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A Tautologia de Karl Marx

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Conto de comédia sobre um grupo de jovens de Lisboa.

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Os grandes pensadores da história foram aqueles

que tiveram a capacidade de influenciar o meio à

sua volta. Karl Marx Formulou ideias

revolucionárias para a sua época, quando efectuou

uma análise política a partir da economia. Mais

importante que isso, conseguiu mobilizar milhões

de pessoas em volta de uma paixão que escreveu, o

comunismo. O seu grande feito realmente a

capacidade de romantizar magistralmente os

resultados dos seus estudos, numa narrativa social

que envolvia todos os seus elementos. No entanto

na sua construção existe uma vertente tautológica,

que não nos permite verificar a verdade do que

estamos a ler. Marx diz que o capitalismo é um

novo sistema social, com uma contradição

fundamental entre as duas classes em conflito, os

capitalistas e os proletários. Essa contradição tem

três aspectos, a necessidade de explorar os

proletários para obtenção de lucro e o aumento

permanente dessa exploração; A competição entre

os capitalistas, que leva à redução do lucro e

demanda a reduções de custos, ou seja, produzem

“economias de escala” construindo fabricas cada

vez maiores; a necessidade de utilização de novas

tecnologias aumenta o desemprego, os capitalistas

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A tautologia de Karl Marx

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ao copiarem as inovações uns dos outros, provocam

uma competição de preços, fazendo cair as taxas de

lucros e destruindo empresas. No final, o

capitalismo produzirá sempre excesso de

mercadorias em relação à procura, causando

recessões e depressões, que aumentarão nos

trabalhadores a consciência da miséria e de quem

se deve culpar por ela. O Comunismo aparece como

o fim da história humana, porque o seu advento,

caracterizado por ausência de propriedade privada,

faz a ruptura desta exploração histórica. Mas para

o capitalismo ser ultrapassado em resultado das

suas contradições, tem de tomar a sua forma mais

desenvolvida para se alterar. Com esta premissa

ele acabou por construir uma teoria tautológica,

porque em situação alguma podemos dizer que o

capitalismo é o último estádio societal. Pois, se

ainda não estamos no comunismo é por o

capitalismo ainda não se ter desenvolvido até ao

seu ponto mais maduro, logo não pode ser

contrariado por argumentos lógicos.

Foda-se!!! Como posso sequer ter o mínimo

de concentração, com esta cacofonia que vem de lá

de fora. Aqueles dois continuam com a mesma falta

de respeito de sempre, não sei como consigo viver

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com eles!... O meu pensamento filosófico requer um

ambiente tranquilo, para atingir a profundidade de

pensamentos articulados e consequentes, que só na

mestria do domínio da escrita é que se consegue

exprimir. E o que parece, é eu estar numa cabana

do Rio de Janeiro em pleno carnaval, a levar com o

samba por todos os lados, quando o que quero ouvir

é a bossanova de Tom Jóbim. Nem me vou dar ao

trabalho de abrir a porta do quarto para acabar

com esta situação, pois ainda corro o risco de ferir

mais os meus ouvidos. Vou ter de cair no ridículo

de lhes telefonar, estando eles cá em casa, correndo

o risco dos seus tímpanos já estarem tão

degradados que nem ouvem a merda do telemóvel.

- Samuel podes fazer o favor de baixar a tua

música para um nível em que eu me possa ouvir a

mim mesmo!

- Hugo, tás em casa!? Então porque não vieste até

ao meu quarto? Na verdade precisamos de falar

sobre o cliente que tens simplesmente ignorado as

chamadas. Se tu ainda tens um papel na

empresa, é de comunicares com os clientes não?

- Obrigado por baixares a música, só falta a besta

do Zé fazer o mesmo. Vocês devem estar a

competir para ver qual dos dois eu oiço melhor. E

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A tautologia de Karl Marx

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se na verdade os vizinhos não vos ligam, eu posso-

vos dizer que não gosto da música de nenhum.

- Não fujas ao assunto, porque o cliente vai estar cá

logo à noite na festa de natal. Espero que essa tua

atitude se modifique até lá.

Caro leitor, enquanto os dois irmãos

comunicam, terei o fardo de apresenta-los. Como

narrador impossibilitado de livre escolha, fui

colocado no papel ingrato de apresentar uma

história que considero um vulgo. Se fosse mais que

uma extensão abstrata do escritor, esforçar-me-ia

em promover um plano cómico baseado na ausência

de sentido, típica dos britânicos. E porquê extenuar

o leitor com uma interpretação de Marx?

Obviamente, só serve propósitos da construção de

um discurso de divulgação sociológica. Mas que

assim tivesse de ser, ao menos tinha a humildade

de não criticar a sua suposta tautologia, que revela

uma presunção de domínio teórico exacerbada.

Desculpe este desabafo, mas considero-me

democrata e o dogma comunista que o Hugo tem é

insuportável, até para a sua família, que não sabe o

que fazer com ele, como se irá aperceber com o

desenrolar da história. Como deve compreender,

sou apenas o narrador e não tenho acesso à

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realidade senão através do escritor e do leitor. Mas

negociei estas linhas de contra discurso, para

exprimir o que tinha de ser dito provavelmente

antes da primeira linha ser digitada.

O Hugo tem trinta e dois anos e vive

notoriamente inebriado pelos pensamentos

comunistas que tem. Sem se saber bem como nem

porquê, está a fazer uma tese de doutoramento

sobre a obra de Marx, que a mãe lhe paga com a

sua reforma. Tem como orientador de tese o

professor Engel, que considera viver num

anacronismo marxista insuportável. Pelas suas

palavras que proferiu num seminário esquecido no

tempo. - Acredito que o comunismo não se

estabeleceu, somente, porque as pessoas não

acreditaram nessa ideologia com práxis suficiente,

o que as impedia de se mobilizarem contra o

espírito capitalista instaurado nas nossas

sociedade, e como resultado disso formou-se uma

sociedade hedonista, materialista, amoral e que

rejeito com todas as minhas forças.

O facilitismo que foi a vida do Hugo até aos

vinte e e nove anos, acabou quando a mãe o

expulsou de casa. Para ter a privacidade que

perdeu quando tomou como objectivo de vida ter

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A tautologia de Karl Marx

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dois filhos. Samuel de vinte e quatro anos, o seu

filho mais novo, saiu por sua livre vontade de casa

para ter a sua independência. Ocupou a casa dos

avós falecidos, localizada no Bairro da Bica, onde

também mora sua mãe, Dona Constança, três

prédios abaixo. Tenho de admitir que se gosto de

alguém nesta história é do Samuel, e o pior é que a

minha afinidade tem mais a ver com pena, do que

com as qualidades reveladas por ele. Samuel

acabou o curso de design com mérito, e tenta

ocupar o seu devido lugar na sociedade pelos seus

próprios meios, tal como deve ser feito numa

meritocracia.

Hugo juntou-se a ele, aquando de tal

expulsão, sem no entanto deixar de levar a roupa à

mãe, para a lavar e passar. Além disso,

regularmente alimenta-se em casa dela, sem lhe

deixar oportunidade de ter a privacidade desejada

no seu acto anterior. E isso até se compreende,

porque o Zé deixa a cozinha num estado miserável

com os seus hábitos alimentares, que se

caracterizam por sujar a loiça e não a lavar até ao

ponto de a reutilizar sem ter a preocupação de a

passar por água. O Samuel utiliza outra estratégia

para ultrapassar este problema. Normalmente faz

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as refeições com a namorada, na casa da sua sogra.

A Joana e sua Mãe Dona Esmeralda, vivem na Rua

da Rosa, e por razões óbvias, acham que Dona

Constança teve um acto de egoísmo, quando

obrigou o Hugo a ir viver para a casa dos avós.

Irónico é as duas revelarem serem tão egoístas

como Dona Constança, ao considerarem-na como

tal.

O Zé é amigo de infância dos dois irmãos, e

contra o que todas as pessoas da comunidade da

Bica podiam esperar. Vai viver com eles, porque o

Hugo num acto de desespero económico, propõe ao

Samuel quando foi viver com ele. Que o seu amigo

ficasse com o quarto extra da casa, para dividir as

contas da casa com eles. Assim o Hugo esperava

conseguir, ter as contas todas pagas com a renda

que o Zé iria pagar. O Samuel prevendo o que ia

acontecer opôs-se desde logo a isso, mas Hugo

insistiu e foi firme na sua posição. Ele ainda tentou

impedir a sua entrada falando com a mãe, ao qual

Dona Constança respondeu, - Antes tu a levar com

o Hugo e o Zé, que eu a cuidar daquele

irresponsável bem falante uma vida inteira.

O plano de viver às custas da renda do amigo

que na infância o protegia dos mais velhos na

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escola, acabou por não resultar muito bem. As

rendas rapidamente entraram num atraso

sistemático e regular, quando Zé percebeu que

tinha uma casa onde viver e sentiu-se na

legitimidade de chamar idiota ao seu patrão, na

frente de um cliente da mercearia onde trabalhava.

Isto, por ele não aceitar fazer uma remodelação no

estabelecimento, para o tornar numa mercearia

Gourmet. Como seria de esperar, o Senhor

Sebastião de setenta e cinco anos, prezado por toda

comunidade e sem capital de investimento para tal

remodelação, dispensou os serviços do seu

empregado, e sobrinho, nesse preciso momento.

Chegado a casa, o comunismo do Hugo, tornou-se

numa repressão ideológica de tal acto por motivos

particularistas, que muito tem a ver com a sua

estratégia de sobreviver às custas de parte do

trabalho do seu inquilino. Actualmente o Zé apenas

recebe o fundo de desemprego que ainda tem

direito, e que investe esse dinheiro nas relações

amorosas que vai tendo regularmente, com

mulheres mais ou menos atraentes, que ele

consegue conquistar em estratégias de galanteio

exóticas desenvolvidas por si mesmo. E refiro-me a

investimento, porque ele considera-se um

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empresário informal do prazer, e as últimas rendas

que foram pagas, terão sido entregues num

envelope, por uma senhora na casa dos cinquenta

anos, directamente ao Samuel. Porque o Zé

recusou-se a ir à porta, o coitado do Samuel teve de

a ouvir pacientemente os lamentares amorosos da

senhora, por uns fastidiosos noventa minutos.

O Hugo estaria em situação ainda mais grave

se, a sua ardilosidade em viver às custas dos outros

tivesse acabado no Zé. O coitado do Samuel

também faz parte da sua rede de providência

financeira. Este esquema que nem posso

considerar com más intenções, porque lhe estaria a

dar demasiado crédito intelectual, começou quando

Hugo propõe abrir uma empresa de Design com o

seu irmão mais novo. Samuel executaria os

projectos e ele dedicar-se-ia à área de comunicação

e comercial. E aqui, não consigo perdoar o meu

protegido por ter considerado uma óptima ideia

esta parceria.

A empresa abriu com o capital de

investimento dos dois irmãos. Melhor dizendo, com

o dinheiro que Samuel tinha junto nos seus

trabalhos de freelancer e com o dinheiro que Hugo

pediu à mãe para abrir o negócio, ao qual juntou o

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dinheiro das primeiras rendas do Zé. A empresa

New Red Hammer entrou no mercado à cerca de

um ano, e tem tido um sucesso espectacular se

considerarmos que o Hugo rejeita qualquer cliente

que faça perguntas idiotas ou que se suponha

pertencer a um grupo económico dominante.

Segundo ele, a empresa tem de se diferenciar por

oferecer produtos de contra-cultura que

possibilitem as pessoas terem uma acção

interpretativa activa. O grande mérito de Samuel é

ser influenciado por correntes de design alternativo

como o movimento Dada. E isto, paradoxalmente,

permitiu o crescimento de uma empresa com uma

imagem alternativa, em que o Hugo nas suas

loucuras ideológicas, até ajudou a definir uma linha

interessante de trabalho. O problema é que a

empresa está a perder continuamente clientes que

pagam muito bem, em favor de clientes que pagam

miseravelmente, para a sensibilidade artística que

Samuel demonstra.

O resto do telefonema entre os dois irmãos,

deixo à sua imaginação pois ele já acabou, mas

achei necessária a minha intervenção. Agora está o

Hugo a telefonar ao Zé.

- Zé podes baixar a tua música se faz favor?

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- Desculpa Hugo não te estou a ouvir bem, podes

repetir?

- Onde é que estás? estou a ouvir vozes de pessoas

e carros!

- Tive de sair de casa para tratar de uns negócios.

- ESTÁS A BRINCAR COMIGO!? SAIS DE CASA

E DEIXAS A MERDA DA MÚSICA AOS ALTOS

BERROS!! E que negócios estás a falar? Até

agora pensava que estavas desempregado e nunca

foste empresário na tua vida...

- Tive de me encontrar com uma miúda à última da

hora. Não posso deixar de ir ter com ela, acho que

vai deixar de ser virgem aos trinta anos, daqui a

dez minutos.

- Espero que não volte a acontecer outra cena triste

à porta de casa como resultado disso. E nós temos

coisas combinadas, sabes que a Joana vem cá ter

a casa dentro de uma hora para irmos fazer as

compras de natal. Supostamente tu irias

connosco, não?

- Claro que vou, esperem por mim que eu vou

chegar a tempo.

- Tchau, e tem respeito com essa rapariga se faz

favor.

- Abraço.

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Estúpido de merda, deve pensar que eu sou

criado dele, para ainda ter de lhe desligar a

porcaria de propaganda da industria musical de

sétima categoria...

Já que vou sair do quarto vou ver se ao

menos ele arrumou a casa. A sala pelo menos está

arrumada...o quarto é sem dúvida para trancar na

festa...a cozinha vai ter de ser uma operação

conjunta...e o frigorífico deve estar com vergonha

de me dar água, já que a porta nem abre! O melhor

é beber algo fechado mesmo, não vá parar ao

hospital.

No contacto da ideologia comunista com a

realidade capitalista, emergiu o estado providência

e a consciência da exploração pelos proletários

levou a uma melhoria das suas condições materiais.

Coloca-se então a questão fundamental. Terá a

teoria marxista atingido os seus limites neste

primeiro contacto com a realidade social,

sobrevivendo apenas das suas premissas

tautológicas, que permitem reinterpretar o legado

de Karl Marx para a actualidade? Ou pode esta

análise ser um acaso histórico que apareceu de

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forma precoce e fez acelerar e desenvolvimento do

capitalismo, estando prestes a acontecer uma nova

revolução proletária, por as melhorias materiais

conquistadas até agora, não deixarem de esconder

a mesma contradição fundamental do capitalismo?

Deve ser a Joana a tocar à campainha.

- Olá Joana, o Samuel está no quarto dele a

finalizar o trabalho.

- Hugo, a minha mãe vai trazer uma amiga hoje à

noite, espero que não haja problema.

- Concerteza, assim o Engel terá mais pessoas da

sua idade para conversar.

- Nem sabia que ele vinha...espero que ele não faça

novamente da minha mãe, um exemplo da

sociedade de consumo...na verdade podes mesmo

avisá-lo para não se chegar perto dela.

- Vou para o meu quarto Joana...

- Samuel, não basta termos de aturar o Hugo logo à

noite, ainda vou ter de levar com a sua versão

terceira idade.

- Fofinha, a festa não é só minha e ele prometeu-

me falar com o Engels. Pode ser que ele se

entretenha a discutir comunismo com o Vader.

- Por favor Samuel, ninguém quer conversar com

um homem de trinta anos, que decidiu assumir-se

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A tautologia de Karl Marx

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diariamente como uma personagem do Star Wars!

- Eu até acho engraçado amor.

- Ao ele vestir-se daquela forma estranha, ou usar

aquela voz assustadora?

- Já pensaste que nós nunca o vimos a comer nem a

beber. Vai ser engraçado perceber como ele

resolve esse problema.

- Tens a lista de convidados para dar uma vista

d’olhos?

- Sim.

Festa de natal

Samuel

Hugo

Joana

Mãe

Dona Esmelralda

Engels

Vader

Sr. Vitor

Sr. Sebastião

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- Samuel, porque é que eu venho antes depois Zé? e

porque é que a minha mãe se tem de chamar

Esmelralda?

- Oh docinho, quando estávamos a fazer a lista o Zé

estava presente, e foi o Zé que escreveu, não

tenho de me responsabilizar por os erros que ele

dá.

- Não me toques, se faz favor. E porque é que o Sr.

Sebastião vem à nossa festa?

- É ideia do Hugo, ele vai tentar convence-lo a dar

trabalho ao Zé e o Sr. Vitor é o nosso cliente de

uma ilustração que estamos a fazer. Tive de o

convidar para mostrar boa fé. Acho que o Hugo

começou a embirrar com o homem, quando soube

que o filho dele estava a tirar uma licenciatura

em gestão.

- Que cromo, não sei como é que essa empresa não

vai à falência... Não vi o Zé quando cheguei, já

estou a ficar com fome, o melhor é ires chamar

chamá-lo senão ficamos sem tempo para fazermos

todas as compras.

- Coração ele não está no quarto...vou perguntar ao

Hugo.

- Típico.

- Onde está o Zé? temos de ir saindo.

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A tautologia de Karl Marx

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- Ele disse que estaria cá a horas, vou-lhe enviar

uma mensagem e podemos espera-lo ao pé do

elevador da bica. Enquanto tu vais buscar o carro

ele deve aparecer. Ao que parece, ele continua

convencido que é empresário do amor e disse que

tinha de ir fechar um negócio.

- Então Joana, já conseguiste encontrar emprego?

- Não, com esta crise está difícil arranjar na minha

área.

- Qual é a tua área mesmo?

- Banca Hugo Banca, já te disse isso várias vezes

desde que ando com o Samuel há um ano. Ando

deprimida por esta situação e até tenho ido ao

psicólogo regularmente, para ver se ganho ânimo.

Sempre pensei que a depressão dela fosse

genética...pelo menos tornaria a explicação mais

fácil.

- Pois, fazes bem.

- A sessão de hoje deixou-me mais calma. Tive a

contar-lhe os sonhos de ontem. No primeiro eu

acordava num local em que toda a gente me

conhecia, mas eu não conseguia reconhecer

ninguém, então fiquei em pânico por não me

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conseguir integrar, até que apareceu o Samuel,

mas ele não me conhecia

- Mas isso das interpretações dos sonhos não é na

psicanálise?

- Não sejas assim Hugo! E eu agarrei-me a ele com

muita força, mas fugiu de mim porque não

percebeu quem eu realmente era. O doutor disse

que tinha a ver com a desorientação pela qual eu

estava a passar, e que no fundo o que eu preciso

- Tenho quase a certeza daquilo que disse, um

psicólogo não tem competências para interpretar

sonhos Joana.

- Ele é Holista Hugo, Holista!

- E o que é isso de repetires a palavra, antes e

depois do meu nome, é alguma mensagem

subliminar?

- Bem, depois no meu segundo sonho, eu era uma

princesa dos mares em que os golfinhos ...

Já não a suporto ouvir, o Zé não chega e

estou a perceber que o Samuel quando chegar com

o carro, não vai querer esperar por ele. Será que ela

leva a mal eu telefonar ao Zé, enquanto ela

continua a dizer disparates?

- ... só que os polvos que me tentavam apanhar

tinham os obstáculos das ondas que o meu nadar

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A tautologia de Karl Marx

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fazia e por isso eu ainda consegui fugir por mais

algum tempo!!...

Este vizinho costumava cumprimentar-me!!

Não acredito que ele me fez o desvio de olhar, de

quem quer passar por nós como se não me tivesse

visto. Tenho a certeza!!! Que descaramento, eu é

que faço isso e não ele. A partir de agora vou fazer-

lhe o desviar de olhar, de quem quer passar por por

nós como se não nos tivessem visto, mas de tal

forma que ele saiba que eu o vi, mas sem conseguir

comprovar isso.

- Não achas Hugo?

- Sim Joana, só pode ser isso!

- Isso o quê?

- As ondas...

- Não me estavas a tomar atenção nenhuma, pois

não?

- Duas coisas Joana. Primeiro essa conversa de

tomar atenção, é coisa de namorados. Segundo,

que ideia é essa de estares hà dez minutos a

contar-me pormenorizadamente a tua consulta

com o teu psicólogo holista!? Isso não seria

supostamente confidencial, e tu só na sua

presença dele conseguirias ter confiança para

desabafar? Se a ideia é teres uma segunda

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opinião, tenho de te dizer que não sou profissional

da matéria!

- O Samuel chegou, nós vamos andando para o

Colombo!

- Mas eu só fui buscar o carro e vocês já estão a

discutir.

- O teu irmão é um palhaço, eu ainda tento dar-me

com ele, mas é impossível. Nós vamos indo e

encontramo-nos no Colombo.

- Samuel não queres esperar cinco minutos pelo Zé

e vamos todos?

- É melhor não Hugo, não sei o que fizeste à Joana,

mas para o bem de todos é melhor vocês irem de

taxi.

- Ok, eu vou telefonar ao Zé.

Este ainda por cima nem atende o telefone...

- Hugo dá-me dez minutos e já estou ai.

- Ok... não posso acreditar! Eu estou mesmo a ouvir

gemidos? Como podes atender o telefone nessa

situação?

- Dez minutos.

- Eu vou de taxi. Encontramo-nos no Colombo.

- Mas não íamos aos armazéns do chiado?

- Tchau!

Impressionante, a rapariga esperou trinta

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anos para fazer a escolha certa, e acabou com este

parvo. O melhor é apanhar o taxi no Largo do

Camões.

Aí vem a Sr. Esmeralda, o melhor é fingir

que nem a estou a ver, senão ainda me vai

perguntar mais uma vez qual é o presente que lhe

vou dar. Mesmo assim não me posso queixar de ter

ficado com a mãe da Joana na troca de presentes.

Se ficasse com o Vader não saberia mesmo o que

lhe comprar...

- Para o Colombo se faz favor.

Além de nem terem esperado por mim, ainda

decidiram ir fazer compras para o Colombo. Ir

para lá de taxi está fora de questão, de autocarro

nunca mais lá chego, se for metro é rápido, está já

aqui à frente e sempre poupo no bilhete.

- Desculpe lá, você não pode passar sem bilhete

atrás das pessoas.

- Que abuso é esse eu não lhe dei autorização para

passar comigo, vai ter de voltar para trás para

comprar o bilhete.

O melhor é correr...

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Perfeito! O metro está já na estação à minha

espera.

Onde é que me vou sentar?...a carruagem não

está cheia, posso escolher o lugar à vontade. Só

homens... o melhor é ficar em pé e esperar que algo

melhor aconteça.

Ok...já estou na praça de Espanha e não se

passa nada. Perfeito para uma viagem entediante.

Calma Zé, tinha de ser no Jardim Zoológico a

aparecer uma cota enxuta como eu gosto. E logo a

entrar com um andar descontraído e a olhar ao seu

redor, como se em busca de qualquer coisa para

animar a sua tarde.

Não posso deixar de olhar para ela...Já está,

olhou e não desviou o olhar, aguenta firme...Três

segundos, tenho a certeza que ficou a olhar para

mim três segundos. Isto só pode significar

interesse!

- Boa tarde minha senhora, não pude deixar de

reparar no seu ar jovial e simpático. E por isso

mesmo enchi-me de coragem e decidi perguntar-

lhe se eu poderia sair consigo.

- Desculpe, Eu nem o conheço e está-me a convidar

para sair?

- Oh, exprimi-me mal. Queria dizer se podia sair

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A tautologia de Karl Marx

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consigo pelas portas do metro. É que não tenho

bilhete e preciso de sair atrás de alguém nas

cancelas da saída.

- Ah. Sim concerteza, mas só irei sair na pontinha.

- Extactamente! Não pode ter sido coincidência

encontrar-me consigo. É que foi onde combinei

com os meus amigos para nos encontrarmos.

Está no papo! Agora é escolher bem a

conversa e galantear com a minha linguagem

corporal.

- E diga-me, você faz o quê?

- Sou empresário.

- E não tem dinheiro para comprar um bilhete?

- A empresa começou agora e investi o meu

dinheiro todo para a abrir.

- Claro, é sempre uma fase difícil. E a empresa é de

que área?

- Na área do prazer.

- Na área do prazer?

- Sim, importo preservativos.

- Mas já existe tanta oferta, não é difícil depois

vende-los.

- Não, porque estes são comestíveis.

- Isso não pode ser um bocado perigoso?

- Não falemos de negócios, uma senhora como você

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também deve ter tanta coisa para se conhecer.

- Passe então atrás de mim.

- Ai desculpe, tive de ficar tão perto que acho que

lhe toquei.

- Não importa.

- Estranho os meus amigos ainda não chegaram...

- Eu vou andando. Moro aqui perto, se os seus

amigos demorarem posso-lhe oferecer um café lá

em casa.

- Obviamente que aceito esse convite. Deixe-me só

telefonar ao meu sócio para ver se ele ainda

demora muito.

- Estou, Samuel estás a ouvir-me?

- Sim, já estás no Colombo?

- Tu ainda demoras muito a chegar à pontinha?

- O quê? Nós estamos no Colombo, o Hugo Não te

disse?

- Óptimo, eu também estou um pouco atrasado.

Devemos chegar ao mesmo tempo então.

- Estás estúpido ou quê?

- Até já então. Adeus.

- A sua casa é quase tão espectacular como você.

- Como se chama mesmo?

- Eduardo.

- Eduardo quer mesmo beber café ou vamos

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directamente para o quarto?

- O quarto é sem dúvida a melhor escolha.

- Vou-me por à vontade Eduardo.

- Eu mesmo lhe faço esse favor.

- Você é maravilhoso.

- Queres por trás minha linda?

- Por favor, mas sê gentil.

- Sempre.

- Estou?

- Zé, Nós vamos indo para casa, já fizemos as

compras todas.

- Ok, eu vou lá ter então.

- Não Acredito! atendes a merda do telefone outra

vez a foder? Tchau!

- Querido, não te vais vir?

- Não linda, podes-te vir à vontade, que eu já não

consigo. Tive com uma senhora há duas horas,

que me tirou as energias todas.

- Beija-me então.

- Foste Maravilhosa!

- Não, tu és maravilhoso...Obrigada!

- Adeus.

Tenho mesmo de me despachar, para

comprar o presente ao Samuel.

Que cachorro tão lindo! como puderam

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abandona-lo. É destino e irá chamar-se Jesus. O

Samuel não vai puder recusar este cão como

presente.

- Olhe você não pode passar atrás das pessoas. E o

que é isso que leva debaixo do casaco, é um cão?

O melhor é correr...

- Vocês estão onde?

- Estamos a almoçar no Siga La Vaca.

- Já pediram?

- Sim, mas os pratos ainda não chegaram.

- Está bem. Até Já.

- É um Bife Choriço e uma água se faz favor.

- Concerteza.

- Demoraste algum tempo. Ficaste à espera do Zé?

- Não, ele vinha cá ter por ele. O trânsito é que está

impossível. Acho que vai haver jogo.

- Sim o Benfica joga contra o Porto.

- Chegámos a pensar que tinhas discutido com o

taxista.

- Não, por acaso até lhe dei mais gorjeta por ele ter

vindo sempre calado.

- Sim, Isso realmente é de valorizar.

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A tautologia de Karl Marx

  27  

- Agora oiçam esta. Quando estava a sair do taxi

não resisti a perguntar-lhe se ele não tinha falado

comigo por causa do meu ar antipático.

Curiosamente ele respondeu-me que a maior

parte dos clientes só tem conversas

desinteressantes, então prefere estar calado e

esperar que eles não falem.

- E achas que ele recebe mais gorjetas?

- Não sei, provavelmente sim. Ah Joana, desculpa à

bocado. É que estava a passar um vizinho que

desviou o olhar para não me falar, e perdi a

concentração.

- Curioso.

- Porquê?

- A minha telefonou-me a dizer que teve a nítida

sensação de lhe fazeres o mesmo.

- Onde?

- Ahh, deixa lá isso. Então e já sabes o que lhe vais

oferecer?

- Não, vou procurar algo interessante por aqui.

- Ok.

- Hugo, o Senhor Vítor Já confirmou que vai estar

logo à noite na festa, e leva a sua esposa também.

- Perfeito então, assim ela pode trocar prendas com

a amiga da Dona Esmeralda.

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- Sim, pensámos no mesmo e ficou assim.

- E porque é que o filho também não vem?

- Nós tivemos de lhe dizer que não seria a melhor

ideia, por causa dos conflitos que isso pode

provocar contigo.

- Comigo?

- Sim, porque o filho dele está a tirar gestão.

- E qual é o problema?

- Pensei que era por isso que não lhe atendias o

telefone.

- Mas não.

- Então é porquê?

- Ele só diz disparates. Oiçam a última dele.

Telefonou-me preocupado. Ao qual eu perguntei

porquê. Então diz-me, o professor de ioga lhe

tinha aconselhado para o trabalho ficar mais

azul...

- Azul? E o que respondeste?

- Disse para ele não deixar de tomar os

comprimidos.

- Hugo, não podes falar assim com os nossos

clientes.

- Desculpa, mas o homem é mesmo um bocado

estranho. Tive de optar por não lhe dar mais

trela.

Page 29: A Tautologia de Karl Marx

A tautologia de Karl Marx

  29  

- Samuel, o Hugo vai acabar por destruir o teu

negócio.

- Chucha, por mais estranho que possa parecer. O

Homem disse que adorou o trabalho. E não me

chateou mais.

- Vês Joana...até o meu irmão me dá razão.

- Já lhe contaste Samuel?

- Doce, o melhor é não te pores nos nossos negócios.

- O que é que foi?

- A Vodafone quer que faça uma animação para

eles.

- Nem Pensar Samuel.

- Eles também são vermelhos como os comunistas

Hugo!

- Isso é para ter piada? Não posso acreditar que o

meu próprio irmão me está a trair.

- O que a nossa empresa precisa é de bons clientes.

- Posso falar em privado contigo?

- Sim.

- Samuel, se tu aceitares esse negócio eu vou sair

da empresa.

- Faz como quiseres. Eu não vou recusar sete mil

Euros.

- Hummm. Eles dão-nos liberdade criativa total?

- Não sei.

Page 30: A Tautologia de Karl Marx

 30

- Têm de nos dar essa liberdade, e faremos um

manifesto gráfico contra as multinacionais

exploradoras.

- Estás parvo ou quê?

- Não, diz para eles telefonarem para mim, que eu

falo com eles.

- Hugo. Eu vou aceitar isso, mas se perdermos o

negócio. Tu vais sair da empresa.

- Ok.

- De volta, rebuçado.

- É a conta se faz favor.

- Paga a minha parte com o cartão da empresa.

- Só podes estar a gozar...

- Então eu faço parte.

- Mas acho que não por muito tempo.

- E paga também o almoço da Joana.

- Ia pagar com o meu dinheiro...

- Paga tudo junto com a empresa.

- Que comunista saíste.

- Encontramo-nos no continente quando tivermos

as prendas, para comprarmos as comidas e

bebidas, ok?

- Até Já.

- Amorzinho, ajudas-me a escolher a prenda do

Vader?

Page 31: A Tautologia de Karl Marx

A tautologia de Karl Marx

  31  

- O melhor é cada um ir por si Samuel.

- Porquê? já não tens a minha prenda que

mandaste vir pela internet?

- Não, ela não chegou a tempo.

- Então e agora?

- Tenho de a comprar aqui. E vou dar essa ao Zé.

- Ok. Amo-te coeur. Até já.

Vejamos então uma prenda para a Dona

esmeralda...Ela deve gostar de perfumes..., mas

isso é tão fútil. Mas enquadra-se, porque ela é

mesmo fútil. Mas também não quero que ela me

provoque uma conduta fútil a comprar-lhe a

prenda. Não posso ceder a isso. Se fosse por mim

oferecia-lhe um livro. E aproveitava para ir à Fnac.

E ao invés de cheirar perfumes, cheiro os livros. É

curioso, mas realmente gosto de cheirar os livros. O

óptimo era haver um perfume com cheiro de livro.

Eureka! isto é uma óptima ideia. Mas não sei se

esse cheiro dava um bom perfume. Se calhar não...

Bem, mas o presente é para a Dona esmeralda e

não para mim, e acho que ela nem gosta de ler.

Deixa lá pensar noutras coisas. O melhor é

Page 32: A Tautologia de Karl Marx

 32

perceber primeiro quem ela é. A Dona Esmeralda é

mulher obviamente, na casa dos cinquenta, talvez

sessenta... nem sei. É divorciada...,

reformada...mais..., sempre que a ouvi falar foi de

outras pessoas, de comida que não pode comer, e

operações estéticas que gostaria de fazer...desculpe

Dona Esmeralda mas está difícil de sair da

categoria de fútil. O melhor mesmo é comprar um

livro fútil na Fnac. Por ironia o livro até pode

trazer um perfume...Acorda Hugo! já só estás a

dizer merda. Bem, então é ir para a Fnac, e com

sorte ainda compro alguma coisa para mim.

Compreende-se notoriamente a exclusão dos

gostos do narrador e do Samuel que prezarei em

defender. Até agora a personagem foi-se

caracterizando por ser plana, com uma mania de

chamar a namorada por nomes carinhosos. Não

poderei ser o único a considerar que isso se torna

irritante com o passar das linhas. Tenho de dizer

que isto é um ultraje tanto para ele como para

quem lê. A Joana também só tem sido chacota do

autor. Apesar das dificuldades que ela enfrenta

actualmente na procura de trabalho, tem um

sentido de companheirismo e amor pelo Samuel,

que nem o Hugo nem o Zé alguma vez terão por

Page 33: A Tautologia de Karl Marx

A tautologia de Karl Marx

  33  

alguém. Os dois estão a pensar juntar-se, quando a

Joana finalmente encontrar emprego, e planear a

construção de uma família. A Dona esmeralda, que

nem é reformada como o Hugo imagina, tem uma

loja de roupa intima feminina e divide o seu tempo

entre a loja e a sua filha que educou sem a

presença do pai. É espezinhada por quem escreve,

porque teve o azar de calhar com o Hugo na troca

de prendas na festa de natal. A senhora embora

tenha uma vida de pensamentos mais ligados ao

mundo comum, quer ajudar os dois a construírem

uma relação sem a presença daqueles dois ignóbeis.

Só isso deveria ser suficiente para qualquer um ter

respeito por estes personagens.

Se não fosse eu, poderia-se pensar que

apenas o Hugo tem tendência para se cultivar. Mas

o Samuel Também é educado e provavelmente com

mais conhecimento que aquele comunista, do qual

nem percebemos bem as suas reais idiossincrasias.

O Samuel além de uma licenciatura em design, é

mestre em história da arte, com uma tese sobre o

movimento Dada. No prefácio do trabalho, ele

esboçou as ideias centrais, que eu passo citar.

“Se analisei os manifestos de Tristan Tzara,

foi para os articular com as expressões visuais que

Page 34: A Tautologia de Karl Marx

 34

seguiram a oposição ao racional, na qual reforço a

tese de que a arte não pode atingir a pura

irreflexiblidade. Mas na tentativa de exprimir o

irracional, emerge uma novidade gráfica

extremamente subjectiva. Se havia uma luta

artística contra os símbolos vazios da sociedade do

princípio do Sec. XX, foram esses instrumentos que

se usaram para ultrapassar o totalitarismo

ideológico das grandes nações Europeias, em

especial da Alemã. A análise comparativa das

ilustrações das revistas Der Dada, Der Blutige

Ernst e Die Pleite, permitem-me compreender como

estes intelectuais através de um conjunto de

escritos, que definiram a regra de tentar chegar à

ausência delas, constroem um grafismo libertador

sem negligenciar uma agenda anti-guerra e anti-

escolástica.”

Os dois irmão estão ligados nesta resistência

letrada ao instituído que revelei. A Dona Constança

educou-os de forma liberal, e transmitiu-lhes a

importância de negociarmos as regras quando elas

nos são apresentadas. A qualidade narrativa seria

mais elevada se o enredo circunscrevesse a sua

educação e a resistência cultural de dois irmãos.

Mas a teimosia do discurso cómico foi superior à

Page 35: A Tautologia de Karl Marx

A tautologia de Karl Marx

  35  

sobriedade da discussão de conduta e de ideias.

Se pudesse continuaria eu a história, mas o

espaço é limitado para todos, seja ele narrador ou

autor. O importante é expedir que qualquer

história, é sempre incompleta. Porque ela se faz de

escolhas, na qual a minha inclusão, se ao princípio

era paródia do necessário. Agora começa a tornar-

se substância de reinterpretação de algumas

personagens. Só tu como leitor objectivas

subjectivamente esta realidade e o conflito entre

autor e narrador não pretende confundir. Quer

estimular o racional com a construção flutuante da

narrativa, que não é linear nem únivoca, e jamais

poderia sê-lo. O racional aqui é dado como a

libertação da direcção interpretativa do subjectivo

dos personagens. Quando o leitor levanta uma

pergunta sobre algo da narrativa, é no percurso das

respostas dessas perguntas que está o racional. Se

esse percurso fosse direito, teria falhado o meu

objectivo de primar a racionalidade. Mas se ele for

conturbado, motive a seguir em frente e no final se

consiga olhar para trás e ver como se chegou à

resposta. Terei conseguido algo mais que contar

uma história, e consegui desenvolver a capacidade

racional do leitor.

Page 36: A Tautologia de Karl Marx

 36

A este ponto já não saberei dizer quem narra,

se eu se o narrador. Deixamos-te uma página em

branco para escreveres. Não com tinta mas com

tempo, a última secção antes dos três regressarem

a casa para preparar a festa. Até porque estamos

cada vez com menos tempo para acabar a história...

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A tautologia de Karl Marx

  37  

- Olá Mãe. Podes-me dar a tua prenda para juntar

às outras.

- E o Hugo onde anda?

- Está no quarto dele a fazer qualquer coisa, acho

que a embrulhar a prenda.

- Vou lá ter com ele para lhe dar um beijo.

Page 38: A Tautologia de Karl Marx

 38

- Posso entrar?

- Quem é ?

- É a mãe.

- Sim, entra.

- Porque estás com tantos livros na mão?

- Acho que fiz porcaria.

- Posso-te ajudar?

- Sim, a questão é que fui à Fnac para comprar um

livro à Dona Esmeralda, e acabei por comprar

quatro para mim e esquecer-me dela.

- E estás a pensar oferecer-lhe o quê?

- Um dos que comprei para mim, ao menos são

novos...

- Não quero estar envolvida nisto, vou ter com o

resto das pessoas à sala.

- Olá Zé.

- Olá Dona Constança.

- Quem é aquele rapaz que está a falar com o

Engels?

- É o Joaquim.

- O Vader?

- Deixou de ser Vader.

- Então porquê?

- O médico aconselhou-o a deixar a personagem,

porque estava a provocar-lhe anemia.

Page 39: A Tautologia de Karl Marx

A tautologia de Karl Marx

  39  

- Realmente ele está pálido.

- Isso é por não apanhar sol à meses. Mas ao que

parece, está relacionado com ele não conseguir

comer nem beber com o capacete.

- A campainha está a tocar, é melhor ires atender.

- O Samuel e a Joana já estão a ir lá.

- Boa noite, Dona Esmeralda.

- Olá Samuel, esta é a Dona Maria.

- Olá Dona Maria, podem ir entrando e

apresentando-se.

- Amor, posso falar contigo.

- O que foi?

- É a Dona Maria, lembras-te da mulher que veio

cá trazer o cheque? É ela.

- Não acredito!!

- E agora?

- Que vergonha. Isto não vai dar bom resultado.

- Bebé, será que ela planeou isto tudo e envolveu a

tua mãe?

- Estou perdida Samuel. Vamos buscar as bebidas

e rezar.

- Ainda ninguém levantou a voz, com sorte estavas

a fazer confusão.

- Onde estão as bebidas?

- Não sei.

Page 40: A Tautologia de Karl Marx

 40

- Estranho também não sei, curiosamente não me

lembro sequer de ter ido às compras.

- Samuel, cá está a minha prenda, podes juntar às

outras.

- Hugo, lembraste da senhora do cheque.

- Não, tu é que atendeste a porta.

- Ela é a amiga da Dona Esmeralda.

- E agora, que queres que faça? Parece que não

conheces o Zé.

- Hugo, a mulher é amiga da mãe da minha futura

esposa.

- Queres mesmo falar disso?

- Esquece.

- Já esqueci.

- Falando em esquecimento. Onde é que pusemos

as bebidas?

- Estão na despensa.

- Quem é que as pôs lá?

- Fomos nós.

- Não me lembro e a Joana também não.

- Isso é porque deveria ser o leitor a escolher essas

coisas.

- Que leitor?

- Queres ir lá por o presente ou não?

- Isto nem tem embrulho... Não acredito! A

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A tautologia de Karl Marx

  41  

mulher está a tentar seduzir o Zé à frente de toda

a gente...

- Será que a Dona Esmeralda está a par disto? Vou

lá tentar saber.

- Olá Dona Esmeralda, o seu presente já está ali.

- Olá Hugo.

- Dona Esmeralda, a senhora já conhece a Dona

Maria há muito tempo?

- Por acaso não, ela é cliente da minha loja, e

insistiu para vir comigo.

- Você tem uma loja?

- Hugo, é uma falta de respeito nem saberes isso.

Eu sempre fui educada para ti, és visita da minha

casa. Quando a Joana chega a casa e desabafar as

coisas que lhe fazes, eu até lhe digo que tu deves

andar stressado por causa do doutoramento e

para ela ter calma contigo. É o mínimo saberes o

que faço. Sinceramente acho que estás a gozar

comigo.

- Por acaso não. Como está sempre em casa

pensava que era reformada.

- Estás a chamar-me de velha?

- Claro que não.

- Tu estás a bocejar à minha frente! A conversa não

te agrada é? Constança, tens resposta para isto?

Page 42: A Tautologia de Karl Marx

 42

- O Hugo sempre foi especial... Desculpa

Esmeralda, ele até é bom rapaz. Mas tem esta

forma parva de ser.

- Ok. nem a minha mãe me defende. Mãe já falaste

com o Senhor Sebastião?

- Sim, ele vai aceitar o Zé outra vez. Mas com a

condição de se ele voltar a fazer das dele, eu tenho

de tirá-lo cá de casa.

- Arghhhhh. Vítor, vamos embora.

- Que foi querida?

- Enquanto fui à cada de banho, ouvi um cão a

ganir. Fui ver de onde vinha.

- Mas nós não temos nenhum cão...

- Mas têm. Fui ver onde estava o cão e quando abri

a porta, e eles estavam...e o cão atacou-me.

Desculpem-me todos, mas nós vamos indo.

- Eu acompanho-os à porta, e peço imensa

desculpa.

- Não faz mal Samuel, a culpa não é tua.

- Agora foram todos ver o cão...Sr. Vítor, não se

esqueça do seu presente.

- Deixe estar Hugo, depois logo me dá.

- Arghhhh.

- O melhor é irmos ver o que se passa Samuel.

- Joana que aconteceu à tua mãe?

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A tautologia de Karl Marx

  43  

- Samuel, o Zé estava com a Dona Maria... e a

minha mãe desmaiou e bateu com a cabeça. O

melhor é chamar a ambulância.

- Hugo acho que é melhor ir andando.

- Também acho Engels, a partir de agora vai ser só

tristeza.

- O Joaquim vai comigo.

- Ok, adeus Joaquim, a espada que o Samuel te

comprou, está à saída ao pé das outras prendas.

- A ambulância chegou. Quem vai com a Dona

Esmeralda?

- O Samuel vai comigo na ambulância a

acompanhar a minha mãe.

- Ok, eu fico cá com o Zé.

- Dona Maria, acho que dá para compreender que o

Zé não é um bom partido. Ah e já agora, vou ter

de lhe dizer que não poderá vir cá mais a casa. No

entanto o Zé está com três meses de renda em

atraso, se quiser pode transferir para esta conta.

- Desculpe Senhor Hugo, mas eu não consigo

resistir. Ele é tão bom amante...

- Adeus Dona Maria.

- Afinal o cão era seu, senhor Sebastião.

- Não, eu apenas o estou a segurar para ele não

morder mais ninguém. Mas vai ter de ficar com

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 44

ele, eu vou-me embora.

- Mas o cão nem é meu.

- Ah, e diz ao Zé que ele pode esquecer o emprego.

- Calma senhor Sebastião, eu terei uma conversa

séria com ele.

- Adeus Hugo, bom natal.

- Onde estás Zé?

- Estou no teu quarto, achei que era o melhor sítio

para ficar.

- Ok, já vou aí ter contigo.

- Hugo desculpa, as minhas intenções eram as

melhores. Eu tive de dar-lhe uma foda, porque

ameaçou fazer um escândalo cá em casa.

- Pelo menos tentaste. O cão é que ainda não

percebi.

- Então, o cão é a minha prenda para o Samuel.

Encontrei-o abandonado hoje, e fui incapaz de o

deixar na rua. Até lhe pus o nome de Jesus,

percebes? Por causa da época.

- Zé, ele tem coleira e chama-se Nina. Tu não

encontraste um cão. Tu Raptaste uma cadela.

- Só faço porcaria...

- Ah e acho que a minha mãe te vai querer

expulsar cá de casa.

- Mais essa?

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A tautologia de Karl Marx

  45  

- Ao que parece ela esteve a falar com o Senhor

Sebastião, para te voltar a readmitir. E fez um

acordo com ele, que se fizesses mais alguma

asneira, ela não te deixaria morar aqui, para te

portares melhor na mercearia.

- Mas eu nem voltei a trabalhar lá! Esta vez não

conta.

- Realmente faz algum sentido, podemos usar esse

argumento. Deixa lá, tudo se irá resolver. Queres

ir abrir as nossas prendas?

- Achas que eles levam a mal ?

- Porque é que haveriam de levar? A festa acabou,

faz todo o sentido abrirmos as nossas prendas.

- Que recebeste Hugo?

- Um perfume, e tu?

- Não sei, não encontro a minha.

- A Joana é que te devia oferecer. Vou-lhe

telefonar.

- Estou.

- Sim Joana, a tua mãe está melhor?

- Sim.

- Olha, estamos aqui a abrir os nossos presentes e

não encontramos o teu para o Zé.

- Como é que vocês são capazes de abrir

presentes...Diz ao Zé que o presente dele há-de vir

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 46

pelo correio, encomendei pela internet, mas pelos

vistos está atrasado. Ele não se deve preocupar

muito com isso, já que está sempre com as rendas

atraso também.

- Ok. Depois digam como está a tua mãe.

- ...

- Zé acho que o teu presente foi encomendado pela

internet e está atrasado.

- Típico.

- Deixa lá, podes ficar com o meu se quiseres.

- Claro que quero!

- Ainda vamos a tempo de ver o jogo?

- Acho que sim, liga a televisão.

- O Benfica já está a ganhar.

- Olha a cadela a ladrar para os jogadores do

Benfica. Lindo, já vem benfiquista e tudo.

- Vamos ficar com ela Hugo?

- Vamos ver o que o Samuel diz. Afinal terá de ser

ele a ir passear a cadela.

- Eu posso passeá-la, também.

- Claro...Zé fiquei a pensar numa coisa durante o

dia.

- No quê?

Como consegues atender o telefone tão rapidamente durante a foda. Não chegas a tirar as calças?