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A Sola Scriptura é um princípio bíblico e histórico A Sola Scriptura é um princípio bíblico, amplamente fundamentado na própria Bíblia, observado pelos Padres primitivos e recuperado pela reforma protestante, que tinha ficado sepultado pela avalanche de tradições eclesiásticas acumuladas durante séculos na Igreja de Roma. A Sola Scriptura como princípio bíblico Um exame do Novo Testamento nos mostra que: [1] Jesus advertiu muito seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e inspiradas - por causa da tradição oral (Mar 7: 8-9 e par.). Não estamos falando aqui de quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente transmitidas e conservadas pelos mestres do seu tempo. [2] Além da Sua própria Palavra de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às Escrituras para decidir qualquer controvérsia. [3] Jesus Cristo nunca acusou os judeus de ignorar as tradições orais, mas de não compreender que as Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39). [4] Aos Saduceus, que rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes reprovou isso, mas sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar 12: 24-27 e par.). [5] Os Apóstolos e alguns dos seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas) consideraram apropriado – inspirados seguramente pelo Espírito Santo - pôr por escrito os seus ensinamentos, como Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos do Antigo Testamento puseram por escrito os seus. [6] São Paulo afirma a natureza essencialmente inspirada das Escrituras e a sua absoluta suficiência quando escreve a Timóteo (2 Tim 3: 15-17); o facto de o Apóstolo se referir ao Antigo Testamento não modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura quanto ao seu carácter normativo. [7] Os escritos apostólicos são considerados "Escritura" (2 Pedro 3: 15-16; 1 Tim 5:18 comparado com Lucas 10:7). [8] Considera-se louvável que os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos se a pregação era consistente com o já revelado por escrito no Antigo Testamento (Actos 17:11). [9] Ao dirigir-se aos Coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria,

A Sola Scriptura é um princípio bíblico e histórico

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A Sola Scriptura é um princípio bíblico e histórico

A Sola Scriptura é um princípio bíblico, amplamente fundamentado na própria Bíblia, observado pelos Padres primitivos e recuperado pela reforma protestante, que tinha ficado sepultado pela avalanche de tradições eclesiásticas acumuladas durante séculos na Igreja de Roma. 

A Sola Scriptura como princípio bíblico

Um exame do Novo Testamento nos mostra que:

[1] Jesus advertiu muito seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e inspiradas - por causa da tradição oral (Mar 7: 8-9 e par.). Não estamos falando aqui de quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente transmitidas e conservadas pelos mestres do seu tempo.

[2] Além da Sua própria Palavra de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às Escrituras para decidir qualquer controvérsia.

[3] Jesus Cristo nunca acusou os judeus de ignorar as tradições orais, mas de não compreender que as Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39). 

[4] Aos Saduceus, que rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes reprovou isso, mas sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar 12: 24-27 e par.). 

[5] Os Apóstolos e alguns dos seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas) consideraram apropriado – inspirados seguramente pelo Espírito Santo - pôr por escrito os seus ensinamentos, como Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos do Antigo Testamento puseram por escrito os seus. 

[6] São Paulo afirma a natureza essencialmente inspirada das Escrituras e a sua absoluta suficiência quando escreve a Timóteo (2 Tim 3: 15-17); o facto de o Apóstolo se referir ao Antigo Testamento não modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura quanto ao seu carácter normativo. 

[7] Os escritos apostólicos são considerados "Escritura" (2 Pedro 3: 15-16; 1 Tim 5:18 comparado com Lucas 10:7). 

[8] Considera-se louvável que os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos se a pregação era consistente com o já revelado por escrito no Antigo Testamento (Actos 17:11). 

[9] Ao dirigir-se aos Coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9: 23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "a não ir além do que está escrito" (4:6). Como quer que se veja este versículo, parece claro que para São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres individuais.

[10] A própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). São João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea. 

Durante um intervalo de cerca de mil anos, o tempo que demorou a formar-se o Antigo Testamento, Deus falou de muitas maneiras e em reiteradas oportunidades,

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mas foi inculcando no povo judeu o valor das Escrituras. No caso do Novo Testamento, o intervalo entre os ensinos divinos e a sua colocação por escrito foi vinte vezes menor. A quantidade e qualidade de informação histórica, doutrinal e prática do Novo Testamento não pode comparar-se com as tradições orais, muitas vezes duvidosas, que se acham nos escritos dos Padres. O apelo válido à tradição nos Padres refere-se à compreensão e aplicação da doutrina estabelecida firmemente nas Escrituras. E, naturalmente, sabemos hoje que apelaram a esta tradição interpretativa ... porque eles próprios o puseram por escrito.

A Sola Scriptura como princípio histórico

Diz-se que se se perdessem todas as cópias do Novo Testamento, se o poderia reconstruir com base nas citações patrísticas. Os escritores cristãos primitivos, apologistas, pastores e teólogos dos primeiros séculos, não apelavam a supostas tradições doutrinais mas às Escrituras. É certo que achamos numerosas alusões à "regra de fé da Igreja" e à "tradição eclesiástica", mas não se trata de uma tradição doutrinal à parte das Escrituras, mas da forma tradicional de interpretá-las e aos usos e costumes. Para os Padres dos primeiros séculos, a Sagrada Escritura é a tradição doutrinal da Igreja, e o autêntico registo da tradição Apostólica. Assim, Tertuliano (160-220) diz que aos hereges não deve conceder-se-lhes o uso das Escrituras para redarguir, porque não lhes pertencem; as Escrituras são património da Igreja, base e fundamento da sua doutrina (J. Quasten, Patrología I, p. 569). "Porque onde vejamos certamente a verdade da doutrina e da fé cristã, aí indubitavelmente se acham também as verdadeiras Escrituras, a verdadeira interpretação, as verdadeiras tradições cristãs" (De Prescriptione Haereticorum, 20). 

Por exemplo, nos escritos conservados de Orígenes, homem de vastíssima erudição, não achamos apelações a tradições doutrinais extra-bíblicas, apesar de que, dadas as especulações deste Padre, tais tradições poderiam ter sido muito interessantes. Eusébio de Cesareia (Hist Ecl VI, 25:11-14) conservou as reflexões de Orígenes a propósito do autor de Hebreus, e todas elas se baseiam em evidências internas da epístola. Parece que no seu tempo (segunda metade do século III) não havia tradição confiável a tal respeito. 

Ireneu de Lyon (ca. 140-205) escreveu: "...as Escrituras são na verdade perfeitas, sendo que elas foram faladas ou ditadas pela Palavra de Deus e pelo Seu Espírito..." (Adv Haer II, 28).

"Não aprendemos de nenhuns outros o plano da nossa salvação, senão daqueles por quem o evangelho nos chegou, o qual eles num tempo proclamaram em público e, num período posterior, pela vontade de Deus, o transmitiram a nós nas Escrituras, para ser o fundamento e a coluna da nossa fé" (Adv Haer III, 1,1). 

Ireneu também tem a Igreja como depositária das Escrituras e possuidora de um entendimento correcto destas: "... mas melhor é que nos refugiemos na Igreja, sejamos educados em seu seio, e nos alimentemos da Escritura do Senhor" (Adv Haer V,20:2). 

Numa carta a Florino conservada por Eusébio, Ireneu recorda Policarpo – segundo a tradição discípulo de São João Apóstolo - e o louva porque "tudo relatava em consonância com as Escrituras" (Hist Ecl V, 20:6). 

Ainda João Crisóstomo (347-407) escreveu: "As coisas que se inventam sob o nome de tradição apostólica, sem a autoridade das Escrituras, são castigadas pela espada de Deus" (Hom. Mat 49). Parece que o insigne pregador não estaria hoje de acordo com a Igreja de Roma. Quasten recalca: "O maior orador sagrado da Igreja antiga baseia toda a sua pregação na Escritura" (o.c., p. 528).

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Pela mesma época, Gregório de Nissa (330-395) afirmou: "Não nos está permitido afirmar o que nos aprouver. A Sagrada Escritura é, para nós, a norma e a medida de todos os dogmas. Aprovamos somente aquilo que podemos harmonizar com a intenção destes escritos"; "há algo mais confiável que qualquer destas conclusões artificiais, a saber, o que assinalam os ensinamentos da Sagrada Escritura; e assim eu considero necessário averiguar, além do que se disse [uma discussão metafísica] até que ponto este ensinamento inspirado harmoniza com tudo isso" (De anima et resurr.)

Igualmente Jerónimo (345-419), tradutor da Vulgata e o mais erudito de seu tempo, disse: "É uma arrogância criminosa acrescentar algo às Escrituras; o que está escrito, crê-o; o que não está escrito, não o busques" (Adv Helv).

Também o grande Agostinho de Hipona (354-430) era do mesmo parecer. O bispo pôs fim à sua controvérsia com os donatistas com o seguinte argumento: "Nada mais queremos ouvir de «tu dizes» e «eu digo», mas ouçamos o «Assim diz o Senhor». Indubitavelmente existem Livros do Senhor, a cuja autoridade ambos damos nosso consentimento, submissão e obediência; neles pois busquemos a igreja, e neles discutamos a nossa disputa". Nas suas Confissões (VI, 5: 2-3) declara: "Persuadiste-me de que não eram de repreender os que se apoiam na autoridade desses livros que Tu deste a tantos povos, mas antes os que neles não crêem... Porque nessa divina origem e nessa autoridade me pareceu que devia eu crer... Por isso, sendo eu fraco e incapaz de encontrar a verdade só com as forças da minha razão, compreendi que devia apoiar-me na autoridade das Escrituras; e que Tu não poderias dar para todos os povos semelhante autoridade se não quisesses que por ela te pudéssemos buscar e encontrar..." 

Os exemplos poderiam multiplicar-se. De maneira que os Padres a partir do século II baseiam as suas doutrinas nas Escrituras e, ainda que se mostrem zelosos em conservar a tradição interpretativa eclesiástica, não apelam a tradições orais doutrinais. A ter existido tal coisa, deverá ter sido de natureza independente e secreta; mas é precisamente este género de tradição o que Ireneu severamente condena, por sua origem espúria (Adv Haer III, 3:1).