessoais entrenós desempenhassem o papel do Judiciário nospaíses individualistas e igualitários. Como cabe aoPoder Judiciário dirimir conflitos a partir dos casosconcretos, teríamos, no nosso caso específico, umaresolução “informal”, sem burocracia e rápida: atra-vés da “carteirada”, do jeitinho, da ameaça velada edo “você sabe...”. No caso concreto, não aplicamos

a lei geral ao caso específico, mas a força relativa denossas relações pessoais. Em outras palavras, oumelhor, nas palavras do próprio autor: “‘o vocêsabe...’ permite estabelecer a pessoa onde antes sóhavia o indivíduo” (Da Matta, 1981, p. 170).

Esse tipo de solução é extremamente proble-mático sob o ponto de vista da fundamentaçãoteórica do dualismo proposto por Da Matta. Afinal,levada às suas últimas conseqüências, essa soluçãoimplica afirmar que os brasileiros se comportam deum modo inverso aos estímulos das instituições so-ciais fundamentais, como Estado e mercado. Essenó conceitual não é de fácil solução já que Da Mattavincula habilmente a auto-imagem folclórica dobrasileiro com análises concretas de rituais facilmen-te observáveis na realidade cotidiana. A evidência eeficácia desse tipo de discurso é enorme. Nessesentido, peço a paciência do leitor para que possa-mos nos concentrar nos meandros de uma análisedos pressupostos desse tipo de discurso teórico.

Gramática profunda ou dualismosuperficial?

O dualismo engendrado pelas noções deindivíduo e pessoa como a base do que Da Mattachama de “dilema brasileiro” 2 foi desenvolvido aolongo das décadas de 80 e 90 seja em trabalhos dedivulgação (Da Matta, 1999a), seja em livros comoA casa e a rua, onde a dimensão espacial da dua-lidade ganha proeminência e é analisada em maiordetalhe. Eu gostaria agora de continuar a discussãoem dois passos: primeiro, desenvolvendo umaapreciação crítica da perspectiva do autor e, emseguida, procurando reconstruir uma resposta al-ternativa às questões deixadas em aberto peloesquema damattiano.

Inicialmente vou me deter nas próprias idéiasde sociedade e teoria social, as quais, segundoDa Matta, são subjacentes à sua análise. No livroA casa e a rua encontramos a seguinte definição:

A idéia de sociedade que norteia esse livro, por-

tanto, não é aquela da sociedade como um con-

junto de indivíduos, com tudo o mais sendo mero

epifenômeno ou decorrência secundária de seus

interesses, ações e motivações. Ao contrário, so-

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ciedade aqui é uma entidade entendida de modo

globalizado. Uma realidade que forma um siste-

ma. Um sistema que tem suas próprias leis e

normas. Normas que, se obviamente precisam dos

indivíduos para poderem se concretizar, ditam a

esses indivíduos como devem ser atualizadas e

materializadas. (Da Matta, 1991, p. 15)

O texto acima nos interessa de perto porquenele Da Matta assume uma posição clara contrauma ciência social subjetivista que pretende redu-zir a complexidade social à referência às intençõesindividuais dos agentes. É uma crítica correta ebem-feita. Segundo sua concepção de sociedade,temos de buscar no próprio sistema social as leis enormas que explicam o comportamento dos indi-víduos que o compõem. Deve-se procurar desco-brir, portanto, a “gramática social profunda” dasociedade em questão, a qual é sempre, em grandeparte, insconsciente ou inarticulada na consciênciados indivíduos que a compõem, para que possa-mos interpretar o comportamento destes e a lógicada própria dinâmica social.

Vimos que, segundo Da Matta, essa gramáti-ca social profunda, no caso brasileiro, apresentauma peculiaridade: ela é dual (ao contrário da dosEstados Unidos, por exemplo, que seria unitária) ecomposta por dois princípios antagônicos, o indi-viduo das relações impessoais e a pessoa dasrelações de compadrio e de amizade. Vejamos comcuidado os pressupostos desses dois tipos derelações sociais. Sabemos que em sociedades mo-dernas os dois poderes impessoais mais importan-tes são o Estado e o mercado capitalistas. Essas sãotambém as instituições que Da Matta tem em mentequando se refere ao mundo competitivo, hostil,das regras gerais e impessoais associadas à compe-tição capitalista e ao aparelho repressivo do Esta-do. Em oposição a este mundo teríamos o mundoda casa, onde as relações se regem pela afetividadee todos são supercidadãos. Esse seria o lugar ondeos brasileiros se sentiriam bem e onde poderiamdesenvolver sua decantada cordialidade.

Existe, no entanto, um problema básico nessequadro à primeira vista bem arrumado que precisa-ria ser explicado: qual é o conjunto de regras ounormas que explica e constitui a articulação entre

esses dois mundos? Se Da Matta pretende explicaras normas e regras sociais últimas que esclarecemnossa singularidade, então a forma de articulaçãoentre esses dois princípios tem de ser explicada. Adualidade enquanto tal é uma simples aporia. Semestar determinada nas suas regras, ela pode serusada ad hoc para o esclarecimento de um sem-número de questões, ressaltando-se a importânciaora de um, ora de outro princípio. Mas a questãoparece-me ser: o que faz com que precisamentenesses casos tal ou qual princípio seja mais oumenos eficiente? Essa questão nunca é respondidapor Da Matta. O último horizonte explicativo ésempre uma dualidade indeterminada que varia aosabor das situações concretas examinadas.

A idéia de uma gramática social profunda sótem sentido se for possível determinar a hierarquiavalorativa que preside a institucionalização de estí-mulos seletivos para a conduta dos indivíduos que acompõem. Essa seletividade, por sua vez, exige aconsideração da variável do poder relativo degrupos e classes envolvidos na luta social porhegemonia ideológica e material. Desse modo, paraclássicos da Sociologia que lidaram com a questãoda institucionalização diferencial de valores e con-cepções de mundo como Max Weber e NorbertElias, a questão de se determinar a hierarquia devalores que logra comandar uma sociedade especí-fica exige a articulação da relação entre valores eestratificação social. Afinal, é a imbricação entredomínio ideológico e acesso diferencial a bensideais ou materiais escassos que cumpre esclarecer.

Nesse sentido, para os dois autores citadosacima, a vinculação entre concepções de mundo(no sentido de conjuntos articulados de normas evalores) e estratos sociais que servem de suportes aessas concepções de mundo é fundamental. Aquinão se trata da causalidade materialista marxista, aqual reintroduz por outros meios a noção desubjetividade individual transformada agora emsujeito coletivo,3 com conseqüências deletériaspara a análise social. A noção de suporte social devalores e normas refere-se, ao contrário, a proces-sos inintencionais sem sujeito através dos quaisgrupos e classes identificam-se com valores e sãoao mesmo tempo perpassados e dirigidos por elesna dinâmica social. 4

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Nós não encontramos classes e grupos soci-ais na obra de Roberto Da Matta. O tema daestratificação social e a relação desta com valoresdesempenha um papel, na melhor das hipóteses,marginal no seu esquema explicativo. Na reflexãode Da Matta encontramos apenas indivíduos e“espaços” sociais. Minha hipótese neste texto é queisso impede que ele tenha acesso à gramáticasocial da sociedade brasileira como definida porele próprio acima. É que, desvinculada de umateoria da estratificação social que explique como epor que esses valores e não outros lograraminstitucionalizar-se, toda a temática da relação comvalores torna-se externa e indeterminada. Valorespassam a ser concebidos como alguma coisa queexiste independente de sua institucionalização,agindo de forma misteriosa sobre indivíduos eespaços sociais. Vejamos alguns exemplos.

Quando, então, digo que “casa” e “rua” são cate-

gorias sociológicas para os brasileiros, estou afir-

mando que, entre nós, estas palavras não desig-

nam simplesmente espaços geográficos ou coisas

físicas mensuráveis, mas acima de tudo entidades

morais, esferas de ação social, províncias éticas

dotadas de positividade, domínios culturais insti-

tucionalizados e, por causa disso, capazes de

despertar emoções, reações, leis, orações, músi-

cas, e imagens esteticamente emolduradas e inspi-

radas. (Da Matta, 1991, p. 17)

Para o autor, portanto, casa e rua não sãoapenas “espaços” antagônicos e relacionados, mastambém “esferas de ação social” específicas. Emcada uma dessas esferas existem valores e idéiasespecíficas que guiam ou influenciam o comporta-mento dos agentes em determinada direção emcada caso. Sabemos também que, para Da Matta,esses valores, no mundo do indivíduo, apontampara uma concepção de mundo impessoal queenfatiza a igualdade e a competição entre iguais, aopasso que no mundo da pessoa teríamos o reinodos sentimentos, do particular, portanto, e de umahierarquia baseada na afeição (que é sempre gra-dativa e particularizante).

O que passa então a ser imediatamente pro-blemático é explicar a própria possibilidade de

existência desses espaços tão antagônicos. Todasas vezes que enfrenta essa questão, Da Matta fazreferência à obra de Max Weber e às discussõesdesse autor acerca do tema das éticas sociaisdúplices ou múltiplas típicas de sociedades tradi-cionais ou semitradicionais (Da Matta, 1991, pp. 50,52, 69 e 98; ou ainda 1981, p. 178). Isso é semdúvida correto. Faz parte da interpretação weberi-ana do desenvolvimento ocidental demonstrarcomo havia a necessidade de se explicar o apare-cimento de uma ética unitária dentro do contextoda própria concepção de mundo tradicional ereligiosamente motivada. A rápida expansão, noalvorecer da modernidade, da ética ascética protes-tante, com sua concentração em objetivos intra-mundanos e singularizados e não mais dúplices oucontraditórios, ajuda, sem dúvida, a explicar oenorme impulso que essa idéia representou para oprogresso material da cultura ocidental.

No entanto, como a bela metáfora do mantodo santo que se transforma em gaiola de ferro,apresentada ao final de A ética protestante e oespírito do capitalismo, nos lembra, nós, habitantesdo mundo impessoal moderno, podemos abdicardesse incentivo subjetivo. Os homens religiosos doalvorecer da modernidade tinham a possibilidadede escolher se seguiriam uma ética múltipla tradici-onal ou se optariam pela ética única da novareligião. O fato de nós, modernos, não termos maisessa opção significa, para Weber, que as instituiçõesimpessoais do capitalismo moderno, principalmen-te o mercado competitivo e o Estado burocrático,criam estímulos para a conduta individual que nãoestão mais à disposição da volição dos agentes. Nóssomos, em grande parte, até em nossas emoçõesmais íntimas, produto das necessidades da reprodu-ção institucional do Estado e do mercado. É paraesse fato fundamental que Weber quer apontar como uso de suas metáforas mais conhecidas como“gaiola de ferro” ou “destino”.

Aqui não se trata apenas de uma visão weberi-ana. Todos os grandes clássicos da Sociologia estãode acordo nesse ponto. Para um pensador comoGeorg Simmel, por exemplo, o domínio do merca-do como instituição fundamental do mundo moder-no, ou, nas suas palavras, o advento da economiamonetária, significa uma redefinição da consciência

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subjetiva individual de enormes proporções. Asnoções básicas de tempo e espaço se modificam, ecom elas se modificam também toda a economiaemocional, a vida afetiva individual e recôndita decada um de nós, como a forma da atração sexualentre os dois sexos, a necessidade de distanciamen-to interno e externo que os contatos impessoais davida nas metrópoles exigem, a entronização doprincípio da calculabilidade como alfa e ômega dapersonalidade individual, a indiferença e o senti-mento blasé como emoções típicas da indiferencia-ção qualitativa operada pelo dinheiro transformadoem meio universal de troca etc. 5

Não só a economia, mas também o Estado éum poderoso elemento transformador da vidaindividual. Talvez ninguém melhor do que NorbertElias tenha tido tanta consciência desse fato. ParaElias, o Estado moderno, com o seu monopólio daviolência física na sociedade, é apenas a pontamais visível de um desenvolvimento milenar nasformas de exercício da dominação política, cujopressuposto é uma completa modificação da psi-que individual. Ao invés do controle externo, apartir da ameaça do mais forte, o Estado modernopressupõe controle interno e competição pelosbens escassos por meios mais ou menos pacíficos.

Elias (1989, especialmente vol. II) demonstra,com farto material empírico, como o processo decentralização do Estado moderno, com seu aparatojurídico baseado em leis gerais e no monopólio daviolência, é concomitante à transformação do apa-relho psíquico individual no sentido da formaçãode uma economia emocional específica, com um idtornado inconsciente, onde as emoções e desejosagora impossíveis de serem vividos se concentrame são reprimidos, e um superego encarregadoagora, como uma instância interna ao própriomecanismo psíquico individual, pela repressão,sublimação e reorientação de manifestações perce-bidas como anti-sociais. Para Elias, toda a estruturada psique individual como vista por Freud seria oresultado (e pressuposto) histórico das modifica-ções introduzidas pelo Estado moderno e por seuaparato de regulação social.

Desse modo, os poderes impessoais quecriam o “indivíduo” não limitam sua extraordináriaeficácia ao mundo da rua. Eles entram dentro da

casa de cada um de nós e nos dizem, em grandemedida, como devemos agir, o que devemosdesejar e como devemos sentir. Ao contrário doque supõe a dualidade damattiana, os poderesimpessoais (que criam o “indivíduo”) do mercadoe do Estado não são instituições que exercem seusefeitos em áreas circunscritas e depois se ausentamnos contatos face a face da vida cotidiana. Elesjamais se ausentam e na verdade penetram até nosmais recônditos esconderijos da consciência decada um de nós. A dualidade damattiana pressu-põe a perda da eficácia específica das instituiçõesque criam o mundo moderno. O vínculo funda-mental entre eficácia institucional e predisposiçãovalorativa individual não é levado em conta noraciocínio do autor. Os valores são percebidoscomo tendo existência independente da vida insti-tucional.

Desligando a dinâmica valorativa social tantode uma relação com a estratificação social quantoda referência à eficácia institucional, pode entãoDa Matta referir-se a indivíduos que se contrapõemem “espaços” sociais distintos, os quais carecem dequalquer determinação estrutural. Vejamos as con-seqüências disso para o seu conceito de cidadania:

Se no universo da casa sou um supercidadão, pois

ali só tenho direitos e nenhum dever, no mundo

da rua sou um subcidadão, já que as regras uni-

versais da cidadania sempre me definem por mi-

nhas determinações negativas: pelos meus deve-

res e obrigações, pela lógica do “não pode” e “não

deve”. (Da Matta, 1991, p. 100)

Aqui observamos que as duas lógicas antagô-nicas conduzem a um curto-circuito sociológico aoequalizar esferas de ação a “espaços” específicos. 6

Desse modo, supercidadania e subcidadania tor-nam-se uma variável dependente do “espaço”social onde me encontro. Seria razoável supor queuma operária negra e pobre da periferia de SãoPaulo que, depois de trabalhar o dia inteiro e terefetivamente fartas experiências de subcidadaniana “rua”, apanha do marido em “casa” sente-seuma supercidadã?7

Todos sabemos que não apenas as mulheresnegras e pobres, mas todos os grupos sociais

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oprimidos enfrentam situações de subcidadaniaindependentemente do lugar ou do “espaço so-cial” onde se encontram. A não referência à estra-tificação social de acordo com classes e gruposespecíficos cria uma ilusão de “espaços” compositividade própria. Da Matta (1991, p. 100) éinclusive obrigado a apelar para explicações subje-tivistas que ele próprio havia condenado como másociologia:

Se minha visão do Brasil a partir da casa é que “a

nossa sociedade é uma grande família”, com um

lugar para todos, na esfera da rua minha visão de

Brasil é muito diferente. Aqui eu estou em “plena

luta” e a vida é um combate entre estranhos. Estou

também sujeito às leis impessoais do mecado e da

cidadania que freqüentemente dizem que eu “não

sou ninguém”. Fico, então, à mercê de quem quer

que esteja manipulando a ordem social naquele

momento.

O fato de a dominação em última instânciaser feita em favor de um “alguém” que esteja“manipulando a ordem social” é sintomático dadificuldade apontada acima. Afinal, era o próprioDa Matta quem pretendia superar o subjetivismosociológico que atribui a explicação última dalógica social à intencionalidade individual. É semdúvida mais fácil explicar o funcionamento de re-gras sociais a partir da intencionalidade dos agen-tes. Afinal, é assim que nós nos percebemos nosenso comum, e é da força do senso comum, comonos ensina Charles Taylor (1997, especialmentecap. I), que o ponto de partida subjetivista ou“naturalista” retira sua força peculiar e evidência. Ocaminho de quem pretende descobrir a gramáticasocial profunda de uma formação social, no entan-to, é mais espinhoso. São as normas e regras sociaisimplícitas que hierarquizam uma sociedade. Indi-víduos ou classes dominantes são, no máximo,suportes desses valores e normas, mas de modoalgum, sujeitos intencionais desse processo.

Da Matta é forçado a buscar uma soluçãointencionalista para a questão do poder precisa-mente, vale a pena repetir, porque apenas as regrassociais anteriores e por trás da dualidade indiví-duo/pessoa e casa/rua é que poderiam explicar a

relação entre os dois princípios. É porque Da Mattainterrompe sua busca da gramática profunda brasi-leira na afirmação da própria dualidade que arelação entre os dois termos e, por conseqüência,a própria noção de “relação” é sempre indetermi-nada. Um outro exemplo pode talvez ajudar aesclarecer esse ponto:

Mas se a categoria profissional — os trabalhadores

como cidadãos e não mais como empregados —

tem uma ligação forte com o Estado, ou governo,

então eles podem ser diferenciados e tratados com

privilégios. É a relação que explica a perversão e

a variação da cidadania, deixando perceber o que

ocorre no caso das diversas categorias ocupacio-

nais no Brasil, onde elas formam uma nítida

hierarquia em termos de sua proximidade do

poder, ou melhor, daquilo que representa o centro

do poder. (Da Matta, 1991, p. 85)

O que significa, nesse contexto, uma “forteligação” com o Estado? Poder-se-ia perceber essarelação a partir do esforço de um Estado moderni-zador de premiar e constituir vínculos de lealdadecom setores das classes trabalhadoras que contri-buíam no esforço nacional de modernização. Masaí já estaríamos falando de valores, dos quais oEstado nacional seria, ainda que parcialmente,suporte. E esses valores é que definiriam quaissetores seriam ou não privilegiados e por quê.Estaríamos falando de valores inscritos e instituci-onalizados na realidade social cotidiana, portanto,que ajudam a determinar o conceito de podernessa situação, esclarecendo seu uso e sua lógica.Esse, no entanto, não é o caminho de Da Matta.

Quando o autor se refere a uma hierarquiadefinida a partir da “proximidade com o poder”,não temos a menor idéia de quais valores, regras ounormas explicam essa hierarquia. Poder torna-seaqui um conceito amorfo e indeterminado, já quenão compreendemos o que a proximidade ou adistância em relação a ele significam. As palavrasaqui, mais uma vez, nutrem sua eficácia do discursocomum, na medida em que é imediatamente com-preensível para qualquer pessoa que “quem se rela-ciona” ou “está próximo” do poder tem privilégios.

A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 55

De resto, a sociologia “relacional” de DaMatta parece retirar sua evidência menos da cons-cientização dos pressupostos valorativos subjacen-tes à nossa cultura e que não haviam sido percebi-dos até então, como ele próprio supõe, do que,precisamente, do fato contrário: do fato de permitira sistematização da imagem do senso comum, da“ideologia” do brasileiro médio acerca de si pró-prio. Acredito que a própria oposição entre indiví-duo e pessoa e entre casa e rua só mantém suaevidência quando não nos perguntamos acercados seus pressupostos.

Afinal, a separação entre as esferas do “indi-víduo” e da “pessoa” e entre os “espaços” da casae da rua é típica de toda sociedade moderna ecomplexa e não atributo de uma sociedade tradici-onal ou semitradicional como Da Matta percebe oBrasil. A confusão entre as esferas públicas eprivadas (casa e rua, na linguagem damattiana) éque é uma característica típica de sociedades tradi-cionais e patrimoniais pouco diferenciadas. A no-ção de indivíduo como usada por Da Matta, paraespecificar a cultura ocidental moderna e desen-volvida, na verdade não existe desse modo emnenhuma sociedade concreta, muito menos nosEUA, como acredita o autor. Creio que por trás daevidência dessas noções se esconde uma noçãoindiferenciada do indivíduo ocidental moderno. 8

Senão, vejamos.Uma genealogia do indivíduo moderno como

a elaborada por Charles Taylor (1997) no seu Asfontes do self mostra que essa noção é bem maisrica, contraditória e matizada. O elemento universa-lizante ao qual Da Matta faz referência seria semdúvida um de seus componentes fundantes, masnão o único. Esse componente normalizante egeneralizante seria o que Taylor chama de “ selfpontual”, para enfatizar o elemento disciplinávelque será a matéria-prima das burocracias da econo-mia e da política modernas. No entanto, essa noçãoestá longe de contar toda a história do individualis-mo ocidental.

Se o “ self pontual” permite as construçõesgeneralizantes da política (cidadania) e da econo-mia (o sujeito contratual), conferindo sentido ànoção de “dignidade” moderna, é apenas com umaoutra fonte do individualismo moderno, o que

Taylor chama de “autenticidade”, que alcançamosum quadro mais completo do indivíduo modernoocidental. Na busca por autenticidade temos aprocura por características específicas e particula-res a cada um de nós, referindo-se à nossa diferen-ça específica e a relações e objetos que são particu-lares e não generalizáveis, na medida em que sãohierarquizados em sua importância por nossosafetos e sentimentos.

Na idéia de autenticidade, é a noção deprofundidade do self que muda. A revolução noscostumes da década de 60 é vista por Taylor comoum momento especialmente importante para aeficácia social dessa noção, na medida em que seusprincípios saem da vanguarda artística e lograminfluenciar decisivamente o senso comum de todauma geração com efeitos permanentes. O que há derevolucionário na noção de autenticidade é a idéiade uma individuação mais completa e original.

Nesse sentido, as profundezas do self deixamde ser sinônimo de erro e engano, num caminhoque havia sido originalmente traçado por Montaig-ne e Rousseau. Essa mudança é expressa na passa-gem das paixões aos sentimentos. Estes são reno-meados e reabilitados, tornando-se normativos —o que as paixões não eram. Agora, descobrimos oque é certo, nós indivíduos modernos do limiar doséculo XXI, ao menos em parte, experenciandonossos sentimentos.

Para Taylor, esse renascimento e nobilitaçãodo sentimento é um traço marcante da culturamoderna. A vida social moderna contém, portanto,as duas vertentes da configuração moral ocidental,baseada numa noção dúplice de indivíduo: a noçãode dignidade generalizável, cujo lugar privilegiadoé a economia e o mundo do trabalho, e a noção deautenticidade, que tem no casamento baseado emsentimentos e na constituição de um espaço deintimidade e cumplicidade compartilhada talvezsua objetificação mais importante. A casa e a rua,portanto, dimensões que Da Matta supõe tão brasi-leiras, são construções sociais que se tornam possí-veis apenas no mundo moderno e diferenciado desociedades complexas e dinâmicas.

Não é apenas Charles Taylor que desenvolveessa dualidade do indivíduo ocidental, embora elecertamente seja dos que mais contribuíram para a

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percepção de um conceito diferenciado e comple-xo do indivíduo ocidental. Com outras denomina-ções, essa dualidade é amplamente aceita na Socio-logia moderna.9 O ponto essencial aqui é que oelemento expressivo e afetivo da personalidadeindividual é levado em conta como componenteconstitutivo da noção de indivíduo moderno. Aalternativa damattiana entre indivíduo e pessoarefere-se, na realidade, a dimensões distintas domesmo conceito de indivíduo, o qual só encontracondições de desenvolvimento em sociedades mo-dernas e complexas. 10

Sem dúvida as noções de autenticidade eindividualização expressiva não cobrem todo ohorizonte da noção de pessoa em Da Matta. Alémdo aspecto do mundo emocional e do particularis-mo que ela implica, Da Matta chama a atenção paraum dado que seria peculiarmente brasileiro nanoção de pessoa: a troca de favores, o jeitinho, a“carteirada” — em uma palavra, a tendência àcorrupção e à refração da lei geral. O mundo dapolítica seria a esfera privilegiada dessa inclinaçãonacional, a qual não passaria despercebida aos“indivíduos”, aos homens comuns sem meios detroca nesse comércio generalizado de favores.

O resultado não passa, porém, despercebido à

massa brasileira que vê na atividade política um

jogo fundamentalmente sujo, onde existe de tudo,

menos ética. Daí a expressão “fulano é muito

político” para exprimir alguém que sabe cuidar de

seus interesses pessoais. (Da Matta, 1991, p. 94)

Seria, efetivamente, uma idiossincrasia brasi-leira a visão da política como um jogo desonestoentre pessoas que trocam favores e proteção? Nãocreio. Em famosa pesquisa empírica realizada porBellah e sua equipe nos EUA, também a políticaenquanto tal, especialmente a grande política doEstado e da negociação partidária, é vista como“suja” pela grande maioria dos americanos.

Nas nossas entrevistas, ficou claro que para a

maioria das pessoas com quem falamos, os marcos

da verdade e da virtude são percebidos como

encontráveis nas relações de intimidade e nas

experiências mais pessoais. Tanto a situação social

das classes médias, quanto o vocabulário da vida

cotidiana já predispõem para a orientação no

sentido das fontes privadas e pessoais de sentido.

Nós também percebemos uma forte identificação

com relação aos Estados Unidos como comunida-

de nacional. No entanto, apesar de a nação ser

vista como boa, tanto “governo” quanto “política”

possuem freqüentemente conotações negativas.

Os americanos, ao que parece, são genuinamente

ambivalentes com relação à vida pública, e essa

ambivalência implica dificuldades de perceber os

problemas que confrontam a todos. (Bellah et al.,

1986, p. 250; tradução minha)

Volto ao fio condutor dessa argumentação. Éa imagem (no caso, desvalorizada) do brasileiroacerca de si mesmo que é dramatizada na teoriadamattiana. Afinal, por que supor uma tendênciainata dos brasileiros à corrupção e ao estabeleci-mento de relações de favores? Seria essa “predispo-sição” maior aqui do que em qualquer outro país?Recentemente, foi descoberto na Alemanha Fede-ral um esquema de corrupção e favorecimentopolítico com 25 anos de estabilidade e incríveleficiência, que faria qualquer Fernando Collorbrasileiro morder os lábios de inveja. 11 Admita-mos, por hipótese, que, desgraçadamente, o graude corrupção no Brasil seja maior do que emoutros países. Não seria a causa desse fato umaausência de mecanismos mais eficazes de controle,antes que uma misteriosa eficácia atávica de pa-drões culturais personalistas tradicionais da vidacolonial brasileira?

Não seria, ao contrário, um dado estruturalda política em todos os países modernos a existên-cia de um déficit de legitimidade, em oposição àeconomia, por exemplo? Essa é a opinião de Bellahna mesma pesquisa realizada nos EUA. Ao analisara desconfiança dos americanos em relação à polí-tica, afirma o autor:

A política sofre pela comparação com o mercado.

A legitimidade deste último baseia-se, em grande

medida, na crença de que ele premia indivíduos

imparcialmente com base numa competição justa.

Por contraste, a política da negociação local,

A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 57

estadual e federal, apesar de compartilhar as mes-

mas atitudes utilitárias do mercado, freqüente-

mente expõe a competição entre grupos desiguais

quanto aos recursos de poder, influência, e probi-

dade moral, os quais influem decisivamente no

resultado final. (Bellah et al., 1986, p. 200; tradu-

ção minha)

Não reconhecemos nas citações acima, nosinsuspeitos EUA, precisamente a contraprova pre-ferida de Da Matta em relação ao caso brasileiro, amesma oposição entre mundo público hostil emundo privado prenhe de sentido, e, mais impor-tante, a mesma percepção do mundo da grandepolítica, visto com desconfiança e distância? Ondeestaria, nesse sentido, a especificidade brasileira?

Também esse aspecto não parece ser atributode países tradicionais e com ética dual. A explica-ção de Bellah ao fato é bem distinta. A “grandepolítica” é percebida como amoral pela grandemaioria das pessoas porque em sociedades mo-dernas e complexas a barganha política é realiza-da de forma intransparente para a grande maioria(Bellah et al., 1986, pp. 207-208). Essa é umaconseqüência inevitável da institucionalização deesferas sociais segundo padrões racional-instru-mentais no mundo moderno. Ao contrário do mer-cado, no entanto, a política precisa legitimar-se apartir da noção de uma atividade dirigida ao bemcomum. O impulso utilitário que a aproxima domercado — afinal, todo político tem sua família pa-ra sustentar e sua carreira para cuidar — precisa sertemperado e pelo menos parcialmente encobertopelo atendimento de necessidades que devem serpercebidas como de interesse de todos. A tensãoentre esses dois componentes torna a corrupçãoum dado estrutural da esfera política moderna.Todo político tem de lidar com a contradição deperseguir seus fins egoísticos como qualquer outrapessoa em qualquer outra atividade, e conciliaressa posição com a expectativa de que ele seja umpouco “um monge extramundano”. Essa contradi-ção me parece estar no cerne da ambigüidade en-tre figura privada e imagem pública que é tão de-terminante para o resultado de eleições.

Nesse sentido, a corrupção é um fenômenoestrutural à política e sua presença é sempre latente,

o que não significa, obviamente, que não deva sercombatida e controlada. O nosso ponto aqui émostrar que ela não tem nada a ver com o persona-lismo e o tradicionalismo que Da Matta identifica nasociedade brasileira. O que parece ser peculiarmen-te brasileiro é a manipulação populista da corrup-ção como tema central do debate político, num paístão carente de discussões públicas de fundo sobreescolhas coletivas fundamentais.

A razão última dessa “brasilianização” decaracterísticas tão marcantes do mundo contempo-râneo tem a ver, acredito, com a forma idealistapela qual Da Matta percebe a relação entre valorese sua institucionalização, assim como com a con-cepção indiferenciada de modernidade ocidentalsubjacente à sua teoria. A tentativa mais recente deDa Matta (1994, especialmente pp. 125-151) de re-levar a posição do elemento intermediário e de“pensar o Brasil com base no número três” e nãomais em uma “razão dualista” não resolve a ques-tão essencial, mas apenas a desloca. A questãoessencial seria a explicação da lógica social subja-cente que permitiria tornar os fenômenos observá-veis “determinados”, ou seja, compreensíveis apartir de regras e normas sociais globais. É isso queDa Matta diz pretender e essa pretensão em si já éelogiável. Mas ele substitui, sempre que lhe con-vém, a busca por essas regras últimas por evidên-cias empíricas. Isso fica claro na “institucionaliza-ção do intermediário e do número três”.

Afinal, de interesse para o conhecimentoseria perceber de que maneira individualismo eholismo se combinam, se institucionalizam e seestratificam de modo a produzir um terceiro ele-mento híbrido. Mas, se como vimos acima, DaMatta não determina a forma como individualismoe holismo se articulam, menos ainda pode eledeterminar a forma como o elemento terciárioderivado desses ganha vida. O que temos naanálise damattiana desse ponto é, portanto, comonão poderia deixar de ser, a não mediada descriçãoconcreta de nossa paixão pelo hibridismo, indo atéa caracterização algo caricatural da nossa feijoadacomo híbrida de sólido e líquido! O curto-circuitoconcretista chega às raias de um misticismo do três!Nele cabem mulatas, feijoadas e o que mais nossaimaginação possa criar.

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Uma tentativa de interpretaçãoalternativa do dilema brasileiro

Mas, poder-se-ia perguntar, como esclarecerentão as inúmeras situações flagrantes de desigual-dade que abundam no nosso país, como nosmostra a análise do ritual do “você sabe com quemestá falando”? Como explicar a desigualdade e ainjustiça social abismal no Brasil sem buscar umaduvidosa continuidade atávica de relações pesso-ais todo-poderosas do passado? Como levar emconta as efetivas e profundas transformações sofri-das pelo país no nosso já secular processo demodernização e, ao mesmo tempo, explicar apermanência de desigualdades tão iníquas? Afinal,era essa questão fundamental que Da Matta haviaprocurado responder a partir da permanência se-cular do personalismo e de relações sociais associ-adas a este. Como construir uma explicação alter-nativa a esse problema tão importante?

O desafio passa a ser, portanto, explicar oatraso social e político brasileiro sem apelar paraexplicações que enfatizem a permanência do per-sonalismo como o núcleo da formação social brasi-leira. Em outro trabalho (Souza, 2000), com maiordetalhe e vagar, procurei demonstrar a íntima rela-ção de noções como herança ibérica, personalismoe patrimonialismo, formando a interpretação domi-nante dos brasileiros sobre si mesmos, seja na esferada reflexão metódica, seja na esfera político-institu-cional. Essa concepção, que tem representantes docalibre de um Sérgio Buarque ou Raymundo Faoro,além do próprio Da Matta, logrou transformar-se,de há muito, tanto em senso comum na realidadecotidiana, quanto em projeto político explícito,influenciando decisivamente nossa realidade insti-tucional e as práticas sociais associadas a ela. Deacordo com essa concepção, que poderíamos cha-mar de nossa “sociologia da inautenticidade”, oBrasil é o “outro” ou um desvio da modernidade,tendo sido modernizado para “inglês ver”, umamodernização epidérmica e de fachada.

Nos limites deste artigo procurarei me con-centrar apenas em demonstrar de que modo umaadequada consideração da relação entre valores esua institucionalização, por um lado, vinculando-acom a questão da estratificação social, por outro

lado, pode ajudar a vislumbrarmos uma outraconcepção do processo de modernização brasilei-ro. Essa visão alternativa tem, a meu ver, a vanta-gem de permitir perceber a sociedade brasileira noseu dinamismo e complexidade inegáveis, ou seja,permite perceber a efetiva modernização do país,ao mesmo tempo que nossa miséria e nosso atrasorelativo como resultado da seletividade desse mes-mo processo de modernização.

Gostaria de desenvolver a tese acima, aindaque de forma tentativa e incompleta, a partir deuma reinterpretação do trabalho de um outroclássico do pensamento social brasileiro: GilbertoFreyre. A relação entre Roberto Da Matta e GilbertoFreyre é interessante e intrigante. Por um lado, osdois são comumente percebidos como pensadoresde uma vertente peculiar de pensamento socialbrasileiro, aquela que concentra sua atenção emaspectos normalmente não considerados pela tra-dição científica dominante, como rituais, costumese hábitos cotidianos. O próprio Da Matta levantaum outro ponto em comum: os dois fariam umasociologia de quem “gosta do Brasil”, ou seja, queseria crítica da tendência pessimista de só verdefeitos no país (Da Matta, 1999b). De um pontode vista mais analítico, noções fundamentais paraDa Matta, como a oposição casa/rua, seriam influ-ências freyrianas (Da Matta, 1991, p. 60).

No entanto, uma leitura atenta permite perce-ber que os dois autores partem de pressupostosdistintos e chegam a conclusões que não poderiamser mais díspares. Senão, vejamos. Já na visão dasingularidade histórica brasileira, um ponto básicopara a empresa teórica de ambos, a perspectivadesses autores não poderia ser mais antagônica.Enquanto Da Matta segue, no fundamental, a visãofaoriana (Da Matta, 1991, p. 83) da transmissão daherança patrimonial portuguesa ao Brasil, de umEstado patrimonial centralizado e todo-poderosoque inibiria o localismo e o associativismo, Freyreparte do princípio oposto. Para Gilberto Freyre, oBrasil colonial seria um caso extremo de descentra-lismo político, criando as condições para um patri-arcalismo que se cristaliza em mandonismo localilimitado, pela ausência seja de instituições inter-mediárias acima da família, seja de efetiva ação econtrole do Estado.

A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 59

A essa oposição inicial correspondem diag-nósticos conflitantes acerca do que caracterizaria amodernidade do Brasil. Enquanto Da Matta pareceacreditar na continuidade de um esquema rígidode poder que constitui a base empírica do seuquadro de uma sociedade hierárquica que, mesmono contexto de uma sociedade complexa e diferen-ciada como a do Brasil da segunda metade doséculo XX, seria misteriosamente comandada porrelações pessoais de família e compadrio, Freyredesenvolve um raciocínio diametralmente oposto.

Minha hipótese é que encontramos em Gil-berto Freyre as bases para uma interpretação daformação social brasileira em que o dado da nossasingularidade é posto em primeiro plano. De acor-do com essa interpretação, o Brasil seria umasociedade sui generis e não uma mera continuaçãode Portugal. Esse ponto é fundamental, já queFreyre também enfatizou, especialmente nos seusescritos luso-tropicalistas, essa continuidade. Semquerer negar que ele tenha estimulado decisiva-mente também essa tradição — por exemplo, aoforjar o conceito de “plasticidade” do português,conceito esse que seria mais tarde adotado porSérgio Buarque e que implica uma visão idealistada relação entre valores e sua institucionalização—, creio ser possível, porém, perceber uma visãoalternativa na sua obra. Essa visão alternativa tal-vez tenha sido pouco consciente para o próprioFreyre. De qualquer modo, penso que é a partirdela que mais podemos aprender com este autor eé dela que poderemos retirar o cerne da atualidadeda multifacetada obra freyriana.

Essa visão alternativa baseia-se em duas idéi-as principais. A primeira, que forma o núcleo doargumento de Casa-grande e senzala (Freyre, 1957[1933]), é a idéia da sociedade colonial brasileiracomo uma sociedade sadomasoquista. A segunda,núcleo do argumento desenvolvido em Sobrados emucambos (Freyre, 1990 [1936]), é a idéia daconstituição da modernidade brasileira sob a formapeculiar de uma “europeização” que transforma opaís de alto a baixo a partir da primeira metade doséculo XIX.

A tese da sociedade sadomasoquista não éisenta de ambigüidades. Ela se refere ao estatutopeculiar da instituição da escravidão no Brasil. Já

aqui temos uma descontinuidade fundamental emrelação a Portugal. A escravidão, fenômeno margi-nal em Portugal, é uma instituição total no Brasilcolonial. Em Freyre, a visão sobre a especificidadeda escravidão brasileira alterna-se entre uma ênfa-se no sadomasoquismo e uma concentração notema da mestiçagem. Essa ambigüidade é constitu-tiva da forma como Freyre percebe a singularidadeda escravidão brasileira. Esta seria uma formamuito peculiar de escravidão, uma “escravidãomuçulmana” (Freyre, 1969, pp. 179-180). Malgradotodas as características comuns a todas as formasde escravidão na América, essa forma de escravi-dão teria particularidades importantes.

Para Freyre, a escravidão muçulmana é aque-la que repete a estratégia muçulmana nas suasguerras de conquista e escravização, que permitiaao escravo nascido de muçulmano ser equiparado aeste em status caso assumisse a religião e os“valores” do pai (Freyre, 1969, p. 181). Essa astucio-sa estratégia propicia uma expansão e durabilidadeda conquista inigualáveis na medida em que asso-cia o acesso a bens materiais e ideais muito concre-tos à identificação do dominado com os valores doopressor. A conquista pode assim abdicar da vigi-lância e do emprego sistemático da violência para agarantia do domínio e passar a contar crescente-mente com um elemento volitivo internalizado edesejado pelo próprio oprimido. O Brasil Colôniaestava cheio de exemplos desse tipo de política.Isso permitia que fossem usados aqui capitães-de-mato e feitores negros ou mulatos, fato impensávelnos EUA, por exemplo, onde toda a atividade devigilância e controle dos escravos era realizadaexclusivamente por brancos (Degler, 1971, p. 84).Permitia também a povoação de enormes massasterritoriais sem que a dominância do elementoconquistador fosse posta seriamente em perigo.

Essa astuciosa estratégia de domínio, se nopólo negativo implica subordinação e sistemáticareprodução social da baixa auto-estima nos gruposdominados, no pólo positivo abre uma possibilida-de efetiva e real de diferenciação social e mobilida-de social. É a partir desse pólo positivo que Freyreconstrói sua tese da mestiçagem como peculiarida-de social brasileira. Essa construção, por secundari-zar o elemento de opressão e subordinação siste-

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mática, é ideológica e conservadora no mau sentidodesse termo. Ela efetivamente levou Freyre, prova-velmente influenciado pela tradição germânica do“Volksgeist” (espírito do povo), 12 estimulado talvezpelo seu mestre Boas, a pleitear uma espécie de“contribuição singularmente brasileira à civiliza-ção”. Apenas a partir dessa idéia é que podemoscompreender a contraposição que perpassa a suaobra entre a democracia racial — ou “social”, comoele preferia — brasileira e a democracia “apenaspolítica” dos norte-americanos. Esse relativismopoliticamente perigoso o levaria, especialmente nassuas obras luso-tropicalistas, a toda espécie dedelírio culturalista acerca de supostas especificida-des culturais do moreno e mestiço, e toda sorte deelogio do autoritarismo político para a proteçãodessa pretensa originalidade luso-tropical. É tam-bém o tema da mestiçagem que faz Freyre enfatizara continuidade entre Portugal e Brasil. Este seria,afinal, um “gen cultural” herdado dos portugueses.

Não é esse Gilberto Freyre que pretendoreaproveitar aqui. Bem mais interessante, no en-tanto, é sua idéia da construção de uma sociedadesingular no Brasil colonial — uma clara desconti-nuidade em relação a Portugal, portanto — dada aproeminência da escravidão e de uma forma muitopeculiar desta. O tema do sadomasoquismo emFreyre ainda não foi, até onde sei, para além decitações tópicas dos casos mais escabrosos queabundam especialmente em Casa-grande e senza-la, tratado sistematicamente.

Na construção do seu argumento, GilbertoFreyre retira todas as conseqüências do fato de quea família é a unidade básica, dada a distância doEstado português e de suas instituições da forma-ção social brasileira, o que o permite interpretar odrama social da época sob a égide de um conceitopsicoanalítico e da psicologia social. Na construçãodesse conceito, Freyre concentra-se em condicio-namentos estritamente macrossociológicos, seme-lhantes àqueles que guiariam a reflexão de NorbertElias (apenas seis anos mais tarde) acerca do casoeuropeu na passagem da Baixa à Alta Idade Média.

Antes de tudo, o caráter autárquico do domí-nio senhorial condicionado pela ausência de insti-tuições acima do senhor territorial imediato era ofundamento dessa especificidade compartilhada por

essas duas sociedades. Uma tal organização societá-ria, especialmente quando o domínio da classedominante é exercido pela via direta da violênciaarmada (como era o caso nos dois tipos de socieda-de), não propicia a constituição de freios sociais ouindividuais aos desejos primários de sexo, agressivi-dade, concupiscência ou avidez. As emoções sãovividas em sua reações extremas, são expressasdiretamente, e a convivência de emoções contráriasem curto intervalo de tempo é um fato natural.

A explicação sociológica para a origem desse“pecado original” da formação social brasileira,para Gilberto Freyre, exige a consideração danecessidade objetiva de um pequeno país comoPortugal de solucionar o problema de como colo-nizar terras gigantescas pela delegação da tarefa aparticulares, antes estimulando do que coibindo oprivatismo e a ânsia de posse. Como resultado, nãoexistia justiça superior à dos senhores de açúcar egente, como em Portugal era o caso da justiça daIgreja, que decidia em última instância querelasseculares; não existia também poder policial inde-pendente que lhes pudesse exigir cumprimentosde contrato, como no caso das dívidas impagáveisde que fala Freyre; não existia ainda poder moralindependente, posto que a capela era uma meraextensão da casa-grande.

É nesse contexto de total dependência dosescravos em relação ao senhor, sem a proteção queo costume e a tradição garantiam ao servo da glebaeuropeu e que lhe possibilitava a constituição deauto-estima e reconhecimento social independen-tes da vontade do senhor, que podemos compre-ender a especificidade do tipo de sociedade queaqui se constituiu. A proteção era discrição dosenhor e estava relacionada a outra característicaárabe da sociedade colonial brasiliera: a famíliapoligâmica. Os filhos dos senhores e escravos,desde que assumissem os valores do “pai”, ou seja,se eles se identificassem com ele, tinham a possibi-lidade de ocupar os postos intermediários emsociedade tão marcadamente bipolar. Devia haverinclusive grande concorrência seja entre os filhosilegítimos seja entre as candidatas a concubinaspelos favores e pela proteção do senhor e de suafamília. Existiam prêmios materiais e ideiais muitoconcretos em jogo de modo a recompensar quem

A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 61

melhor interpretasse e internalizasse como se fossesua a vontade e os desejos do dominador. E éprecisamente essa assimilação da vontade externacomo se fosse própria, assimilação essa socialmentecondicionada e que mata no nascedouro a própriaauto-representação do dominado como um ser in-dependente e autônomo, que o conceito de sado-masoquismo quer significar.

A importância desse tema para uma compre-ensão da sigularidade social e cultural brasileiranão deve ser subestimada. No tipo de sociedadedescrito em Casa-grande e senzala o sadomaso-quismo tem os seus efeitos restritos à famíliapoligâmica e sua complexa trama de favores eproteção, de afetos e invejas, de ódio e amor. Noentanto, na sociedade brasileira analisada em So-brados e mucambos, um Brasil que se modernizasob impacto de uma Europa agora não mais “mou-risca” como o Portugal que nos colonizou, mas jáindividualista e burguesa conforme os exemplosda Inglaterra, França e Alemanha, o sadomasoquis-mo pode ser visto como condicionando de formamuito interessante o Brasil moderno.

Em Sobrados e mucambos encontramos, ain-da que em estado bruto e não desenvolvido explici-tamente, uma visão absolutamente singular doprocesso de modernização brasileiro, a partir daconsideração da relação entre valores e sua institu-cionalização, acrescida da preocupação com aquestão do acesso diferencial por grupos e classesaos frutos da mesma. Justamente os pontos quehavíamos percebido como ausentes na sociologiadamattiana.

É que o processo que Freyre irá descreverneste livro sob a palavra-chave de “reeuropeiza-ção” procura perceber modificações tanto estrutu-rais quanto culturais no processo singular de mo-dernização brasileiro. A Europa que nos chega denavio a partir de 1808, com a vinda da familia reale a abertura dos portos, contrapõe-se à espécie de“China tropical” que era o Brasil colonial. Umasociedade patriarcal sadomasoquista, onde mulhe-res, crianças e escravos eram extensão da vontadedo senhor. Uma sociedade que mal conhecia atração animal, onde os brancos não se davam aotrabalho de andar na rua pelas próprias pernas,sendo carregados em palanquins pelos negros. Era

uma sociedade movida a tração humana e primiti-vamente antiigualitária e antiindividualista.

É tendo esse contexto em mente que pode-mos compreender o que significou a reeuropeiza-ção para os brasileiros. A interpretação dominantedesse processo enfatiza o caráter superficial, epi-dérmico, imitativo dessa transformação. É isso quepermite a manutenção do paradigma do persona-lismo como interpretação dominante dos brasilei-ros sobre si mesmos até hoje. De Sérgio Buarqueaté Raymundo Faoro ou Roberto Da Matta, opersonalismo é percebido como formando o nú-cleo duro da sociedade brasileira e como a únicaforma de exercitarmos a crítica social de nossasmazelas. Somos atrasados porque somos persona-listas nessa versão largamente dominante na Soci-ologia entre nós. Até Gilberto Freyre, especialmen-te em Sobrados e mucambos, pode ser, e na maiorparte das vezes foi efetivamente, interpretado nes-se mesmo sentido. O brasileiro teria se europeiza-do para “inglês ver”, passado a beber cerveja ecomer pão como um inglês, passado a se vestircomo um francês, mas não só as suas idéiasestariam fora de lugar, como todo o seu ser seriainautêntico, uma grande farsa imitativa.

Uma leitura alternativa de Sobrados e mu-cambos pode nos dar uma outra visão desseprocesso. É que para Freyr e o personalismo, antestodo dominante, é ferido de morte com a reeuropei-zação. E ele é ferido de morte porque o que noschega de navio a partir de 1808 não são apenasidéias e mercadorias exóticas. Na verdade, e esse éo ponto fundamental aqui, nos chegam as duasinstituições mais importantes da sociedade moder-na: Estado racional e mercado capitalista. Afinal,não é apenas a família real que nos visita, mas todoum aparato de vinte mil funcionários e o equiva-lente a dois terços do meio circulante português.Esse Estado, que merece o nome de racional nosentido moderno do termo, irá pela primeira vezno nosso país se concentrar no atendimento dedemandas da população local, sob a forma dosinúmeros melhoramentos que são introduzidosnessa época, assim como na criação da infra-estrutura para o funcionamento de comércio eindústria, como a criação de instituições de créditoe fomento à produção.

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Também a abertura dos portos não significaapenas simples expansão da troca de mercadorias.A troca de mercadorias, o comércio, irá reproduziraqui o mesmo processo que operou alhures: fun-cionará como principal elemento dissolvente derelações tradicionais. Mais ainda, o comércio seráacompanhado da introdução de manufaturas e atéda maquinofatura. Mercadorias e máquinas nãosão produtos materiais quaisquer. Eles são sintomade relações sociais de outro tipo. Eles pressupõemuma disciplina própria para seus operários eaprendizes, eles pressupõem uma nova visão dacondução da vida cotidiana e até uma nova econo-mia emocional adequada às suas necessidades.Não se precisa de uma revolução protestante ascé-tica para se construir uma sociedade moderna:Estado e mercado fazem esse trabalho e produzemo tipo de indivíduo que precisam a partir deestímulos empíricos bastante concretos.

Estado e mercado não são o mundo da ruaque pára na porta das nossas casas. Eles entram nanossa casa; mais ainda, eles entram na nossa almae dizem o que devemos querer e como devemossentir. É enganoso separar casa e rua (sendo a ruapercebida como o mundo impessoal do Estado edo mercado, como vimos), como é enganososupor a permanência atávica de relações persona-listas numa sociedade estruturada por Estado emercado. Já discutimos acima a importância dopoder constitutivo de relações sociais de novo tipoa partir da eficácia do Estado e do mercado.Gilberto Freyre nos mostra com maestria como opersonalismo, ou patriarcalismo como ele preferia,desde o início do processo de reeuropeização, éferido de morte já na própria casa do patriarca. Seucontrole sobre sua própria mulher decresce e ele ésuperado e vencido pelo filho formado em escolaseuropéias que passam a atender melhor as novasnecessidades do aparelho estatal e do incipientemercado que se cria. 13

Que esse processo de modernização sejapaulatino, que tenha começado a partir de umabase incipiente e que tenha sido repleto de revesese frustrações, não nos deve cegar com relação àcompreensão do processo como um todo. Pode-sereconstruir a análise empírica e descritiva freyrianade modo a percebermos que a implantação incipi-

ente do Estado e do mercado constitui, paralela-mente ao escravismo ainda todo dominante nomeio rural, uma sociedade de tipo novo nas cida-des brasileiras mais importantes do século XIX.Nossa modernização não começa com o Estadointerventor dos anos 30 que cai dos céus criandodemiurgicamente o Brasil urbano e capitalista: essenovo Brasil moderno é gestado paulatinamentedurante todo o decorrer do século anterior.

Esse ponto é importante posto que vai deencontro à interpretação, dominante entre nós, deque esse processo fundamental seria um mal-entendido, uma revolução para “inglês ver”, epi-dérmica e inautêntica. Essa é uma visão idealista darelação entre valores e sua institucionalização.Freyre capta, como Max Weber na sua sociologiada religião, os dois momentos dessa complexarelação recíproca. Sem idéias e valores novos nãohá mudança social possível. Sem estruturas queinstitucionalizem esses novos valores e idéias navida cotidiana, por outro lado, não há como eles sereproduzirem no mundo concreto. É essa relaçãoque Freyre percebe melhor que qualquer outrointérprete que conheço desse período.

Mas reeuropeização não é apenas diferencia-ção social das esferas política e econômica. Reeuro-peização não se confunde, portanto, com simplesmodernização. Ela é também índice de um padrãoespecífico de assimilação cultural. A forma pelaqual assimilamos a modernidade tem semelhançacom a forma pela qual, na análise de Elias, as classesinferiores adotam o padrão cultural e o gosto dasclasses superiores. Elas o fazem sob o preço de uma“Verkitschung der Seele” (Elias, 1989, vol. I, p. 426),algo como, numa tradução livre, uma “ausência deoriginalidade da alma”. O “ kitch”, ou seja, a assimi-lação irrefletida, é produzida pelo prestígio de valorabsoluto de tudo que tinha ou tem ainda hoje a vercom Europa. Se o valor é absoluto, isso significa quenão existe distância crítica possível em relação a ele.Aqui não se trata da inautenticidade da nossa mo-dernidade, lembrada por vários críticos, mas preci-samente do fenômeno contrário. Afinal, não é a su-perficialidade da assimilação que está em jogo, mas,ao contrário, sua absorção tão completa que nãoexiste espaços de desenvolvimento de um projetoculturalmente original a partir dela.

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Foi a absorção da modernidade de fora paradentro como um valor absoluto que impediu eimpede tanto a existência de distância crítica emrelação a esse projeto, como também a naturalida-de que encontramos nos europeus ocidentais. Oseuropeus, e os norte-americanos é claro — afinal,não estamos falando de geografia mas de raciona-lismos culturais —, podem se dar ao luxo dedesenvolver um padrão próprio e peculiar deserem modernos. A ansiedade de ser moderno, agrande vontade galvanizadora nacional desde ocomeço da reeuropeização até hoje, nos impedeque sejamos modernos ao nosso modo e até, nolimite, que nos reconheçamos como tais. Todauma gama de questões importantes se descortina apartir desse fato.

Freyre também percebe, outra óbvia corres-pondência com Max Weber, que toda inovaçãovalorativa e institucional exige a identificação dasclasses e grupos que lhe servem de suporte. Oesclarecimento dessa relação permite visualizar,ainda, em benefício de quem se deu a transforma-ção. É nesse ponto que podemos unir as duaspontas do raciocínio que estamos desenvolvendoneste texto. É que a classe intermediária entresenhores e escravos criada pelo tipo singular deescravidão muçulmana que se desenvolveu entrenós encontra no contexto da reeuropeização, pelaprimeira vez, um lugar próprio e não apenas osinterstícios de um sistema tão marcadamente bipo-lar como o escravista.

O mulato, pensado aqui mais como tiposocial do que como cor de pele, filho da íntimacomunicação tipicamente muçulmana entre desi-guais, é o elemento que irá de certa forma equiva-ler ao nosso elemento mais tipicamente burguêsnaquela sociedade em transformação. É ele queserá o aprendiz do estrangeiro nas manufaturas ouo ajudante do comerciante, estimulado pela ausên-cia relativa daquele preconceito congênito ao ele-mento superior de toda sociedade escravocratacontra o trabalho manual. 14 É ele também queascenderá, pelo estudo e mérito pessoal, compe-tindo com o elemento aristocrático branco, a fun-ções nobres do aparelho de Estado, na vida literá-ria, na esfera da ciência etc. Ele é o primeirosuporte do componente burguês e individualista

na nossa sociedade, por incorporar o elemento devalorização pelo saber e pelo mérito pessoal. Nadamais burguês e individualista, pela oposição a todadeterminação adscritiva de valores e posições her-dadas familisticamente, que forma a base da estra-tificação social de sociedades tradicionais.

Interessante é que o padrão de ascensãosocial, ou de cidadania, como diríamos hoje emdia, continua, no século XIX, o mesmo da épocacolonial: o princípio do escravismo muçulmano.Ele se dá individualmente e para aqueles que seidentificam com os valores do dominador, no caso,agora, já os valores impessoais do individualismoeuropeu. É apenas o mulato talentoso, estudioso eapto que ascende. Apenas aquele que se “europeí-za”. Mais interessante ainda é notar que no séculoXX, quando os valores da modernidade já têm co-mo suporte o Estado interventor, os setores e gru-pos que ascendem à cidadania, à cidadania regula-da, no caso (ver Santos, 1998, pp. 103-109), sãotambém aqueles que se identificam com o projetomodernizador estatal. A sociedade se impessoalizamas a regra da inclusão e da exclusão se mantém.

Esse ponto é importante posto que descobreuma especificidade fundamental de nossa socieda-de. Aqui a ascensão social não se deu, como naEuropa, coletivamente. Na esteira de Weber, Char-les Taylor (1997, especialmente pp. 273-300) per-cebe que a auto-estima protestante, baseada nanoção de trabalho sagrado, inverte a ordem domundo tradicional em todas as suas dimensões,especialmente na esfera política. A noção de traba-lho intramundano como o caminho especifica-mente protestante de salvação é revolucionária emdois sentidos fundamentais. Primeiro, ela reverte oideário, que vingava desde a Antiguidade, dapreponderância da contemplação sobre a ação, oudo trabalho contemplativo sobre o trabalho manu-al e prático, acarretando aquilo que Taylor chamade “afirmação da vida cotidiana”. Ocorre umaespécie de inversão valorativa de 180 graus: asatividades práticas e manuais são valorizadas àcusta do desprestígio de qualquer esforço contem-plativo “inútil”. O simples marceneiro vale mais doque o filósofo na sua torre de marfim. 15 Essa idéiaé intrinsecamente democrática, já que implica adeslegitimização da hierarquia social, estamental e

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tradicional, associada à desqualificação do traba-lho manual e pragmático.

Em segundo lugar, ela é revolucionária nosentido de que a dignidade individual, ou, emtermos políticos, o direito à cidadania passa a servinculado ao trabalho. A ascensão da burguesia sedá quando a crítica à aristocracia como classeociosa, que não “trabalha”, ganha legitimidade emamplas camadas da sociedade. Também a ascen-são do proletariado se deve ao prestígio do valor-trabalho. Nesse sentido, uma concepção como ado valor-trabalho marxista só se torna compreensí-vel num contexto em que a revolução protestantetenha fincado raízes sólidas e influenciado, inclusi-ve, países católicos, como é o caso paradigmáticoda França. A enorme eficácia social das teoriaspolíticas seculares do valor social do trabalho, quepermitem a ascensão política do proletariado nodecorrer do século XIX, apóia-se, vicariamente, narevalorização protestante do trabalho útil.

Também foi o trabalho que permitiu a unifor-mização de uma economia emocional para todosos estratos na sociedade moderna. A burguesia,como primeira camada dirigente da história quetrabalha (Elias, 1989, vol. II, pp. 434-455), possibi-litou a produção de um tipo uniforme de serhumano, a partir do compartilhamento da relaçãotípica entre emoções e razão exigida pela produ-ção capitalista, como calculabilidade, previsibilida-de, maior importância da satisfação adiada denecessidades etc. Nos mais variados sentidos, por-tanto, o trabalho revalorizado é o pressuposto domundo moderno como o conhecemos, sendo,inclusive, um pressuposto da idéia de cidadaniamoderna baseada na noção da igualdade do valorde cada um, na medida em que todos trabalham econtribuem igualmente para o desenvolvimento dacoletividade.

Nesse sentido, divergindo em parte do quepensa Wanderley Guilherme dos Santos, o argutopropositor desse conceito, não creio que o proble-mático na noção de cidadania regulada seja o fatode a cidadania não se originar “da expansão dosvalores inerentes ao conceito de membro da comu-nidade”, na medida em que esses “valores ineren-tes ao conceito de membro da comunidade” atébem pouco tempo 16 eram corolário do princípio

de que os homens são iguais porque trabalham eseu trabalho possui um valor tendencialmenteintercambiável. O interesse da noção de cidadaniaregulada reside, a meu ver, em outro lugar. Antesde tudo no fato de sua seletividade estar ligada aoesforço de modernização tendo o Estado comosuporte, ou seja, no fato de que algumas funçõesou profissões são tidas como mais importantes doque outras para o esforço societário de moderniza-ção, invertendo a tendência equalizante que pre-dominou nos países centrais do Ocidente, pondo anu, dessa forma, uma sobrevivência histórica delonga duração.17 Nesse último aspecto, ela mostrauma surpreendente continuidade histórica, evi-dentemente sob outras formas, agora impessoais,da regra de inclusão e exclusão vigente desde oBrasil Colônia. Esta implica, desde a “escravidãomuçulmana”, a cooptação sistemática dos mem-bros mais capazes das classes populares, explican-do a convivência de miséria intermitente com realpossibilidade de ascensão social para os setoresdesprivilegiados que sempre caracterizou nossopaís. Ajuda também a que se perceba a miséria, aomenos parcialmente, como fracasso individual.

Desse modo, fato que ajuda a relativizar ematizar o argumento que venho desenvolvendo aolongo deste artigo acerca da necessidade de consi-derarmos a eficácia institucional do Estado e domercado, essas duas instituições estruturais nãoforam suficientes para possibilitar, por si mesmas,a homogeneização das condições e oportunidadessociais. É que o mesmo conjunto de circunstânciasque constituíram o Brasil moderno é apenas acontraface de um processo maior que cria a nossamiséria e desigualdade. A paulatina decadência daeconomia e da sociedade escravocratas, o setormenos dinâmico da dualidade transicional que seconstitui na época da reeuropeização, vai expulsarpara a margem do sistema toda uma legião deinadaptados ao novo sistema vencedor. São elesque vão constituir nossos párias urbanos e ruraisdesde então.

O fato de a Europa moderna não ter tido suagênese em sociedades escravocratas, como lembraElias ao ressaltar sua ruptura em relação a essaherança do mundo antigo, facilitou esse processode equilíbrio entre as diversas classes e a univer-

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salização da categoria de cidadão. O cidadão éprecisamente o resultado do longo processo desubstituição da regulação externa pela regulaçãointerna da conduta. Ele não só tem os mesmosdireitos, mas também a mesma economia emocio-nal. O reconhecimento da interdependência entreas diversas classes que trabalham, acordo só pos-sível quando a primeira classe dirigente da históriaque trabalha, a burguesia, assume o poder, propi-ciou uma equalização efetiva internamente a cadaespaço nacional. Foi criado um tipo humano uni-forme, seja na sua organização afetiva, seja na suaorganização racional e valorativa, uniformidadeessa percebida por Elias como o pressuposto estru-tural do cidadão moderno. É justamente essa cons-ciência da interdependência social que é obstacu-lizada em sociedades tão influenciadas pelo escra-vismo como a nossa (ver Elias, 1989, vol. II, p. 70).

No caso brasileiro, o processo de moderniza-ção que torna a sociedade escravocrata caduca apartir da primeira metade do século XIX abandonaà própria sorte toda uma classe, a dos escravos, quejamais irá recuperar qualquer função produtiva nanova ordem. É aí que se cria uma classe de páriasurbanos e rurais que valem, não só para uma elitemá mas, objetivamente, para toda a sociedade,inclusive para as próprias vítimas, menos do queoutros. Nesse contexto não existe, objetivamente,cidadania, mas apenas sub e supercidadãos. Masnão é, como afirma Da Matta, o não acesso arelações personalistas privilegiadas que acarreta asubcidadania. São valores objetivamente inscritosna nossa lógica institucional e no âmago do nossosenso comum, sendo resultado da forma singularpela qual fomos efetivamente, e não epidermica-mente como pensa Da Matta, modernizados. 18

A tematização do nosso atraso, miséria edesigualdade não precisa do paradigma persona-lista para ser criticado. Essa idéia, primeiro gestadapor pensadores em universidades e depois trans-formada em projeto político e prática social einstitucional, reveste o brasileiro de hoje comouma segunda pele, com conseqüências e efeitosdeletérios. O projeto político do personalismo,especialmente na sua versão patrimonialista, é oprograma político hegemônico tanto dos ocupan-tes do poder quanto da oposição. Para o projeto

político no poder, o programa é racionalizar oEstado de modo a estimular a competição e eficiên-cia do mercado. Na oposição, o mote é a críticapopulista à corrupção, esse dado estrutural dapolítica moderna, que no patrimonialismo transfor-mado em senso comum adquire contornos deespecificidade brasileira. Os aparentes contendo-res lutam num mesmo campo comum de idéias.

Essa concepção pressupõe que a política éuma atividade intra-estatal e esquece uma terceirainstituição, além de Estado e mercado, que veiomodificar fundamentalmente a vida pública e pri-vada modernas: a esfera pública. Habermas, enisso reside sua importância seminal para a Socio-logia contemporânea, foi o teórico da lógica espe-cífica a essa instituição. Uma discussão pública dafunção dessa esfera social fundamental jamais foirealizada entre nós, embora seja indispensável etalvez o passo mais importante para o resgatematerial e simbólico dos nossos miseráveis. Sãoquestões que ficam no limbo na interpretaçãopersonalista e patrimonialista de nossa reflexãoteórica e das práticas sociais e institucionais que seformam a partir dela.

NOTAS

1 Veremos mais adiante que essa atitude é a raiz daquiloque iremos criticar como “concretismo fora de lugar”.

2 O dualismo às vezes é interpretado como um esquematripartite também, onde além da casa e da rua teríamoso “outro mundo”. Cf. Da Matta (1991, p. 68).

3 Refiro-me aqui às aporias que marcaram boa parte doassim chamado “marxismo ocidental”, antes de tudopresentes na obra de Georg Lukács. Ver especialmenteLukács (1988).

4 A noção que explica essa relação em Weber é a de“paradoxo das conseqüências”. Para uma excelentediscussão desse aspecto da obra weberiana ver Cohn(1979). Em Elias, o conceito central nesse tema é o de“mecanismo” (por exemplo, o mecanismo de descentra-lização, base do feudalismo europeu), para indicar umanecessidade sistêmica independente da intencionalida-de dos grupos e classes que sofriam sua influência. VerElias (1989, especialmente o vol. 2).

5 Para uma introdução ao pensamento simmeliano e parao estudo de sua abordagem dos efeitos da economiamonetária sobre a personalidade individual, ver o con-junto de textos da coletânea que organizei com BertholdOelze (1998).

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6 Essa mesma crítica de um “concretismo fora de lugar” foifeita ao Habermas da década de 60 pela sua proposiçãode uma oposição não mediada entre ação estratégica eação interativa como correspondendo a “espaços” soci-ais distintos. Durante toda a década de 70 procurouHabermas uma articulação entre os níveis da ação sociale da ordem social de modo a esclarecer essa relação. Oresultado dessas investigações redundaram no seu Teo-ria da ação comunicativa, de 1981. Não obstante, odualismo habermasiano ainda é, talvez, o ponto maiscriticado de toda sua teoria sociológica. Ainda sobre a“fallacy of misplaced concreteness” ver Parsons (1968,pp. 29, 589 e 753).

7 Esse exemplo me foi sugerido por Marcelo Neves emconversa acerca desse tema.

8 A noção de “pessoa” é mais complexa e será discutidaseparadamente a seguir.

9 A oposição correspondente mais comum é aquela entreindividualismo possessivo e expressivo.

10 De resto, longe de ser uma característica folcloricamentebrasileira, não seria a oposição entre casa e espaçopúblico hostil uma construção apenas possível no mun-do impessoalizado moderno? Não seria uma necessida-de especificamente contemporânea de países urbaniza-dos e industrializados a produção fantasiada ou real deuma oposição entre vida pública e vida íntima, repre-sentando essa última uma espécie de “refúgio nummundo sem coração” (título de um famoso livro deChristopher Lasch sobre o tema). Não seria a matéria-prima dessa extraordinária e multifacetada fábrica deilusões chamada “Hollywood” precisamente a habilida-de em manipular essa necessidade de todos nós, ho-mens e mulheres modernas, de “proximidade”, “afeto”,“cumplicidade”, que a união romântica entre os sexospromete numa “casa” para dois? Casa na qual os futurosfilhos, amigos e parentes poderiam desfrutar de umasociabilidade oposta à da sociedade hostil fora de nós.Por que chamar o sentimento de aconchego e de bem-estar que a vida da casa e da família promete, inclusiveo desejo de que essa lógica seja a dominante na nossavida, de brasileiro? Ele me parece, ao contrário, umacaracterística invariante das sociedades modernas.

11 Refiro-me ao escândalo envolvendo o ex-primeiro-ministro alemão Helmut Kohl amplamente divulgadopela imprensa.

12 A noção de “espírito do povo” é tributária da extraordi-nária influência do romantismo alemão na filosofia e nasciências sociais daquele país. O romantismo, em reaçãoao iluminismo e ao universalismo de origem francesa einglesa, enfatizou a singularidade e incomparabilidadetanto da personalidade individual quanto de culturassingulares. Uma cultura é percebida como produzindoum tipo específico de ser humano com característicastendencialmente incomparáveis. Para um estudo dagênese histórica dessa concepção de mundo, assimcomo para suas conseqüências para a singularidadecultural e política alemã, ver Souza (2000, pp. 143-158).

13 Essa dominação dos mais jovens foi tão característicanesse período que mereceu do sempre arguto JoaquimNabuco o nome de “neocracia”. Ver Freyre (1990, p. 88).

14 Aqui cabe observar que o preconceito contra o trabalhomanual, como todo preconceito, espraia-se tendencial-mente por todos os estratos sociais. Não obstante, ospreconceitos possuem também força maior ou menordependendo do estrato social de que estamos falando,mormente para aqueles estratos que só “possuíam asmãos” como instrumento de trabalho.

15 Não é por acaso, portanto, que essa atitude pragmáticaem relação ao mundo foi desenvolvida nos EUA maisque em qualquer outra sociedade do Ocidente.

16 A perda de eficácia estrutural da teoria do valor-traba-lho, como resultado do prodigioso progresso tecnológi-co do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial,na medida em que o trabalho científico altamentequalificado aplicado à produção deixa de guardar qual-quer relação de intercambialidade com o trabalho nãoqualificado, inspirou a mudança habermasiana do para-digma do valor-trabalho para a “virada lingüística”(linguistische Wende). Ver, sobre este tema, especial-mente Habermas (1969, pp. 48-104). A pressuposição deigualdade dos homens e mulheres não se dá maisporque todos trabalham, mas, agora, porque todosparticipam com iguais direitos do mesmo horizontelingüístico, prenhe de pressupostos e conseqüênciasmorais.

17 A cidadania regulada seria, nessa linha de raciocínio,antes que um “achado de engenharia institucional” daRevolução de 30, como defende Santos (1998, p. 104),uma espécie de elo tardio e impessoal de uma práticasecular no nosso país.

18 Um argumento importante nesse contexto e que nãopode ser desenvolvido nos limites deste artigo é a tese,que defendo em detalhe no livro já citado, de que todoprocesso histórico concreto de modernização foi seleti-vo, inclusive o caso da excepcionalidade americana.Isso significa que nenhuma sociedade concreta, nemmesmo a americana, logrou desenvolver todas as virtu-alidades do que chamamos “cultura ocidental”. Nessesentido, nosso processo de modernização é específicoapenas no seu grau de seletividade. Nossa sociologia dopersonalismo, ao adotar um conceito indiferenciado deracionalismo ocidental, derivado diretamente do casoconcreto americano tomado como modelo absoluto,tende a perceber o caso brasileiro, precisamente porconta desse curto-circuito sociológico, como o “outro”,ou um “desvio” da modernidade. Ver Souza (2000, pp.129-270).

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