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A tecelã de mitos: poesia e imaginário em Hídrias, de Dora Ferreira da Silva Nathália Prestes da Silva (Universidade Estadual do Paraná UNESPAR/Campo Mourão) Sandro Adriano da Silva (Orientador) Resumo: Este artigo visa fazer um estudo da obra poética da escritora Dora Ferreira da Silva (1918-2006), considerando os expedientes poéticos na feitura dos poemas e a relação mito/poesia na obra Hídrias (2004). Para tanto, o artigo se fundamentou em teorias do texto poético, em teorias sobre o mito e suas reverberações na poesia. A partir da análise dos poemas “Órfica”, “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ”, contidos na obra em foco, busca-se confirmar uma característica singular da autora, que, como uma tecelã, consegue retratar em seus poemas a contemporaneidade, a partir de elementos de tempos primordiais, como a mitologia e seus símbolos. Palavras-chave: Poesia brasileira contemporânea; Dora Ferreira da Silva; Mito. Abstract: This article aims to make a poetic work study of the writer Dora Ferreira da Silva (1918-2006), considering the poetic expedients in the poems’ making and the relation myth/poetry in the work Hídrias (2004). For this, the article was based in poetic texts theories, in theories about the myth and its reverberations in poetry. From the analysis of the poems “Órfica”, “Narciso (I)” and “Narciso (II)”, contained in the work that we focused, we try to confirm a singular characteristic of the author, who, like a weaver, can retray the contemporaneity in her poems, with elements of primordial times, like the mythology and its symbols. Keywords: Contemporary Brazilian poetry; Dora Ferreira da Silva; Myth. Introdução Conhecida pela tradução de autores como Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot e Carl Gustave Jung, a paulista Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva (1918-2006) também foi poetisa. Começou a escrever seus versos nos anos 40, mas foi em 1970 com o livro Andanças que seus poemas começaram a ser publicados. Apesar de ter sido conhecida por autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, por ter sido casada com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, por ter promovido encontros culturais - chegando a lançar uma revista com os focos abordados 1 - e de ter ganhado três prêmios Jabuti por suas obras em verso, os estudos acerca dos poemas de Dora ainda são poucos e recentes. Até onde se sabe, sem contar suas traduções, Dora Ferreira da Silva produziu apenas obras poéticas, as quais, além de Andanças (1970), são: Uma via de ver as coisas (1973), 1 Segundo Rocha (2009, p. 20), a partir dos encontros culturais que ocorriam na casa de Dora e Vicente, surgiu a revista Cavalo Azul, que foi idealizada pela autora após a morte do marido, ocorrida em 1963.

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A tecelã de mitos: poesia e imaginário em Hídrias, de Dora Ferreira da Silva

Nathália Prestes da Silva

(Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR/Campo Mourão)

Sandro Adriano da Silva (Orientador)

Resumo: Este artigo visa fazer um estudo da obra poética da escritora Dora Ferreira da Silva

(1918-2006), considerando os expedientes poéticos na feitura dos poemas e a relação

mito/poesia na obra Hídrias (2004). Para tanto, o artigo se fundamentou em teorias do texto

poético, em teorias sobre o mito e suas reverberações na poesia. A partir da análise dos poemas

“Órfica”, “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ”, contidos na obra em foco, busca-se confirmar uma

característica singular da autora, que, como uma tecelã, consegue retratar em seus poemas a

contemporaneidade, a partir de elementos de tempos primordiais, como a mitologia e seus

símbolos.

Palavras-chave: Poesia brasileira contemporânea; Dora Ferreira da Silva; Mito.

Abstract: This article aims to make a poetic work study of the writer Dora Ferreira da Silva

(1918-2006), considering the poetic expedients in the poems’ making and the relation

myth/poetry in the work Hídrias (2004). For this, the article was based in poetic texts theories,

in theories about the myth and its reverberations in poetry. From the analysis of the poems

“Órfica”, “Narciso (I)” and “Narciso (II)”, contained in the work that we focused, we try to

confirm a singular characteristic of the author, who, like a weaver, can retray the

contemporaneity in her poems, with elements of primordial times, like the mythology and its

symbols.

Keywords: Contemporary Brazilian poetry; Dora Ferreira da Silva; Myth.

Introdução

Conhecida pela tradução de autores como Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot e Carl Gustave

Jung, a paulista Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva (1918-2006) também foi poetisa.

Começou a escrever seus versos nos anos 40, mas foi em 1970 – com o livro Andanças – que

seus poemas começaram a ser publicados. Apesar de ter sido conhecida por autores

consagrados como Carlos Drummond de Andrade, por ter sido casada com o filósofo Vicente

Ferreira da Silva, por ter promovido encontros culturais - chegando a lançar uma revista com

os focos abordados1 - e de ter ganhado três prêmios Jabuti por suas obras em verso, os estudos

acerca dos poemas de Dora ainda são poucos e recentes.

Até onde se sabe, sem contar suas traduções, Dora Ferreira da Silva produziu apenas

obras poéticas, as quais, além de Andanças (1970), são: Uma via de ver as coisas (1973),

1 Segundo Rocha (2009, p. 20), a partir dos encontros culturais que ocorriam na casa de Dora e Vicente, surgiu a revista Cavalo Azul, que foi idealizada pela autora após a morte do marido, ocorrida em 1963.

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Menina seu mundo (1976), Jardins/Esconderijos (1979), Talhamar (1982), Retratos da origem

(1988), Poemas da estrangeira (1995), Cartografia do Imaginário (2003), Hídrias (2004) e as

obras póstumas O leque (2007), Appassionata (2008) e Transpoemas (2009). Em todas elas há

a presença, segundo Cabral (2004), de uma temática em comum: a mitologia, especificamente

a grega, expressada em seus poemas por meio da

[...] própria natureza do seu estro poético, que nasce da visão sacramental da

realidade, da profunda vivência espiritual do mito enquanto fato ontológico,

não ditado pelos padrões lógicos da intelecção e do bom gosto literário, porém

de sua transubstanciação em fruição poética pura. (CABRAL 2004, p. 11).

Com isso, Hídrias (2004) foi o primeiro a possuir, segundo Rocha (2009), a temática

totalmente voltada ao mito, falando, por meio deles, de “questões transcendentes, metafísicas

e, especialmente, sagradas. ” (p. 31). A obra, cujo título remete aos vasos de cerâmica usados

para colocar água, é composta por 25 poemas, nos quais a mitologia é abordada de diversas

maneiras. Deuses, semideuses, mortais e/ou elementos presentes na mitologia grega são

poetados por Dora em Hídrias ̧ com o intuito de “remitologizar” (MIELIETINSKI, 1987) a

poesia na contemporaneidade. Considerando que o tempo mítico é cíclico, pode-se dizer que

os poemas da autora, assim como os mitos, são atemporais e, dessa maneira, sempre estarão

traduzindo a nossa condição humana.

Embasamento teórico

Para fins de análise de parte das produções poéticas de Dora Ferreira da Silva em seu

livro Hídrias (2004), algumas perspectivas da mitocrítica, da crítica do imaginário e da teoria

crítica da poesia serão abordadas adiante.

O mito não é tomado, neste trabalho, como sendo apenas “histórias sobre deuses”.

Segundo Joseph Campbell, em O poder do mito (1990), pode-se considerá-los como sendo

“metáforas da potencialidade espiritual do ser humano”, e os poderes que animam a vida das

pessoas, animam também a todos (p. 37). Com certeza, cada sociedade, desde o seu surgimento

até os dias atuais, lida recorrentemente com o mito devido a eles remeterem, de alguma

maneira, à nossa condição humana, por serem atemporais. Podemos chamar essa volta aos

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tempos primordiais, como o da mitologia, de sagrado, ou “numinoso”, utilizando termos de

Otto (2005), da obra O sagrado.

Apesar de achar que, atualmente, vivemos em um mundo “desmitologizado”, Campbell

reconhece que há muitas pesquisas voltadas para a mitologia por ter voltado às buscas de se

encontrar uma espécie de explicação para algo, como ele aponta nesta passagem:

[...] Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos,

de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham

ressonância no interior do nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de

modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata,

afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos.

(CAMPBELL, 1990, p. 17)

Dessa maneira, a literatura, a qual também pode ser interpretada como aquela que

contribui para a compreensão de nosso ser, possui um papel importante na propagação dos

mitos. Segundo Jean Pierre Martion (1977), a relação mito/literatura não se dá com o mito em

si, mas sim com a reinterpretação deles, em que, ao incrementar a polissemia nos mitos

recontados, apenas “uma sociedade que tem uma relação sociologicamente determinável com

a história e o arquivamento de certas mensagens sociais sacralizadas” possui a capacidade de

compreender esses mitos. (MARTION, 1977, p. 123).

Em se tratando de poesia, Octavio Paz (1956/2012) define poesia como um “exercício

espiritual, um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. ” (p. 21).

Já enquanto a relação linguagem/mito, Paz afirma que elas são

[...] vastas metáforas da realidade. A essência da linguagem é simbólica

porque consiste em representar um elemento da realidade por outro, como

ocorre com as metáforas. [...] A palavra é um símbolo que emite símbolos.

(PAZ, 1956/2012, p. 42)

Pode-se atribuir também essa característica, atribuída por Paz, aos mitos, visto que os

personagens retratados podem ser interpretados como sendo um pretexto para tratar de algo

mais amplo, como a questão da condição humana.

Além das metáforas, pode-se considerar os arquétipos que existem ao redor da

mitologia. Carl Gustave Jung (2000) define arquétipo como a “presença, em cada psique, de

disposições vivas inconscientes [...], de formas ou idéias de sentido platônico que

instintivamente pré-formam e influenciam seu pensar, sentir e agir. ” (p. 91). Com isso, os

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arquétipos estão localizados em nosso Inconsciente Coletivo, que, por sua vez, é o

conhecimento armazenado em todos os indivíduos em comum.

Dessa forma, acerca das afirmações teóricas anteriores, pode-se concluir que mito e

literatura procuram expressar o que está – em termos jungianos - no nosso Inconsciente

Coletivo, que, por sua vez, é composto por formas primordiais, os arquétipos, que influenciam

na natureza do ser humano e se presentificam na literatura como “esquemas primordiais”,

chamados de “arquétipos literários” (MIELIETINSKI, 2002, p. 34).

Resultados

A obra Hídrias (2004) como um todo

Dora Ferreira da Silva elencou 25 poemas para compor Hídrias, os quais são: “A

Sibila”, “Órfica”, “Leto”, “Ártemis”, “Ártemis de Éfeso”, “Ártemis Nua”, “Apolo” “Apolo

Hiperbóreo”, “Narciso (I) ”, “Narciso (II), “Hyacinthos” (I) “Hyacinthos (II), “Dionisos

Dendrites”, “Delfos”, “Estrela Funerária”, “À Tálida”, “A Possêidon”, “À Grande Mãe”, “Koré

(I), “Koré (II), “Perséfone”, “Hades”, “Hécate”, “A Deusa” e “Cinco Hídrias”. Nesses poemas,

a autora “reativa” os mitos, por meio do verso livre, utilizando sinestesias, assonâncias e

metáforas que implicam em uma espécie de organicidade rítmica às suas produções poéticas,

característica apontada por Cabral2, em uma apresentação contida na obra em análise:

[...] Seu verso não deriva de estruturas métricas fixas ou regulares, mas de

uma ‘absoluta organicidade rítmica’, na qual ‘imagem, metáfora e símile

convivem numa harmonia ... a um tempo cósmica e celebratória; como se a

autora se valesse de uma linguagem sem voz para expressar o indizível,

estabelecendo assim aquele difícil e secreto matrimônio entre o que e o como

da expressão verbal, entre um pensamento que se emociona e uma emoção

que pensa’ (CABRAL, 2004, p. 20).

Na visão de César (1999), as produções poéticas da poetisa se dão pela seguinte

maneira:

Descrevendo, como nos hinos órficos, os deuses e sua proximidade, narrando

a trama de sua história essencial, abordando sob um ângulo privilegiado o

núcleo do mitologema ou um momento de vida do Deus, o poema coloca-se

2 A citação a qual ele usa está inserida no texto Ritmo semântico, de Ivan Junqueira, inserida na obra Poesia Reunida (1999), que reúne 7 das 9 obras publicadas em vida por Dora Ferreira da Silva.

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sob a égide do que é invocado; torna-se receptáculo da vida mais plena,

tematização de sua presença. (CESAR, 1999, apud SILVA, 1999, p. 469).

Portanto, a partir das características citadas acima e dos conceitos elencados como

fundamentação teórica, serão apresentadas a análise de três poemas, os quais são: “Órfica”,

relacionado ao mito de Orfeu, e os poemas intitulados “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ”3. Os

resultados estão organizados da seguinte forma: (1) com uma introdução ao mito o qual o

poema se centra; (2) a apresentação do corpus e (3) a análise, considerando, além do

embasamento teórico e o mito central, os arquétipos e os símbolos que aparecem por entre os

versos feitos pela autora, bem como a recepção crítica da poetisa.

Os poemas

A metalinguagem em “Órfica”

Dentre os 25 poemas que compõem a obra, o poema “Órfica” é o segundo da obra de

Dora Ferreira da Silva. Além de Hídrias, ele aparece também nas obras Uma via de ver as

coisas (1973) e Poemas da estrangeira (1995). É interessante citar que o poema que abre

Hídrias se chama “A Sibila”, remetendo, segundo Brandão, em seu Dicionário mítico-

etimológico da mitologia grega (2014), às profetisas de Apolo. O eu-lírico, como pode-se

perceber no fragmento abaixo, dá voz à musa inspiradora que foi chamada:

Vim sem o esplendor da aurora, mendiga,

não como as Musas de outrora, dadivosas Diotimas,

vim mendigar o que há muito vos ofertei, Poetas:

sopro-vos à garganta dilatada, vossos olhos ceguei

para que o fundo olhar se liberte. Sibila em agonia,

há tanto silenciada, falarei por vossas bocas,

em vossos versos arquejará minha voz embriagada, rouca –

sustos e soluços, gritos, silvos, neblinas de esgares,

Mares de canto e pranto. No tempo além do tempo,

meus lábios murmuram por ti e perto dos templos derruídos,

a respiração do velho Mar , seus haustos e gemidos.

(SILVA, 2004, p. 27)

3 Como os poemas “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ” são sobre o mesmo momento do mito de Narciso, eles não serão analisados separadamente neste artigo.

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Dessa forma, o que é apresentado na sequência (ou seja, no poema seguinte), é a voz

do poeta, mostrando o processo de produção de um poema e seus embates. O título “Órfica”

remete ao mito de Orfeu, que, de acordo com uma das interpretações do mito, foi um poeta e

herói, apaixonado por sua mulher, a ninfa Eurídice, que foi morta por uma serpente quando

estava sendo perseguida. Devido a essa tragédia, o poeta decide ir até às trevas de Hades para

conseguir sua amada de volta. Plutão e Perséfone, que estavam no local, decidiram devolver

Eurídice, mas com uma condição: que Orfeu caminhasse pelo império das sombras até

ultrapassar os limites do lugar sem olhar para trás. O vate concordou e começou a andar. Porém,

Orfeu acabou desobedecendo a condição imposta4, fazendo com que ele perdesse Eurídice para

sempre. Por fim, depois de tempos isolado, Orfeu morreu esquartejado pelas mulheres da

Trácia, onde a cabeça, que havia sido jogada em um rio, foi encontrada depois, e dada as

devidas honras fúnebres.

Em “Órfica”, Dora Ferreira da Silva não utiliza necessariamente o mito de Orfeu a partir

do que se sabe sobre o mito, mas da condição de Orfeu enquanto poeta:

ÓRFICA

Não me destruas, Poema,

enquanto ergo

a estrutura do teu corpo

e as lápides do mundo morto.

Não me lapidem, pedras,

se entro na tumba do passado

ou na palavra-larva.

Não caias sobre mim, que te ergo,

ferindo cordas duras,

pedindo o não-perdido

do que se foi. E tento conformar-te

à forma do buscado.

Não me tentes, Palavra,

além do que serás

num horizonte de Vésperas. (SILVA, 2004, p. 30)

Com isso, percebe-se que o poema ilustra a metáfora da incessante luta que o eu-lírico

(poeta) precisa travar com seu Poema (que é personificado, representando também o diálogo

4 Há uma interpretação do mito de Orfeu que dizem que foi por descuido que ele olhou para trás e desobedecendo a condição imposta. Já uma outra versão diz que foi porque Orfeu quis saber se Eurídice estava atrás dele enquanto atravessava o império das sombras.

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que o sujeito tem com seus versos), passando por um processo tão duro e violento de inspiração

e fazer poético, a ponto do criador implorar à sua própria obra para que ela não o destrua.

Segundo Brandão (1987), havia duas espécies de “linhas de pensamento” as quais os

poetas seguiam: a apolínea – a religião do “bem viver” – e a órfica – do “bem morrer” – em

que “o Orfismo aprendeu a reservar as lágrimas para os que nasciam e o sorriso para os que

morriam” (BRANDÃO, 1987, p. 151). Enquanto religião, o Orfismo tinha muitos pontos em

comum com o Pitagoricismo, pois se havia a crença na imortalidade, no dualismo corpo-alma,

na metempsicose, punição no Hades (deus dos mortos) e a glorificação da psique no Elísion.

A relação dessa linha de pensamento com o poema “Órfica” se dá na fonte de inspiração

do poeta (a morte, vista, por exemplo, no verso 3, “e as lápides do mundo morto”) fazendo

consequentemente com que os próximos versos sejam carregados de elementos negativos e

melancólicos – como no verso 6, “na tumba do passado” e “[...] pedindo o não-perdido/ do que

se foi. E tento conformar-te/ à forma do buscado. ”, do verso 10 ao 12 -, anexados ao processo

árduo que o vate possui de construir um poema e, também, ao próprio mito de Orfeu, visto que

ele procura se contentar após a perda irreparável de sua esposa, antes “não-perdida” (ou seja,

estava nas trevas de Hades), mas que se foi devido a desobediência de Orfeu.

Pode-se levar também em consideração, na análise de “Órfica”, a definição de poeta e

poesia de acordo com a própria Dora Ferreira da Silva, apresentada por Cabral (2004):

Assim como Hölderin via os mitos não apenas como uma fonte de inspiração

literária, mas como percepção concreta do sagrado, cujo intérprete é o ‘vate

inspirado’, para Dora Ferreira da Silva o poeta é um visionário, um agente de

forças invisíveis e desconhecidas, que tem a possibilidade de ver aquilo que

os outros não conseguem; [...]. Para Dora, se a poesia resulta de uma

inspiração divina, também é certo que constitui um ofício que exige prática e

talento, pois sabe que em uma composição poética são igualmente necessárias

a inspiração e a técnica. (CABRAL, 2004, p. 14-15).

A partir da definição da autora e do poema apresentado, percebe-se que Dora Ferreira

da Silva procurou cantar sua própria condição de poetisa, mostrando que, além de adquirir a

inspiração necessária, deve-se moldar um poema como o oleiro molda a argila, cujo processo

requer técnicas para que ele não seja vencido pela linguagem (como mostra nos últimos três

versos do poema, “Não me tentes, Palavra / além do que serás / num horizonte de Vésperas”)

e, consequentemente, não consiga terminar o poema.

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Em termos de funções da linguagem, utilizando o capítulo “A comunicação humana”

de Barros (2007) como base teórica, a função metalinguística da linguagem, na perspectiva de

Roman Jackobson, caracteriza-se por possuir o efeito de circularidade, ou seja, de dizer a

linguagem por meio da linguagem, explicando o código pelo mesmo código (BARROS, 2007,

p. 38). A partir disso, pode-se classificar “Órfica” como um metapoema, visto que ele é um

poema que ilustra o fazer poético, mostrando, dessa maneira, a condição angustiante do poeta

em fazê-lo.

O narcisismo em “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ”

Os poemas “Narciso (I) ” e “Narciso (II) ”, são, respectivamente, o nono e o décimo

poema de Hídrias (2004). As interpretações são várias, mas sabe-se que Narciso é um

semideus, fruto de uma gravidez indesejável da ninfa Liríope com o rio Céfiso. Ele era

considerado o mais belo dos mortais, sendo assim desejado por deusas, ninfas e jovens de toda

a Grécia. Porém, como o “excesso” de beleza era passível de punição dos deuses, a mãe de

Narciso procurou Tirésias, que possuía poderes proféticos, a fim de saber se seu filho viveria

muito. Considerando uma das possíveis respostas de Tirésias à mãe de Narciso, o profeta

respondeu: “se ele não se vir”. Ou seja, Narciso viveria muito, desde que ele não visse a si

mesmo.

Uma das mulheres que se apaixonou por Narciso foi a ninfa Eco, antes conhecida por

conversar muito, e que, por ter sido cúmplice e ajudado Zeus quando ele queria viajar para o

mundo dos mortais, recebeu a punição de Hera de não falar mais nada além da última palavra

que ouvisse. Certo dia, o jovem semideus estava caçando e se separou de seus amigos. Ao

gritar por eles, ouviu alguém dizendo a última palavra que ele havia dito. Era Eco, escondida

por entre as árvores para vê-lo. Quando percebeu que era a ninfa, Narciso a repeliu, fazendo

com que Eco se isolasse, se definhasse e se transformasse em uma pedra. Devido a isso, as

demais ninfas pediram vingança a Nêmesis, e amaldiçoaram Narciso a se apaixonar por algo

impossível.

Tempos depois, Narciso foi caçar novamente. Estava quente, e ele quis beber água em

uma fonte por perto. Ao se inclinar, viu a sua própria imagem e acabou se apaixonando por

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ela5, fazendo com que a vingança se concretizasse e ele acabasse morrendo. No local de sua

morte, na beira das águas, nasceu uma flor que leva o seu nome.

Os dois poemas de Dora Ferreira da Silva contam exatamente o mesmo momento do

mito de Narciso, que é quando ele se apaixona pela sua própria imagem refletida:

NARCISO (I)

Lampeja o olhar que antes toda a beleza

se esquivara. És tu, Narciso,

teu reflexo nas águas, ou a irmã

do gêmeo rosto e forma?

Não, não te afastas, porque a unidade

em duas

se faria e o mundo das sombras ulula

à espera de tal luto. Permaneces inclinado

e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres ver

no exasperado amor que as águas refletem.

A Morte veio enfim buscar-te, consternada,

vendo os olhos do estranho amante

fixos na flor nascida de teu sonho.

NARCISO (II)

Folhas incandescentes fizeram da fonte

vale de fulgores. Bebia Narciso sobre a onda

quando uma face viu de tal beleza

que a luz mais viva se tornou.

E Amor – cujas setas jamais puderam alcançar

seu coração esquivo – nele reinou e jamais do jovem

se apartava, que a seu chamado às águas acorria.

Insidiosa veio a Morte para o levar consigo,

deixando numa flor a forma de Narciso.

(SILVA, 2004, p. 38-39).

Nesses dois poemas, percebe-se que o eu-lírico, além de falar da morte do semideus,

cita com dubitação uma interpretação acerca do mito de Narciso, questionando se é o filho da

Ninfa Liríope ou a irmã gêmea dele que estava refletido nas águas. Segundo o dicionário, a

palavra “lampejar” significa “Lançar brilho somente por um instante”, remetendo à beleza

extrema de Narciso, que despertou amores em muitas pessoas.

5 Cavalcanti (1992) também considera outra interpretação do mito de Narciso, que é a de que ele tinha uma irmã gêmea e que ele achou que fosse o reflexo dela nas águas. O eu-lírico de Dora Ferreira da Silva, em “Narciso (I) ”, acaba também citando essa interpretação.

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A questão abordada, do verso 5 ao verso 7, [...] unidade / em duas se faria e o mundo

das sombras ulula / à espera de tal luto. ”, pode estar remetendo ao mito do Andrógino que é

também abordado em O banquete de Platão. Segundo Aristófanes, antigamente, nascemos com

quatro braços, quatro pernas, ou seja, com o dobro do que atualmente somos, e tínhamos a

capacidade de se locomover por meio de um movimento circular. Temos essa aparência que

conhecemos (de dois braços, duas pernas, etc.) pois Zeus, depois de ganharem uma guerra

contra os homens, deram uma punição a eles, que foi cortá-los ao meio. Isso fez com que os

homens ficassem a sua vida toda procurando a metade que foi tirada dele, e assim se

assemelhando ao termo “alma gêmea”, designado à pessoa que amamos ou iremos amar nessa

vida. Esse seria o sentido que foi dado ao poema “Narciso (I) ”, na questão de, por ter sido

amaldiçoado, o semideus encontrou sua alma gêmea em si mesmo. Apesar de ser algo

considerado “impossível”.

Algo interessante a ser considerado é o que está disposto do verso 7 ao verso 10:

“Permaneces inclinado / e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres ver / no exasperado amor

que as águas refletem. ”. Nessa passagem, aparenta ser abordado o conceito freudiano de

narcisismo, algo que pode ter sido colocado com o intuito de o mito parecer compreensível

para a sociedade. Um texto literário passível de comparação é o conto O Espelho, de Machado

de Assis, onde Jacobina conta que só se sentiu completo ao vestir a farda de Alferes e olhar

para si mesmo no espelho velho que ele havia ganhado, a fim de confirmar sua tese de que o

homem pode ter uma alma exterior e uma alma interior:

Lembrou-me vestir a farda de alferes. [...], como estava defronte do espelho,

levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura

integral; nenhuma linha a mais, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o

alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (ASSIS, 2008, p. 41)

Ou seja, ele só se reconheceu quando ele viu no espelho o que ele queria ver, algo que

pode ser relacionado ao que Narciso estava vendo nas águas, pois ele acabou, em termos

psicanalíticos, realizando um processo de alto investimento libidinal naquela imagem que era

a sua própria.

Com uma morte personificada, que o buscou após ocorrer o que Tirésias previa, ocorreu

o momento que até essa morte sentiu uma profunda tristeza, ou seja, “consternada”, como está

disposto no poema. Já o último verso de “Narciso (I) ”, “fixos na flor nascida de teu sonho”

pode ser considerado como uma metáfora relacionada ao sonho, lugar onde os desejos do

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inconsciente são reprimidos. Como Narciso não podia “amar a si mesmo”, pois era considerado

algo impossível, isso, então, fez com que ele morresse, e uma flor, simbolizando esse fato,

nascesse no lugar.

Já em “Narciso (II) ”, os versos 5, 6 e 7 chamam atenção: “E Amor – cujas setas jamais

puderam alcançar / seu coração esquivo – nele reinou e jamais do jovem / se apartava, que a

seu chamado às águas acorria. ”. As setas que nunca conseguiram acertar o coração de Narciso

podem remeter à parte do mito que, apesar das mulheres, deusas e ninfas da Grécia o desejarem,

nenhuma delas foi a contemplada por seu amor. Quando finalmente o amor reinou, o que

despertou esse sentimento no jovem foi ele mesmo (se não considerarmos a possibilidade da

irmã gêmea), refletido na água.

E por causa disso, de maneira “insidiosa” (que, dentre outros significados, é

considerado uma característica de quem é traiçoeiro), a morte veio busca-lo e, assim como é

dito no primeiro poema, nasce a flor de Narciso, que, segundo Freitas (2015), é a representação

da efemeridade, da beleza passageira devido ao tempo e também da morte.

Além disso, a autora também procura mostrar como Narciso pode ser visto nos dias

atuais: “Narciso permanece vivo entre e em nós, quer seja na melancolia, no sofrimento, na

beleza, na juventude e no desejo de alcançar a imagem duplicada, mas a imagem não pode ser

duplicada sem riscos. ” (FREITAS, 2015, p. 8). Podemos elencar várias outras temáticas

relacionadas ao mito de Narciso que podem ser considerados atuais. Com a era digital, o

narcisismo está estampado também nos posts, nos “textões”, nas curtidas, nos comentários, nos

compartilhamentos e entre outros recursos que nos fazem sentir como se estivéssemos vendo a

nós mesmos no reflexo das águas e ficássemos contemplando-a como forma de sublimação da

nossa melancolia.

Considerações finais

Acerca das análises feitas e das teorias estudadas, conclui-se que Dora Ferreira da Silva

realizou algo singular na literatura brasileira contemporânea, que foi a volta para tempos

primordiais com o intuito de expressar, em versos, a atemporalidade do mito. Dora tece seus

poemas com os fios da mitologia e da contemporaneidade de modo que ela una o antigo ao

novo, com “erudição e genialidade, oferecendo ao leitor uma intensa fruição poética”

(ROCHA, 2009, p. 100). Isso acaba nos fazendo pensar que o ser humano, utilizando um termo

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de Mircea Eliade, está sempre fazendo um processo de “eterno retorno”, em que o que fazemos,

na maioria das vezes, é reflexo do que os nossos antepassados faziam. O sagrado, - ou o

“numinoso” nos termos de Otto (2005) - é uma maneira de compreender, mesmo que seja de

forma supérflua, o labirinto da condição humana.

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