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Neste artigo, o crítico e estudioso das artes, Boris Groys ensaia sobre "A solidão do projeto"
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A solidão do projeto Boris Groys
A formulação de uma grande variedade de projetos se
tornou a maior preocupação do homem contemporâneo.
Nos dias de hoje qualquer que seja o objetivo que se queira
buscar no campo econômico, político ou cultural, é
necessário primeiro formular um projeto adequado e
submetê-lo para aprovação ou financiamento oficial de uma
ou várias autoridades públicas. Se esse projeto for rejeitado
na sua forma original, então é necessário modificá-lo numa
tentativa de aumentar suas chances de ser aceito. Se o
projeto revisado também for rejeitado não há alternativa a
não ser propor um projeto inteiramente novo em seu lugar.
Dessa maneira, todos os membros da nossa sociedade
estão constantemente preocupados em criar, discutir e
rejeitar uma série infindável de projetos. Avaliações são
escritas, orçamentos são meticulosamente calculados,
comissões são formadas, comitês nomeados e decisões
tomadas. Um número considerável de nossos
contemporâneos passam seu tempo sem ler nada além de
propostas, avaliações e orçamentos dessa natureza. A
maioria desses projetos permanece para sempre não
realizada. Basta que um ou outro parecerista afirme que um
projeto não é promissor, é difícil de financiar ou
simplesmente não é desejado, para que todo o trabalho
investido na formulação do projeto se torne uma perda de
tempo.
Desnecessário dizer que o grau de trabalho investido na
apresentação de um projeto é bastante considerável e se
torna cada vez maior com o passar do tempo. Os projetos
enviados a diversos júris, comissões e órgãos públicos são
revestidos de designs cada vez mais elaborados e são cada
vez mais detalhados de modo a impressionar
adequadamente seus potenciais pareceristas. Sendo assim,
esse modo de formulação de projeto está gradualmente se
convertendo em uma forma de arte em si mesma cujo
significado para nossa sociedade ainda é muito pouco
reconhecido. Isto porque, independentemente de ser ou
não executado, cada projeto na verdade representa o
esboço de uma visão particular do futuro, que pode ser
fascinante ou instrutiva. No entanto, a maior parte dos
projetos que a nossa civilização está incessantemente
gerando costuma simplesmente sumir ou é jogada fora
quando rejeitada. O tratamento culposamente negligente do
projeto como uma forma de arte é verdadeiramente
lamentável, já que nos impede de analisar e entender as
esperanças e visões para o futuro que foram investidas
nesses projetos e que podem propiciar uma compreensão
mais ampla sobre a nossa sociedade do que qualquer outra
coisa. Este claramente não é o contexto adequado para
levar a cabo uma análise sociológica dos projetos
contemporâneos. Mas a pergunta que se pode fazer neste
momento é quais esperanças estão ligadas ao projeto como
tal? Ou, por que as pessoas se dispõem a fazer um projeto
em primeiro lugar, em vez de simplesmente irem vivendo
rumo ao futuro livres de projetos?
A seguinte resposta pode ser dada a essa pergunta:
mais que tudo, cada projeto é uma tentativa de adquirir
uma solidão sancionada. Realmente, a falta de um plano de
qualquer tipo inevitavelmente nos coloca a mercê do curso
geral dos eventos do mundo, do destino universal global,
obrigando-nos a manter comunicação constante com nosso
entorno imediato. Isso é marcadamente visível no caso de
eventos que per definitionem ocorrem sem planejamento
prévio, tais como terremotos, grandes incêndios ou
inundações. Essa variedade de eventos aproxima mais as
pessoas, forçando-as a comunicarem-se umas com as
outras e a agirem em uníssono. Mas o mesmo também se
aplica a qualquer tipo de desgraça pessoal — quem quer
que tenha acabado de quebrar uma perna ou tenha sido
acometido por um vírus imediatamente se torna
dependente de ajuda externa. Mas na vida cotidiana,
mesmo quando levada de forma negligente e sem
propósito, as pessoas mantém um elo comum por
compartilharem um ritmo de trabalho e recreação. Nas
condições prevalecentes do cotidiano, os indivíduos que não
estão preparados para se comunicar a qualquer momento
com seus companheiros são rotulados como difíceis, anti-
sociais e hostis, e estão sujeitos à censura social.
Mas esta situação passa por uma reviravolta no
momento em que alguém pode apresentar um projeto
individual socialmente sancionado como a razão do seu
auto-isolamento e renuncia a qualquer forma de
comunicação. Todos nós aceitamos que quando alguém tem
que executar um projeto, está sob imensa pressão do
tempo que não deixa espaço para qualquer outra coisa.
Comumente se aceita que escrever um livro, preparar uma
exposição ou tentar fazer uma descoberta científica são
passatempos que autorizam o indivíduo a evitar o contato
social, a se descomunicar, ou mesmo se ex-comunicar —
sem no entanto ser automaticamente julgado como uma
má pessoa. O paradoxo (acordado) em relação a isso é que
quanto mais tempo o projeto esteja programado para
durar, maior será a pressão de tempo à qual se estará
sujeito. Muitos dos projetos que são aprovados na cena
atual do mundo artístico são agendados para se
desenvolverem por uma período de no máximo cinco anos.
Em troca, depois desse período limitado de reclusão, se
espera que o indivíduo apresente um produto acabado e
retorne para a fronteira da comunicação social — pelo
menos até o momento em que, possivelmente, ele ou ela
envie uma proposta para um novo projeto. Além disso,
nossa sociedade ainda continua a aceitar projetos que
podem ocupar uma pessoa por toda a duração da sua vida,
como por exemplo nos campos da ciência ou da arte.
Alguém em uma busca ávida por um objetivo particular de
conhecimento ou atividade artística tem permissão para não
ter nenhum tempo para seu ambiente social por um período
ilimitado. De qualquer modo ainda se espera dele que, pelo
menos no momento final de sua vida, tenha algum tipo de
produto acabado para mostrar — isto é, uma obra — que
vai retrospectivamente conferir uma justificativa social pela
vida que passou em isolamento. Mas também existem
outros tipos de projeto que não tem limite de tempo
definido, projetos infinitos, como a religião ou a construção
de uma sociedade melhor, que irrevogavelmente retiram as
pessoas da sua contemporaneidade comunicativa e as
transfere para o tempo paralelo de um projeto solitário.
A execução de tais projetos normalmente requer esforço
coletivo. O isolamento de um projeto então frequentemente
se torna um isolamento compartilhado. Numerosas
comunidades religiosas e seitas são conhecidas por terem
se retirado completamente do invólucro comunicativo para
seguir os seus próprios projetos religiosos de
aperfeiçoamento espiritual. Durante a era comunista, países
inteiros cortaram relações com o resto da humanidade para
alcançar seu objetivo de construção de uma sociedade
melhor. Evidentemente, hoje se pode dizer seguramente
que todos esses projetos falharam, já que não têm nenhum
produto final para apresentar, e porque em um determinado
momento da história seus defensores também
abandonaram o seu auto-isolamento para reentrar na
comunicação irrestrita. Do mesmo modo, a modernização é
geralmente entendida como a expansão constante da
comunicação, como um processo de secularização
progressiva que dispersa todos os estados de solidão e
auto-isolamento. A modernização é vista como a
emergência de uma nova sociedade de inclusão total, que
elimina todas as formas de exclusividade. Mas o projeto
como tal é um fenômeno completamente moderno — da
mesma forma, o projeto de criar uma sociedade de
comunicação total, aberta, e amplamente secularizada
também é, afinal, ainda um projeto. E, como já
mencionado, cada projeto, acima de tudo, almeja a
proclamação e estabelecimento da reclusão e auto-
isolamento. Isto dá à modernidade uma condição
ambivalente. Por um lado, promove a compulsão pela total
comunicação e total contemporaneidade coletiva, enquanto,
por outro lado, gera constantemente novos projetos que
repetidamente levam à reconquista do isolamento radical.
Também é assim que devemos abordar os diversos projetos
da vanguarda artística histórica, que conceberam suas
próprias linguagens e suas próprias pautas estéticas. As
linguagens da vanguarda podem ter sido concebidas com
uma aplicação universal em mente, como a promessa de
um futuro comum para todos e para cada um; mas, ao
longo de seu próprio tempo, levaram ao (auto-)isolamento
comunicativo de seus defensores — deixando-os claramente
marcados para todos verem.
Por que é que o projeto resulta em isolamento? A
resposta para isso na verdade já foi dada. Cada projeto é
acima de tudo a declaração de um outro, novo futuro que
presume-se acontecerá uma vez que o projeto seja
realizado. Mas para induzir tal futuro uma pessoa precisa de
um período de afastamento ou ausência para si, com o qual
o projeto transfere seu agente para um estado paralelo de
tempo heterogêneo. Esse outro quadro temporal, por sua
vez, está desatrelado do tempo experimentado pela
sociedade — ele está dessincronizado. A vida da sociedade
segue adiante de forma independente; o curso normal das
coisas permanece inalterado. Mas, despercebido em algum
lugar além do fluxo geral do tempo, alguém começou a
trabalhar em outro projeto. Ele está escrevendo um livro,
preparando uma exposição ou planejando um espetacular
ato de terrorismo. E ele o faz na esperança de que uma vez
que o livro seja publicado, a exposição inaugurada ou o
assassinato executado, o curso geral das coisas será
modificado e toda a humanidade será levada a um futuro
diferente; exatamente o futuro que de fato esse projeto
aspirava e pretendia alcançar. Em outras palavras, à
primeira vista cada projeto aparentaria prosperar somente
na esperança da sua ressincronização com o fluxo geral das
coisas. O projeto é considerado um sucesso se essa
ressincronização é capaz de dirigir o fluxo das coisas na
direção desejada. E ele é julgado um fracasso se o fluxo das
coisas permanece inalterado pela sua execução. No
entanto, tanto o sucesso quanto o fracasso do projeto tem
algo em comum: ambos os resultados marcam o seu fim, e
ambos levam à ressincronização do estado de tempo
paralelo do projeto com o do fluxo geral das coisas. E em
ambos os casos essa ressincronização habitualmente causa
desconforto, levando até a uma certa depressão. Não
importa se o projeto termina em sucesso ou fracasso. Em
ambos os casos a angústia que se sente é a da perda dessa
existência em um tempo paralelo, o abandono de uma vida
além do fluxo geral das coisas.
Se uma pessoa tem um projeto — ou mais
precisamente, está vivendo em um projeto — ela sempre já
está no futuro. A pessoa trabalha em algo que (ainda) não
pode ser mostrado para os outros, que permanece
escondido e incomunicável. O projeto permite que a pessoa
emigre do presente para um futuro virtual, causando assim
uma ruptura temporal entre si mesmo e todos os outros, já
que eles ainda não chegaram nesse futuro e ainda
aguardam que ele aconteça. Mas o autor do projeto já sabe
como será o futuro, já que seu projeto não é mais do que a
descrição desse futuro. De fato, a razão principal pela qual
o processo de aprovação de um projeto é tão incrivelmente
desagradável para seu autor é que no estado mais
prematuro de sua apresentação ele já é forçado a dar uma
descrição detalhada de como esse futuro será alcançado e
qual será o seu resultado. Se o autor se provar incapaz de
fazê-lo, seu projeto será recusado e não receberá
financiamento. No entanto, se ele de fato conseguir
apresentar as descrições precisas estipuladas ele eliminará
justamente a distância entre si mesmo e os outros, a qual
constitui todo o apelo do projeto. Se todos sabem desde o
início qual é o curso que o projeto provavelmente tomará e
qual será o seu resultado, então o futuro não virá mais
como surpresa para eles. Com isso, no entanto, o projeto
perde o seu propósito inerente. Para o autor do projeto,
precisamente, nada do aqui e agora é importante, pois ele
já vive no futuro e vê o presente como algo que deve ser
superado, abolido ou pelo menos modificado. É por isso que
ele não vê motivo para que tenha que se justificar para, ou
comunicar-se com o presente. Pelo contrário, é o presente
que precisa se justificar ao futuro que foi proclamado no
projeto. É precisamente essa lacuna temporal, a valiosa
oportunidade de olhar o presente a partir do futuro, que faz
com que a vida vivida no projeto seja tão sedutora para seu
autor e, inversamente, é o que faz com que a execução do
projeto seja, no final das contas, tão inquietante. Daí que,
aos olhos de qualquer autor de projeto, os projetos mais
agradáveis são aqueles que, desde sua concepção, são
concebidos para nunca se completarem, já que estes são os
que tem mais chances de manter por um período de tempo
indeterminado o espaço entre o futuro e o presente. Tais
projetos nunca são completados, nunca geram um
resultado final, nunca alcançam um produto final. Mas isso
não significa dizer que esses projetos inacabados e
intermináveis são completamente excluídos da
representação social, mesmo que nunca se tenha esperado
que eles se ressincronizassem com o fluxo geral das coisas
por meio de algum modo de resultado específico, bem-
sucedido ou não. Esses tipos de projetos ainda podem,
afinal, ser documentados.
Certa vez Sartre descreveu o estado de "ser-um-
projeto-em-andamento" como a condição ontológica da
existência humana. De acordo com Sartre, cada pessoa vive
da perspectiva de seu próprio futuro individual que
forçosamente permanece obstruído da visão dos outros.
Nos termos de Sartre, essa condição resulta na alienação
radical de cada indivíduo, já que todos os outros só podem
vê-lo como o produto acabado de suas circunstâncias
pessoais, mas nunca como um projeto heterogêneo dessas
circunstâncias. Consequentemente, o período
heterogêneo de tempo paralelo do projeto permanece
indisponível a qualquer forma de representação no
presente. Portanto, para Sartre, o projeto está manchado
pela suspeita do escapismo, de fuga deliberada da
comunicação social e da responsabilidade individual. Então,
não é nenhuma surpresa que Sartre também descreva a
condição ontológica do sujeito como um estado de
"mauvaise foi" ou insinceridade. E por essa razão o herói
existencial de origem Sartreana é perenemente tentado
preencher o espaço entre o tempo de seu projeto e o do
fluxo geral das coisas por meio de uma "action directe" e
assim, mesmo que por um breve momento, sincronizar os
tempos. Mas enquanto o tempo heterogêneo do projeto não
pode ser levado a uma conclusão, ele pode, como
observado antes, ser documentado. Pode-se até dizer que
arte nada mais é do que a documentação e a representação
desse tempo heterogêneo baseado em projetos. Muito
tempo atrás isso significava documentar a história divina
como um projeto para a redenção do mundo. Hoje em dia
trata-se de projetos individuais e coletivos para uma
diversidade de futuros. De qualquer modo, a documentação
da arte agora confere a todos os projetos não-realizados ou
irrealizáveis um lugar no presente sem forçá-los a ser ou
um sucesso ou um fracasso. Nesses termos, os próprios
escritos de Sartre também poderiam ser considerados
documentações desse tipo.
Nas últimas duas décadas o projeto artístico — no lugar
da obra de arte — sem dúvida se deslocou para o centro
das atenções do mundo da arte. Cada projeto artístico pode
exigir a formulação de uma meta específica e uma
estratégia criada para alcançar essa meta, mas esse
objetivo normalmente é formulado de modo que nos são
negados os critérios que nos permitiriam averiguar se o
objetivo do projeto foi alcançado ou não, se tempo
excessivo é necessário para atingir seu objetivo ou mesmo
se o objetivo como tal é intrinsecamente inatingível. Assim,
nossa atenção é deslocada da produção de uma obra
(incluindo uma obra de arte) para a vida no projeto artístico
— uma vida que não é primariamente um processo
produtivo, que não é moldada para o desenvolvimento de
um produto, que não é "orientada a um resultado". Nesses
termos, a arte não é mais entendida como a produção de
obras de arte, mas como a documentação da vida-no-
projeto, independentemente do resultado que tal vida tenha
ou deveria ter tido. Isso claramente tem um efeito na
maneira como se define arte agora. Hoje em dia arte não se
manifesta mais como outro, novo objeto para contemplação
que foi produzido pelo artista, mas como outro quadro
temporal heterogêneo do projeto artístico, que é
documentado como tal.
Um trabalho de arte é tradicionalmente compreendido
como algo que incorpora a arte inteiramente, conferindo-lhe
imediatismo e presença visível e palpável. Quando vamos a
uma exposição de arte geralmente presumimos que o que
quer que esteja sendo mostrado — pinturas, esculturas,
desenhos, fotografias, videos, ready-mades ou instalações
— deva ser arte. Os trabalhos podem é claro fazer
referência, de uma maneira ou de outra, a coisas que eles
não são, talvez a objetos do mundo real ou a certas
questões políticas, mas eles não se referem à arte em si
mesma, já que eles mesmos são arte. No entanto, essa
suposição tradicional tem se provado cada vez mais
enganosa para definir visitas a exposições e museus. Além
de trabalhos de arte, nos espaços de arte de hoje nos
confrontamos cada vez mais com a documentação da arte
de diversas formas. Do mesmo modo, aqui também vemos
figuras, desenhos, fotografias, videos, textos e instalações,
em outras palavras, as mesmas formas e mídias nas quais
a arte comumente é apresentada. Mas quando se trata de
documentação de arte, a arte não é mais apresentada por
meio dessas mídias, mas simplesmente documentada. Isto
porque a documentação da arte, per definitionem, não é
arte. Precisamente por apenas se referir à arte, a
documentação da arte deixa bem claro que a arte em si não
está à mão e instantaneamente visível, mas, ao invés disso,
ausente e escondida.
A documentação da arte sinaliza então a tentativa de
usar as mídias artísticas no interior dos espaços da arte
para fazer referência direta à vida em si mesma. Em outras
palavras: a uma forma de pura atividade ou pura praxis,
por assim dizer; na verdade, uma referência para a vida no
projeto artístico, ainda que sem querer representá-la
diretamente. Aqui a arte é transformada em um modo de
vida, por meio do qual o trabalho de arte é transformado
em não-arte, em mera documentação dessa vida. Ou, em
outras palavras, a arte agora se torna biopolítica já que
começou a produzir e documentar a vida em si mesma
como pura atividade através de meios artísticos. Não só
isso, mas a documentação da arte só poderia ter se
desenvolvido sob as condições da nossa era biopolítica, na
qual a vida em si mesma se tornou o objeto da criatividade
técnica e artística. Assim, uma vez mais estamos diante da
questão da relação entre a arte e a vida; mas em uma
constelação completamente nova, que se caracteriza pelo
paradoxo da arte com a aparência do projeto de arte que
agora também quer se tornar vida, ao invés de, digamos,
simplesmente reproduzi-la ou mobiliá-la com produtos
artísticos. Mas a questão convencional que vem à mente é
até que ponto a documentação, incluindo a documentação
da arte, pode realmente representar a vida em si?
Toda documentação está sob suspeita generalizada de
inexoravelmente adulterar a vida. Isto porque cada ato de
documentação e arquivamento pressupôs um certa escolha
de coisas e circunstâncias. No entanto, tal seleção é
determinada por critérios e valores que sempre são
questionáveis, e necessariamente assim permanecem. Mais
ainda, o processo de documentar algo sempre abre uma
disparidade entre o documento em si e os eventos
documentados, uma divergência que não pode ser superada
ou apagada. Mas mesmo se conseguíssemos desenvolver
um procedimento capaz de reproduzir a vida em sua
totalidade e com total autenticidade, nós novamente
acabaríamos não tendo a vida em si mas a sua máscara
mortuária, já que é a singularidade da vida que constitui
sua vitalidade. É por esse motivo que nossa cultura é
marcada hoje por um profundo desconforto em relação à
documentação e ao arquivo, e mesmo por um clamoroso
protesto contra o arquivo em nome da vida. Os arquivistas
e burocratas encarregados da documentação são
amplamente considerados os inimigos da vida verdadeira,
favorecendo a compilação e administração de documentos
mortos em lugar da experiência direta da vida. Em
particular, o burocrata é visto como agente da morte que
empunha o assustador poder da documentação para tornar
a vida cinza, monótona, repetitiva e insípida — em resumo,
mórbida. Da mesma forma, uma vez que o artista também
começa a se envolver com documentação, ele corre o risco
de ser associado com o burocrata, sob a suspeita de ser um
novo agente da morte.
Como sabemos, no entanto, a documentação
burocrática guardada em arquivos não consiste somente em
memórias gravadas, mas também inclui projetos e planos
direcionados não ao passado, mas ao futuro. Esses arquivos
de projetos contém esboços para uma vida que ainda não
aconteceu, mas como ela talvez devesse acontecer no
futuro. E o que isso significa em nossa própria era
biopolítica não é simplesmente fazer mudanças nas
condições fundamentais da vida, mas ativamente
empenhar-se na produção da vida em si. A biopolítica é
frequentemente confundida com as estratégias científicas e
tecnológicas de manipulação genética que, pelo menos
teoricamente, tem como objetivo remodelar os seres vivos
individuais. Em vez disso, a verdadeira conquista da
tecnologia biopolítica tem muito mais a ver com modelar a
longevidade em si, com organizar a vida como um evento,
como pura atividade que ocorre no tempo. Da procriação e
o fornecimento de cuidados médicos ao longo da vida à
regulação do equilíbrio entre trabalho e lazer e até a morte
medicamente supervisionada, se não induzida, a vida de
cada indivíduo está hoje permanentemente sujeita a
controle e melhorias artificiais. E precisamente porque a
vida hoje não é mais entendida como um estado de ser
primordial, elementar, como destino oufortuna, como
tempo que se desenrola a seu bel prazer, mas ao invés
disso é vista como tempo que pode ser artificialmente
produzido e formado, a vida pode ser documentada e
arquivada antes mesmo de ter acontecido. De fato, a
documentação burocrática e tecnológica serve como meio
primário da biopolítica moderna. As agendas, regulações,
relatos investigativos, pesquisas estatísticas e esboços de
projetos nos quais esse tipo de documentação consiste
estão constantemente gerando nova vida. Mesmo o arquivo
genético que está contido em cada ser vivo pode em última
análise ser compreendido como um componente dessa
documentação; um componente que tanto documenta a
estrutura genética de organismos anteriores, obsoletos,
como permite que essa mesma estrutura genética seja
interpretada como a planta para a criação de futuros seres
vivos. Isso significa que, dado o estado atual da biopolítica,
o arquivo não nos permite mais diferenciar entre memória e
projeto, entre passado e futuro. Isso, por sinal, também
oferece a base racional para o que se chama na tradição
cristã de "Ressurreição" e pelo que se conhece nos domínios
políticos e culturais como "revival". Isto porque o arquivo de
formas de vida transcorridas pode, a qualquer momento, se
revelar um roteiro para o futuro. Por estar guardada no
arquivo como documentação, a vida pode ser
repetidamente re-vivida e constantemente reproduzida
dentro do tempo histórico, caso alguém resolva empreender
tal reprodução. O arquivo é o lugar onde o passado e o
futuro se tornam reversíveis.
O projeto artístico pode ser documentado porque a vida
no projeto artístico era artificial na origem, e essa vida pode
ser reproduzida no tempo exatamente do mesmo modo que
os trabalhos de arte podem ser reproduzidos no espaço.
Assim, um projeto não-terminado, não executado ou
mesmo inicialmente rejeitado é muito mais apropriado para
demonstrar a natureza interna da vida moderna como vida-
no-projeto do que todos os projetos que foram aprovados e
concluídos com sucesso. Tais projetos "fracassados" são os
que mais claramente deslocam a atenção do resultado do
projeto para a característica processual de sua realização,
em última análise focando na subjetividade de seu autor. O
projeto artístico que aborda a impossibilidade de ser
concluído oferece uma definição em constante mutação da
figura do autor. Nesse caso, o autor não é mais o produtor
de um objeto artístico, mas a pessoa que documenta — e
portanto autoriza — o tempo heterogêneo de uma vida no
projeto, incluindo também sua própria vida. Mas o autor
não está sendo forçado a fazê-lo por um órgão público ou
instituição que detem o poder de autorizar no sentido de
dar permissão. Ao contrário, essa é muito mais uma
autorização dada por sua conta e risco, que não só admite a
possibilidade de falha, mas de fato explicitamente a celebra.
De qualquer modo, esse tipo de autorização da vida-no-
projeto abre um outro período de tempo paralelo e
heterogêneo — o desejado tempo da solidão socialmente
legitimada.
Tradução - Roberto Winter
Revisão - Luiza Proença, Maria Rita Guedes e Paulo Miyada
A partir do original em inglês disponível em http://ny-
magazine.org/PDF/Issue%201.1.%20Boris%20Groys.pdf