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A solidão do projeto Boris Groys A formulação de uma grande variedade de projetos se tornou a maior preocupação do homem contemporâneo. Nos dias de hoje qualquer que seja o objetivo que se queira buscar no campo econômico, político ou cultural, é necessário primeiro formular um projeto adequado e submetê-lo para aprovação ou financiamento oficial de uma ou várias autoridades públicas. Se esse projeto for rejeitado na sua forma original, então é necessário modificá-lo numa tentativa de aumentar suas chances de ser aceito. Se o projeto revisado também for rejeitado não há alternativa a não ser propor um projeto inteiramente novo em seu lugar. Dessa maneira, todos os membros da nossa sociedade estão constantemente preocupados em criar, discutir e rejeitar uma série infindável de projetos. Avaliações são escritas, orçamentos são meticulosamente calculados, comissões são formadas, comitês nomeados e decisões tomadas. Um número considerável de nossos contemporâneos passam seu tempo sem ler nada além de propostas, avaliações e orçamentos dessa natureza. A maioria desses projetos permanece para sempre não realizada. Basta que um ou outro parecerista afirme que um projeto não é promissor, é difícil de financiar ou simplesmente não é desejado, para que todo o trabalho investido na formulação do projeto se torne uma perda de tempo. Desnecessário dizer que o grau de trabalho investido na apresentação de um projeto é bastante considerável e se torna cada vez maior com o passar do tempo. Os projetos

A Solidao Do Projeto

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Neste artigo, o crítico e estudioso das artes, Boris Groys ensaia sobre "A solidão do projeto"

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A solidão do projeto Boris Groys

A formulação de uma grande variedade de projetos se

tornou a maior preocupação do homem contemporâneo.

Nos dias de hoje qualquer que seja o objetivo que se queira

buscar no campo econômico, político ou cultural, é

necessário primeiro formular um projeto adequado e

submetê-lo para aprovação ou financiamento oficial de uma

ou várias autoridades públicas. Se esse projeto for rejeitado

na sua forma original, então é necessário modificá-lo numa

tentativa de aumentar suas chances de ser aceito. Se o

projeto revisado também for rejeitado não há alternativa a

não ser propor um projeto inteiramente novo em seu lugar.

Dessa maneira, todos os membros da nossa sociedade

estão constantemente preocupados em criar, discutir e

rejeitar uma série infindável de projetos. Avaliações são

escritas, orçamentos são meticulosamente calculados,

comissões são formadas, comitês nomeados e decisões

tomadas. Um número considerável de nossos

contemporâneos passam seu tempo sem ler nada além de

propostas, avaliações e orçamentos dessa natureza. A

maioria desses projetos permanece para sempre não

realizada. Basta que um ou outro parecerista afirme que um

projeto não é promissor, é difícil de financiar ou

simplesmente não é desejado, para que todo o trabalho

investido na formulação do projeto se torne uma perda de

tempo.

Desnecessário dizer que o grau de trabalho investido na

apresentação de um projeto é bastante considerável e se

torna cada vez maior com o passar do tempo. Os projetos

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enviados a diversos júris, comissões e órgãos públicos são

revestidos de designs cada vez mais elaborados e são cada

vez mais detalhados de modo a impressionar

adequadamente seus potenciais pareceristas. Sendo assim,

esse modo de formulação de projeto está gradualmente se

convertendo em uma forma de arte em si mesma cujo

significado para nossa sociedade ainda é muito pouco

reconhecido. Isto porque, independentemente de ser ou

não executado, cada projeto na verdade representa o

esboço de uma visão particular do futuro, que pode ser

fascinante ou instrutiva. No entanto, a maior parte dos

projetos que a nossa civilização está incessantemente

gerando costuma simplesmente sumir ou é jogada fora

quando rejeitada. O tratamento culposamente negligente do

projeto como uma forma de arte é verdadeiramente

lamentável, já que nos impede de analisar e entender as

esperanças e visões para o futuro que foram investidas

nesses projetos e que podem propiciar uma compreensão

mais ampla sobre a nossa sociedade do que qualquer outra

coisa. Este claramente não é o contexto adequado para

levar a cabo uma análise sociológica dos projetos

contemporâneos. Mas a pergunta que se pode fazer neste

momento é quais esperanças estão ligadas ao projeto como

tal? Ou, por que as pessoas se dispõem a fazer um projeto

em primeiro lugar, em vez de simplesmente irem vivendo

rumo ao futuro livres de projetos?

A seguinte resposta pode ser dada a essa pergunta:

mais que tudo, cada projeto é uma tentativa de adquirir

uma solidão sancionada. Realmente, a falta de um plano de

qualquer tipo inevitavelmente nos coloca a mercê do curso

geral dos eventos do mundo, do destino universal global,

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obrigando-nos a manter comunicação constante com nosso

entorno imediato. Isso é marcadamente visível no caso de

eventos que per definitionem ocorrem sem planejamento

prévio, tais como terremotos, grandes incêndios ou

inundações. Essa variedade de eventos aproxima mais as

pessoas, forçando-as a comunicarem-se umas com as

outras e a agirem em uníssono. Mas o mesmo também se

aplica a qualquer tipo de desgraça pessoal — quem quer

que tenha acabado de quebrar uma perna ou tenha sido

acometido por um vírus imediatamente se torna

dependente de ajuda externa. Mas na vida cotidiana,

mesmo quando levada de forma negligente e sem

propósito, as pessoas mantém um elo comum por

compartilharem um ritmo de trabalho e recreação. Nas

condições prevalecentes do cotidiano, os indivíduos que não

estão preparados para se comunicar a qualquer momento

com seus companheiros são rotulados como difíceis, anti-

sociais e hostis, e estão sujeitos à censura social.

Mas esta situação passa por uma reviravolta no

momento em que alguém pode apresentar um projeto

individual socialmente sancionado como a razão do seu

auto-isolamento e renuncia a qualquer forma de

comunicação. Todos nós aceitamos que quando alguém tem

que executar um projeto, está sob imensa pressão do

tempo que não deixa espaço para qualquer outra coisa.

Comumente se aceita que escrever um livro, preparar uma

exposição ou tentar fazer uma descoberta científica são

passatempos que autorizam o indivíduo a evitar o contato

social, a se descomunicar, ou mesmo se ex-comunicar —

sem no entanto ser automaticamente julgado como uma

má pessoa. O paradoxo (acordado) em relação a isso é que

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quanto mais tempo o projeto esteja programado para

durar, maior será a pressão de tempo à qual se estará

sujeito. Muitos dos projetos que são aprovados na cena

atual do mundo artístico são agendados para se

desenvolverem por uma período de no máximo cinco anos.

Em troca, depois desse período limitado de reclusão, se

espera que o indivíduo apresente um produto acabado e

retorne para a fronteira da comunicação social — pelo

menos até o momento em que, possivelmente, ele ou ela

envie uma proposta para um novo projeto. Além disso,

nossa sociedade ainda continua a aceitar projetos que

podem ocupar uma pessoa por toda a duração da sua vida,

como por exemplo nos campos da ciência ou da arte.

Alguém em uma busca ávida por um objetivo particular de

conhecimento ou atividade artística tem permissão para não

ter nenhum tempo para seu ambiente social por um período

ilimitado. De qualquer modo ainda se espera dele que, pelo

menos no momento final de sua vida, tenha algum tipo de

produto acabado para mostrar — isto é, uma obra — que

vai retrospectivamente conferir uma justificativa social pela

vida que passou em isolamento. Mas também existem

outros tipos de projeto que não tem limite de tempo

definido, projetos infinitos, como a religião ou a construção

de uma sociedade melhor, que irrevogavelmente retiram as

pessoas da sua contemporaneidade comunicativa e as

transfere para o tempo paralelo de um projeto solitário.

A execução de tais projetos normalmente requer esforço

coletivo. O isolamento de um projeto então frequentemente

se torna um isolamento compartilhado. Numerosas

comunidades religiosas e seitas são conhecidas por terem

se retirado completamente do invólucro comunicativo para

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seguir os seus próprios projetos religiosos de

aperfeiçoamento espiritual. Durante a era comunista, países

inteiros cortaram relações com o resto da humanidade para

alcançar seu objetivo de construção de uma sociedade

melhor. Evidentemente, hoje se pode dizer seguramente

que todos esses projetos falharam, já que não têm nenhum

produto final para apresentar, e porque em um determinado

momento da história seus defensores também

abandonaram o seu auto-isolamento para reentrar na

comunicação irrestrita. Do mesmo modo, a modernização é

geralmente entendida como a expansão constante da

comunicação, como um processo de secularização

progressiva que dispersa todos os estados de solidão e

auto-isolamento. A modernização é vista como a

emergência de uma nova sociedade de inclusão total, que

elimina todas as formas de exclusividade. Mas o projeto

como tal é um fenômeno completamente moderno — da

mesma forma, o projeto de criar uma sociedade de

comunicação total, aberta, e amplamente secularizada

também é, afinal, ainda um projeto. E, como já

mencionado, cada projeto, acima de tudo, almeja a

proclamação e estabelecimento da reclusão e auto-

isolamento. Isto dá à modernidade uma condição

ambivalente. Por um lado, promove a compulsão pela total

comunicação e total contemporaneidade coletiva, enquanto,

por outro lado, gera constantemente novos projetos que

repetidamente levam à reconquista do isolamento radical.

Também é assim que devemos abordar os diversos projetos

da vanguarda artística histórica, que conceberam suas

próprias linguagens e suas próprias pautas estéticas. As

linguagens da vanguarda podem ter sido concebidas com

uma aplicação universal em mente, como a promessa de

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um futuro comum para todos e para cada um; mas, ao

longo de seu próprio tempo, levaram ao (auto-)isolamento

comunicativo de seus defensores — deixando-os claramente

marcados para todos verem.

Por que é que o projeto resulta em isolamento? A

resposta para isso na verdade já foi dada. Cada projeto é

acima de tudo a declaração de um outro, novo futuro que

presume-se acontecerá uma vez que o projeto seja

realizado. Mas para induzir tal futuro uma pessoa precisa de

um período de afastamento ou ausência para si, com o qual

o projeto transfere seu agente para um estado paralelo de

tempo heterogêneo. Esse outro quadro temporal, por sua

vez, está desatrelado do tempo experimentado pela

sociedade — ele está dessincronizado. A vida da sociedade

segue adiante de forma independente; o curso normal das

coisas permanece inalterado. Mas, despercebido em algum

lugar além do fluxo geral do tempo, alguém começou a

trabalhar em outro projeto. Ele está escrevendo um livro,

preparando uma exposição ou planejando um espetacular

ato de terrorismo. E ele o faz na esperança de que uma vez

que o livro seja publicado, a exposição inaugurada ou o

assassinato executado, o curso geral das coisas será

modificado e toda a humanidade será levada a um futuro

diferente; exatamente o futuro que de fato esse projeto

aspirava e pretendia alcançar. Em outras palavras, à

primeira vista cada projeto aparentaria prosperar somente

na esperança da sua ressincronização com o fluxo geral das

coisas. O projeto é considerado um sucesso se essa

ressincronização é capaz de dirigir o fluxo das coisas na

direção desejada. E ele é julgado um fracasso se o fluxo das

coisas permanece inalterado pela sua execução. No

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entanto, tanto o sucesso quanto o fracasso do projeto tem

algo em comum: ambos os resultados marcam o seu fim, e

ambos levam à ressincronização do estado de tempo

paralelo do projeto com o do fluxo geral das coisas. E em

ambos os casos essa ressincronização habitualmente causa

desconforto, levando até a uma certa depressão. Não

importa se o projeto termina em sucesso ou fracasso. Em

ambos os casos a angústia que se sente é a da perda dessa

existência em um tempo paralelo, o abandono de uma vida

além do fluxo geral das coisas.

Se uma pessoa tem um projeto — ou mais

precisamente, está vivendo em um projeto — ela sempre já

está no futuro. A pessoa trabalha em algo que (ainda) não

pode ser mostrado para os outros, que permanece

escondido e incomunicável. O projeto permite que a pessoa

emigre do presente para um futuro virtual, causando assim

uma ruptura temporal entre si mesmo e todos os outros, já

que eles ainda não chegaram nesse futuro e ainda

aguardam que ele aconteça. Mas o autor do projeto já sabe

como será o futuro, já que seu projeto não é mais do que a

descrição desse futuro. De fato, a razão principal pela qual

o processo de aprovação de um projeto é tão incrivelmente

desagradável para seu autor é que no estado mais

prematuro de sua apresentação ele já é forçado a dar uma

descrição detalhada de como esse futuro será alcançado e

qual será o seu resultado. Se o autor se provar incapaz de

fazê-lo, seu projeto será recusado e não receberá

financiamento. No entanto, se ele de fato conseguir

apresentar as descrições precisas estipuladas ele eliminará

justamente a distância entre si mesmo e os outros, a qual

constitui todo o apelo do projeto. Se todos sabem desde o

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início qual é o curso que o projeto provavelmente tomará e

qual será o seu resultado, então o futuro não virá mais

como surpresa para eles. Com isso, no entanto, o projeto

perde o seu propósito inerente. Para o autor do projeto,

precisamente, nada do aqui e agora é importante, pois ele

já vive no futuro e vê o presente como algo que deve ser

superado, abolido ou pelo menos modificado. É por isso que

ele não vê motivo para que tenha que se justificar para, ou

comunicar-se com o presente. Pelo contrário, é o presente

que precisa se justificar ao futuro que foi proclamado no

projeto. É precisamente essa lacuna temporal, a valiosa

oportunidade de olhar o presente a partir do futuro, que faz

com que a vida vivida no projeto seja tão sedutora para seu

autor e, inversamente, é o que faz com que a execução do

projeto seja, no final das contas, tão inquietante. Daí que,

aos olhos de qualquer autor de projeto, os projetos mais

agradáveis são aqueles que, desde sua concepção, são

concebidos para nunca se completarem, já que estes são os

que tem mais chances de manter por um período de tempo

indeterminado o espaço entre o futuro e o presente. Tais

projetos nunca são completados, nunca geram um

resultado final, nunca alcançam um produto final. Mas isso

não significa dizer que esses projetos inacabados e

intermináveis são completamente excluídos da

representação social, mesmo que nunca se tenha esperado

que eles se ressincronizassem com o fluxo geral das coisas

por meio de algum modo de resultado específico, bem-

sucedido ou não. Esses tipos de projetos ainda podem,

afinal, ser documentados.

Certa vez Sartre descreveu o estado de "ser-um-

projeto-em-andamento" como a condição ontológica da

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existência humana. De acordo com Sartre, cada pessoa vive

da perspectiva de seu próprio futuro individual que

forçosamente permanece obstruído da visão dos outros.

Nos termos de Sartre, essa condição resulta na alienação

radical de cada indivíduo, já que todos os outros só podem

vê-lo como o produto acabado de suas circunstâncias

pessoais, mas nunca como um projeto heterogêneo dessas

circunstâncias. Consequentemente, o período

heterogêneo de tempo paralelo do projeto permanece

indisponível a qualquer forma de representação no

presente. Portanto, para Sartre, o projeto está manchado

pela suspeita do escapismo, de fuga deliberada da

comunicação social e da responsabilidade individual. Então,

não é nenhuma surpresa que Sartre também descreva a

condição ontológica do sujeito como um estado de

"mauvaise foi" ou insinceridade. E por essa razão o herói

existencial de origem Sartreana é perenemente tentado

preencher o espaço entre o tempo de seu projeto e o do

fluxo geral das coisas por meio de uma "action directe" e

assim, mesmo que por um breve momento, sincronizar os

tempos. Mas enquanto o tempo heterogêneo do projeto não

pode ser levado a uma conclusão, ele pode, como

observado antes, ser documentado. Pode-se até dizer que

arte nada mais é do que a documentação e a representação

desse tempo heterogêneo baseado em projetos. Muito

tempo atrás isso significava documentar a história divina

como um projeto para a redenção do mundo. Hoje em dia

trata-se de projetos individuais e coletivos para uma

diversidade de futuros. De qualquer modo, a documentação

da arte agora confere a todos os projetos não-realizados ou

irrealizáveis um lugar no presente sem forçá-los a ser ou

um sucesso ou um fracasso. Nesses termos, os próprios

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escritos de Sartre também poderiam ser considerados

documentações desse tipo.

Nas últimas duas décadas o projeto artístico — no lugar

da obra de arte — sem dúvida se deslocou para o centro

das atenções do mundo da arte. Cada projeto artístico pode

exigir a formulação de uma meta específica e uma

estratégia criada para alcançar essa meta, mas esse

objetivo normalmente é formulado de modo que nos são

negados os critérios que nos permitiriam averiguar se o

objetivo do projeto foi alcançado ou não, se tempo

excessivo é necessário para atingir seu objetivo ou mesmo

se o objetivo como tal é intrinsecamente inatingível. Assim,

nossa atenção é deslocada da produção de uma obra

(incluindo uma obra de arte) para a vida no projeto artístico

— uma vida que não é primariamente um processo

produtivo, que não é moldada para o desenvolvimento de

um produto, que não é "orientada a um resultado". Nesses

termos, a arte não é mais entendida como a produção de

obras de arte, mas como a documentação da vida-no-

projeto, independentemente do resultado que tal vida tenha

ou deveria ter tido. Isso claramente tem um efeito na

maneira como se define arte agora. Hoje em dia arte não se

manifesta mais como outro, novo objeto para contemplação

que foi produzido pelo artista, mas como outro quadro

temporal heterogêneo do projeto artístico, que é

documentado como tal.

Um trabalho de arte é tradicionalmente compreendido

como algo que incorpora a arte inteiramente, conferindo-lhe

imediatismo e presença visível e palpável. Quando vamos a

uma exposição de arte geralmente presumimos que o que

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quer que esteja sendo mostrado — pinturas, esculturas,

desenhos, fotografias, videos, ready-mades ou instalações

— deva ser arte. Os trabalhos podem é claro fazer

referência, de uma maneira ou de outra, a coisas que eles

não são, talvez a objetos do mundo real ou a certas

questões políticas, mas eles não se referem à arte em si

mesma, já que eles mesmos são arte. No entanto, essa

suposição tradicional tem se provado cada vez mais

enganosa para definir visitas a exposições e museus. Além

de trabalhos de arte, nos espaços de arte de hoje nos

confrontamos cada vez mais com a documentação da arte

de diversas formas. Do mesmo modo, aqui também vemos

figuras, desenhos, fotografias, videos, textos e instalações,

em outras palavras, as mesmas formas e mídias nas quais

a arte comumente é apresentada. Mas quando se trata de

documentação de arte, a arte não é mais apresentada por

meio dessas mídias, mas simplesmente documentada. Isto

porque a documentação da arte, per definitionem, não é

arte. Precisamente por apenas se referir à arte, a

documentação da arte deixa bem claro que a arte em si não

está à mão e instantaneamente visível, mas, ao invés disso,

ausente e escondida.

A documentação da arte sinaliza então a tentativa de

usar as mídias artísticas no interior dos espaços da arte

para fazer referência direta à vida em si mesma. Em outras

palavras: a uma forma de pura atividade ou pura praxis,

por assim dizer; na verdade, uma referência para a vida no

projeto artístico, ainda que sem querer representá-la

diretamente. Aqui a arte é transformada em um modo de

vida, por meio do qual o trabalho de arte é transformado

em não-arte, em mera documentação dessa vida. Ou, em

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outras palavras, a arte agora se torna biopolítica já que

começou a produzir e documentar a vida em si mesma

como pura atividade através de meios artísticos. Não só

isso, mas a documentação da arte só poderia ter se

desenvolvido sob as condições da nossa era biopolítica, na

qual a vida em si mesma se tornou o objeto da criatividade

técnica e artística. Assim, uma vez mais estamos diante da

questão da relação entre a arte e a vida; mas em uma

constelação completamente nova, que se caracteriza pelo

paradoxo da arte com a aparência do projeto de arte que

agora também quer se tornar vida, ao invés de, digamos,

simplesmente reproduzi-la ou mobiliá-la com produtos

artísticos. Mas a questão convencional que vem à mente é

até que ponto a documentação, incluindo a documentação

da arte, pode realmente representar a vida em si?

Toda documentação está sob suspeita generalizada de

inexoravelmente adulterar a vida. Isto porque cada ato de

documentação e arquivamento pressupôs um certa escolha

de coisas e circunstâncias. No entanto, tal seleção é

determinada por critérios e valores que sempre são

questionáveis, e necessariamente assim permanecem. Mais

ainda, o processo de documentar algo sempre abre uma

disparidade entre o documento em si e os eventos

documentados, uma divergência que não pode ser superada

ou apagada. Mas mesmo se conseguíssemos desenvolver

um procedimento capaz de reproduzir a vida em sua

totalidade e com total autenticidade, nós novamente

acabaríamos não tendo a vida em si mas a sua máscara

mortuária, já que é a singularidade da vida que constitui

sua vitalidade. É por esse motivo que nossa cultura é

marcada hoje por um profundo desconforto em relação à

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documentação e ao arquivo, e mesmo por um clamoroso

protesto contra o arquivo em nome da vida. Os arquivistas

e burocratas encarregados da documentação são

amplamente considerados os inimigos da vida verdadeira,

favorecendo a compilação e administração de documentos

mortos em lugar da experiência direta da vida. Em

particular, o burocrata é visto como agente da morte que

empunha o assustador poder da documentação para tornar

a vida cinza, monótona, repetitiva e insípida — em resumo,

mórbida. Da mesma forma, uma vez que o artista também

começa a se envolver com documentação, ele corre o risco

de ser associado com o burocrata, sob a suspeita de ser um

novo agente da morte.

Como sabemos, no entanto, a documentação

burocrática guardada em arquivos não consiste somente em

memórias gravadas, mas também inclui projetos e planos

direcionados não ao passado, mas ao futuro. Esses arquivos

de projetos contém esboços para uma vida que ainda não

aconteceu, mas como ela talvez devesse acontecer no

futuro. E o que isso significa em nossa própria era

biopolítica não é simplesmente fazer mudanças nas

condições fundamentais da vida, mas ativamente

empenhar-se na produção da vida em si. A biopolítica é

frequentemente confundida com as estratégias científicas e

tecnológicas de manipulação genética que, pelo menos

teoricamente, tem como objetivo remodelar os seres vivos

individuais. Em vez disso, a verdadeira conquista da

tecnologia biopolítica tem muito mais a ver com modelar a

longevidade em si, com organizar a vida como um evento,

como pura atividade que ocorre no tempo. Da procriação e

o fornecimento de cuidados médicos ao longo da vida à

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regulação do equilíbrio entre trabalho e lazer e até a morte

medicamente supervisionada, se não induzida, a vida de

cada indivíduo está hoje permanentemente sujeita a

controle e melhorias artificiais. E precisamente porque a

vida hoje não é mais entendida como um estado de ser

primordial, elementar, como destino oufortuna, como

tempo que se desenrola a seu bel prazer, mas ao invés

disso é vista como tempo que pode ser artificialmente

produzido e formado, a vida pode ser documentada e

arquivada antes mesmo de ter acontecido. De fato, a

documentação burocrática e tecnológica serve como meio

primário da biopolítica moderna. As agendas, regulações,

relatos investigativos, pesquisas estatísticas e esboços de

projetos nos quais esse tipo de documentação consiste

estão constantemente gerando nova vida. Mesmo o arquivo

genético que está contido em cada ser vivo pode em última

análise ser compreendido como um componente dessa

documentação; um componente que tanto documenta a

estrutura genética de organismos anteriores, obsoletos,

como permite que essa mesma estrutura genética seja

interpretada como a planta para a criação de futuros seres

vivos. Isso significa que, dado o estado atual da biopolítica,

o arquivo não nos permite mais diferenciar entre memória e

projeto, entre passado e futuro. Isso, por sinal, também

oferece a base racional para o que se chama na tradição

cristã de "Ressurreição" e pelo que se conhece nos domínios

políticos e culturais como "revival". Isto porque o arquivo de

formas de vida transcorridas pode, a qualquer momento, se

revelar um roteiro para o futuro. Por estar guardada no

arquivo como documentação, a vida pode ser

repetidamente re-vivida e constantemente reproduzida

dentro do tempo histórico, caso alguém resolva empreender

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tal reprodução. O arquivo é o lugar onde o passado e o

futuro se tornam reversíveis.

O projeto artístico pode ser documentado porque a vida

no projeto artístico era artificial na origem, e essa vida pode

ser reproduzida no tempo exatamente do mesmo modo que

os trabalhos de arte podem ser reproduzidos no espaço.

Assim, um projeto não-terminado, não executado ou

mesmo inicialmente rejeitado é muito mais apropriado para

demonstrar a natureza interna da vida moderna como vida-

no-projeto do que todos os projetos que foram aprovados e

concluídos com sucesso. Tais projetos "fracassados" são os

que mais claramente deslocam a atenção do resultado do

projeto para a característica processual de sua realização,

em última análise focando na subjetividade de seu autor. O

projeto artístico que aborda a impossibilidade de ser

concluído oferece uma definição em constante mutação da

figura do autor. Nesse caso, o autor não é mais o produtor

de um objeto artístico, mas a pessoa que documenta — e

portanto autoriza — o tempo heterogêneo de uma vida no

projeto, incluindo também sua própria vida. Mas o autor

não está sendo forçado a fazê-lo por um órgão público ou

instituição que detem o poder de autorizar no sentido de

dar permissão. Ao contrário, essa é muito mais uma

autorização dada por sua conta e risco, que não só admite a

possibilidade de falha, mas de fato explicitamente a celebra.

De qualquer modo, esse tipo de autorização da vida-no-

projeto abre um outro período de tempo paralelo e

heterogêneo — o desejado tempo da solidão socialmente

legitimada.

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Tradução - Roberto Winter

Revisão - Luiza Proença, Maria Rita Guedes e Paulo Miyada

A partir do original em inglês disponível em http://ny-

magazine.org/PDF/Issue%201.1.%20Boris%20Groys.pdf