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REDESCRIÇÕES Revista online do GT de Pragmatismo, ano IX, nº 1, 2019. A SUBJETIVIDADE NA SOCIEDADE DO DINHEIRO SUBJECTIVITY IN MONEY SOCIETY Paulo Ghiraldelli Júnior 1 RESUMO Neste artigo, apresenta-se um quadro sobre a subjetividade baseado no esvaziamento da individualidade, que é inserida no contexto de sociedade fetichizada proposta pelo filósofo Karl Marx, na qual a mercadoria, grosso modo, torna-se sujeito e o homem, objeto. Argumenta-se que esse eu esvaziado tenta ser preenchido por alguma identidade através do consumo de marcas, fazendo surgir o eu narcísico. Por fim, discute-se o fetichismo atual, no qual o dinheiro passa a adquirir aspecto de divindade, a autorreferencialidade, e o capitalismo torna-se uma religião sem objeto. Palavras-chave: Subjetividade. Fetiche. Capitalismo. Hiperconsumo. ABSTRACT In this paper, it is presented a frame on the subjectivity based on the emptying of individuality, which is included in the context of fetishized society proposed by the philosopher Karl Marx, in which the commodity becomes, roughly, subject and the man, object. It is argued that this emptied self tries to be filled by any identity trough the consumption of brands, giving rise to the narcissistic self. Finally, the current fetishism is discussed, in which money takes on the aspect of divinity, self-referentiality, and capitalism becomes a religion without object. Keywords: Subjectivity. Fetish. Capitalism. Hyperconsumption. 1 Paulo Ghiraldelli Jr. é Doutor e Mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutor em Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp.

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REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano IX, nº 1, 2019.

A SUBJETIVIDADE NA SOCIEDADE DO DINHEIRO

SUBJECTIVITY IN MONEY SOCIETY

Paulo Ghiraldelli Júnior1

RESUMO

Neste artigo, apresenta-se um quadro sobre a subjetividade baseado no esvaziamento da

individualidade, que é inserida no contexto de sociedade fetichizada proposta pelo filósofo

Karl Marx, na qual a mercadoria, grosso modo, torna-se sujeito e o homem, objeto.

Argumenta-se que esse eu esvaziado tenta ser preenchido por alguma identidade através do

consumo de marcas, fazendo surgir o eu narcísico. Por fim, discute-se o fetichismo atual, no

qual o dinheiro passa a adquirir aspecto de divindade, a autorreferencialidade, e o

capitalismo torna-se uma religião sem objeto.

Palavras-chave: Subjetividade. Fetiche. Capitalismo. Hiperconsumo.

ABSTRACT

In this paper, it is presented a frame on the subjectivity based on the emptying of

individuality, which is included in the context of fetishized society proposed by the

philosopher Karl Marx, in which the commodity becomes, roughly, subject and the man,

object. It is argued that this emptied self tries to be filled by any identity trough the

consumption of brands, giving rise to the narcissistic self. Finally, the current fetishism is

discussed, in which money takes on the aspect of divinity, self-referentiality, and capitalism

becomes a religion without object.

Keywords: Subjectivity. Fetish. Capitalism. Hyperconsumption.

1 Paulo Ghiraldelli Jr. é Doutor e Mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação

pela PUC-SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutor em

Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp.

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1. A busca da identidade perdida

Nunca foi tão necessário pertencer a um grupo como em nossos tempos. É do desejo

do indivíduo - assim lhe parece - que ele esteja em uma comunidade ou coisa parecida. Pode

ser uma igreja, um clube de tiro, um partido, uma seita, um fã clube, um conjunto de

seguidores de um youtuber, um grupo de usuários de determinado tipo de roupa ou marca,

uma torcida organizada; enfim, um sabe-se lá o que que possa dar ao pertencente a sensação

de reconhecimento e de identidade social. Trata-se de obter aquilo que parece garantir que

se está vivendo em uma sociedade da diversidade, e que se é, nela, um indivíduo autêntico.

Devemos ser únicos e originais, e só garantimos isso pela condição paradoxal de

estarmos uniformizados! Estranha configuração. Mas é nossa norma atual.

Na compensação de sua real transformação em indivíduo atomizado, nem sempre

capaz de autorreflexão rica, há a busca por algo que possa parecer uma identidade, e isso a

partir de qualquer tipo de coletividade. É como uma tentativa de volta à pátria, à família, e

talvez até mesmo a busca pelo desiderato de encontrar uma companhia placentária uterina –

para nos referirmos aqui a Peter Sloterdijk2. Falando em termos do jargão da filosofia política

americana: em uma situação de neoliberalismo extremado, surge a necessidade de um

tempero comunitarista3.

Considerando esse quadro, então, é preciso recuperar, para que o eu seja um eu, algo

preenchido por alguma identidade, que é aquilo que o comportamento grupal parece ter

poderes para fornecer, dando parâmetros a serem adotados, imitados, resguardados, no

exercício da interação social ou, principalmente, na interação consigo mesmo.

Se volto para casa, no meu apartamento single, sem ter vindo de um grupo, então corro

para a internet de modo a encontrar algum. Esse comportamento de classe média se espraia

para os mais pobres. Estamos atolados até o pescoço nisso.

Mas, é possível a originalidade em uma sociedade como a nossa, a do império da

abstração feita real? Uma sociedade tautológica como a nossa pode dar comportamentos que

não são os mesmos, os estereotipados?

Do que estamos falando ao nos referirmos aos termos “sociedade tautológica” e

“sociedade do império da abstração”?

2 Ghiraldelli Jr., P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2017. 3 Sobre comunitaristas, liberais e pragmatistas ver: Ghiraldelli Jr., P. Filosofia política para educadores.

Barueri (SP): Editora Manole, 2015.

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O problema aqui é que, para entendermos essa questão, faz-se mister levar a sério a

ideia de que vivemos em uma sociedade fetichizada, como a que apontada por Marx quando

de suas dissertações sobre a modernidade. Temos que ter em mente, então, o esquema

ensinado por Marx a respeito do “caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”4.

2. O fetiche da mercadoria

Segundo Marx, a mercadoria tem valor de uso e valor de troca. O valor de uso

corresponde à sua utilidade, que se faz vigente na nossa interação com ela enquanto produto

adquirido. O valor de troca é seu valor no mercado, o que a faz autenticamente mercadoria.

Na situação de mercado, ela é comprada para ver realizado seu valor de uso. Só conseguirá

uma tal façanha por meio de seu valor de troca, ou seja, participando do mercado para cair

nas mãos do usuário ou consumidor. Nessa operação, ela satisfaz o desiderato do valor: a

mercadoria se faz mensurável, então trocável por meio de um critério objetivo: nela há

trabalho humano social contido, o que é necessário para produzi-la segundo um patamar

histórico e geográfico de desenvolvimento, e esse trabalho é dado por quantidade de tempo,

ou seja, uma abstração. O valor, portanto, é abstrato. A mercadoria é sensível, enquanto

objeto que tem valor de uso, mas é não-sensível ao mesmo tempo, como portadora de valor.

Essa sua característica “metafísica”, diz Marx, a faz misteriosa, e de fato ela leva os homens

a se relacionarem por meio dela, de um modo invertido. Pois ela, no mercado, é que

estabelece sua característica “sensível e suprassensível” e se põe diante de outras

mercadorias, como uma peça que tem algo de vivo. O que ela contém é trabalho humano

abstrato, mas isso se mostra, no seu lado sensível, como sendo uma propriedade natural. Ela

ganha algo de espiritual que se apresenta como lhe fosse natural e, então, se mostra útil aos

homens, mas com um poder mistificador imenso. Ela se fetichiza. No limite, a mercadoria,

nesse sentido, se faz sujeito, pondo o homem como o objeto. Eis aí o fetiche da mercadoria.

A fetichização é devido ao valor, que encarna o humano, e que se expressa por meio de um

equivalente universal, o dinheiro, posto no padrão ouro.

Não é à toa que Marx tenha teorizado sobre isso na era vitoriana - uma época de

sucesso dos contos de fantasmas. Aliás, antes de voltarmos à questão da identidade e sua

busca por grupos, cabe aqui uma pequena digressão.

4 Marx, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2018. livro I, pp-146-159.

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3. O mundo fantasmático

Em uma carta de 1922, a uma fidalga incógnita, o poeta Rainer Maria Rilke registrou

o seu tempo: “tudo o que se está isolado na claridade dos pavilhões ostenta agora um preço”.

“Cada coisa”, continua ele, “nos grita como é jovem e importante e tão concupiscente como

aquilo que, barato, faz de objeto de luxo” 5. O mesmo poeta, em carta a Witold von Hulewicz,

acrescenta: “para os pais de nossos pais uma casa, uma fonte, uma torre desconhecida, até

mesmo seu próprio vestido, seu manto, ainda eram infinitamente mais, infinitamente mais

familiares. (...) Agora chegam da América coisas vazias e indiferentes, aparência de coisas,

simulacros de vida…”. E emenda: “As coisas animadas, vividas, admitidas em nossa

confiança, vão declinando e já não podem ser substituídas. Talvez sejamos nós os últimos

que ainda tenhamos conhecido tais coisas…”6

Essas observações mostram que Rilke soube captar as duas grandes tendências

marcantes do mundo moderno. A primeira: as mercadorias gritam e nos chamam. A segunda:

elas não têm a ver com a nossa experiência, são réplicas, cópias, simulacros - mas simulacros

de vida. Nos dois casos, o caráter fantasmagórico dos produtos gerados sob o capitalismo se

faz evidente para o poeta. Cerca de oitenta anos antes, Marx falou disso, alertando para o

“fetiche da mercadoria” e para o caráter fetichizado de todo o mundo sob o capitalismo.

Anterior a Marx, Adam Smith notou a fetichização. Por ocasião de um discurso em

homenagem ao primeiro ministro Lord North, em 1778, ele descreve como que os alfinetes

percorriam organizadamente um longo caminho, indo do campo de extração do minério para

passar pelas fábricas e lojas até chegar aos ateliês de costura. Então, comenta o fato segundo

uma imagem que lhe vem à cabeça: “Num capricho poético, poderíamos ceder à crendice e

aceitar a ideia delirante de que, num mundo superior que participasse no nosso, existiria um

povo espiritual de alfinetes que, quais demônios benfazejos, acompanham os alfinetes

terrestres em sua metamorfose”7. Adam Smith usa dessa imagem, ainda nesse discurso, para

lançar a sua ideia célebre, a da mão invisível do mercado. Todavia, se esse trecho foi lido

por Marx, este deve ter pensando antes de tudo no que ele próprio entendia como sendo o

caráter espectral da mercadoria. Para qualquer leitor de Marx, hoje, não há como não ver

Smith falando como quem descreve o aspecto de fetiche dos alfinetes.

5 Rilke, R. M. apud Sloterdijk, P. O palácio de cristal. Lisboa: Relógio D’água, 2008, p. 222. 6 Rilke, R. M. apud Agamben, G. Estâncias. Belo Horizonte: Humanitas e Editora da UFMG, 2012, p. 66. 7 Smith, A. apud Sloterdijk, P. O palácio de cristal, op. cit., p. 217.

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Se os objetos, uma vez mercadorias, nos chamam, e, se apresentam como vidas em

simulacros, se parecem que possuem um daimon, então não podem ser outra coisa senão

aparições, assombrações - fantasmas. Quando o século XIX se apresentou para Marx, ele o

fez como um reino mal-assombrado, o lugar de mortos vivos. Referindo-se a Marx, agora

em nossos dias, Peter Sloterdijk não consegue evitar de qualificá-lo como o filósofo

“exorcista do trabalho morto”. Ele diz: “o núcleo da sua crítica da economia política é a

necromancia: como herói que emerge do reino dos mortos a fim de lutar com sombras de

valores, Marx permanece atual para o presente de modo inquietante”8. A atualidade de Marx

depende de quanto estamos dispostos, ainda, a acreditar em fantasmas.

Também Jacques Derrida deu importância aos escritos de Marx exatamente por sua

compreensão a respeito das assombrações. Comentando a parte de O capital que fala do

“fetiche da mercadoria e seu segredo”, o filósofo argelino lembra do tratamento de Marx

quanto à mercadoria. Esta é, então, o “sensível suprassensível”. Derrida se apega ao exemplo

de Marx, o da mesa que firma suas patas e eleva sua cabeça de madeira, e que se põe a

dançar. Isso é, para Derrida, uma “aparição”, uma assombração. Todavia, essa assombração

não é ideologia na cabeça dos homens, mas efetivamente o que se faz presente na realidade,

na prática social dos homens. A ideologia, para Marx, é a manifestação do fetiche da

mercadoria enquanto o que se faz na realidade, como o que se põe de modo espectral. Para

Marx, assombrações existem, e são deste mundo, o mundo da produção capitalista e da

chamada sociedade de mercado. O núcleo espectral da mercadoria é o seu valor.

Em uma nota de rodapé ao seu Espectros de Marx, Derrida solicita estudos

investigativos a respeito do que seria uma ‘vaga’ que, na falta de outro nome, poderia ser

chamada de ‘mediúnica’. Ora, não precisamos ir longe9. Os historiadores da literatura nos

informam que o período vitoriano (1818-1901) corresponde à ampliação da literatura sobre

fantasmas. Eles mesmos, esses historiadores, tentam explicar essa situação. Lançam mão de

elementos dispersos. Uns falam de como esses anos trouxeram levas de pessoas do campo

para a cidade, gerando uma classe média que veio a morar em casas com serviçais que

podiam aparecer aqui e ali no meio da noite - expondo os novos habitantes a situações a que

eles não estavam acostumados. Outros acrescentam o aparecimento da iluminação feita na

base de gases que, sabe-se bem, tinham lá seus efeitos alucinógenos. Há ainda os que

8 Sloterdijk, P. “Marx”. Temperamentos filosóficos. Lisboa: Edições 70, 2012, p. 85. 9 Derrida, J. Os espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 200.

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lembram que nesse período surgiu a comunicação à distância, que deu margem a todo tipo

de imaginação aos interessados em “espíritos”. De fato, foram os vitorianos que inventaram

o costume de dizer que haviam recebido mensagens do mundo dos mortos por meio de

Código Morse. Também é dessa época o surgimento da fotografia e, com ela, os chamados

“fotógrafos de espírito”, que usavam as chapas já queimadas antes, boas para se obter

resíduos de tom espectral por detrás de imagens.

Aliás, diga-se de passagem, a morbidez foi uma característica marcante dos tempos

vitorianos. Tirar fotos de mortos e expô-las pela casa tornou-se algo comum - uma prática

iniciada pela própria Rainha Vitória, e que conquistou a Europa da época. A amostragem de

pessoas com defeitos físicos em praças e circos atraia muita gente. Jornais capazes de

entreter o público com notícias novelescas de crimes bárbaros também se tornaram

corriqueiros. Especialmente se os crimes pudessem se repetir. O cenário de uma Londres sob

neblina e fuligem da revolução industrial revelou-se um clássico da iconografia da

urbanidade vitoriana. Jack, o Estripador, fez fama. Em 1888 ele aterrorizou a periferia

londrina, e desde então reinou como um ícone da vida sob neblina, ou melhor, da morte.

Sabemos o quanto os fantasmas se adaptaram bem às novas tecnologias. Eles logo

passaram a preferir a comunicação via objetos tecnológicos, quase que duplicando a

fetichização. No conto de Carlos Drummond “Flor, moça, telefone”, nosso poeta fez questão

de mostrar como ele sabia percorrer esse paradigma vitoriano tardio. Nele, é por telefone

que o suposto morto se comunica com a moça que roubou uma flor de seu túmulo. O filme

“O chamado” (“The Ring”, Gore Verbinski, 2002) não fez sucesso à toa. E uma série bem

vista é “Walking dead”. Isso sem contar que “Frankenstein” (1818), de Mary Shelley, ainda

se presta a todo tipo de interpretação a respeito das fronteiras entre o vivo e o morto. Também

seguiu esse caminho o “Drácula” (1897) de Bram Stoker. E por que não colocar nesse rol,

ainda que sob um vetor de sentido diverso, o carrinho Herbie, do “Se meu fusca falasse”

(“The love bug”, Robert Stevenson, 1968)? Pensando bem, uma lista com tais criaturas

poderia ter fim?

Mas, em geral, os historiadores da literatura se esquecem de Marx, e não atentam para

como que esse período vitoriano foi, de fato, a época que gerou uma das mais criativas

narrativas sobre as aparições espectrais. Marx foi o autor que trouxe para o plano da teoria a

ideia do fetiche como o grande produto da então recém-inaugurada, em termos grandiosos e

industriais, sociedade de mercado.

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Como Smith, que viu os alfinetes comandados por daimons, ou como Rilke, que

reclamou dos gritos e chamados das coisas, Marx notou o mundo das mercadorias se pondo

na condição de quase viventes. O trecho célebre de Marx, relativamente equivalente aos

dizeres de Rilke e Smith, com certeza é o da mesa. Vale a pena repeti-lo aqui, ainda que por

demais conhecido:

“É evidente que o homem, por sua atividade, altera a forma das matérias naturais

de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando

dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa

sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma em

uma coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta em manter os pés no chão,

mas põe-se de cabeça para baixo em relação a todas as outras mercadorias, e em

sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que

se ela começasse a dançar por vontade própria”10.

Cada mercadoria é trocada por dinheiro e, uma vez nas mãos do consumidor, volta a

ter valor de uso, mas de modo imperativo, agora, pois também nela se insere todo o trabalho

humano abstrato das outras mercadorias, que animam o valor de uso e fazem com que os

homens imaginem que o que anima cada mercadoria não seja essa parte humana que ela

guarda, mas algo que é da própria natureza das mercadorias. A mercadoria é, então, um

fetiche: algo material que se move aparentemente por si só, mas que se move mesmo,

realmente, por conta de ser a incorporação da atividade humana nela contida.

Assim, para Marx, não há uma representação do mundo que, como representação, vem

de uma fonte psicológica, e que inverteria as coisas. Há sim uma inversão real do mundo.

As mercadorias de fato se insurgem aos homens como o que é criado pelo homem, mas, sem

que ele note que tal poder vem de si mesmo, enquanto aquele que empoderou a mercadoria

ao lhe fornecer caráter suprassensível humano. Assim, a mercadoria se põe diante dos

homens, se fazendo de sujeito, e passa a submetê-los, dando-lhe ordens – tendo ideias, ou

seja, minhocas na cabeça. Marx chega a usar a ideia da religião para explicar o caso: os

homens criam os deuses que, uma vez criados, submetem os homens. Mas essa metáfora não

é boa. Pois ela apela para uma inversão mental. A inversão do fetiche da mercadoria, e que

se estende ao dinheiro, que é o meio pelo qual o valor se expressa, é uma inversão da própria

realidade. O homem realmente fica sob o jugo dos desejos da mercadoria – ela adquire

desejos e comando. Ela passa a ser o ser vivo, o sujeito, e o homem é aquele que lhe obedece

10 Marx, K. Op. Cit., p. 146.

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sentindo sua força de material e simbólica, como o que lhe impõe vontades por si e pelo

dinheiro.

O dinheiro, assim, não tem força sobre o homem por poder comprar coisas, mas porque

ele é a expressão do valor, e este, por sua vez, está incorporado à mercadoria como a

substância imaterial que transpassa todas as mercadorias: o trabalho abstrato, a atividade

humana abstrata. A mercadoria é objeto, mas o seu valor não é valor de uso somente, é, uma

vez como valor de uso, também valor, o humano que perpassa todas as mercadorias. A força

da mercadoria sobre os homens advém da força do valor, objetivo, sobre qualquer indivíduo

psicológico.

Sentimos isso se entramos numa loja e vemos que a mercadoria não está sob nosso

comando, mas ela nos comanda por conta de seu caráter de fetiche: podemos ter dinheiro

para levar uma calça comprada na loja, mas ela, antes disso, nos dará ordens, irá nos fazer

nos adaptarmos a ela. Iremos a uma academia ou mesmo nos cortaremos com algum médico

para nos ajustarmos à calça. O morto comanda o vivo ou, melhor, a mercadoria é agora o

vivo e nós, definitivamente, os mortos. Como ainda andamos, então a melhor imagem para

nós é a de zumbis.

Desse modo, o mundo dos homens da sociedade burguesa ou moderna é o mundo dos

zumbis. Seres que possuem uma restrição psicológica. Seres de desejos menores, obsessivos.

Seres assim são de fato muito propensos a um tipo de narcisismo, capazes mesmo de achar

que um copo de água depende, para ter valor, da sede. Zumbis têm uma forte tendência

narcísica, acham que tudo gira em torno deles.

Olhando zumbis, podemos vislumbrar a saída encontrada para o problema colocado

no tópico inicial, o de como satisfazer interesses de distinção, de originalidade individual,

mesmo em uma sociedade tautológica, comandada pela igualação do valor abstrato e pela

fetichização. Eis o caminho: o zumbi é narcísico.

4. A sociedade de consumo e o capitalismo como religião

A sociedade regrada pelo fetiche da mercadoria não nos dá toda a história. Seria

incompleta nossa história se acreditássemos que vivemos sob os restos do sucesso da

fantasmagoria da era vitoriana.

Nosso modo de consumir é o termômetro que aponta para o calor de novas relações.

Nós, atualmente, não consumimos segundo nossas vidas na sociedade fordista. Esta, a

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sociedade do consumo de massa, nos colocou na ordem da inveja, a obrigatoriedade do

consumo de ostentação que, enfim, conquistou as descrições de Max Veblen.

À época da produção de tipo fordista correspondeu a uma fase de consumo de massa

estratificado. Consumia-se de modo demasiado e, então, nasceram as estratificações do

consumo: diversas variações do mesmo produto, com preços diferentes, de modo a ganhar

pessoas de distintos níveis econômicos, para a compra. Logo os produtos se diferenciaram,

numa exigência que levou os consumidores a ostentarem seus objetos comprados, segundo

marcas que poderiam significar um status diferente. Se todos podem comprar, então a classe

média ampliada, nessa época, passou a mostrar que se diferenciava dos pobres por poder

consumir o que os pobres consumiam, mas em uma qualidade superior.

Na conta de Gilles Lipovetsky, vivemos uma paradoxal época de consumo de marcas,

que poderia parecer como de ostentação, mas que cumpre uma função inversa, que é a de

trazer o indivíduo para uma tentativa de recuperação e preenchimento de seu eu. Tudo se faz

para que as marcas se apresentem como obras de arte, como o que distingue usuários, como

o que fornecesse assuntos para conversas e utilização de enorme mão de obra em favor da

criatividade. Mas, ao mesmo tempo, essas marcas estão voltadas para a distinção do eu. Em

uma passagem altamente esclarecedora, Lipovetsky diz que “o que o hiperconsumidor

compra em primeiro lugar é a marca, e com ela um suplemento de alma, de sonho e de

identidade: num limite extremo, para o consumidor globalizado que importância tem o

perfume desde que tenha a embriaguez de um frasco de Chanel?” (...) “Calvin Klein intitulou

um de seus perfumes como ‘Be Yourself’. A Lacoste afirmou: ‘torne-se o que você é’. A

Nike criou o famoso ‘Just do it’. A Levi’s lança agora: ‘Be Original’. Elas, as marcas, se

empenham em se diferenciar, envolvem-se em campanhas de sentido público, em causas,

mas só assim fazem se puderem dar a seus usuários a sensação de que, pertencendo a grupos,

adquirem condição individual autêntica. Em suma: “suplementos de alma”11.

Em uma época do pertencimento a grupos, nós nos isolamos, e mais chegamos a um

consumo de estilo solitário, como que assumindo um choque de realismo: não há nada além

do cultivo narcísico. Um eu preenchido, cheio, orgulhoso, reflexivo, não é um eu narcísico.

O eu narcísico dos tempos atuais é justamente a denotação clara de um eu esvaziado.

Quando Pascal e Hume assumiram o eu como vazio, eles não imaginavam que as

condições histórico-ontológicas iriam lhes dar razão no grau que hoje, tantos anos depois,

11 Lipovetsky, G. Serroy, J. A Cultura-mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 95 e p. 98.

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ao menos se mantemos o fio dessa nossa narrativa, é algo bem certo. Vivemos a época que,

pelo contexto de tautologia máxima, segue o novo padrão do fetiche. Qual? O fetiche do

dinheiro. A epopeia de nossa época é a de que o dinheiro adquiriu características do antigo

conceito de eu, e aspectos de divindade: a autorreferencialidade. O dinheiro de Nixon12,

autorreferencial, é o fetiche atual. Se somos autenticamente pessoas, agora, devemos agir

não mais como mercadorias, que andam em bandos, mas como eus narcísicos, que se

locomovem segundo uma pseudo originalidade e de acordo com a virtualidade do dinheiro

atual. O frenesi do virtual é estonteante, mas ele não implica em real deslocamento. Não se

vai a lugar algum com essa nossa estupenda velocidade!

Na transformação do homem em objeto, dando ao dinheiro a condição de fetiche, o

elemento humano se imagina mais uma vez como que de fato humano se consegue imitar o

dinheiro. Nessa nossa era, como os narcisos vestidos de verde, a cor do dólar, cada um de

nós, em seu grupinho virtual, pensa viver uma aventura original. Mas na solidão real dessa

nossa condição narcísica, apenas vivemos sob a condição de uma nova religião. Essa religião

se chama capitalismo.

Benjamin escreveu que o capitalismo é uma religião13. Analisando esse escrito,

Agamben ensina como levar a sério uma tal formulação, a de que o capitalismo é uma

religião sem objeto14. É uma religião exclusivamente de culto e nada mais. Trata-se de uma

religião cuja substância é a fé, e isso de um modo inaudito. O capitalismo baseia-se na fé, ou

seja, na pura relação de crédito-débito, de confiança, de pistis. Ele sempre foi assim, mas

com a reforma de Nixon, que aniquilou a referência do papel moeda quanto ao ouro, e fez

do dinheiro o que ele é hoje, um número autorreferente, o próprio dinheiro adquiriu uma

formulação surrealista.

Antes, nas cédulas do dinheiro vinha escrito: o portador desta tem um crédito X em

ouro, garantido pelo Tesouro Nacional. Depois de Nixon, eis o que poderia ser escrito, mas

que obviamente jamais foi: o portador desta tem um crédito no sentido de receber uma cédula

igual a esta, garantida pelo Banco Central. Instaurada a religião do puro culto, da pura fé, os

bancos se tornaram as novas igrejas, e Deus, então, agora sem seu corpo de ouro, finalmente

sem o pecado da idolatria, ganhou sua verdadeira e necessária imaterialidade. Sua função de

12 Em 1971, os Estados Unidos aboliram unilateralmente o uso do padrão ouro. O dinheiro ficou sem qualquer

referência material. 13 Benjamin. W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013. 14 Agamben, G. Creation and anarchy. Stanford: Stanford University Press, 2019, pp. 66-77.

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REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano IX, nº 1, 2019.

absoluto se fez como dinheiro. O fetiche se instaurou então como prática e como ideologia.

Ou melhor, se fez no sentido althusseriano de ideologia, na ação comportamental prática.

Nesse caso, o fetiche chega ao seu máximo. Se o homem deve imitar Deus, se há algo no

homem que o faz semelhante a Deus, esse algo deve, então, ser nada além do que o

comportamento do dinheiro.

Desde que o homem ganhou a necessidade de imitar o dinheiro para ser vivo, ele

alcançou aquilo que o liberalismo havia lhe prometido, que ele iria ser indivíduo autêntico,

e também o que as religiões do passado haviam lhe afiançado, que ele teria algo semelhante

a Deus. Narciso absoluto.

O dinheiro é a medida de valor da mercadoria, e não pode ser, ele próprio, uma

mercadoria no sentido tradicional. A linguagem é o modo de comunicação, não pode ela

mesma comunicar. Ambos não têm conteúdo. Ambos, dinheiro e linguagem, possuem uma

ontologia fraca. A linguagem, assim, não atrapalha o homem, e o dinheiro faz o mesmo papel

de dar leveza ao humano.

Caso a linguagem tivesse uma ontologia forte, atrapalharia o homem em sua

comunicação. Pois a cada palavra ela não apontaria para algo fora dela, mas, antes de tudo,

seria autorreferencial. Diante de uma árvore teríamos antes a existência da “árvore” e não a

árvore. O mesmo ocorre com o dinheiro: ele indica algo exterior a ele, o valor, e não ele

mesmo, ainda que, de fato, nada exista senão ele mesmo. Estamos em uma época sem

conteúdo e de fé apenas, crença no Deus sem rosto.

Imitamos o vazio. Só que não nos sentimos vazios o suficiente, uma vez que a

velocidade do dinheiro, que é o que imitamos, nos faz achar que temos poderes de

onipresença, de deslocamentos de outros, de levar adiante a operação de verdadeiros

milagres. Não à toa aderimos facilmente a fazer tudo pela internet, inclusive amor (conosco)

e sexo (conosco!). O dinheiro magnético vive o frenesi da bolsa. Nós, então, o frenesi da

academia, da ludicidade, da auto-exploração15. Na religião do Deus do puro crédito, nós, os

quase Deus, no nosso narcisismo, somos autorreferentes como o dinheiro. A religião do puro

crédito se faz nossa religião.

O dinheiro cresce segundo seus zeros, de modo imediato. Nós fazemos o mesmo.

Damo-nos mais zeros, através de pontos de auto-exploração, de maneira a nos tornarmos

capazes de dizermos que somos vencedores em algo. Damo-nos pontos em jogos eletrônicos,

15 Han, B. C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2018.

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REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano IX, nº 1, 2019.

ganhando “vidas”, e damo-nos pontos no emprego, apresentando mais certificados de

cursinhos de empreendedorismo que colocamos em nosso currículo. Funcionando como o

dinheiro, o fetiche, nos sentimos vivos. Obedecendo à religião chamada capitalismo, nos

sentimos protegidos pela segurança da fé.

REFERÊNCIAS

Agamben, G. Creation and anarchy. Stanford: Stanford University Press, 2019.

Benjamin, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boi Tempo, 2013.

Derrida, J. Os espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

Ghiraldelli Jr., P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2017.

Han, B. C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2018.

Lipovetsky, G. Serroy, J. A cultura-mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

Marx, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2018. livro I.

Sloterdijk, P. Temperamentos filosóficos. Lisboa: Edições 70, 2012.