156
IARA HELENA MAGALHÃES A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE, SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2007

A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO , DE JÚLIO BRESSNE ...livros01.livrosgratis.com.br/cp031370.pdf · O diretor de um filme realiza o processo de decupagem, isto é, a determinação

  • Upload
    lyphuc

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

IARA HELENA MAGALHÃES

A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,

SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Pontifícia Universidade Católica de São PauloSão Paulo

2007

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

1

IARA HELENA MAGALHÃES

A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,

SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, comorequisito parcial para obtenção do título de Mestreem Comunicação e Semiótica.

Área de concentração: Signo e Significação nas Mídias

Orientador: Prof. Dr. Sílvio Ferraz Mello Filho

São Paulo2007

2

IARA HELENA MAGALHÃES

A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,

SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

3

Aos meus pais Francisco e Adenir

Pensando em vocês penso em brinquedos, criança e casa. Vocês são do tamanho do mundo.

Ao meu marido Jorge Abrantes

Você me traz o veleiro que ancorou num dia quente, o ruído da chuva no calçamento. Isso não é

inexplicável?

Aos meus filhos Rafael, Cauê, Taís

Vejo-os dormir, crescer e despertar. Tudo num piscar de olho. Não sei o que vejo, pode ser o

tempo, pode ser música. Sigo até a rua, folheio um livro, assisto um filme, sonho que sou vocês.

4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Sílvio Ferraz, pelos encontros das quartas-feiras na PUC, abrindo meussentidos para os delírios a enredar-me no tempo.

À Profª Drª Irene Machado, pelas orientações iniciais e pela apresentação da obra Atécnica do livro segundo São Jerônimo, de D. Paulo Evaristo Arns, me aninhando comoum pouco d’água e um pedaço de pão.

Ao mestre Waldemar Lima, amigo e professor, diretor de fotografia de Deus e o diabona terra do sol, a iluminar-me a cada semana com sua figura amorosa; mansa admiraçãoque me faz descobrir coisas perdidas ou esquecidas há muito tempo.

A minha irmã Jussara, que me acompanha neste trajeto desde o exame de proficiência,te procuro secretamente toda vez que abro uma janela.

Aos meus irmãos que me apóiam nas desmesuras.

Ao amigo Wolney Mamede, irresistível amigo, dos computadores à cachaça, dassessões de cinema à conversa na cozinha, tudo parece ficar pequeno na sua presença.

À Maria de Lourdes Barbosa, querida Lourdinha, sabor de flor a me acompanhar nasgotas de florais, doce presença, imensa planície que me cura.

À Sônia Miralda, amiga e revisora, pelos dias e noites que passamos a ler cada palavrae imagem desta dissertação, explorando insensatamente o labirinto da amizade e doaprendizado.

A Waltuir Alves Pimenta Júnior, Guilherme Francisco Lopes, Gilson Goulart Carrijo,Jair Moreira, professores do curso de Produção Audiovisual do Centro Universitário doTriângulo, todos os dias ao ouvir suas vozes corro para buscá-los.

Ao Joel Pizzini, amigo e colega de trabalho, ele a fazer filmes e eu a falar de filmes,parecem ter passado mil anos que nos conhecemos.

Aos Professores Alzira Jerônimo de Melo Almeida, Fábio Silva Oliveira, MarcílioRibeiro Borges e Edson Rodrigues Menhô, reitora e pró-reitores do Centro Universitáriodo Triângulo, atraídos pelo puro sabor do perigo da jornada de quatro anos de um cursode cinema em Uberlândia.

À Virgínia Flores e ao cineasta Júlio Bressane, montadora e diretor do filme SãoJerônimo, pelas informações referentes à trilha sonora do filme, e ao nosso encontro desete anos atrás em Uberlândia com o filme São Jerônimo, que agora me é dadoparcialmente contar.

5

À Marize Gandara, musicóloga, pela sua ajuda na percepção sonora do filme SãoJerônimo.

Ao Cássio Ribeiro Silva, jovem e talentoso violonista, pela sua sensibilidade ao ouvir ea me ajudar a sentir o filme São Jerônimo.

À CAPES, pela bolsa concedida que me possibilitou mais esta etapa de estudo.

6

Iremos fingir por um instante que não conhecemos nadadas teorias da matéria e das teorias do espírito, nada dasdiscussões sobre a realidade ou a idealidade do mundoexterior. Eis-me, portanto, em presença de imagens, nosentido mais vago em que se possa tomar essa palavra,imagens percebidas quando abro meus sentidos,despercebidas quando os fecho. Henri Bergson

7

RESUMO

Esse trabalho destina-se a estudar a técnica composicional no cinema, pesquisando atécnica de criação do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, segundo um desenho dotempo. São Jerônimo foi construído a partir de uma série de documentos, leituras,pinturas, teses que transitam entre o fascínio pela iconografia ligada ao santo e aimanência do filme sendo realizado. Um processo de tradução do processo de traduzir.O foco dessa pesquisa é o tempo. O tempo que nasce da emancipação do movimentopela luz e pelo som. O tempo na imagem e no drama cinematográficos. Esse estudoorientou-se pelas obras A imagem-movimento e A imagem-tempo, de Gilles Deleuze. Oestudo do conceito imagem-tempo, tempo emancipado do movimento, como o regimeoriginal das imagens e signos da modernidade do cinema, possibilitou-nos pensar astécnicas de ver, ouvir e sentir o tempo em São Jerônimo. Ancorando a pesquisa,estudamos a semiótica Peirciana, os fundamentos da análise fílmica, o papel do som nocinema, a produção teórica de pesquisadores brasileiros sobre análise e crítica de filmes,e trabalhos inéditos sobre a fotografia na criação de filmes. A análise da técnica deluteria do filme compreendeu três etapas: na primeira estudamos as qualidades, asformas, os códigos e suas materializações nas composições das imagens audiovisuais,observando os enquadramentos, as decupagens, os movimentos de câmera, asmontagens e as materializações de idéias rítmicas e suas interações; na segunda etapainvestigamos as imagens audiovisuais como objetos estéticos através do conceitoimagem-tempo; e na terceira etapa estudamos a disjunção entre as imagens visuais esonoras do filme. A análise de São Jerônimo nos conduziu a uma constatação: suasimagens imobilizam o visual e o sonoro. O sonoro ensaia levar o filme para fora docampo visual enquadrado na tela, num movimento centrífugo, mas se detém emdiversos desvios, tendendo à pureza do próprio som; e o visual se apressa a tragar-nospara territórios fundados pelo excesso ou escassez de luz, o deserto e Roma, nummovimento centrípeto, todavia para lugares desconexos e sem centros, resistindo aosfotogramas e às imagens em movimento. São Jerônimo, desenho de uma matériamovente a cortar os planos e re-encadeando os cortes a nos apresentar o tempo.Jerônimo intercessor de Bressane e de Deleuze.���

PALAVRAS -CHAVE : Cinema, técnica composicional, tempo, imagem-movimento,imagem-tempo, comunicação.

8

ABSTRACT

This paper aims to study the compositional technique of cinema, researching thetechnique of creation of the movie São Jerônimo, by Júlio Bressane, based in the designof the time. São Jerônimo was constructed from a series of documents, readings,paintings, thesis that traverse between fascination for iconography linked to the saintand the immanence of the film construction. A process of translation of the process oftranslating. The focus of this research is the time. The time that arises from theemancipation of the movement through light and sound – time in the cinematographicimage and drama. This paper was based theoretically in two works by Gilles Deleuze –The image-movement and The image-time. The study of the concept image-time – timeemancipated from movement – as the original regime of imagine and sign of the moderncinema, made it possible for us to see, hear and feel the time in São Jerônimo. We alsostudied the Peircian semiotics, the principles of the filmic analysis, the role of the soundin the cinema, the theoretical production of Brazilian researchers on critique of moviesand unpublished works about photography in the creation of films.The method used todo the reading of the film involved three stages: in the first we studied the qualities, theshapes, the codes and their materialization in the composition of the audio-visualimages, observing the framing, decoupage, the movement of the camera, the montageand materialization of the rhythmical ideas and their interactions; in the second stage weinvestigated the audiovisual images as aesthetical objects through the image-timeconcept; in the third stage we analyised the disjunction between the visual and audioimages of the movie.The analysis of São Jerônimo made us to come to the followingconclusion: its images immobilized the visual and sound aspects. The sound tries to takethe film out of the visual field framed in the screen, in a centrifugal movement, but itdetains itself in several deviations, tending to the purity of sound, while the visualaspect rapidly drags us to territories of excess or shortage of light – the desert and Rome– in a centripetal movement that leads, however, to disconnected and decentralizedplaces, resisting to the photo grams and the images in movement. São Jerônimo, designof a moving material that cuts the cinematographic plan and rearrange the cuts thatpresent the time. Jerônimo, Bressane and Deleuze’s intercessor.

KEYWORDS: Cinema, compositional technique, time, image-movement, image-time,communication.

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10

1. JRNM – O mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente .................. . . 14

2. Um pouco de tempo em Deleuze ............................................................................. 18

3. São Jerônimo: elementos para uma análise ........................................................ . . 22

CAPÍTULO I – JÚLIO BRESSANE APRESENTA : SÃO JERÔNIMO ....................................

26

1. São Jerônimo, de Bressane, plano a plano (7min) .................................................. 27

2. Os dois pontos (:) .................................................................................................... 36

3. Cristais de tempo ..................................................................................................... 43

CAPÍTULO II – NOTAS DE TEMPO EM DELEUZE ... ....................................................... 50

1. Cinema 1 – A imagem-movimento ......................................................................... 51

1.1 Signos do tempo .............................................................................................. 56

2. Cinema 2 – A imagem-tempo .................................................................................. 59

CAPÍTULO III – ... NOTAS DE TEMPO EM BRESSANE .................................................... 73

1. Abertura ................................................................................................................... 76

2. Primeiro Movimento – Deserto / 23min45seg / 9’32” a 31’10”/ 64 planos ........... 78

2.1 Seqüência: No paraíso / 3 min / 9’32” a 12’32”/ 8 planos .............................. 79

2.2 Seqüência: Pedra-de-sino / 9min9seg / 12’33”a 21’02”/ 28 planos ............... 82

2.3 Seqüência: Vozes de Jerônimo / 2min50seg / 21’03” a 23’53”/ 5 planos ....... 94

2.4 Seqüência: Acontecimento / 7min56seg / 23’54” a 31’10”/ 23 planos ............ 98

3. Segundo Movimento: Roma de Bressane / 33min / 31’10”a 1h4’/ 79 planos ...... 105

4. Terceiro Movimento: Sertão / 8min38seg / 1h4’ a 1h12’38”/ 19 planos ............... 122

CRÉDITOS FINAIS ......................................................................................................... 125

10

EM TEMPO ....................................................................................................................

129

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 133

ANEXOS ........................................................................................................................ 137

INTRODUÇÃO

Estamos em Uberlândia, 18 de junho de 2000. O carta

12

continuidade do movimento que os registra, como também nas partes que eles não juntam. As

imagens sonoras e visuais ultrapassam suas próprias camadas, à procura de outras imagens e

de sons: imagens de fusão de rasgos.

O filme parece composto por imagens fixas, entretanto, no cinema o que parece fixo,

instantâneo (cortes imóveis) são cortes móveis de uma duração, são os planos. O plano é a

imagem-movimento. Os planos são conseguidos por filmagem de 24 fotogramas por segundo,

uma sucessão de imagens fixas escolhidas para serem enquadradas. Os fotogramas são

imagens instantâneas (cortes imóveis do movimento).

O diretor de um filme realiza o processo de decupagem, isto é, a determinação de uma

ordenação dos planos e seqüências e, conseqüentemente, a determinação dos movimentos

sonoros e visuais que se distribuem na sucessão dos planos e das seqüências. A montagem é

o processo que exprime a composição, o movimento e a variação dos planos e entre os planos

de um filme. Portanto, não há apenas imagens instantâneas (cortes imóveis do movimento), há

planos, que são cortes móveis da duração, para além do próprio movimento, há imagens-

movimento.

O filósofo francês Gilles Deleuze diz que a tela enquanto quadro dos campos confere

uma medida comum àquilo que não a tem; exemplifica que o plano conjunto de uma

paisagem, o primeiro plano de um rosto, terra e mar são partes que não apresentam os

mesmos denominadores de distância, de relevo e nem de luz, e conclui que o quadro assegura

a desterritorialização da imagem (DELEUZE, 1985).

Contudo, uma tela enquanto quadro de campos contém um enquadramento, um

conjunto fechado. Um sistema ótico e sonoro que remete a um ponto de vista sobre o conjunto

de planos que a constitui; enquadram-se potências de naturezas diferentes, numa composição

de muitos quadros dentro do quadro. Nesse sentido, São Jerônimo é representante de uma

pesquisa de luz rigorosa; os longos planos fixos de dias se transformando em noites e noites

13

em dias induzem não a ações, mas a descrições; os encadeamentos das imagens sonoras e

visuais se rarefazem e libertam-se para movimentos e tempos novos.

A concepção física ou dinâmica do quadro induz a conjuntos vagos, gradações físicas,

graus de luz e sombra, escalas de claro-escuro. Na tela, as partes que não se juntam libertam

os intervalos entre os planos, entre as músicas, entre os atos de fala para uma outra relação:

não assistimos a São Jerônimo como um todo, mas como um filme partido, caracterizado pela

disjunção entre o visual e o sonoro.

Procederemos a uma leitura do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, refletindo sobre

a técnica composicional no cinema, pesquisando sua técnica de criação e o que surge na

temporalidade da imagem e do drama.

São Jerônimo é o 28º longa-metragem de Júlio Bressane – um filme nuclear,

referencial na pesquisa do espaço, do tempo, da luz, da duração e dos movimentos: Bressane

estudou durante onze anos a vida e a obra de Jerônimo para traduzi-lo para o cinema. Desde a

Idade Média, São Jerônimo é considerado o mais sábio e culto dos “pais” (escritores

eclesiásticos dos primeiros séculos) da Igreja ocidental. Sua tradução da Bíblia para o latim, a

Vulgata, é a oficial da Igreja Católica desde o Concílio de Trento.

José Mario Pereira, em seu artigo “Atualidade de São Jerônimo” [200-], fornece

importantes informações a respeito da bibliografia de e sobre São Jerônimo publicada no

Brasil. É com base neste texto que delineamos a seguir, um perfil da figura de São Jerônimo,

que fascinou poetas e humanistas, escritores e pintores.

Júlio Bressane, por ocasião da primeira exibição do filme São Jerônimo no Festival de

Brasília (1999), disse: São Jerônimo é a evocação de um signo, mise-en-scène da palavra aos

sentidos, da pedra à câmera, numa geografia quente, árida, atingindo às vezes o branco sobre

o branco. No livro Cinema dos anos 90, a pesquisadora Liliane Heynemann termina seu artigo

intitulado “São Jerônimo” com a seguinte citação de Júlio Bressane:

14

O signo Jerônimo nos faz pensar no fascínio eterno que a escrita e o desertoexercem na criação da imagem desde os seus primórdios, desde Lascaux,desde o Piauí [...] Com o cinema podemos imaginar e recriar a verdadeira“viagem”, o esforço no limite máximo, agônico, que se impôs Jerônimo emsua tarefa de criar uma nova linguagem, modificando, civilizando asensibilidade de seu tempo e futuro (BRESSANE, 1996, p.61 apudHEYNEMANN, 2005, p.305).

E assim começamos a pensar intensamente nesses autores: São Jerônimo e Júlio

Bressane. Pensamos em escrever esta dissertação através deles, não como objetos, nem como

identificação, mas na tentativa de reconduzi-los a uma força, a uma alegria, a uma vida que

eles souberam inventar.

*

* *

O filme São Jerônimo, produzido em 1998, foi escolhido como corpus desse estudo

por se tratar de um filme nuclear na pesquisa do espaço, do tempo, da luz, da duração, dos

movimentos, nas materializações de idéias rítmicas e na construção de um sistema sonoro,

onde as palavras, os silêncios, as imagens e os sons desencadeiam uma “escrita” que pode

investigar uma complexa rede de afetos em trânsito a respeito do tempo.

São Jerônimo se inicia com uma seqüência do filme sendo produzido, o lugar do

espectador, do diretor, da equipe de produção, dos atores em cena, um travelling de conjuntos

de partes mostrando o filme se tornando filme. O som do vento e uma série de planos fixos de

pedras, rochas entre uma seqüência e outra jogam na tela o nascimento de uma cabra, uma

voz em primeira pessoa relata um sonho, uma iluminação, começa-se a encenação do famoso

sonho de São Jerônimo: diante de um Tribunal Universal, Jerônimo, amante das belas-letras e

cevado nos textos clássicos, deve escolher entre converter-se ao cristianismo, tornar-se leitor

dedicado e exclusivo das Sagradas Escrituras, ou continuar a ser um seguidor da filosofia de

Cícero. “Ciceroniano” ou cristão? A dúvida e a fé duelam em seu sonho.

15

O sangue no peito do personagem (Jerônimo) e o movimento pendular de um peito

humano tocando a câmera justaposta aos sons emitidos nos conduz à presença física de uma

pedra e a um ritual de suplício. A mesma pedra é vista, em seguida, batendo na câmera. Em

contrapartida, na seqüência final a câmera se desloca do corpo inerte do personagem São

Jerônimo e assume uma liberdade ficcional através das imagens de um entardecer, uma

paisagem, uma geografia ao som da antológica música do cancioneiro nordestino “Último

pau-de-arara”.1 Territórios de vários domínios de sentido, mediados pela câmera e seus

dispositivos cinematográficos, o que nos faz perceber que a justaposição e a articulação entre

as imagens e os sons no filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, podem gerar formas

complexas de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar que mostra o próprio tempo.

O filme São Jerônimo, coloca de início uma questão: o que se pode ver na imagem?

Entre e nas imagens sonoras e visuais que se encadeiam? Um filme que implica e se explica

em inúmeras imagens de tempo. Um cinema que procura o tempo no cinema. Da escrita à

imagem. Da pedra à câmera.

1. JRNM – O mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente

Eusébio Jerônimo nasceu na Dalmácia (na atual Croácia), por volta do ano 347, em

uma família abastada. Sua educação, iniciada no lar, prosseguiu em Roma, onde estudou

gramática, retórica e filosofia. Possivelmente por volta do ano 366, foi batizado pelo papa

Libério. Nos anos seguintes, realizou inúmeras viagens pela Europa e sentiu-se

profundamente atraído pela vida monástica. Por volta do ano 373, foi para o Oriente e passou

1 Música de Venâncio, Corumbá & J.Guimarães, dos discos: "Manera Frufru Manera" e "Ao vivo (Duplo)" deRaimundo Fagner.

16

algum tempo em Antioquia. Foi então que, após uma crise espiritual, prometeu a si mesmo

não voltar a ler nem a possuir literatura pagã.

Pouco tempo depois, iniciou um período de dois anos como eremita no deserto de

Cálcis, em busca de paz interior. Entregue à oração e ao jejum, estudou também grego e

hebraico. Como conseqüência do cisma de Antioquia, Jerônimo deixou o deserto e transferiu-

se para aquela cidade. Ali foi ordenado, e no ano 382 regressou a Roma como secretário do

Papa Damaso I. Nesse período, iniciou a revisão da versão latina do Antigo Testamento, obra

em que trabalharia toda a vida. Após a morte do papa, no ano 385, foi para Belém, na

Palestina, onde fundou um mosteiro em que permaneceu por mais de trinta anos, até a morte.

São Jerônimo desenvolveu uma atividade incessante, consagrada ao aperfeiçoamento

da vida monástica e à redação de tratados religiosos. Entre eles cabe destacar seus muitos

escritos sobre temas bíblicos e o De viris illustribus (Sobre os homens ilustres), coletânea de

biografias de autores cristãos. Também manteve extensa correspondência, em que defende os

ideais da vida ascética. Morreu no ano 419 ou 420, em Belém. Em 1295, foi declarado doutor

da igreja pelo papa Bonifácio VIII. É festejado em 30 de setembro.

No filme de Bressane, Jerônimo, acompanhado por outros padres, vive no deserto, em

um ambiente de agruras e penitência. Conhece Gregório que o inicia nos trabalhos de

recolher, copiar e traduzir os textos sagrados. Esse trabalho o leva até Roma, onde será

secretário e consultor de assuntos bíblicos do papa Damaso e na companhia de mulheres

aristocratas e cristãs como Marcela e Paula, Jerônimo refina seu espírito e aprimora seus

conhecimentos, transitando por textos de difícil acesso. Cria um centro de estudos bíblicos e,

enquanto orienta almas, divulga os textos sagrados.

Com a morte de Damaso, Jerônimo volta ao deserto e impõe-se uma tarefa

monumental: traduzir dos originais grego e hebraico a Bíblia Latina, Vulgata.

17

Não deve parecer estranho que o destaque neste filme sobre um escritor, tradutor, seja

o texto sendo escrito. O filme se centra no texto, ou melhor, nos textos e também no peso da

documentação a respeito de São Jerônimo. Esta tensão à procura do documento também se

apresenta como ficção. São Jerônimo, de Júlio Bressane, ou o texto de São Jerônimo sendo

escrito ou ainda a iconografia a respeito do santo, um dos maiores da igreja católica, são

componentes deste reconhecimento.

O filme São Jerônimo nasceu de um grande elenco de informações, documentos,

leituras, quadros, teses e elegeu como personagem principal o filme sendo realizado, uma

construção metalingüística, um personagem sendo interpretado por um ator, o que pressupõe

uma equipe e um processo de produção.

O filme passa pelo fascínio da iconografia à imanência do filme sendo realizado. Os

documentos constituem ora como passagens críticas, onde os atores se distanciam da

verossimilhança e se afastam da ficção, ora remetem a uma outra espécie de documento, onde

os atores se apresentam em situações de passagens representando personagens. O filme São

Jerônimo não se situa no sentido inverso da ficção, porque não apaga o gênero, mas inclui na

ficção um desejo de documento sendo feito entre os seus desejos. Um discurso de documento

reinvestido de ficção e uma ficção revestida do desejo do documento.

O filme São Jerônimo pertence à modernidade do cinema. Esta afirmação será

desenvolvida ao longo deste trabalho, considerando que o cinema criou nos filmes destes 112

anos uma grande quantidade de imagens e uma infinidade de composições entre elas, através

da montagem. Essas imagens do cinema em seu conjunto serão pensadas sob os conceitos

imagem-movimento2 e imagem-tempo3, que Gilles Deleuze expõe em seus livros sobre

cinema, a saber A imagem-movimento e A imagem-tempo.

2 Imagem-movimento: conjunto centrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros.3 Imagem-tempo: imagem liberada dos vínculos sensório-motores, liberada da ação.

18

A modernidade no cinema, segundo Gilles Deleuze, pertence aos filmes onde nasce

uma nova espécie de imagem que não remete mais a uma situação globalizante, e sim

dispersiva; onde a realidade lacunar substitui a ação pela perambulação, em que o espaço se

desfaz tanto quanto a história, provocando a indiscernibilidade entre o físico e o psíquico,

apresentando defasagem entre a ação e a fala, enfim, uma imagem além do movimento. Como

a imagem criada em São Jerônimo se vincula a uma história das imagens dos cinemas da

modernidade?

São Jerônimo, de Júlio Bressane, se inscreve num tipo de cinema que implica a ruína

do esquecimento do esquema sensório-motor, concentrando-se sobre si mesmo ganhando uma

autonomia audiovisual, novas formas de atos de fala, não mais ação e reação, nem interação -

é um cinema de composição em que aparece um novo tipo de imagem: a imagem-tempo.

Estudaremos a técnica composicional do filme, isto é, sua luteria, na tentativa de

traçar um desenho do tempo na imagem e no drama, e a questão: como as imagens do filme

São Jerônimo comportam a força do tempo? Escolhemos como primeiro objeto de reflexão o

tempo e o que surge na temporalidade da imagem cinematográfica, através da

problematização do tempo em Gilles Deleuze.

A problematização do tempo em Deleuze é recorrente em inúmeros textos e livros, ele

falou do cinema para “tramar” o atrelamento do tempo ao movimento na imagem, em teses

sistemáticas nos dois livros que escreveu sobre cinema: A imagem-movimento e A imagem-

tempo. Deleuze realiza nestes livros um minucioso estudo dos tipos de imagem, que ele divide

em dois regimes: a imagem-movimento e a imagem-tempo, as primeiras predominam no

cinema clássico e as segundas no cinema moderno. Dois tipos de narrativas e, sobretudo, dois

tipos de relação com o tempo: a representação indireta do tempo e a apresentação direta do

tempo.

19

O objetivo desta dissertação é o de refletir sobre a técnica composicional no cinema,

pesquisando a técnica de criação de São Jerônimo, de Júlio Bressane, tendo em vista o tempo

que nasce da emancipação do movimento pela luz e pelo som. Deste modo, visa analisar o

tempo na imagem cinematográfica e o que surge na temporalidade dessa imagem, indagando

sobre a existência de um tempo em estado puro e de cristais de tempo no filme. O que nos

levará a destacar as possíveis técnicas de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar a mostrar

o próprio tempo.

O filme São Jerônimo é uma obra que oferece aos nossos sentidos um cinema que

promove movimentos aberrantes na recepção da luz e do som, na ordenação e no

encadeamento dos próprios movimentos, libertando na superfície das imagens que serão

analisadas o sentido da emergência das idéias sobre o tempo e das formas de se ver o tempo

no desafiante momento lançado pelas novas tecnologias e os processos midiáticos.

Júlio Bressane realiza um filme tendendo a emancipá-lo do movimento: a

simultaneidade do filme sendo realizado e o peso da documentação a respeito de Jerônimo se

detém, diante de um jogo onde o tempo aparece paralisando a ação, interrogando-nos, de

modo urgente e agudo, sobre a emissão e a recepção nas mídias, um lugar do tempo na

comunicação ou quem sabe fora da comunicação.

2. Um pouco do tempo em Deleuze

Em dois livros, Gilles Deleuze pensa o tempo tendo o cinema como lugar de

pensamento: A imagem-movimento e A imagem-tempo. Deleuze realiza nestes livros um

minucioso estudo dos tipos de imagem, que ele divide em dois regimes: a imagem-movimento

e a imagem-tempo; as primeiras predominam no cinema clássico e as segundas no cinema

20

moderno. Dois tipos de narrativas e, sobretudo, dois tipos de relação com o tempo: a

representação indireta do tempo e a apresentação direta do tempo.

O cinema percorreu, segundo Deleuze, ao longo de sua história, de um regime a outro,

de uma narrativa a outra, de imagens que representam indiretamente o tempo (cinema

clássico) a imagens que o apresentam diretamente (cinema moderno). O cinema clássico

expõe situações sensório-motoras: cinema de ação, onde personagens se encontram em

determinadas situações e agem conforme o que percebem ou sofrem (DELEUZE, 1992, p.68).

Deleuze realiza um esforço em tentar classificar este tipo de imagem e diferenciá-la das

imagens do cinema moderno. Recorreu a Henri Bergson em Matéria e memória, de 1896, que

considera um livro único, extraordinário, em que Bergson delineia uma imagem-movimento e

uma imagem-tempo antes mesmo de conhecer o cinema; imagens que Deleuze utiliza

recolocando-as no campo do cinema.

A imagem-movimento é a base onde é constituído o cinema em seu conjunto, por

conseguinte o cinema criou diversas imagens e as compôs entre si através da montagem.

Através do sistema sensório-motor, todas elas se associam entre si e com um extracampo,

com o todo, com um tempo do mundo, numa representação indireta do tempo através da

sucessão de planos que elas encadeiam.

A imagem dita clássica é considerada por Deleuze segundo dois eixos, duas

coordenadas: primeiramente os elementos se encadeavam por leis associativas (contigüidade,

semelhança, contraste, oposição etc.), e em segundo lugar interiorizando-se num todo como

conceito, integrando e não parando de centrifugar-se em outras associações. O todo

permanecia sempre aberto e mutante. O extracampo se comunicava e um exterior exprimia-se

num todo em contínua mudança – o movimento e o tempo, o tempo e o movimento.

A imagem-tempo aparece nos cinemas da modernidade, Quais são os cinemas da

modernidade para Deleuze? Deleuze desenvolve uma importante análise da crise da imagem-

21

movimento no final e após a Segunda Guerra Mundial. Atribui ao conjunto do movimento

cinematográfico, ao neo-realismo italiano, a seus diretores e seus filmes a denominação de

cinema moderno, e depois à nouvelle vague francesa. No Capítulo II, intitulado Notas de

tempo em Deleuze..., desenvolvemos a questão do para além da imagem-movimento.

A imagem-tempo é, para Deleuze, uma imagem criada por uma câmera que não se

contenta em seguir o movimento das personagens, nem em fazer os movimentos para

descrevê-los no espaço, mas uma consciência-câmera: a câmera se torna “questionante,

hipinotizante, experimentante”, para um além do movimento, para revelações dos

movimentos na perspectiva do tempo. Uma nova concepção de cinema e formas de

montagem. O que mostra esta nova imagem? Mostra a força do tempo na imagem e nas

relações de tempo, relações que não se reduzem à sucessão, assim como a imagem também

não se reduz ao movimento.

Em São Jerônimo, de Bressane, podemos destacar imagens-tempo. Uma delas está

presente na seqüência “O sonho de Jerônimo”: quem narra é quem sonhou o sonho, nele um

tribunal julga o pecador. O pecador narra que recebia chibatadas, mas não ouvimos o ruído

das chibatadas, ouvimos o ruído de pedra batendo em uma superfície dura, vemos um corpo

se aproximar da câmera, repetidas vezes, em seguida uma pedra bater na câmera algumas

vezes.

Esta imagem não se confunde mais com o sonho, nem com o atual presente do

narrador contar o sonho, mas com a câmera, que também está contando; ela se embrenha no

acontecimento, se instala no interior do ato de contar, numa visão puramente óptica e sonora,

para depois desaparecer. Por fim, vemos um corpo machucado e com as espáduas a sangrar. A

câmera está, portanto, no tempo e apresenta-nos uma imagem de tempo pura, implicada no

interior do sonho que está sendo narrado através das imagens sonoras e visuais.

22

Os cortes se abrem para intervalos onde as imagens não mais se encadeiam, elas se

reencadeiam num movimento novo. O extracampo (a câmera que recebeu as batidas do corpo

e da pedra) não mais existe, nasce um fora, um novo tempo; não há mais movimentos de

interiorização ou exteriorização, mas um afrontamento de um fora que se criou

independentemente da distância ou de um tempo do mundo. O extracampo deixa de ser um

espelho, o interstício entre as imagens surge como superfície, não mais como reflexo de um

todo e sim como a criação de um tempo, não mais uma imagem do tempo e sim uma imagem

de tempo.

Em A imagem-tempo, Deleuze discute a modernidade no cinema e cria novos circuitos

a respeito do conceito de imagem-tempo:

[...] quando o quadro ou a tela funciona com quadro de bordo, mesa deimpressão ou de informação, a imagem não pára de se recortar em outraimagem, de se imprimir através de uma trama aparente, de deslizar paraoutras imagens numa profusão incessante de mensagens, e o próprio plano seassemelha menos a um olho que a um cérebro sobrecarregado que sem pararabsorve informações (DELEUZE, 1990, p.317).

Desse modo, o cinema moderno apresenta o tempo em seu estado puro, comportando

formas de tempo puras, criando formas de tempo em que os sentidos se libertam do

movimento, desatrelando o tempo do movimento. Uma imagem direta do tempo libertando-o

da cadeia de presentes e fazendo surgir um novo tipo de imagem: a imagem óptica e sonora

pura – imagem que não se prolonga em uma ação – deixando as imagens cinematográficas

revelarem o “em si” do tempo em sua virtualidade. Um tempo contra o presente ou a contra a

sucessão dos presentes.

Peter Pál Pelbart, em sua tese intitulada O tempo não-reconciliado (1998), menciona

algumas peças conceituais em que o tema do tempo é abordado por Deleuze: o Outro em

Platão, a Cesura em Hölderlin, o Intempestivo em Nietzsche, o Tempo Puro ou perplicado de

Proust, a Memória ontológica em Bergson, o Tempo como defasagem em Simondon, ou

23

como Forma em Kant, ou como Espera em Masoch, ou como Acontecimento em Péguy e

Blanchot e a forte inspiração de Jorge Luiz Borges presente em Deleuze.

Peter Pál Pelbart aposta que a filosofia de Deleuze pressupõe uma problemática

temporal própria, singular, em sua lógica e irredutível às fontes que ele menciona, utiliza e

com as quais dialoga. Além disso, escolhe para começar seu trajeto o cinema, e o primeiro

capítulo de sua tese, “O tempo do virtual”, ele escreveu a partir dos livros Deleuze, A

imagem-movimento e A imagem-tempo, que considera as suas maiores teses sobre o tempo, e

constituem um terreno privilegiado na apreensão das teses de Deleuze.

Pelbart desdobra, no capítulo “O tempo não-reconciliado”, do livro Gilles Deleuze:

uma vida filosófica, que os livros de Deleuze sobre cinema, acima citados, encadeiam-se no

tema da emancipação do tempo.

Um tempo liberado do movimento, isto é, do movimento centrado em tornode seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seuspresentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania dopresente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricasaventuras.[...] Deleuze salienta um procedimento cinematográfico queconsiste em desvincular as pontas do presente de sua própria atualidade,subordinando esse presente a um acontecimento que o atravessa e otransborda. [...] o tempo passa então a ser concebido não mais como linha,mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e simmassa, não sucessão, porém consistência, não um círculo, mas turbilhão, nãoordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo auma consciência – a consciência do tempo –, mas à alucinação (PELBART,2000, p. 90-91).

3. São Jerônimo: elementos para uma análise

A análise do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, vai focalizar a sua técnica

composicional e o que surge na temporalidade da imagem e do drama. Recortaremos

seqüências, cenas e planos, utilizando os instrumentos, condutas e ferramentas de análise

desenvolvidas no livro de Goliot-Lété (1999), Ensaio sobre a análise fílmica.

24

A análise compreenderá três etapas. A primeira envolverá: estudo das qualidades,

formas, códigos e suas materializações nas composições das imagens fílmicas, observando os

enquadramentos, as decupagens, os movimentos de câmera, as montagens e nas

materializações de idéias rítmicas em seus diversos modos de interação; na segunda etapa

investigaremos as imagens sonoras e ópticas puras como objetos estéticos apresentados no

filme, através da música, do silêncio, dos ruídos, das palavras, da montagem das imagens

visuais e sonoras gerando significações; e na terceira etapa estudaremos efetivamente o

processo de criação do filme, a sua técnica composicional e a sua técnica de luteria, na

tentativa de compor um desenho do tempo na imagem e no drama São Jerônimo, de Júlio

Bressane.

Os estudos de Sergei Eisenstein (1990a; 1990b) sobre a montagem fílmica, sobre a

relação entre as imagens de um filme e sua música serão nucleares nesse processo de análise

fílmica. O autor destaca o papel da obra de arte no movimento interno da seqüência

cinematográfica e de sua ação dramática, as relações entre a estrutura rítmica da música e o

movimento interno das imagens, ou mesmo suas qualidades de sentido estético.

Especialmente a respeito do som no cinema, elegemos os estudos do compositor

eletroacústico e crítico de cinema Michel Chion (1994, 2003) em que desenvolve uma série de

conceitos aplicados ao estudo do som, da voz e da música no cinema. Entre eles o de valor

adicionado, que consiste na forma pela qual um som enriquece uma imagem, resultando num

valor expressivo e informativo.

Ainda a respeito do som, destacamos um artigo de Pascale Criton (2000), incluído no

livro Deleuze: uma vida filosófica, intitulado “A propósito de um curso do dia 20 de Março de

1984: O Ritornelo e o Galope”. Como demonstra a autora, Deleuze lança uma pista de um

trabalho por vir, que se conecta com o objetivo de nossa pesquisa: a noção de cristal de tempo

e o esboço da imagem cristal, de um ponto de vista sonoro.

25

Segundo Deleuze (1990), o cinema não apresenta apenas imagens, mas as cerca de um

mundo. Cristais de tempo são imagens em que vemos o tempo. Vemos tempo às vezes se

bifurcando, às vezes como lençóis de passado, e ainda como simultaneidade. A imagem-

cristal, o cristal de tempo, não é o tempo, mas nós vemos o tempo no cristal. É um ponto

limite de imagens, é um tempo em estado puro, é um jorrar do tempo. É um autor tornando-se

outro, e o personagem também. O cristal de tempo expressa uma gênese, não uma imagem

especular, mas um presente que passa e que pode encaminhar-se para a morte, um passado

que se conserva e que contém uma semente de vida.

Deleuze (1990) afirma que o que se vê no cristal não é o tempo cronológico, não é

apenas a imagem óptica, mas que o cristal tem também propriedades acústicas, portanto a

imagem cristal é também sonora; e conclui: todo cristal revela o tempo.

À primeira vista, a noção de cristal de tempo insinua-se nos movimentos musicais no

filme São Jerônimo. Deparamo-nos, por exemplo, com a música “Último pau-de-arara” nos

instantes finais do filme, que parece constituir-se num cristal sonoro revelando o tempo. Esse

é um aspecto a ser estudado, devido à impactação que essa música cria no filme.

26

São JerônimoSão JerônimoSão JerônimoSão Jerônimo / Foto da capa do filme/ Foto da capa do filme/ Foto da capa do filme/ Foto da capa do filme4444

4 Cabe uma ressalva quanto à cópia do filme utilizada para este estudo. Utilizamos a cópia em VHS, lançada peloConsórcio Europa e Filmark em 2001. Fizemos um DVD, que acompanha esta dissertação. Chamamos aatenção para o fato de que pouquíssimas locadoras no Brasil ainda têm uma cópia da versão original de SãoJerônimo.

FICHA TÉCNICA

Filme São Jerônimo, de Júlio Bressane (1998)

Direção e roteiro: Júlio Bressane; Assistentes de direção: Noa Bressane e Leonardo

Lassance; Fotografia: José Tadeu Ribeiro; Música: Fábio Tagliaferri; Produção: TB

Produções, Guilherme Spinelli e Mirian Porto; Ano de produção: 1998; Duração: 79

minutos; Distribuição em cinema: Riofilme; Distribuição em vídeo: Riofilme,

Consórcio Europa e Filmark; (Cor).

Elenco: Everaldo Pontes. Hamilton Vaz Pereira, Helena Ignez, Bia Nunes, Sílvia Buarque.

27

CAPÍTULO I

JULIO BRESSANE APRESENTA : SÃO JERÔNIMO

Neste capítulo procuramos pensar sobre os dois pontos do título que demos a ele. Dois

pontos que separam Júlio Bressane de São Jerônimo. Os dois pontos como sendo o lugar de

um processo de nascimento de uma obra cinematográfica. Dois pontos ressoam e se

desdobram na declaração de Júlio Bressane: “Cada filme meu é uma nova e estranha aventura,

feita por uma nova e estranha pessoa” (apud TEIXEIRA, [200-], p.100).

São Jerônimo é uma obra que se agita entre dois pontos. Primeiramente, pelo destaque

de que apresenta o filme sendo feito, e com isso elegendo como um de seus personagens

principais o filme sendo realizado, uma construção metalingüística, o que pressupõe uma

equipe e um processo de produção; e em segundo lugar, pelo peso da documentação a respeito

de São Jerônimo. São Jerônimo, de Júlio Bressane, ou o texto de São Jerônimo sendo escrito,

ou ainda a iconografia a respeito do santo, um dos maiores da igreja católica, são os

componentes desta aventura – o filme passando pelo fascínio da iconografia à imanência do

filme sendo realizado.

Júlio Bressane disse que São Jerônimo é a evocação de um signo, mise-en-scène da

palavra aos sentidos, da pedra à câmera, numa geografia quente, árida, atingindo às vezes o

branco sobre o branco. E Gilles Deleuze (1992, p.84) afirma que no cinema, as imagens são

signos. Um signo é uma imagem particular; “a imagem é uma figura que não se define por

representar universalmente, e sim por suas singularidades internas, pelos pontos singulares

que ela junta”.

28

No filme, os documentos sobre Jerônimo se constituem como passagens críticas, ora

se aproximam da verossimilhança e ora se afastam dela , para novamente remeterem a

uma outra espécie de documento, o filme sendo encenado.

Todavia, o filme São Jerônimo não se situa no sentido inverso da ficção, porque não

apaga o gênero, mas inclui na ficção um desejo de documento sendo feito entre os seus

desejos. Um discurso de documento reinvestido de ficção, e uma ficção revestida do desejo de

documento. O filme se inicia com uma seqüência do filme sendo produzido, deixando ver o

lugar do espectador, do diretor, da equipe de produção, os atores em cena, em um travelling

de conjuntos de partes que mostra o filme tentando se tornar filme.

Vejamos a abertura, a seqüência inicial de São Jerônimo.

1. São Jerônimo, de Bressane, plano a plano (7min)

O início do filme é simultaneamente apresentado com os créditos iniciais, e é

composto por três planos com duração total de 2’12’’. Descrevemos a seqüência plano a

plano, detalhando sua construção sonora em conjugação com a articulação das imagens.5

Plano 1 Duração 3” - Plano fixoImagem Som

Apresentação e letreiro:Um fundo no qual se distingue uma pedra ocrerepleta de escavações e impressões sulcadas ondese lê: Júlio Bressane apresenta

Nenhum som

Plano 2 Duração 4”- Plano FixoExterior, dia.Imagem Som

5 Legenda:PC= Plano conjunto; PA= Plano americano; PP= Plano próximo ou primeiro plano; PPP= close up; CAM=câmera; PDC= Profundidade de campo; Trav. Lat.= travelling lateral; Trav. Fr.= Travelling para frente;Trav.Tr.= Travelling para trás; Trav. de Ac= travelling de acompanhamento; Trav. Circ= Travelling circular;Pan-trav. = Panorâmica com travelling; Pan=Panorâmica; Mvt= Movimento; Plongée; Contra-plongée.

29

PC de uma claquete à esquerda e à frente de umarocha, ao fundo uma paisagem desértica, terra ecéu no mesmo quadro. (PDC)

Som off de um homem falando com sotaquenordestinoHomem 1: Avisa aí, viu, Sílvio.Voz de outro homem ao longe: Silêncio, porfavor, rodando.Cria-se um espaço off: o espaço do filme sendofilmado.

Plano 3. Duração 2’5”- Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem SomPC. Pan-Trav.Lat. para a esquerda.Paisagem árida, filmada de um objeto qualquer emmovimento, este objeto está margeando a paisageme continua em movimento para a esquerda e emplongée, até parar.

PM.Plano Fixo a Pan-Trav. Lat para a direita. Inverte-se o movimento para a direita da mesmapaisagem árida, filmada a partir do ponto de vistado objeto em movimento, agora se deslocando paraa direita e para cima, em Plongée mais acentuado.PP. Pan-trav. até parar. Em seguida, do ladodireito do quadro, um caule o reenquadrainsistentemente até o final desse plano seqüência.PP.Trav. lat. lento até parar. Plano Fixo.O objeto pára e a CAM quase pára .Um homem de camisa vermelha se coloca na frenteda câmera.

PM. Pan-Trav. A CAM continua seu movimentoPAN-Trav. para cima e para a direita através davegetação secas, sempre à margem.

PC. Pan –Trav. No lado esquerdo do quadro,distingue-se um homem com vestes religiosas nomeio da vegetação árida.

Som (em off) de várias pessoas falando,conversando umas com as outras, não se distingueo que vem antes ou depois:Uma outra voz diz: Seqüência 28 offHomem 1: Pode sentar?Homem 2 (sotaque carioca): Pode.Mulher 1 : Deixa eu sentar aqui?Homem 2: PodeMulher 1: Deixa eu sentar aqui?Homem 2: Senta aqui.Mulher 1: Não. Deixa eu sentar aqui.

Sons (em off ) de pássaros cantandoContinuam os sons (em off) de várias pessoasconversando. Parecem repetir as mesmas falas,mas com uma defasagem em relação às anteriorese com espacialidade diferente:Homem 2 diz : Cê tá sentada no chão.Mulher responde: NãoHomem 2: No lixoHomem 3: No chãoSons de pássarosOutra voz: Qual o número que tá aí?Homem 3: 28Homem 2: Seqüência 28 offHomem 3: VamoHomem 1: (sotaque nordestino): Falta claqueteVárias vozes ao longe, criando o espaço detrabalho de uma produção cinematográfica.Todos em offHomem (sotaque carioca): Tem que bater e sair,senão quebra este detalhe e tal...Várias vozes se alternam, não mais respondendoumas às outras, mas dando consistência para acriação do espaço de produção do filme, do filmesendo realizado, não como uma sucessão, mascomo instantes fragmentários de uma equipefalando durante a produção do filme.Vozes masculinas diversas:- 5- Silêncio, por favor.- Som- Seqüência 5- Monge superior

30

PC. Pan-trav.A CAM continua seu movimento paraa direita e para cima como se voasse, e no meio dapaisagem vemos uma camionete azul parada ealgumas pessoas se movimentando em torno dela.

A CAM pára , e um corpo de homem se aproximada câmera ocluindo seu visor. Alguém de camisabranca está na frente da câmera. A tela vai setornando escura.

Fade in. A tela se torna negra.

Em seguida, através de uma fusão vemos aapresentação e letreiro novamente, repetindo oprimeiro plano do filme. Sobre o mesmo fundo, noqual se distingue a pedra repleta de escavações eimpressões sulcadas, lê-se : São Jerônimo.

Fade in. A tela se torna negra novamente

- Seqüência 15. CDC- OK- Seqüência 1. Corte- O sonho de Jerônimo- Som. Silêncio, por favor.- Silêncio. Som.- Tá descansando aí na praia?- Vamo lá- Silêncio- Atenção- Som- Vamo lá- Som- Rodando- Câmera- Atenção. Som- Mulher 1:12.7. Primeira- Câmera- A carta. Atenção. Som- Mulher 1:12.7. Segunda- Câmera- Levanta a mão um pouco. Tá muito no limite.- Câmera- E aí?- Câmera

Som de tempestade de vento

Som de tempestade de vento continua

Som de tempestade de vento

Segue-se uma sucessão de planos fixos de pedras, de pedras enormes, de pedras-

casulos sempre em primeiro plano, ao som do insistente vento. Entre os planos, os cortes

secos, as naturezas mortas de partes que não se juntam, que se excedem na imagem de um

parto de uma cabra. O rebento cai no chão e com dificuldade se põe de pé. O som do vento

sempre à superfície como um personagem-testemunha de uma nova criação, de uma nova

paisagem, do nascimento de um novo mundo.

31

Transcreveremos a seqüência seguinte do filme São Jerônimo, plano a plano, com

destaque para a encenação do famoso sonho de São Jerônimo, conforme está creditado no

filme, ele foi traduzido por Francisco Achcar, com duração de 4’13”.

Plano 1 Duração 40’’ - Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PP. Plano fixo PlongéeSolo com nervuras e sulcos (árido)

PP. Plano fixo PlongéeMesmo plano anterior, mesmo solo com nervurasprofundas e sulcos (árido)

Pan-Trav. lentamente até encontrar o horizonte. ACAM se fixa - PCDois terços do quadro é a terra seca, rachada,sulcada, marcada, e vemos em um terço da tela ohorizonte, nuvens e muita luz.

Tempestade de vento

Plano 2 Duração 13’’ - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC - Distingue-se uma paisagem desértica, muitaluz, à direita quatro grandes pedras brancas, compartes de terras próximas e brancas, e outraspedras distantes, compondo um quadro que chegaao horizonte, ao céu e às nuvens, todos muitoclaros. (PDC)

Tempestade de vento

Plano 3 Duração 11’’ - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PA - Vemos pedras enormes sobre rochas, pedrasmarrons situadas em cima de uma rocha da mesmacor tomam toda a tela. No horizonte só nuvens,menos luz que no plano anterior (Contra-plongée).

Tempestade de vento

Plano 4 Duração 14’’ - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC - Luz mortiça - Vegetação predominante:mandacaru e pequenas árvores retorcidas(Plongée).

Tempestade de vento

Plano 5 Duração 5’’

32

Exterior, diaImagem SomPM- Trav. lat. Paisagem seca , muita luz , árvoressem folhas, só caules (Plongée). Tempestade de vento

Plano 6 Duração 5’’ - Plano fixo Exterior, diaImagem Som

PG -Paisagem seca, pequenas árvores emandacarus (Ao entardecer)

Tempestade de vento

Plano 7 Duração 3’’- Plano fixo Exterior, dia (Ao anoitecer)Imagem Som

PP - Vemos um cabra em pé, seu corpo preenchea tela , o abdômen inchado está no centro doquadro, não vemos as patas e nem a cabeça.

Tempestade de vento

Plano 8 Duração 2’’ – Plano fixoExterior, dia (Ao anoitecer)Imagem Som

PPP - A cabeça da cabra está à esquerda doquadro. CAM Lat. Esquerda

Tempestade de vento

Plano 9 Duração 6’’Exterior, dia (Ao anoitecer)Imagem Som

PC . Trav. de Ac.A cabra se movimenta e a câmera a acompanhaem seu trajeto, a cabra começa a subir um morro.

Tempestade de vento

Plano 10 Duração 3’’ - Plano fixo Exterior, dia

Som

PC - (Ao entardecer)Vemos uma terra exígua de água, pés demandacarus, em um ângulo de CAM em Plongéeacentuado.

Tempestade de vento

Plano 11 Duração 2” - Plano fixoExterior , dia (Ao anoitecer)Imagem Som

PM - Mandacarus e outras espécies de região árida– (Plongée).

Tempestade de vento

Plano 12 Duração 5’’ - Plano fixoExterior, dia (Ao anoitecer)Imagem Som

33

PA- A genitália da cabra se contrai e se distendeabrindo-se em um grande orifício e dele sai umrebento.

Tempestade de vento

Plano 13 Duração 10” - Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PM - Plano fixo. A cabra em pé expele o filhote

PA- Trav. para baixo acompanha a queda do serque acaba de nascer e do sangue que escorremorro abaixo.

Tempestade de vento

Plano 14 Duração 2” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PP- Vemos o filhote deitado ao pé do morro Tempestade de vento

Plano 15 Duração 3’’Exterior, dia (Anoitecendo)Imagem Som

Pan-Trav. da direita para a esquerda. Vemos a telapreenchida por um céu crepuscular.

Tempestade de vento

Plano 16 Duração 4” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PP - A cabra lambe seu filhote Tempestade de vento

Plano 17 Duração 9’’ - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC– Vemos pedras enormes, marrons, assentadasna terra desatando-se para nascer, pedras-casulos..

Tempestade de vento

Plano 18 Duração 5” - Plano fixoExterior, dia (Ao entardecer)

Som

PP - Uma grande pedra toma todo o quadro. Pedrasulcada, parecendo larva prestes a se transfigurar(entardecer).

Tempestade de ventoVoz ( em off )O Homem 1 (sotaque nordestino), a mesma vozque nos planos iniciais do filme pedia claquete,relata em primeira pessoa um sonho, umailuminação: Como há muitos anos, por causa doreino dos céus, eu tivesse castrado a mim mesmode casa, pais, irmãs, parentes e, o que ainda maisdifícil, do hábito da mesa lauta,

Plano 19 Duração 13” – Plano fixoExterior, dia

34

Imagem Som

PP- Vemos um cajado segurando na ponta umcrânio, ora abaixando ora se levantando, emcontra-luz. Ao fundo o céu, nuvens e sol. No subire descer do cajado, o objeto encobre e descobre osol: luz e sombra, dia e noite (Contra-Plongée).

Tempestade de ventoContinua a voz (em off):e me dirigisse a Jerusalém, não pude privar-me dabiblioteca que em Roma eu reunira com enormeesforço e trabalho. Assim, eu jejuava infeliz antesde ler Cícero, depois de noites inteiras de vigília,depois das lágrimas que a recordação dos meusantigos pecados arrancava do fundo de minhasentranhas. É Plauto que me vinha às mãos. Sevoltado

Plano 20 Duração 9” Exterior, diaImagem Som

PC- Trav. de Ac. Vemos a sombra de um homemcom vestes largas sobre o chão árido e marrommovimentando-se da esquerda para a direita.(Plongée)

Tempestade de ventoContinua a voz ( em off):a mim, começava a ler um profeta, a linguageminculta me horrorizava. E como meus olhos nãoviam a luz, eu julgava que a culpa fosse do sol,não dos olhos.

Plano 21 Duração 20”Exterior, noiteImagem Som

PM- Trav. Lat. Da esquerda para a direitaacompanhando o corpo de uma serpente (Plongée)

Tempestade de ventoContinua a voz (off):Enquanto desta maneira a serpente antigazombava de mim, em meados da quaresma umafebre se introduziu em minhas medulas, invadiumeu corpo exaurido e sem qualquer descanso,embora seja incrível dizê-lo, de tal forma quedevorou os tristes membros

Plano 22 Duração 14” - Plano fixoExterior, diaImagem SomPC- Uma grande pedra , em forma de teta de umanimal (uma ponta e um arco) nos 2/3 do quadroencobre o horizonte; à sua sombra um homem estáencostado e se contorcendo (Contra-plongée).

Tempestade de ventoContinua a voz (off):que eu mal pendia de meus ossos. Entretantopreparavam-se minhas exéquias e o calor doespírito vital. Estando o corpo já todo frio, sópalpitava num canto ainda tépido meu pobre peito.

Plano 23 Duração 2” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PG- Uma sombra disforme toma quase toda a tela, se distinguindo ao longe a figura de um homemcom um cajado. O quadro se enche de luz: branco

Tempestade de ventoContinua a voz (off):De súbito, arrebatado, sou conduzido ao tribunal

35

sobre o branco. do juiz, onde havia tanta luz

Plano 24 Duração 2” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

Só vê a luz (branco sobre branco) Tempestade de ventoContinua a voz off:e tanto era o brilho dos circunstantes,

Plano 25 Duração 14”- Plano fixoExterior, diaImagem Som

PPP- Um peito de homem vem de encontro à telarepetidas vezes, lembrando um pêndulo.

Tempestade de ventoContinua a voz off:que prostrado por terra eu não ousava levantar osolhos. Interrogado sobre minha condição,respondi que era cristão; mas aquele que estavasentado disse: mentes,

Plano 26 Duração 10” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PPP -Vemos um antebraço e uma mão segurandouma pedra, e no mesmo compasso do planoanterior inicia um movimento também pendularcontra a câmera (falso raccord).

Tempestade de ventoRuído de pedra batendo conta um objeto emmovimento rítmico periódico como um pênduloContinua a voz (em off):tu és ciceroniano, não cristão. Onde está o teutesouro também está o teu coração. Calei-meimediatamente em meio às chicotadas, pois eleordenara o meu suplício. Mais me torturava ofogo de minha consciência enquanto euconsiderava aquele versículo: “Mas no inferno,quem te louvará?” Comecei então a gritar e a melamentar, dizendo: Tende piedade de mim, Senhor,

Plano 27 Duração 29”- Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PPP - CAM fixa: Vemos o peito de um homemsangrando. Em seguida, CAM - PA - Trav. de Ac:Um homem moribundo e com o peito machucadoé erguido do chão e amparado por dois homens.(Plongée); CAM Fixa; PC – Ressurge a paisagemárida. Os três homens caminham devagar sob o solescaldante, até saírem do quadro. (PDC).

Tempestade de ventoRuído de pedra batendo conta um objeto emmovimento rítmico periódico como num pênduloContinua a voz (em off):tende piedade de mim. Essa voz ressoava entre osaçoites. Enfim, ajoelhados diante do presidente, ospresentessuplicavam-lhe que fosse tolerante com a minhajuventude, que concedesse ao meu pecado algumapenitência. Que eu fosse torturado se alguma vezeu voltasse a ler dos livros dos gentios. E em umasituação de tal premência eu faria ainda maiores

36

promessas, e comecei a jurar e a rogar em seunome: Senhor, se alguma vez eu possuir obrasprofanas, se eu ler, eu te terei renegado. Comesses juramentos sou libertado e retorno parajunto dos homens. E com surpresa geral abro osolhos de tal forma banhados que até os incréduloseram levados a acreditar em minha dor. Naverdade, não se tratou de sono ou de sonhos vãos,que tantas vezes nos enganam. É testemunha otribunal ante o qual eu jazia, é testemunha ojulgamento que tanto me apavorou. Tomara eununca tenha que enfrentar tal questão. E o fato deque eu tinha as espáduas machucadas, senti asferidas depois de acordado e li os escritos divinosmais empenhadamente do que antes lera as obrasmortais.

Diante de um Tribunal Universal, Jerônimo, amante das belas-letras e cevado nos

textos clássicos, deve escolher entre converter-se ao cristianismo, tornar-se leitor dedicado e

exclusivo das Sagradas Escrituras, ou continuar a ser um seguidor da filosofia de Cícero.

“Ciceroniano” ou cristão? A dúvida e a fé duelam em seu sonho.

A câmera desenha, através dos falsos-raccords6 de imagem e som trânsitos entre

corpos (escorpião e mandacuru), coisas (espinho e cacto), vozes (monólogo e diálogo),

geografias (sertão e deserto), ruídos (som do vento e som de pássaros) e sentimentos (amor e

paixão).

Os falsos-raccords, no filme São Jerônimo, por serem passagens perceptíveis de um

plano a outro, de uma seqüência a outra, serão identificados na análise das seqüências no

Capítulo III, intitulado ... Notas de tempo em Bressane. As mudanças bruscas de luz, ou de

espaço, ou de movimentos de câmera – no espaço fílmico onde o todo age como se impedisse

as partes de se fecharem, os falsos-raccords se mostram como fendas, como rupturas.

Indagaremos o que se passou através dos cortes e dos intervalos.

6 “O falso-raccord é por si mesmo uma dimensão do aberto, que escapa aos conjuntos e às partes. Ele realizaoutra potência do extracampo, este alhures ou esta zona vazia este branco sobre branco impossível de filmar [...]Longe de romper com o todo, os falsos-raccords são o ato do todo, a cunha que crava nos conjuntos e suas

37

O filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, foi visto e lido muitas vezes, em nosso

objetivo de realizar um trabalho de análise fílmica rigorosa, entre segmentos e planos,

movimentos de câmera e enquadramentos, na tentativa de tramar uma armadilha para buscar

o tempo.

2. Os dois pontos (:)

Por que “Julio Bressane apresenta: São Jerônimo”? Por que os dois pontos? Os dois

pontos são nossa questão neste capítulo, eles se preenchem em parte com as seqüências que

acabamos de descrever, e a questão continua a se agitar em torno do peso da documentação a

respeito do santo Jerônimo.

Júlio Bressane estudou Jerônimo por onze anos e teve acesso a um vasto elenco de

informações, documentos, quadros, teses sobre esse homem casto, isolado no deserto a

escrever em texto latino, no final do terceiro para o começo do quarto século de nossa era,

falando e ditando as suas traduções bíblicas, “os comentários e sobretudo as maravilhosas e

inimitáveis cartas às amigas e amigos”. Entre esses documentos destacamos a tese de

doutoramento de Dom Paulo Evaristo Arns, de 1953, A técnica do livro segundo São

Jerônimo, uma vez que é de Júlio Bressane o texto da contracapa da tese publicada em livro

em 1993. Procedemos a uma leitura e estudo da obra em questão, em que Dom Paulo, no

referido livro, assim expressa sua motivação para este estudo sobre São Jerônimo:

Queria saber como esse homem ditava as suas traduções bíblicas todas, oscomentários e sobretudo as maravilhosas e inimitáveis cartas às amigas e aosamigos. Já me parecia ver, diante dele, aqueles escribas, que têm uma estátuaguardada no Museu do Louvre. Esses escribas mantinh

38

copistas que as transcreviam em pairo e em pergaminho. Enquanto elesainda se ocupavam da transcrição, já se ouvia, ao lado de Jerônimo, alguémreclamando que apressassem o trabalho, porque o navio estava partindo ou ocavaleiro se mostrava nervoso e impaciente (ARNS, 1993, p.6).

A tese de Dom Paulo é brilhante; às vezes temos mesmo a impressão de ver Jerônimo,

não só o gênio irascível e indomável do escritor que se dizia “eu sou um dálmata, portanto

tenho o direito de ser violento”, mas também os seus sentimentos mais ternos e generosos

para com as “filhas espirituais e suas amigas”7, que o incitavam a não descansar no estudo e

na propagação da Palavra de Deus, até então só conhecida no mundo ocidental através de

traduções literais.

São Jerônimo, segundo Dom Paulo Evaristo Arns, é o melhor escritor latino-cristão de

todos os tempos, opinião compartilhada por Júlio Bressane que, na contracapa do livro-tese,

escreve:

[É] o mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente [...] encarna omomento onde se impunha o saque ao melhor do mundo que se cerrava.Transformar, adaptar, contrabandear algumas algemas do passado (greco-latino) para o novo mundo (cristão) inevitável e urgente. Criou a Bíblialatina Vulgata [...].

A tarefa de Dom Paulo para redigir a tese foi para buscar as minúcias, e chegou a isso

através da leitura de dez mil colunas dos Tomos da Patrologia Latina, Tomos 22 a 29 (a obra

fora publicada no fim do século XIX por Migne e andava meio apagada nas bibliotecas), das

cartas, dos pequenos bilhetes e das críticas feitas a Jerônimo. Também visitou os maiores

especialistas em Jerônimo, na Alemanha e na França, assim como buscou a orientação de

Fernando Cavallera, reconhecidamente o maior especialista em Jerônimo do início do século

XX (ARNS, 1993, p.5-6).

A tese/livro nos mostra um esquema cronológico de observação de São Jerônimo, do

momento em que este reunia o material (papiro, pergaminho, tabuleta e estilete), o trabalho

das reproduções sucessivas de seus escritos por inúmeros leitores ou copistas, até o momento

7 Citação de Dom Paulo a respeito das mulheres castas e estudiosas do texto sagrado com Jerônimo.

39

em que estes vão repousar no fundo dos arquivos. Nessa tentativa de se aproximar de um dos

maiores escritores cristãos do final do século IV, o autor reconstitui em parte a história do

livro nos séculos IV e V.

Dom Paulo Evaristo Arns escreveu sua tese doutoral sobre Jerônimo reunindo textos

por ele produzidos, procurando descobrir como é que ele conseguira levar seus escritos para

dentro da história da literatura cristã e do mundo ocidental, e ao mesmo tempo desvelando o

que passa despercebido aos que lêem os volumosos escritos do “santo doutor”, em uma

pesquisa que durou 12 anos. A obra compõe-se de cinco capítulos. No capítulo 1 – O

material – apresenta o papiro, o pergaminho, a tabuleta e o estilete; o capítulo 2 – A redação

– se resumirá no ditado, na transcrição e no acabamento do exemplar-modelo; no capítulo 3,

intitulado A edição, somos apresentados a definições sobre a publicação, formas do livro e

suas subdivisões; no 4º capítulo – A difusão – evocará o esforço dos amigos e dos inimigos

para garantir uma sorte mais ou menos feliz à obra literária de São Jerônimo, e o capítulo 5,

denominado O livro e os arquivos, mostra os lugares onde serão conservados os manuscritos

já bem modificados pelas reproduções sucessivas.

As palavras de Dom Paulo Evaristo Arns – “queria saber quando é que ele usava o

papiro, folhas prensadas no Egito em forma de papel primitivo e quando ele se servia do

pergaminho, couro curtido de boi para transformar em material de escrita” – demonstram o

despojamento, a clareza e a simplicidade com que o autor desenvolve suas reflexões,

parecendo o livro/tese exprimir-se por si mesmo como a seda se refere ao bicho que a produz.

Segundo o autor, a técnica singular de redação do santo revela Jerônimo: um homem doente

que “ditava” incansavelmente aos escribas quase sempre às pressas, parecendo carecer de

tempo, com urgência, e ao mesmo tempo encontrando condições físicas para rever as cópias

cheias de erros.

40

Dom Paulo nos apresenta um Jerônimo preso à tradição romana, seu gosto pela

retórica, a busca da correção, seu temperamento impetuoso e sua independência, e sua

determinação em divulgar o exemplar – a primeira cópia-modelo. Vemos São Jerônimo ora

como um filólogo assistindo impassível ao trabalho do copista, preocupado com a difusão,

com as diferenças singulares entre escrever e ditar, em que o ato de escrever se associa como

primeiro-ato à vontade de difundir. Ora como um intelectual apegado ao zelo excessivo na

transcrição, ora como um literato ou como um crítico atento aos arquivos, à conservação e

propagação das cópias, à produção de sentidos e à difusão política de suas obras, bem como

esboça o que denominamos hoje de crítica textual.

Júlio Bressane escreve na contra-capa deste livro editado em 1993:

JRNM na expressão de JRNM é “umbrae futurorum”: sombras dos que hãode ser. JRNM: o mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente. Opano de fundo da vida de JRNM é a queda do Império Romano. É o fim deum mundo. JRNM encarna o momento onde se impunha o saque ao melhordo mundo que se cerrava. Transformar, adaptar, contrabandear algumasgemas do passado (greco-latino) para o novo mundo (cristão) inevitável eemergente. Criou a Bíblia latina, Vulgata, num século (o 4º de nossa era)onde as diversas versões existentes da Bíblia não passavam de um rototecido de fábulas orientais. O homem estudioso em seu ambiente recluso, nodeserto, em martírio criando beleza, buscando e conhecendo, mastigando,como Santo, sementes amargas que produzem os frutos doces... eis JRNM.Este admirável livro do cardeal Paulo Evaristo Arns é a primeira publicaçãode um estudo sobre JRNM em língua portuguesa.É muito.

Insistindo assim na importância da documentação e ainda tentando desenhar e

apresentar o lugar dos dois pontos no título do capítulo, encontramos um texto em que

Bressane desenvolve outras idéias a partir de São Jerônimo, intitulado Vida luz deserto, em

uma reflexão sobre literatura e cinema através do filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos

Santos. O autor não faz observações históricas ou ideológicas, mas sobretudo estéticas,

propondo um novo centro de observação, evocando dois temas: a tradução e o deserto, e um

signo por onde esses dois temas poderiam se cruzar, que é o signo de São Jerônimo.

São Jerônimo é o padre do deserto que criou a monumental tradução latinada Bíblia, a Vulgata, centro de onde saíram todas as traduções da Bíblia emlínguas românicas. São Jerônimo foi um dos escritores que moldou alinguagem e o imaginário ocidental, pela forte influência de sua tradução,

41

passou grande parte de sua vida nos desertos de Cálcis e depois Belém, entreo Oriente e o Ocidente, o primeiro de um dos grandes humanistas a sentir adificuldade, a impossibilidade de se traduzir (BRESSANE, 1998, p.98).

Bressane reproduz literalmente as palavras de São Jerônimo sobre a sua maneira de

traduzir:

Traduzir palavra a palavra me parece deplorável. É preciso respeitar ocaráter próprio de cada língua e visar na língua traduzida, um sentido, umacerta elegância e harmonia, a euphonia, preconizada pelos grandes críticosde Alexandria. Repudiar altamente a cacozélia, o zelo errado da literalidadeque muitas vezes desemboca em cacofonias absurdas e linguagem ruim...(BRESSANE, 1998, p.98).

Segundo Bressane, São Jerônimo cria e inicia a literatura dos padres do deserto, que

se estende até hoje (biografias dos santos anacoretas: Paulo, Hilário e Malco). O deserto

principia a ser objeto da literatura, do pensamento, da filosofia, como um lugar do radical, do

extremo, privilegiado centro de percepção dos rumores e ecos da inquietação espiritual.

Bressane (1998) reflete sobre o deserto e a tradução sob o signo Jerônimo, inicialmente

destacando o deserto como a geografia de um espaço tradutor silencioso, gestador inclemente

de pensamentos nômades, lugar de um colapso do tempo, espaço pleno de luz, intraduzível

em sua beleza visível: mundo material de luz, luz como movimento e como energia, lugar de

metamorfoses de luz em vozes, em palavras, em gestos em música e em homem.

Deserto e tradução se tocam no signo Jerônimo – signo de luz – na apreensão da luz

em seus diversos estados e técnicas, e em seus reflexos e refrações nos diversos meios pelos

quais se movimentam, levando-nos a concluir que no filme Vidas secas a luz é a matéria que

o precede e que o compõe. Vidas secas – um filme de cenas de luz.

Identificamos no filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, uma referência explícita ao

filme Vidas secas, de Nelson Pereira do Santos, na cena em que uma das religiosas,

estudiosas da palavra de Deus com o mestre São Jerônimo, repete por quatro vezes: inferno,

inverno, inverno, inferno. As palavras inferno, inferno, inferno, inferno são proferidas

também por um dos filhos do casal de retirantes nordestinos, numa das cenas inesquecíveis do

43

As diversas línguas são como o que cresce pelas bordas, pelas contigüidades; o

trabalho do tradutor relativiza o não-sabido, o não-percebido, pois introduz o signo do não-

percebido naquele que ele percebe, e assim impulsiona-o a apreender o que ele não percebe e

que é perceptível para “outro”.

Nesse sentido, é sempre pelo “outro” que passa o desejo de São Jerônimo. Pode ser

este o fundamento do desejo no filme. O “outro” em São Jerônimo é um campo perceptivo

organizado: o dos “outros” e o dele. A estrutura do mundo possível expresso no filme existe

perfeitamente, mas não existe atualmente, fora do que o exprime.

A linguagem é a realidade do possível enquanto tal, desse modo o tradutor é um tipo

de explicador dos possíveis e de seu próprio processo de realização no atual. O mundo

possível de São Jerônimo, no filme de Júlio Bressane, situa-o no século IV, no início do

cristianismo, ao lado dos padres do deserto e como consultor do Papa Damaso. O filme fixa a

imagem de um deserto – sumário e superficial – em torno do qual se organizam esses

elementos, e nesse imenso lugar pleno de luz está São Jerônimo com seus livros, um leão e o

esqueleto de um crânio. Por mais central que seja esta imagem no filme, ela é marcada pelo

signo do provisório, do efêmero, condenada a ser desviada pelos sons do vento, trazendo

canções de outros lugares, palavras e sotaques também de outros lugares.

O nosso caminho se bifurca novamente e a palavra técnica nos detém. Ela se encontra

no título e no objetivo da tese de Dom Paulo Evaristo Arns, como também no objetivo de

nossa dissertação, que é problematizar a técnica composicional no cinema, pesquisando a

técnica de criação de São Jerônimo, de Júlio Bressane, através de uma reflexão sobre o

tempo e o que surge na temporalidade da imagem cinematográfica, e as possíveis técnicas

de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar que mostra o próprio tempo.

Dom Paulo esclarece que “palavra técnica, aos olhos dos modernos, toma um sentido

cada vez mais complexo. Em geral, é empregada significando o conjunto dos procedimentos

44

de uma arte, de um ofício” (ARNS, 1993, p.10). Júlio Bressane realiza um filme utilizando

na técnica de sua composição movimentos aberrantes de recepção da luz e do som, ordenando

e encadeando movimentos, libertando as imagens da cadeia do presente, à procura de outras

“falas”, outras imagens. Não mais como ação e reação, mas forçando passagens entre a

tradição dos clichês cinematográficos: tradição dos making off, dos espaços iluminados, das

imagens objetivas e subjetivas, da câmera na mão, dos enquadramentos, dos movimentos de

câmera e dos planos fixos. São Jerônimo, parece projetar uma mise-en-scène do tempo no

deserto.

Muitas terras parecem ter passado pelo filme sendo feito. A luminosidade nos leva a

lugares onde nada está seguro de estar lá, somos conduzidos para fissuras, instantes,

civilizações, literaturas, pinturas e cinema, elementos ultrapassando a direção que criam, tudo

preenchendo a superfície. Pensamentos se desenvolvem e se recobrem, obstáculos do

pensamento, mas também a morada e a potência do pensamento.

Repousamos novamente no circuito – o filme sendo feito e o peso da documentação;

nesse pequeno circuito, uma imagem bifacial – ora um filme que se reflete num filme sendo

feito, ora ele se toma por objeto de um processo a se constituir. Uma imagem de um espelho

que se recria. São Jerônimo é um filme que nos apresenta um modo de composição a mostrar

o próprio tempo.

3. Cristais de tempo

Gilles Deleuze, no capítulo “Os cristais de tempo”, do livro A imagem-tempo, se

reporta a Bergson (1999) para desenvolver suas teses sobre o tempo. Inicialmente reflete que

o atual é sempre um presente, e que o presente muda ou passa, ele se torna passado, quando

já não é, ou seja, quando um novo presente o substitui. E ainda, para que o presente passe é

45

condição que ele já seja uma imagem presente e passada, pois se assim não fosse já passada

ao mesmo tempo que presente, não passaria. O passado coexiste com o presente que foi.

Segundo Deleuze (1990, p,102), o que constitui uma imagem-cristal é a operação mais

fundamental do tempo; como o passado não se constitui depois do presente que ele foi, e sim

ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado,

que por natureza diferem um do outro, ou que desdobre o presente em duas direções

heterogêneas, uma se lançando em direção do futuro e a outra caindo no passado. O tempo se

cinde, à medida que se afirma ou se desenrola: ele se cinde em dois jatos assimétricos, um

fazendo passar todo o presente e o outro conservando todo o passado. O tempo consiste nessa

cisão. Concluindo, é esta cisão que se vê no cristal. A imagem-cristal, portanto, não é o

tempo, mas podemos ver o tempo no cristal. O que vemos é a fundação do tempo, o tempo

não-cronológico dentro do cristal.

As grandes teses de Bergson sobre o tempo se expressam numa afirmação que parece

um lugar-comum, de que nós somos interiores ao tempo e não o inverso. No entanto, esse é

um grande paradoxo: o tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, é ele a

interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos e desviamos. Portanto, as teses do

tempo para Bergson assim se apresentam: a) o passado coexiste com o presente que ele foi; b)

o passado se conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); c) o tempo se

desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva.

O filme São Jerônimo nos mostra como somos habitantes do tempo, como nos

movemos nele, em formas de tempo que nos levam, nos prendem e nos desviam.

O filme, por estar sendo filmado, desempenha o papel de uma imagem virtual, ao

mesmo tempo que é uma imagem atual. O que vai acontecer no filme, acontece e já

aconteceu, uma simultaneidade, onde os presentes nunca cessam sem estarem passando,

46

tornando o tempo inexplicável. Esses presentes implicados coexistem e se cristalizam num

circuito, conferindo à narração do filme um novo valor, que apaga as ações sucessivas.

O tempo no filme São Jerônimo parece possuir uma arquitetura envolvendo Bressane

e a equipe técnica no ato de fazer o filme, como formas de presentes nas imagens visuais e

sonoras e na montagem. Simultaneamente, as próprias imagens sonoras e visuais e a

montagem saltam do passado em que foram realizadas para outro presente que é o próprio

filme, e um já passado envolvido no filme feito. Estamos no domínio do tempo, um tempo

enrolado.

Os atores se apresentam também fundando tempos, eles se apresentam como duplos,

como atores e como personagens. Everaldo Pontes ao interpretar Jerônimo não se afasta do

ator Everaldo e nem do seu sotaque nordestino. Todas as irmãs religiosas se apresentam lendo

pausadamente textos numa imobilidade de ação que chega a nos incomodar. Ambos

provocando fissuras, buracos na encenação deixando emergir à superfície do filme diferentes

imagens de tempo.

Os inúmeros quadros vivos, ópticos e sonoros apresentados no filme são imagens

especulares da rica iconografia a respeito de São Jerônimo. Realizamos um levantamento dos

quadros pintados entre 1400 e 1800, cujo tema é São Jerônimo e relacionamos 89 obras

(Anexo B). Abaixo, o St. Jerome de Caravaggio, de 1607 – Oil on canvas – 117x157, que

compõe uma belíssima cena do filme, com duração de aproximadamente um minuto.

47

A encenação do sonho de São Jerônimo, descrito plano a plano no início deste

capítulo, é narrado em primeira pessoa, nos apresenta uma imagem-tempo. Esta imagem-

tempo é construída tecnicamente através da montagem de dois planos: as batidas de um peito

de homem em direção à câmera e o de uma pedra no mesmo movimento e no mesmo ritmo

também em direção à câmera.

O que vemos não é o tempo, não é uma montagem de planos como continuidade de

tempo ou de espaço. O que vemos é a criação de um tempo: ora o corpo na câmera, ora a

pedra na câmera. Os efeitos de um passado (corpo batendo na câmera) e de um futuro (corpo

recebendo as batidas da pedra), e a câmera e o objeto de registro dessa imagem. A imagem de

um corpo caído com as espáduas machucadas – uma imagem-tempo. O que vimos não foi o

tempo da ação de alguém ser castigado, mas sim um tempo não-cronológico. A câmera se

apresenta como corpo de homem na passagem de um plano a outro. Um falso-raccord, uma

passagem perceptível de um plano a outro.

Os inúmeros planos fixos de paisagens áridas, os enquadramentos insistentes e a

profundidade de campo das pedras na paisagem quase desértica, se assemelham a uma

contemplação. Nos espaços vazios, sob a ação implacável da luz, as imagens parecem nos

mostrar o tempo, o tempo que não muda, através de uma imagem para além das pedras, para

além do deserto, para além do sertão, e para além do homem.

A coexistência em uma mesma cena da imagem atual do personagem Jerônimo e a

virtual do leão e do esqueleto de um crânio, acompanham Jerônimo no deserto e em Roma em

várias cenas do filme. Aparecem como imagens especulares escalonadas em profundidade,

ora ópticas, ora sonoras, imagens de tempo, traduções entre o peso da documentação a

respeito do santo e a escritura cênica do filme – mise-en-scène a projetar no filme o que os

textos projetaram no tempo.

48

Em alguns diálogos, as palavras proferidas pelos personagens parecem serem lidas,

elas são expressas pelos atores como se eles estivessem lendo os escritos do Santo Doutor, e

assim compondo uma indiscernibilidade entre a encenação, a obra e a vida.

A vida ensaia sair do palco e o som efetua este movimento, ele ensaia derramar a vida

em outros lugares. Nos arrastam o som do vento, os cantos dos pássaros e as músicas, ou

poderíamos dizer que quem nos arrasta é o tempo, são imagens sonoras puras.

São Jerônimo é o presente que passa, e nesse sentido a seqüência de abertura do filme

é exemplar. Tecnicamente os movimentos do travelling apreendendo a equipe de produção do

filme, mergulhando nela, só poderiam ter sido registrados por um objeto alhures em

movimento, algo do fora, da superfície; e ao final da seqüência quando uma pessoa da equipe

se coloca diante da câmera, a tela escurece estamos diante de uma imagem de um passado, um

passado que se conserva, o passado da câmera desligada e dá-se início ao filme. Assim, o

passado que se conserva assume as virtudes do começo do filme e do recomeço.

Realizamos uma primeira apresentação do tempo no filme São Jerônimo, o tempo

fluindo na imagem do filme São Jerônimo, e mostrando aquilo que permanece. Começamos a

apreender o tempo em sua forma pura, iniciamos nosso desenho à procura da forma imutável

do que muda?

Os dois pontos nos colocaram frente a frente com o mundo e com o cinema. O peso da

documentação a respeito de São Jerônimo e o filme sendo feito, um instante que se desdobra

em uma pergunta: o que do peso da documentação sobre Jerônimo se deixa envolver no filme

sendo feito? É o acontecimento8, estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado e ainda-por-

vir-e-já-presente. É o tempo, o tempo de Aion. Transcrevemos o conceito de Aion, formulado

Deleuze, em Lógica do sentido:

8 O conceito de acontecimento é exposto por Gilles Deleuze no livro Lógica do sentido (2003, p.177- 178).

49

Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo.Em lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e umpassado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinitoem passado e futuro, em ambos sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, é oinstante sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente empassado e em futuro, em lugar de presentes vastos e espessos quecompreendem, uns em relação aos outros, o futuro e o passado (DELEUZE,2003, p.193).

Desenvolveremos no Capítulo II, um estudo do tempo em Deleuze, por considerarmos

que São Jerônimo, de Bressane, é um cinema da imagem-tempo. A obra de arte apreende um

tempo que ainda não está desdobrado em suas séries e dimensões, e que remete a um estado

complicado do tempo, afirma Peter Pál Pelbart em O tempo não-reconciliado, o estado mais

complicado do tempo, que ainda não está desdobrado e desenvolvido em suas séries e

dimensões:

A obra de arte “constitui e reconstitui sempre o começo do mundo” [...] “Aessência artista nos revela um tempo original, que ultrapassa suas séries esuas dimensões; um tempo ‘complicado’ em sua própria essência, idêntico àeternidade” [...] A arte revela a eternidade, não no sentido de uma ausênciade tempo, mas como um tempo original absoluto, complicado, tempo deessências, que não têm, diferentemente de Platão, a estabilidade e aidentidade garantidas. É esse “tempo redescoberto” através dos signos daarte, “tempo primordial, que se opõe ao tempo desdobrado e desenvolvido,isto é, ao tempo sucessivo que passa, ao tempo em geral que se perde”(PELBART,1998, p.10-11).

Os dois pontos nos colocaram, de um lado, diante da pedra e de outro, diante da

câmera; de um lado diante do silêncio e de outro do rumor do vento, de um lado diante da

50

passado e do futuro. E completa Borges: o pensamento mais fugaz obedece a um desenho

invisível e pode coroar ou inaugurar uma forma secreta.

Os dois pontos nos colocam diante de uma desarticulação do tempo, ou de uma forma

secreta do tempo. Um tempo complicado numa dramatização cinematográfica de múltiplas

faces: faces de espelhos de múltiplas faces, faces que contaminam de falsidade os fatos, os

acontecimentos, as imagens sonoras e visuais, mas não a memória deles.

Os dois pontos, nas gramáticas, têm por função, em geral, serem definidos pela

interseção de dois parâmetros, de dois valores: um de pausa e um semântico, marcando a

relação indissolúvel entre dois sentidos, cada um parcialmente completo em si mesmo. Não

usamos os dois pontos pensando identidades entre os dois lados, JÚLIO BRESSANE APRESENTA

e SÃO JERÔNIMO, nem conexão lógica entre eles. Colocamos os dois pontos como abertura,

como um deslocamento além da imagem de Júlio Bressane e da imagem de São Jerônimo,

como um pensamento fugaz, passagem para continuar a procurar as técnicas de ver, sentir e

ouvir o tempo como um lugar a mostrar o próprio tempo.

51

CAPÍTULO II

NOTAS DE TEMPO EM DELEUZE ...

Então, [Alice] ficou sentada ali, com os olhos fechados, e quase acreditandoestar mesmo no País das Maravilhas. Mas sabia que bastava abrir os olhospara que tudo voltasse à realidade enfadonha: a grama se agitaria somentepelo vento; as águas da poça se ondulariam apenas pelo remexer dos bambussoprados pela brisa; o tinido das xícaras se transformaria no soar dos sinosdas ovelhas; e os gritos estridentes da Rainha na voz do pastorzinho. Oespirro do bebê, o guincho do Grifo, todos os outros sons estranhos setransformariam (ela bem sabia) no barulho que vinha da fazenda vizinha...Enquanto os mugidos do gado ao longe tomariam o lugar dos soluços tristesda Tartaruga Falsa. Finalmente, ficou imaginando como seria aquela mesmairmãzinha no futuro, quando fosse adulta, e como conservaria, em sua idademais madura, o coração simples e amoroso de sua infância. E como reuniriaem sua volta tantas outras crianças, e faria seus coelhinhos curiososbrilharem com muitas histórias estranha, talvez até com a mesma história doPaís das Maravilhas – um sonho de um tempo tão distante! E como reagiriadiante das tristezas mais contidas dessas crianças, e como se sentiria felizcom as alegrias mais singelas de seus coraçõezinhos, lembrando sua própriainfância e aqueles felizes dias de verão. Lewis Carroll, As aventuras de Alice no País das Maravilhas.

Os dois livros de Gilles Deleuze A imagem-movimento e A imagem-tempo se

apresentam como práticas de conceitos que o cinema suscita e que estão relacionados com

outros conceitos que correspondem a outras práticas. Deleuze escreve esses livros

respectivamente em 1983 e 1990 e ele afirma no último parágrafo de A imagem-tempo:

Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E, no entanto, sãoconceitos do cinema, não teorias sobre o cinema. Tanto assim que sempre háuma hora, meio-dia ou meia-noite, em que não se deve mais perguntar “oque é o cinema? mas “o que é a filosofia?”. O próprio cinema é uma novaprática das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer comoprática conceitual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada(psicanálise, lingüística), nem reflexiva, basta para constituir os própriosconceitos do cinema (DELEUZE, 1990, p.332).

Neste capítulo pesquisaremos a imagem-tempo como um regime original das imagens

e dos signos dos cinemas da modernidade, através das teses de Gilles Deleuze.

52

1. Cinema 1 – A imagem-movimento

Cinema 1: A imagem-movimento, um livro em que se é obrigado a saltar afenda que desloca o pensamento, a reencadear fragmentos de discurso, restosde imagens, pedaços de sentido e de não-sentido! É como uma superfície,um plano em que, de folha em folha, erguem-se imagens do pensamento, umcartoon filosófico (MARTIN, 2000, p.99).

Os livros de Deleuze sobre cinema não são livros de filosofia sobre o cinema e nem

reflexões sobre o cinema, mas sobre os conceitos que o cinema suscita e que não são dados no

cinema. Os livros de Deleuze propõem uma alternativa à leitura estrutural ou fenomenológica

do cinema. As imagens cinematográficas, para ele, não constituem uma língua ou uma

linguagem e sim uma massa plástica, uma matéria sinalética com traços de modelos sensoriais

(visuais e sonoros), cinésicos, intensivos, afetivo

53

Mas como pensar imagem neste mundo em movimento? Como pensar no conceito

imagem-movimento? Imagem-movimento pode ser definida como matéria fluente ou como

luz. Entre uma imagem e um movimento, entre imagens e movimentos surge uma identidade

absoluta, o conceito de imagem-movimento, não uma imagem à qual se acresce o movimento.

Bergson se colocava na contracorrente da psicologia clássica, e as imagens não já estavam na

consciência, e o movimento já não estava no espaço.

Entre todas as imagens que agem e reagem sobre todas as suas faces surgem os

intervalos, os hiatos, imagens que têm reações retardadas e, ao contrário de prolongar-se em

excitação, selecionam ou organizam a própria excitação em um movimento novo. São as

imagens-movimento. São a própria matéria, matéria não-lingüisticamente formada, matéria

sinalética. São como um centro de indeterminação, obstáculo à propagação indefinida da luz,

écran9 negro em que esta se reflete e se revela. Um ser vivo, ou uma câmera são, portanto,

subtrativos, no sentido que retêm aquilo que chega a eles.

Deleuze e Bergson nos dizem sobre a luz: a luz está nas coisas e não em quem as vê. A

luz é imanente à matéria; ao propagar-se indefinidamente ela será revelada quando refletir ou

rebater sobre outras imagens que lhes servirão de écran negro (nossa consciência como

opacidade).

Preensão retardada, indeterminação, imprevisibilidade. A subjetividade, por um lado,

como seleção e onde uma espécie de alucinação devolve o sujeito à vibração pura da matéria,

e por outro lado, a materialidade de uma onda luminosa se ultrapassando no limite da câmera

perder o centro. Filmar a interação universal de imagens que variam umas sobre as outras, a

câmera pode registrar uma paisagem sem presença humana, a câmera como um aparelho

9 O termo écran tem, em francês, uma série de usos, em virtude de seu sentido de anteparo que veda a passagemda luz que ele é usado por Bergson e por Deleuze. Bergson mostra que a imagem é luminosa ou visível em simesma, ela precisa apenas de um écran negro que a impeça de se mover em todos os sentido

54

automático que varia continuamente seus movimentos e ângulos, libertando o olho de sua

condição, a visada da câmera não mais centrada na visão frontal perspectiva.10

A câmera cinematográfica é um dispositivo transdutório11, quer seja óptica12 ou

digital13, ela capta uma quantidade insana de fótons e registra uma informação já tradutória.

Uma breve invocação sobre a técnica da fotografia cinematográfica se faz necessária.

Recorremos aos conhecimentos14 do professor e diretor de fotografia Waldemar Lima, que

assina a direção de fotografia de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

Waldemar Lima afirma que na fotografia óptica a sensibilidade à luz é uma qualidade

da película. No vídeo, diferentemente da câmera cinematográfica, a imagem é produzida

quando um sensor eletrônico, o CCD15, é colocado no plano focal. São os CCDs e os

circuitos associados na câmera que se encarregam de transformar os diferentes níveis de luz e

cor em sinais elétricos e criar imagem. Com o advento da digitalização, vimos desaparecer

grande parte do ruído analógico produzido pelos CCDs, na captura da luz.

10 Brakhage, Michel Snow, Belson e Jacobs, expoentes do cinema experimental americano, reconheceram ainfluência de Vertov, filmaram signos de uma gênese, de uma percepção gasosa, o livre percurso de cadamolécula. Filmaram respectivamente os verdes vistos por um bebê em um campo; a câmera perdendo o centroem A região central e as formas e movimentos coloridos remontando às forças moleculares ou atômicas.11 Segundo o dicionário Houaiss, em Física diz-se de ou sistema ou dispositivo capaz de transformar uma formade energia em outra.12 A imagem se forma diretamente na película (acetato).13No sistema digital, sinal de vídeo é registrado sob a forma de números, podendo serem registradosdiretamente, ou derivados de um sinal analógico. A qualidade de um sinal de vídeo digital é determinada pelaprecisão e freqüência de uma leitura, periodicamente medida e numericamente gravada. Quanto mais preciso o“sistema de leitura” (maior os números dos espaços decimais) e quanto mais freqüente a ocorrência da “leitura”(maior o índice de leitura) mais exata será a representação da imagem pelo sinal de vídeo digital. Os sinais dosvídeo digitais podem ser gravados, transmitidos e manipulados repetidamente sem a introdução de ruídos,distorções ou adulteração do sinal.14 Apostila “Workshop – A fotografia na criação de filmes”.15 São os CCDs que fazem a transformação da imagem captada pelos raios de luz em impulsos elétricos queserão gravados na fita. Em vídeo, as imagens estão em movimento, e portanto não basta registrar estasintensidades de corrente em determinado instante e sim a todo instante. Para tanto um circuito eletrônico “varre”periodicamente o CCD, percorrendo-o e “anotando” em cada ponto a intensidade da corrente naquele momento.À medida que essa leitura é feita, uma seqüência de valores de intensidade de corrente é produzida pelo circuitoleitor do CCD. Para registrar esta seqüência, uma fita magnética passa em velocidade constante sobre umdispositivo de gravação (cabeça de vídeo) e um processo eletrônico transforma essas variações de intensidade decorrente, em variações equivalentes de campo magnético, magnetizando a fita. Desta forma, a imagem projetadano CCD é registrada na fita.

55

Ainda sobre fotografia e imagem cinematográfica, obrigatoriamente temos de abordar

o papel dos filtros16. Waldemar Lima afirma que parece haver tantos filtros para quantas

aplicações se desejar. E todos os filtros atuam restringindo a luz e outras radiações que

chegam à superfície terrestre. Os filtros alteram a luz que impressiona a película e o CCD,

alterando a imagem cinematográfica. Os filtros podem ainda ser usados para corrigir

distorções de cores, variações de temperatura da luz, como também para conseguir uma

fotografia colorida com brancos mais puros (sem infiltração de azul) e em que os tons da

epiderme sejam mais naturais. Existem também os filtros polarizadores, utilizados para

reduzir o reflexo ou para escurecer o céu; exemplificando, um filtro Ultra Violeta elimina a

névoa atmosférica. Ou ainda, os filtros azuis ou misturas de filtros criam cenas noturnas.

Voltemos ao movimento e ao cinema como mundo. Deleuze cria sua classificação das

imagens a partir de um movimento de variação constante, que tem durações variáveis e

também denominando imagem aquilo que aparece – o fenômeno. As imagens como

acontecimentos. Nada pára de se mover no plano das imagens-movimento. Entre movimento

e imagem adentra o tempo.

Cada imagem-movimento exprime o todo que muda em função dos objetos entre os

quais o movimento se estabelece. A imagem-movimento se comporta como uma matriz ou

uma célula de tempo.

Entre percepção e imagem há um menos (–), retemos da imagem alguma ação, que

selecionamos em função das reações retardadas. Subtraímos da imagem o que não nos

interessa; Deleuze conclui que uma das características da subjetividade é ser subtrativa. Eis o

primeiro tipo de imagem-movimento, este centro de indeterminação que elimina da imagem

faces ou partes, é o que percebemos, é o que aparece, e é denominada imagem-percepção.

16 Os filtros são geralmente placas de cristal, pintados com tinta colorida transparente e servem para absorverparte das radiações que incidem sobre ele. Exemplificando, um filtro vermelho absorve as outras cores e deixapassar somente a luz vermelha.

56

O centro de indeterminação é assim denominado porque a reação não se encadeia

imediatamente à ação sofrida, o intervalo modifica o contínuo movimento das faces a se

tocarem em outras faces, portanto existem ações que são percebidas pelas partes com

imobilidade relativa de outras reações executadas pelas partes da imagem que tem graus de

liberdade. Nesta operação percebemos a ação das coisas sobre nós e a nossa ação possível

sobre as coisas, reporta-se o movimento a “atos” (verbos), passa-se da percepção à ação, da

imagem-percepção à imagem-ação.

Mas o que se passa entre a percepção e a ação, no intervalo? É uma afecção. É um “eu

sinto qualquer coisa”, um sentir interior. O intervalo não é ação, nem percepção, é sentimento.

Afeto. Um afeto é como um espaço entre uma ação sofrida e uma reação executada. Quando

tenho um afeto, não sei mais o que percebo ou o que faço. Eis a imagem-afecção, a que ocupa

o intervalo.

Em nosso trajeto de relacionarmos Deleuze e Bergson, relacionamos também a

afecção com o movimento em geral, não apenas interrompido por intervalos ou nos

movimentos de translação, mas apresentando o movimento tornando-se expressão, qualidade,

tendência, ritmo de um elemento imóvel.

A imagem-movimento tem duas faces, segundo Deleuze, uma em relação aos objetos e

outra em relação a um todo. Ou ainda, a primeira face é o enquadramento, e a montagem a

outra; a primeira voltada para os objetos e a segunda para o todo.

A montagem é o que constitui o todo, e nos dá uma imagem do tempo. Ela é o ato

principal do cinema, segundo Deleuze. E o tempo é necessariamente representado

indiretamente, porque resulta da montagem, que liga uma imagem-movimento a outra.

Montagem não é justaposição, não se faz por sucessão de presentes e nem adição; cada

imagem-movimento exprime o todo que muda, em função dos objetos entre os quais o

57

movimento se realiza, portanto o plano já é uma montagem particular. E a imagem-

movimento uma matriz, um bloco de espaço tempo.

O tempo já está implicado no plano, porque depende do movimento, o tempo é

interior ao plano, portanto, o tempo depende da montagem e do plano. O tempo depende do

movimento dos objetos no plano. No cinema o tempo nos é dado como uma percepção.

Um movimento normal de alguém atravessar uma porta, conseguido através de dois

planos, nos dá uma representação indireta do tempo, o subordina a um movimento do mundo,

a um espaço conectado reconhecido do mundo. O corte pressupõe uma sucessão, intervalo

entre movimento recebido e movimento executado.

Todavia, é através deste intervalo que Deleuze propõe sua classificação das imagens-

movimento: imagem-percepção (movimento recebido), imagem-ação (movimento executado).

O próprio intervalo se torna centro, e o esquema sensório-motor restaura a proporção,

preenche o corte. A percepção adentra ao intervalo, restaura o movimento. A salvação do

movimento nos apresenta o tempo. Uma imagem do tempo.

Chegamos a um tipo de imagem do tempo, à imagem indireta do tempo.

1.1 Signos do tempo

No cinema dizemos há pessoas que se movem, mas é mais do que pessoas e coisas que

se movem, é imagem-movimento, portanto o que é imagem-movimento que não está na

imagem em movimento? Deleuze responde que é a câmera e os movimentos de câmera.

Em aula sobre “Os aspectos do tempo, Bergson e o movimento, Kant e o sublime

dinâmico”, ministrada no dia 12/04/1983, no Cours Vincennnes - St. Denis17, Deleuze busca

capturar na imagem-movimento figuras do tempo.

17 (Web Deleuze. DELEUZE/IMAGE MOUVEMENT IMAGE TEMPS Cours Vincennes - St Denis: Leibniz(Foucault-Blanchot-Cine)-1982 - Télécharger ce cours en: pdf (disponible) rtf (disponible)

58

A câmera equivale a todo movimento possível, o movimento de câmera se relaciona

com o movimento ou o veículo do movimento. A imagem cinematográfica faz uma imagem-

movimento, ou uma modulação de luz e extrai movimento de algo que é móvel e também de

seu veículo. A imagem cinematográfica é indissoluvelmente imagem-luz, imagem-movimento

porque extrai movimento de seus móveis e de seus veículos e é imagem-luz porque modula a

luz.

Segundo Deleuze, Bergson declara que para compreender o movimento em sua

concretude, haveremos de chegar por um “ato do espírito” que ele chama de intuição, que o

separa e o extrai de seu móvel e de seu veículo. Imagem-movimento é o movimento em si.

No contexto cinematográfico, Deleuze pensa o conceito bergsoniano de imagem-movimento

afirmando que na imagem cinematográfica o movimento não é separado de um móvel ou

veículo: o movimento de um homem, de um leão, ou de um pássaro, de um trem (isto é,

personagens e veículos). Paradoxalmente, imagem-movimento é o movimento separado do

que move ou de qualquer veículo que move; e no cinema, o movimento que não está naquilo

que move é a câmera e seus movimentos. A câmera é o ecran que capta os movimentos,

independentemente do móvel estar se movendo ou não, a mobilidade da câmera captura o

movimento puro, a câmera se faz transformadora de movimento.

O cinema extrai também o movimento puro por outro meio – a montagem dos planos

fixos. Imaginemos uma sucessão de planos: um homem está rezando no deserto, recebe uma

carta e um convite para ir a Roma; num outro plano uma construção arquitetônica

exuberante, e o homem conversa com outro homem. A montagem extrai movimento puro da

viagem deste homem a Roma.

Como poderemos apreender o tempo nas composições das imagens-movimento no

cinema ? Apreendemos o tempo como imagens indiretas, como uma figura indireta do tempo.

O tempo como imagem indireta tem um duplo aspecto: como intervalo (parte do movimento)

60

profundidade, abismo de tempo que tem também por outro signo o zero, ou melhor, em sua

distância de zero. Toda intensidade é apreendida no instante e o instante é este aspecto do

tempo, portanto os aspectos do tempo intensivo, indireto ao movimento são: a ordem do

tempo e o instante.

Temos portanto quatro signos, quatro potências do tempo, a saber: o intervalo e o

imenso, para a cinecronia, e o instante e ordem do tempo, para a cromocronia.

2. Cinema 2 - A imagem-tempo

O cinema serve a Deleuze, sem dúvida alguma, para revelar determinadascondutas de tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares,espiraladas, declinantes, salvadoras, declinantes, salvadoras, desembestadas,até as cindidas, duplicadas, ilocalizadas, multivetoriais, vibratórias,moleculares (PELBART, 1998. p.27).

O livro de cinema A imagem-tempo, e mais especificamente o primeiro capítulo “Para

além da imagem-movimento” nos permite apreender das noções utilizadas de forma

recorrente por Deleuze – tempo em estado puro, o tempo em pessoa e imagem direta do

tempo. Escolhemos este primeiro capítulo por ele se constituir numa transição entre as

imagens-movimento do cinema clássico e as imagens-tempo do cinema moderno, transição

que se observa no corpo do próprio livro e que vem ao encontro de um dos objetivos de nosso

trabalho, que é pesquisar como as imagens de São Jerônimo, de Júlio Bressane, comportam a

força do tempo.

Relacionamos as noções e os exemplos empregados por Deleuze através das citações

dos filmes, dos autores e dos personagens, um conjunto de imagens agindo e reagindo umas

sobre as outras em todas as suas fases, na tentativa de pesquisar que elemento novo surge no

conjunto das imagens-movimento que colocava em crise a ação? Estaria esse novo elemento

relacionado com novos signos que o levassem para além do movimento? Este elemento

61

envolve o tempo em estado puro? E que relações se estabelecem entre o tempo em estado

puro e a imagem direta do tempo?

Deleuze inicia o primeiro capítulo deste livro traçando um diagrama do neo-realismo

italiano, afirmando que o neo-realismo inventou um novo tipo de imagem.

Zavattini18 define o neo-realismo como uma arte do encontro – encontros

fragmentários, efêmeros, interrompidos, fracassados. Deleuze descreve o primeiro encontro

na seqüência de Umberto D:

A jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série degestos maquinais e limpando um pouco, expulsando as formigas com umjato d’água, pegando o moedor de café, fechando a porta com a ponta do péesticado. E, quando seus olhos fitam sua barriga de grávida, é como senascesse toda a miséria do mundo. Eis que, numa situação comum oucotidiana, no curso de uma série de gestos insignificantes, mas que por issoobedecem, muito, a esquemas sensório-motores simples, o que subitamentesurgiu foi uma situação ótica pura, para qual a empregada não tem respostaou reação. Os olhos, a barriga: um encontro [...] (DELEUZE, 1990, p.10).

A respeito dos encontros nos filmes de Rossellini, podemos observar personagens em

trânsito, em viagens, uma criança visita um país estrangeiro e morre pelo que vê, como no

filme Alemanha ano zero; já em Stromboli, uma estrangeira se vê as voltas com uma

revelação; em Europa 51 uma burguesa que, a partir da morte do filho, atravessa grandes

conjuntos residenciais de favelas a fábricas; em Viagem a Roma, uma turista ao olhar para

lugares antes não vistos descobre algo insuportável. O que ela vê nós também vemos, mas ao

mesmo tempo não conseguimos encontrar nas situações que ela vê, o horrível, o terrível. Um

estranhamento nos invade: o que ela viu que nós não conseguimos ver?

Deleuze então define que o neo-realismo é caracterizado pela ascensão de situações

puramente óticas e sonoras distintas das situações sensório-motoras da imagem-ação no

antigo realismo. E completa: “talvez isso seja tão importante quanto a conquista de um

espaço puramente ótico na pintura, ocorrida com o impressionismo” (DELEUZE, 1990).

18 Zavattini é considerado um dos principais cineastas do neo-realismo italiano.

62

E observa que em inúmeros filmes clássicos os personagens também se defrontam

com situações óticas e sonoras, com “descrições”, mas que no caso do neo-realismo elas não

reagiam às situações, havia uma impotência, um certo tipo de amordaçamento.

Deleuze se desvia do neo-realismo reportando-se a Alfred Hitchcock, indicando-o

como o inaugurador da reversão do ponto de vista, incluindo o espectador na cena em

contraposição ao neo-realismo onde o personagem se torna uma espécie de espectador. Esse

espectador está entregue a uma visão, parece perseguido por ela, não mais engajado em agir, e

cita como exemplo. Luchino Visconti, no filme Obsessão, em que a personagem vestida de

preto é possuída por uma sensualidade alucinatória, uma visionária, uma sonâmbula ao invés

de sedutora.

O autor recapitula os caracteres pelos quais define a crise da imagem-ação:

forma/perambulação, a difusão dos clichês, os acontecimentos mal acoplados a quem vê, o

afrouxamento dos vínculos sensório-motores, mas adianta que esses caracteres ainda não

definem a nova imagem: a imagem direta do tempo. Acompanhamos Deleuze no seu percurso

de encontrar a nova imagem, quando ele afirma que ela começa a aparecer em Obsessão, de

Visconti,

[...] onde os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônomaque os faz valerem por si mesmos [...] em Obsessão o herói chegando etomando posse visual do albergue, ou em Rocco e seus irmãos, a chegada dafamília que, toda olhos e ouvidos, tenta assimilar a imensa estação e a cidadedesconhecida (DELEUZE, 1990, p.13).

Complementa Deleuze, a situação não mais se prolonga diretamente em ação,

não é mais sensório-motora, como no realismo, mas antes sonora e ótica,investida pelos sentidos, antes de a ação se formar, utilizar e afrontar seuselementos. Tudo permanece real nesse neo-realismo (quer haja cenário ouexteriores), porém a realidade do meio e a da ação, não é mais umprolongamento motor que se estabelece, é antes uma relação onírica, porintermédio dos órgãos dos sentidos, libertos (DELEUZE, 1990, p. 13).

A diferença principal entre situações óticas e sonoras e uma situação puramente ótica

e sonora se estabelece a partir do espaço: um espaço qualquer, espaço desconectado,

63

esvaziado, perturbado, explicitando a crise da imagem-ação. A imagem não mais é induzida

por uma ação, como também não se prolonga em ação.

Fellini e Antonioni, respectivamente, em diferentes imagens subjetivas (lembranças

de infância, sonhos ou fantasmas visuais e auditivos) e objetivas (constatação, evidências),

transformam as personagens em espectadoras dos papéis que elas mesmas representam, não

agindo sem se ver agir, ou então transformando ações em deslocamentos de figuras no espaço

(Aventura, de Antonioni).

Esta imobilidade está presente nos filmes neo-realistas, através dos tempos mortos e

dos espaços vazios, como os efeitos de acontecimentos sendo constatados, tendendo a perder

importância a distinção entre objetivo e subjetivo à medida que não se sabe se a situação é

real ou imaginária, física ou mental, é como se eles se refletissem um no outro.

A descrição realista pressupõe independência de seu objeto (portanto, distinção entre

real e imaginário), diferentemente da descrição neo-realista, que apaga ou rarefaz a realidade

e com isso faz surgir uma outra realidade que o imaginário ou o mental cria pelos sons e

imagens.19

Em Fellini, as imagens subjetivas entram num grau de objetividade através do próprio

espetáculo, dos que o fazem e de outros personagens, trazendo à superfície quase como um

“aplainamento” das perspectivas, um exemplo é o filme Oito e meio. Inversamente,

Antonioni constrói uma cadeia de imagens objetivas penetrando uma cadeia de estranhas

subjetividades, como em Crimes da alma, O grito, A aventura, Identificação de uma mulher,

O eclipse, Passageiro profissão repórter, substituindo o drama tradicional pelo drama de um

olhar imaginário de personagens. Independentemente dos pólos subjetivo e objetivo, real ou

imaginário, físico ou mental, as situações sonoras e óticas puras dão lugar a comunicações

entre eles, tendendo à indiscernibilidade.

19 Deleuze (1985, p.16) se refere a Robbe-Grillet e a seu texto “Temps et description”, in Pour un nouveauroman. Paris, Ed. Minuit.

64

O segundo movimento cinematográfico destacado por Deleuze, no referido capítulo

inicial de A imagem-tempo, é a nouvelle vague francesa, em que aproxima a nouvelle vague

do neo-realismo. Aproximação defendida pelas características expostas anteriormente: o

afrouxamento dos vínculos sensório-motores (personagens em perambulação) e a ascensão de

situações óticas e sonoras (cinema vidente).

Nesse sentido, Godard é exemplar, diz Deleuze. De Acossado a Pierrot le fou, de

filmes-baladas ao afrouxamento sensório-motor até a quase alucinação em Made in USA,

onde uma testemunha fornece sucessivas constatações sem conclusão nem traços lógicos;

depois Duas ou três coisas que sei dela, em que reflete sobre o conteúdo da imagem, mas

também sobre sua forma e funções, suas falsificações, até Salve-se quem puder (a vida), onde

assistimos a decomposição de um fantasma sexual em seus objetivos separados, visuais e

depois sonoros; em seguida Passion, ascensão de imagens pictóricas e musicais como quadros

vivos e a inibição do sensório-motor (gagueira da operária e tosse do patrão), até O desprezo,

em que assistimos ao fracasso sensório-motor do drama de um casal e ascensão literal de

subida aos céus da representação do drama de Ulisses. E Deleuze conclui: “através de todos

esses filmes, assistimos a evolução criadora: a de um Godard visionário” (1990, p.19)..

O terceiro encontro de Deleuze é com o cineasta Ozu, o primeiro a realizar uma obra

no contexto japonês com situações óticas e sonoras puras. A citação seguir, de Donald Richie,

a respeito do processo de criação de Ozu, é esclarecedora no que tange aos tempos mortos

desse cineasta:

No momento de atacar a escrita do roteiro, confiante em seu repertório detemas, ele raramente se perguntava qual seria a história. Perguntava-se,antes, com que pessoas o seu filme ia se povoar [...] Um nome era atribuídoa cada personagem, como também uma panóplia de características geraisapropriadas a sua situação família, pai, filha, tia, mas poucos traçosdiscerníveis. Esta personagem crescia, ou melhor, o diálogo que lhe davavida crescia [...] fora de qualquer referência a intriga ou a história [...]Embora as cenas de abertura sejam sempre cenas dialogadas, o diálogo nãogira aparentemente em torno de nenhum assunto preciso [...] A personagemera assim construída modelada, quase exclusivamente através de conversas

65

que tinha. E sobre o princípio “para cada plano, uma réplica” (RICHIE apudDELEUZE, 1990, p.24).

O objeto da obra de Ozu é a banalidade do cotidiano, apreendida como a vida

rotineira de famílias japonesas. Encontramos em seus filmes as formas de um cinema de

perambulação, como no neo-realismo e na nouvelle vague: viagem de trem, corrida de táxi,

excursões, voltas de bicicleta ou a pé, férias, idas e retornos com movimentos de câmera raros

(travellings lentos, câmera sempre baixa, planos fixos e frontais constantes, cortes ao invés

das fusões), montagem-cut. A montagem-cut que é uma característica que dominará o cinema

moderno como uma passagem ou uma pontuação puramente ótica entre as imagens, operando

diretamente, rarefazendo os efeitos de síntese entre os planos. O som é também afetado pela

montagem-cut culminando no procedimento “cada plano, uma réplica”. Deleuze conclui :

[...] esses procedimentos associados à ausência de intriga fazem apareceruma imagem puramente visual do que é uma personagem, e da imagempuramente sonora do que ela diz, uma natureza e uma conversaabsolutamente banais constituindo o essencial do roteiro (DELEUZE, 1990,p.24).

Segundo Deleuze, os tempos mortos produzem e recolhem o efeito do plano ou da

réplica, em seu prolongamento através dos silêncios e dos vazios bastante longos, mas nada

há de extraordinário ou relevante, nem situações-limite, nem situações banais. Tudo é banal,

é ordinário, nem os célebres contrários: vida e morte se distinguem em seus filmes como

tempos fortes, não há ações decisivas.

Deleuze afirma que os filmes de Ozu, do pós-guerra, continuam confirmando e

reforçando sua máxima de que tudo é cotidiano, e cita o que a personagem do filme A rotina

tem seu encanto (Sanma no aji) indaga, uma intrigante pergunta que tira tudo do lugar

deixando tudo imóvel novamente: “e se tivesse ocorrido o inverso, se o sakê, o samisen e as

perucas de gueixa tivessem de repente se introduzido na banalidade cotidiana dos

americanos...?” (DELEUZE, 1990, p.25). Bela pergunta, tira tudo do lugar deixando tudo

novamente imóvel.

67

morta está na diferenciação entre o pleno e o vazio, mesmo sendo em situações puramente

óticas e sonoras.

O vaso de Pai e filha se intercala entre o leve sorriso da moça e as lágrimasque surgem. Há devir, mudança, passagem. Mas a forma do que não mudado que não passa. É o tempo, o tempo em pessoa, um pouco de tempo emestado puro: uma imagem-tempo direta, que dá ao que muda a formaimutável na qual se produz a mudança (DELEUZE, 1990, p.27).

Deleuze cita outros exemplos de imagem de tempo. Nos filmes Sono yo no tsuma

(Mulher de uma noite) e Kigogkro (Coração caprichoso), a noite que se muda em dia, ou o

inverso, remete a uma natureza morta aonde a luz vai enfraquecendo ou aumentando, são

exemplos de natureza morta, exemplos do tempo, porque tudo o que muda está no tempo, mas

o próprio tempo não muda, não poderia mudar senão num outro tempo, ao infinito. No

momento em que as coisas mais se aproximam, mais se distinguem. As naturezas mortas com

duração de 5 a 10 segundos de qualquer objeto são precisamente a representação daquilo que

permanece, através de estados que mudam. Deleuze cita o exemplo da bicicleta num plano

longo, mostrando a forma imutável do que se move, permanecendo imóvel apoiada em um

muro, como no filme Ukigusa nomogari (História de ervas flutuantes) e completa:

A bicicleta, o vaso, as naturezas mortas são imagens puras e diretas dotempo. Cada uma é o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condições do quemuda no tempo. O tempo é o pleno, quer dizer a forma inalterávelpreenchida pela mudança. “O tempo é a reserva visual dos acontecimentosem sua justeza” (DELEUZE, 1990, p.28).

Continuando o percurso do aparecimento da imagem direta do tempo, Deleuze

desenvolve um estudo sobre clichês cinematográficos. Inicialmente afirma que, a exemplo dos

filmes de Ozu, cujo objeto é a banalidade cotidiana, podemos começar a pensar que a

imagem-ação no cinema tende a desaparecer em função de situações óticas e sonoras puras,

em ligações não mais sensório-motoras, mas em situações que libertam os sentidos em

relação direta com o tempo. E que a função dos opsignos é tornar sensíveis o tempo e o

pensamento, torná-los visíveis e sonoros.

68

O neo-realismo e a nouvelle vague colocaram em cena situações óticas e sonoras que

não mais se prolongavam em ação. No filme Stromboli, de Rossellini, a beleza é tão grande

como uma dor muito forte, em Tempo de guerra, de Godard, a beleza novamente é tão

fulgurante que a revolucionária recitando fórmulas, clichês tem seu rosto coberto por um

lenço, os carrascos tampam seu rosto e ela murmura (“irmãos, irmãos, irmãos...”). Há algo

muito forte tomando conta da imagem.22

Deleuze coloca uma questão: não seria o próprio intolerável inseparável de uma

revelação ou de uma iluminação? Esta pergunta se conecta com o sonho de São Jerônimo,

com todo o peso da documentação a respeito do santo e com as imagens do sonho de São

Jerônimo no filme homônimo de Júlio Bressane, para em seguida se desviar de São

Jerônimo, através do filme sendo realizado.

Federico Fellini em seus filmes, diz Deleuze, simpatiza com a decadência apenas sob a

condição de prolongá-la, de distendê-la, até o insustentável, através de técnicas como o

movimento de câmera (travelling) como meio de deslocar23, de inventar outros movimentos,

outras impressões visuais. Conecta-se, assim, com Ozu na apresentação do intolerável,

estendendo sobre a vida cotidiana a força da contemplação – é importante que personagem e

espectador se tornem, juntos, visionários.

As situações puramente óticas e sonoras despertam a vidência (fantasma, constatação,

crítica e compaixão), enquanto as sensório-motoras por mais violentas que sejam remetem a

uma função visual pragmática que “tolera” ou “suporta” a partir do momento em que um

sistema de ações e reações pode nascer dali.

Nasce uma nova série de personagens. No Japão e na Europa, a crítica marxista

denunciou esses filmes e seus personagens como passivos e negativos, de burgueses a

22 Paul Rosenberg vê isso essencial no romantismo inglês: apreender o intolerável ou o insuportável, o impérioda miséria, e com isso tornar-se visionário, fazer da visão pura um meio de conhecimento e de ação (DELEUZE,1990, p.29).

69

marginais que não mais modificavam, através de suas ações, o mundo; uma visão confusa e

não-transformadora. Deleuze repudia esta denúncia justamente argumentando que a fraqueza

dos encadeamentos sensório-motores, tem a capacidade de liberar grandes forças de

desconstrução. Como exemplo ele cita os inúmeros personagens estranhamente vibrantes em

Rossellini, e estranhamente informados em Godard. Tanto no Japão como no Ocidente esses

personagens são apreendidos como uma mutação, eles são formas mutantes. A mutação da

Europa depois da guerra, a mutação do Japão americanizado, a mutação da França em 68.

Deleuze, categoricamente afirma: “não é o cinema que dá costas à política, ele se torna

inteiramente político, mas de outra maneira”.

Ainda no que se refere aos personagens, a imprevisibilidade de alguns, a ambigüidade

de outros colocam em cena esse outro tipo de personagem, e um novo cinema aparece,

juntamente com um novo tipo de ator – o ator não-profissional – capaz de ver e de nos fazer

ver mais do que agir.

Os lugares-comuns do mundo estão perto de nós, mas ao invés de reconhecermos os

personagens em situações cotidianas, os vemos imobilizados. Gilles Deleuze quase define o

que é um clichê cinematográfico, citando Bergson literalmente:

Nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempremenos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, oumelhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesseseconômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas.Portanto, comumente, percebemos apenas clichês (BERGSON apudDELEUZE, 1990, p.31).

O novo tipo de imagem que nasce no cinema moderno se apresenta bloqueando os

esquemas sensório-motores ou esfacelando-os, e um novo tipo de imagem ótica-sonora pura

pode aparecer, uma imagem inteira e sem metáfora fazendo surgir a coisa em si mesma,

literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, radicalmente ou injustificavelmente,

como bem ou como mal.

23 Descolar no sentido de mostrar que o que parecia à primeira vista ligado, de mostrar que o natural são

70

Finalizando sua reflexão a respeito dos clichês, Deleuze afirma:

Os clichês foram criados para nos dar impressão de que vemos tudo naimagem. Nós não vemos tudo. Se através da montagem eu colocasse umaimagem de uma prisão em sucessão a de uma escola, eu estaria indicandouma semelhança – uma metáfora. Quando eu mostro como e em que umaescola é uma prisão eu realizo uma passagem, mostro como uma escola podeser prisão ou como as duas podem ser uma prisão (DELEUZE, 1990, p.32,grifos do autor).

Os novos personagens visionários ou videntes se constituem numa possibilidade de

tentar apreender aonde vai a imagem, ou ainda tentar encontrar o que foi retirado dela, ou

ainda, ao contrário, introduzir vazios, espaços em branco, refazê-la. Nesse processo, Deleuze

adverte que o difícil é saber em que uma imagem ótica e sonora não se torna ela mesma um

clichê.

Poderíamos dizer que quando os diretores apresentam enquadramentos obsedantes,

espaços vazios ou desconectados, e até naturezas mortas, eles estão interrompendo o

movimento, inventando outras tensões nos planos fixos, eles estão esvaziando os clichês,

perturbando as ligações sensório-motoras e transportando-as para além do movimento.

A imagem-movimento não desaparece do cinema moderno, mas é reposicionada sob

outras condições, descreve Deleuze:

a) A imagem-movimento e seus signos sensório-motores estão relacionados apenas à

imagem indireta do tempo (dependendo da montagem), enquanto na imagem ótica e sonora

pura , seus opsignos e sonsignos ligam-se diretamente a uma imagem-tempo que subordinou o

movimento e essa reversão faz não mais do tempo a medida do movimento, mas do

movimento a perspectiva do tempo. A imagem-tempo constitui todo um cinema do tempo,

com uma nova concepção e formas de montagem.

b) Ao mesmo tempo que o olho acede a uma função de vidência, os elementos da

imagem, não só visuais, mas sonoros, entram em relações internas que fazem com que a

imagem inteira seja lida e não menos vista, legível quanto visível. A literalidade do mundo

máscaras (DELEUZE, 1990, p.29).

71

sensível, não desaparece totalmente, mas o subordina aos elementos e relações internos que

tendem a substituir o objeto, a suprimi-lo à medida que aparece, deslocando-o sempre. O

cinema se constitui como uma analítica da imagem, implicando numa nova concepção de

decupagem (por exemplo: Ozu, última fase de Rosselini, Godard). Portanto a fixidez da

câmera não é a única alternativa ao movimento. A mobilidade da câmera não se contenta em

seguir o movimento das personagens, ou fazer movimentos dos quais as personagens são

apenas o objeto, mas em todos os casos subordinar a descrição de um espaço a funções do

72

Resnais, o achatamento da profundidade e a planeza da imagem em Dreyer, os longos planos

fixos de Antonioni e muitos outros. Os opsignos e os sonsignos são apresentações diretas do

tempo, os falsos-raccords são a não-ligação entre os planos e a imagem-tempo rompe o

círculo, do plano à montagem: o plano não comporta mais o tempo e a montagem deixa de ser

a sucessão. A imagem-tempo se abre sobre o tempo como uma matéria signica alijada do

movimento.

André Parente, em sua tese de doutorado, Narratividade e não-narratividade fílmicas,

orientada por Gilles Deleuze, apresenta três regimes de imagens no cinema. Primeiramente as

imagens-matérias ou imagens não-narrativas, isto é, imagens abordadas do ponto de vista do

regime gasoso de variação universal. Elas são acontecimentos que antecedem o homem e sua

relação sensório-motora com o mundo. São as próprias coisas, as coisas em si, as coisas tais

como reagem umas às outras em todas as suas faces e partes.

Em segundo lugar, as imagens-substantivas. As imagens substantivas são

acontecimentos que expressam as relações sensório-motoras entre o homem e o mundo

(percepção, afecção, sonho etc.). As imagens ou acontecimentos sensório-motores

confundem-se com sua realização no espaço hodológico (espaço que pode ser medido) vivido

que elas expressam.

Finalmente, as imagens-tempo ou acontecimentos ideais, que não se confundem com

as imagens-movimentos (imagens-matérias ou imagens-puras, imagens-substâncias ou

imagens-ação), que se realizam no curso empírico do tempo. As imagens–tempo são

acontecimentos ideais, abordadas do ponto de vista de um regime de temporalização ou

regime falsificante, no qual cada imagem implica necessariamente uma rachadura do “eu”,

uma fissura do espaço campo de interioridade, uma bifurcação do tempo, um esquecimento

fundador, uma memória vertical consistente, uma repetição fundamental.

73

A imagem-tempo é um acontecimento, abordada do ponto de vista de um ato de

presentificação e ato de presentificação é uma narração que fazemos de nossa ação a nós

mesmos ou a outras pessoas no mesmo momento em que a realizamos.

André Parente (2000) conclui que ao fazer isso, nós nos despojamos de nosso “eu”, e o

que nos acontece sempre já aconteceu. A narração falsificante reúne em uma única história o

passado, o presente o futuro, que por si só, são fabulações.

As reticências fecham e deixam em aberto o título deste capítulo, os três pontos fazem

as palavras que compõem o título Notas de tempo em Deleuze ... dançarem para o fora e

alcançarem o poema de Júlio Bressane (2000, p.545-548) e as ... Notas de tempo em

Bressane.

Cinema Deleuze

Júlio Bressane

[...]

E nesse domínio em que a Imagem-afeto e a Imagem-ação não podem representarsurge a Imagem-pulsão,ela rasga, desarticula o próprio tempo...É uma desmontagem-remontagem da mancha Losey.Por escolha e mistura de verdadeiros topoi visuais,expressão de um movimento do espírito transformado em imagem.É um cinema inatual, novo.(Ele pertence à tradição do novo, que ele contra-efetua.)Cinema do cinema.Ele fez outros filmes: com Dreyer, Bresson, Hitchcock (“a câmera desvelada”: oenquadramento, o movimento de câmera que manifestam relações mentais. Não é câmera-olho, mas olho-espírito, cinema-vidência onde a descrição substitui o objeto), com OrsonWelles, sobretudo.Ele foi o primeiro cineasta filósofo.É a primeira vez.Porque os filósofos não se ocuparam do cinema, mesmo quando o freqüentavam,por um temor de precedência:pois a filosofia estava por si só ocupada numa tarefa análoga à do cinema.Pôr movimento no pensamento, como o cinema o põe na imagem.Se há toxicófago e taxicófago em Gilles Deleuze , ele o deve ao cinema.Durante mais de quarenta anos, ele viu nos filmes, filmes que ninguém viu.Pensou cinema quando este foi desprezado por intelectuais e acadêmicos.Com ele, o signo cinematográfico contaminou a filosofia.Só uma vontade de arte pode nos salvar – escreve, sentencioso, o filósofo da imanência.Chamado selvagem a duas ou três coisas de um deserto vermelho...

74

CAPÍTULO III

... NOTAS DE TEMPO EM BRESSANE

[...] eu estava trabalhando, desde a década de 80, as cartas e os escritos deSão Jerônimo, pensando em como poderia realizar aquela obra irrealizável,como transformar aquele texto, como criar alguma imagem para isso... Essaimagem me foi como que dada, essa imagem do sertão.

Júlio Bressane (sobre o filme São Jerônimo)24

[...] criou-se uma relação, uma associação entre literatura e cinema demaneira incompleta, insatisfatória: como tradução. De certa maneira, aliteratura foi para o cinema sem a literatura, foi apenas como enredo, nãoé? É aí que começa a se colocar a questão da tradução, que é ainda umaterra incógnita. É um terreno de pensamento experimental, sem dúvida. Umpensamento de tentativa.

Júlio Bressane (sobre o cinema em proximidade com outras artes)25

Os filmes de Júlio Bressane apresentam como característica a prática da

experimentação; a diferença entre cada um deles é o que confere ritmo ao conjunto de sua

obra. De 1967 até hoje, são aproximadamente 38 filmes, incluindo Cleópatra, ainda inédito

nas telas brasileiras. Estas Notas de tempo foram redigidas tentando “ver” como ele fez São

Jerônimo.

O que se pode ver na imagem de São Jerônimo, de Júlio Bressane? A questão ecoa

numa afirmação: este filme pertence à modernidade do cinema.

24 BRESSANE, Júlio. Trajetória. In: Cinema Inocente: retrospectiva Júlio Bresane. São Paulo, 2003, p.28.25 BRESSANE. Júlio. Conversa com Júlio Bressane / Miramar, Vidas Secas e o Cinema no vazio do texto.Cinemais, Rio de Janeiro, n. 6, p. 7-42, jul/ago 1997. Entrevista a SARNO, Geraldo & AVELLAR, Carlos.

75

Invocamos ao longo deste trabalho diversas diferenças entre o cinema clássico e o

cinema moderno, e uma delas ressoa em todas elas, é a característica da imagem no cinema

moderno de adquirir o estatuto de leitura, de percepção da percepção, nos fazendo ver algo

nela, tornando-a legível.

O que vem a ser a legibilidade da imagem moderna? E como pensar o conceito de

imagem-tempo em São Jerônimo? E por fim, o que isso nos ajudará no nosso escopo de

desenhar um traçado do tempo no filme? Primeiramente bifurcando-nos das próprias

perguntas e instalando-nos em uma afirmação de Gilles Deleuze: O que define o cinema

moderno é um vaivém entre palavra e imagem que vai inventar a nova relação delas

(1990,p.293). Afirmação reiterada em um curso em St. Denis:

Porque todo un aspecto del cine moderno, y sin duda los más grandesautores contemporáneos definiéndolos de la manera más sumaria, podríamosdecir que han introducido una falla en el cine, una béance fundamental entrelo audio y lo visual. Sin duda por ahí han promovido lo audio-visual a unnuevo estadio, haciendo pasar una falla entre ver y hablar, entre lo visible yla palabra.26

São Jerônimo é um filme de imagens que imobilizam o visual e também o sonoro.

Esta afirmação será dissecada no decorrer deste capítulo.

Para efeito de análise. classificamos São Jerônimo em Abertura e três movimentos: o

primeiro movimento é o Deserto descrito plano a plano em seus 31 minutos, de um lado

descrevemos minuciosamente as imagens visuais e de outro as sonoras, assim procedemos por

apostarmos na hipótese de que São Jerônimo pode ser considerado um cinema de imagem-

tempo; ao segundo movimento denominamos Roma de Bressane, e escolhemos transcrever

todos os atos de fala dos personagens em suas aparições como atos de criação sonora das

imagens audiovisuais; e no terceiro movimento, Sertão, destacamos seus planos finais.

Terminamos este capítulo, e com ele este trabalho, nos desviando dos dois pontos, nossa

26 (Web Deleuze. DELEUZE/IMAGE MOUVEMENT IMAGE TEMPS Cours Vincennes - St Denis: Leibniz(Foucault-Blanchot-Cine)-1982 - Télécharger ce cours en: pdf (disponible) rtf (disponible)

76

preocupação no início desta dissertação, a saber: o peso da documentação a respeito de São

Jerônimo e o filme sendo feito.

Convidamos o leitor à percorrer este capítulo através das palavras, dos espaços, dos

sons, das pontuações de um texto que se propõe a criar um desenho do tempo no filme São

Jerônimo. Estamos perfeitamente conscientes de suas insuficiências, mas esperamos que a

maneira de colocar o problema do tempo na imagem e no drama cinematográficos seja

pertinente ao estudo de teorias do cinema como prática de conceitos que o cinema suscita.

Na classificação do filme em movimentos, divisão em partes que permanecem

divididas, fragmentadas, o parâmetro que utilizamos, foi a construção do filme, respeitando o

processo de criação do diretor, entretanto salientamos que o terceiro movimento poderia ser o

primeiro, como o segundo poderia ser o terceiro ou o primeiro. São Jerônimo, de Bressane,

será lido através do Deserto, de Roma de Bressane e do Sertão, mas sobretudo através do

vento implacável, mensageiro que também é parte das partes, não se unindo a nenhuma delas,

sempre provocando encontros. O vento será o primeiro objeto de nossa investigação.

Apostamos que o filme foi escrito como uma partitura, não aprisionando o tempo ao

movimento, ao contrário, libertando o tempo do próprio movimento. Apresentando o tempo

em inúmeras aparições, cabe aqui, pensar nas reticências do título do capítulo. O tempo não é

um todo, o tempo impede o todo.

As reticências ressoam na constatação de que Bressane é leitor de Deleuze, e que para

estudarmos a técnica composicional no cinema e pesquisarmos a técnica de criação do filme

São Jerônimo nos orientamos pelas obras A imagem-movimento e A imagem-tempo, de Gilles

Deleuze. Entretanto, este trabalho de classificar as imagens audiovisuais do filme pensar as

imagens como signos a se colocarem a falar, a nos indicar maneiras, jeitos e formas de ver,

ouvir, pensar e apreender o tempo no filme nos colocou num espaço vazio: entre Deleuze e

Bressane.

78

sido esquecidos ligados. Entretanto, fica evidente a elaboração da montagem das imagens

audiovisuais como ato consciente da vontade do autor.

O visual nos dá a ver um território árido, pessoas vestidas como monges, uma breve

visada de uma casa branca, um objeto vertical assemelhando-se ao caule de uma árvore

oblitera a tela do lado direito do quadro; o sonoro se constitui dos atos de fala de homens e

mulheres integrantes da produção do filme. Não os identificamos em relação a uma fonte

sonora única, como também não os identificamos visualmente, são os sons e imagens

traçando um caminho do tempo no filme .

Os sons se fazem ouvir sem serem vistos por si mesmos (não vemos a fonte sonora), e

à medida que a câmera é coberta por um corpo de homem, a tela se torna negra, o visual cede

lugar ao sonoro, e o som do vento traz a segunda inscrição: SÃO JERÔNIMO. O ruído do vento

insiste e a imagem visual sucede à tela negra em longos planos fixos de paisagens secas e

áridas.

São Jerônimo é revelado a partir do filme sendo feito. A abertura guarda um opsigno,

uma imagem atual em que a tela encoberta pelo corpo do homem impede o prolongamento do

que estávamos vendo. O visor se torna opaco, cristaliza-se na tela a imagem do que não pode

mais se prolongar, do que não pode mais aparecer, sua própria quebra; a imagem atual

cristaliza a sua própria imagem virtual.

A inscrição JÚLIO BRESSANE APRESENTA entalhada na tela/pedra é a primeira face

desta seqüência, e a segunda é a inscrição SÃO JERÔNIMO. Entre elas (a fenda, os dois pontos

(do Capítulo I deste estudo)), o que se parte é a pedra e o que surge é o filme sendo feito. O

filme se introduz dentro do filme sob a forma de um germe que, ritmado pelo vento, constitui

o filme se fazendo.

� Nota de tempo nº 1

79

São Jerônimo, descrição cristalina, esculpido pelo vento, imagem-cristal.

François Zourabichvili, em O vocabulário de Deleuze, expõe uma leitura de verbetes,

de conceitos utilizados por Deleuze, num encontro com o pensamento desse autor,

denominando este livro “um estado provisório de amostras”. Em primeiro lugar precisemos o

verbete conceito: ”um conceito não é um tema, nem uma opinião particular pronunciada sobre

um tema. Cada conceito participa de um ato de pensar que desloca o campo da

inteligibilidade, modifica as condições do problema por nós colocado” (ZOURABICHVILI,

2004, p.12).

Sobre o conceito de cristais de tempo, Zourabichvili inicia o verbete com uma citação

de Deleuze (1990, p.105): “A imagem-cristal pode ter muitos elementos distintos, sua

irredutibilidade consistindo na unidade indivisível de uma imagem atual e de sua imagem

virtual”. Esta frase inicial vai sendo comentada ao longo do verbete. Zourabichvili afirma que

o conceito de imagem-cristal foi um dos últimos criados por Deleuze, e “apresenta a

dificuldade de condensar praticamente toda a sua filosofia”:

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo:uma vez que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas

80

O movimento Deserto se inicia com a encenação do Sonho de São Jerônimo (já

descrita plano a plano no Capítulo I desta dissertação) e termina aos 31minutos e 10segundos

de filme. Dividimo-lo em quatro seqüências: No paraíso, Pedra-de-sino, Vozes de Jerônimo,

e Acontecimento.

A primeira seqüência tem a duração de quatro minutos, o som do vento cede lugar ao

Réquiem de Fauré. O título No paraíso foi tomado de Gabriel Fauré (1845-1924) e

corresponde ao movimento homônimo do réquiem escolhido por Bressane para esta

seqüência.

Neste ato de música desfilam imagens de monges no deserto: enfermos e imóveis. Um

ato de silêncio, no sentido em que o som encontra um lugar nos planos das imagens visuais.

2.1 Seqüência: No paraíso / 3 min / 9’ 32” a 12’ 32” / 8 planos29

Plano 1 - Duração 22” - Plano seqüênciaExterior – DiaImagem Som

PC–Trav. lat. para a esquerda: Paisagem seca,pedras e árvores esparsas e monges: um em pé,outro deitado, outro ajoelhado, outro rastejandopara a direita.

Réquiem de Fauré

Plano 2. – Duração 19” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

Trav. lat. para a direita: o corpo de um homemmorto, estirado no chão com as mãos unidas sobreo peito (gesto de oração). A CAM acompanhalentamente o moribundo a partir dos pés atéencontrar a cabeça e pára.

Réquiem de Fauré

29 Legenda:PC= Plano conjunto; PA= Plano americano; PP= Plano próximo ou primeiro plano; PPP= close up; CAM=câmera; PDC= Profundidade de campo; Trav. Lat.= travelling lateral; Trav. Fr.= Travelling para frente;Trav.Tr.= Travelling para trás; Trav. de Ac= travelling de acompanhamento; Trav. Circ= Travelling circular;Pan-trav. = Panorâmica com travelling; Pan=Panorâmica; Mvt= Movimento; Plongée; Contra-plongée.

81

Plano 3 – Duração 22” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP. Trav. vert. para cima: A CAM acompanha, dospés à cabeça, um homem que está em pé. As folhasdas árvores balançam.

Réquiem de Fauré

Plano 4. – Duração 17” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PA. - (câmera na mão) A CAM em plongée mostraum monge sentado, imóvel, catatônico.

Réquiem de Fauré

Plano 5 – Duração 1’ - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP. CAM na mão - Trav. vert. para baixo. A CAMem contra-plongée desce em diagonal do céu quasebranco de nuvens até o solo. A CAM continua emcontra-plongée. A CAM em Trav. Acomp.- ummonge se arrasta no solo.

Réquiem de Fauré

Plano 6 – Duração 12” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC. CAM fixa. Monge anda lentamente daesquerda para a direita, em diagonal atravessa oquadro.

Réquiem de Fauré

Plano 7- Duração 9” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC. CAM fixa. Homem caído. Réquiem de Fauré.

Plano 8 – Duração 19” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC. Homens carregam um corpo e atravessam oquadro da esquerda para a direita.

Réquiem de Fauré

A presença da música é o primeiro plano sonoro da seqüência. A imagem audiovisual,

o áudio (música) e o visual se afirmam distintos. Esta música, sabemos, está fora do espaço

82

visual, afastada das imagens que vemos, liberta da imagem visual – uma imagem audiovisual,

uma imagem em primeiro plano, um primeiro plano sonoro de uma imagem audiovisual.

Ao longo da seqüência a câmera parece desenhar uma cruz: primeiramente à esquerda,

depois à direita, em seguida para cima e por fim para baixo, a câmera sempre no meio a cortar

os corpos maltratados dos monges em vestes maltrapilhas a peregrinar e a orar no deserto. A

presença da morte como a da vida está registrada na superfície dos planos e a superfície do

quadro continua sendo traçada da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

Os quatro minutos do Réquiem de Fauré nos oito planos de Bressane tendem a

encadear os planos, a encontrar a cruz que o movimento de câmera realizou, mas ao tentar

ligá-los caímos no interstício, nem som nem imagem. Caímos no vazio, no silêncio, quem

sabe num ato de silêncio. Nenhum dos dois sentidos, nem a visão, nem a audição: as imagens

visuais têm componentes sonoros, mas que tendem para o limite do próprio som, por isso,

talvez um ato de silêncio. Silêncio a cortar a cruz que o movimento de câmera realizou nas

imagens visuais e a cortar a música. Que música é essa? Os quatro minutos do Réquiem de

Fauré30 estão no visual e no sonoro e se abrem para duas imensas imagens: a da vida e a da

morte e a da vida à morte.

� Nota de tempo nº 2

O cinema de Bresane se encontra com a afirmação de Deleuze sobre a

modernidade cinematográfica afirmando uma potência audiovisual, um

audiovisual criador e não um conjunto audiovisual, mas uma distribuição do

áudio e do visual de um lado, e de outro um vaivém.

30Informações do encarte do Cd Harmonia Mundi/France. Fauré. Réquiem (version 1893). Movimento: InParadisum 3’54”. Faurée quando interrogado sobre a gênese do seu réquiem, respondeu que o compôs pornada... “por prazer se pode se dizer assim”. A obra data de 1887 e foi executada pela primeira vez em 1888.Ordem de composição Introit et Kyrrie, Ofertoire, Sanctus, Pie Jesu, Agnnus Dei, Libera me, In Paradisum.

83

O vento retorna, se repete, se permuta. A segunda seqüência tem duração de 9’9” e é

composta por 28 planos. Trata-se de um trecho que de certa forma fecha-se em si mesmo,

além de introduzir um outro centro de atenção do filme que é a tarefa de São Jerônimo,

estudioso das palavras divinas juntamente com os outros padres do deserto. A seqüência

começa e termina com sons de sino: da pedra-de-sino31 e da sineta no pescoço de um animal.

2.2 Seqüência: Pedra-de-sino/ 9min9seg/ 12'33” a 21’02”/ 28 planos

Plano 1 - Duração 31” - Plano fixoExterior –diaImagem Som

PC. Grande pedra em forma de sino (Pedra-de-sino) ao fundo, e à frente um homem atravessa oquadro da esquerda para direita devagar,arrastando uma cruz32 apoiada no ombro. O ventosopra suas roupas para a esquerda e ele caminhapara a direita.

Som (em off) de badalada de sinoSom do vento soprandoSom da cruz sendo arrastada (ampliado por ruídosdo microfone utilizado na captação do som).

Plano 2 - Duração 20” - Plano fixoExterior -diaImagem Som

PG – Cinco homens rezam em torno da cruzbifurcada no ápice.

Som do ventoSons (em off) de cantos de pássaros

Plano 3 - Duração 5” - Plano fixoExterior – diaImagem Som

PM- Pedra em formato de sino ocupa os 2/3superiores verticais da tela e quase 3/3longitudinais.

Som do vento assobiandoMúsica eletroacústica (em off ): Liquid Dreams

[Dois sons iniciam a música:a) sons simulam instrumento de sopro (médio grave);b) sons simulam ações de cordas friccionadas(grave)].

31 Júlio Bressane, em entrevista, declara: “o ator do filme Everaldo Pontes, extraordinária figura e ator, sugeriuque filmássemos num lugar, chamado Pedra do Pai Mateus... uma meseta no meio do sertão, com pedras ocasque fazem sons como sinos, chamadas pedras-de-sino, uma coisa espantosamente simbólica. Foi aí que eu vi atradução de São Jerônimo, a chave para entrar com o filme no Brasil e na língua portuguesa” (BRESSANE.2003, p.28-29).32 Cruz – galho amarrado a uma haste transversal com cipó.

84

Plano 4 – Duração 27” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PG– Frontal, peregrinação de cinco monges, seustrapos arfam ao vento, caminham com vagar emdireção à câmera. No quadro a terra é colorida: dolaranja ao marrom, do branco ao negro. Não planacom ondulações de relevo e textura. Os monges,entre eles Jerônimo mudam de direção aochegarem próximos à câmera, um para a esquerda,outros para direita e outros para frente.

Música: Liquid Dreams (em off)

[Esta música tem como característica tímbrica asimulação de instrumentos de cordas friccionadas,mantendo uma linha melódica pulsativa (iniciada pelosom (b) já exposto), conjuntamente com um outro somcontínuo e a entrada de sons de várias alturas].

Plano 5 - Duração 58” – Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PC- CAM fixa.em plongée. Uma porção de pedraamarelada com traços brancos e cinco pedaços dealimento negro. Sombra de um homem e de cincomãos apanhando os pedaços.

PM-.Trav.vert. para cima. Segue as mãos doshomens levando o alimento à boca. Corte.

CAM Fixa. Os cinco homens mastigamlentamente.

Música: Liquid Dreams (off):[Som contínuo descrescendo, e mantido (piano)]

Voz em off de Jerônimo: Devemos comer andando porque alimento aqui écoisa passageira.

Música Liquid Dreams ( off) :[A música cresce após a narração (off) e se mantém notom meio forte para forte e vai diminuindo até aentrada do som do vento. A linha melódica de padrãopulsativo é mantida pontuando os próximos planos].

Plano 6 - Duração 15” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP – CAM fixa em Contra-plongée. Rosto deJerônimo, que olha para a esquerda, barba ecabelos tremulando ao vento. Corte. RACCORDMOVIMENTO

PA – CAM fixa. Plongée. CAM no alto sobre acabeça de Jerônimo, o qual em seguida vira-separa direita e começa a andar.

Som do vento assobiando juntamente com amúsica Liquid dreams:[O som (b), da música Liquid Dreams se apresenta nofinal do plano pontuando a saída de Jerônimo doquadro].

Plano 7 - Duração 6” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC – PDC. Uma pedra imensa escavada no centroem formato de arco se destaca. Ela reenquadra

Som do vento e música em (off): Líquid Dreams:[o som (b) marca a saída de Jerônimo do quadro econtinua].

85

próximo a sua abertura a figura de Jerônimo queatravessa o quadro da esquerda para a direitacarregando papéis. Livros são vistos no chãoprotegidos do sol. Ao fundo a terra se encontracom um céu claro. O solo apresenta diferentesestratos que vão do laranja ao amarelo e ao branco;desníveis leves têm diversas tonalidades: marrom,cinza e branca. O céu ao fundo exibe gradações deazul.

Plano 8 – Duração 19” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PG- Pan. lateral. Parede de uma rocha cominscrições, sulcos, marcas de figuras e traços.Jerônimo acaricia a pedra com cuidado.Imagem da capa do filme, lançado em VHS, no Brasil.

Idem plano 07[Com graduações de intensidade na mesma linhamelódica pulsativa].

Plano 9 - Duração 38” - Plano fixoExterior, NoiteImagem Som

PM- CAM fixa à esquerda. Jerônimo lê papiros,sob uma luz amarela. A luz principal incide sobrea pilha de livros. e sobre os livros um crânio e umapena.

Idem ao plano 07, acrescido de sons de pássaros.

Plano 10 – Duração 15”Exterior, diaImagem Som

PC- Trav. lat. para esquerda. Monges são vistosem pé e ajoelhados, lendo no meio da vegetaçãosemi-árida.Possivelmente, repetição de partes da seqüência deabertura do filme.

O som do vento páraMúsica (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano09.

Plano 11 - Duração 15” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PC- Jerônimo têm nas mãos um grandepergaminho desenrolado, cuja extensão excede oquadro.

Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano10.

Plano 12 - Duração 19” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP- Trav. vert. para cima sobre o pergaminhodistendido. PA. A CAM fixa em Jerônimo segurando o rolode pergaminho.

Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano11.[O som percussivo continua crescendo e se mantém]

86

Plano 13 - Duração 12” - Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PPP- Trav. vert. A CAM, em movimentoacelerado e desfocado, percorre o pergaminho debaixo para cima, em seguida se fixa na face deJerônimo.

Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano12.[Continua o desenvolvimento e mantém].

Plano 14 - Duração 2” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PG - Cobra comprida e fina atravessa o quadro. Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano13.Som de guizos de cobra balançando.

Plano 15 – Duração 2” - Plano fixoExterior, diaImagem Som.PP – Rosto de Jerônimo desfocado. Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano

14.Som (em off) de guizos de cobra balançando.

Plano 16 – Duração 4” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC- Jerônimo deixa o manuscrito e sai do quadrocom as mãos na cabeça.

Música (em off): Liquid Dreams. Aumenta avelocidade.

Plano 17 – Duração 18” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PG – PDC - Areia branca cobre toda a tela.Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano16.A música Liquid Dreams pára e tem início umaária da ópera Sansão e Dalila, de Camille Saint-Saëns, também em off.

Plano 18 - Duração 19” - Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PM - Jerônimo olha para a direita. CAM na mão Pan- trav. lat. para a direita até encontrar um leão,deitado na areia com uma das patas machucada.

Som (em off) : ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

Plano 19 – Duração 17”

87

Exterior, diaImagem Som

PP – CAM na mão. Pan-Trav. lat. esquerda. ACAM explora lentamente todo o corpo do leão, nosentido anti-horário até parar.

Som (em off): ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

Plano 20 – Duração 7” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PPP- Jerônimo segura o espinho encravado na patado leão. FALSO RACCORD

Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

Plano 21 - Duração 7” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PM – Contra-plongée acentuado. O corpo verdede um cacto com nítidos espinhos e ao fundonuvens brancas deslizam num céu muito azul.

Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

Plano 22 – Duração 6” - Plano seqüênciaExterior, diaImagem Som

PP– Pant-trav. O leão se levanta, a CAMacompanha o animal liberto da dor.

Som (em off) ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

Plano 23 - Duração 24” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC – Contra-plongée. Jerônimo está ajoelhado noalto de um morro, rezando diante de uma cruz. Amesma cruz amarrada com cipó. A CAM está nalateral direita. Uma sombra se movimentaclareando e escurecendo a paisagem. No iníciopouca luz e no final muita luz.

Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.

A música pára.

Plano 24 – Duração 36” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PG – PDC. Plongée. Jerônimo no centro de umapaisagem, sozinho, ajoelhado e rezando, não maisvemos a cruz. A CAM está na lateral esquerda. Osolo escuro é cheio de estrias grossas e brancas.Um imenso lugar sem fim e sem começo, um meiode mundo. Inicialmente muita luz, depoisescurece. Jerônimo no chão sofre uma convulsão.

SilêncioSom (em off): canto de pássaros, ruídos de animaise folhas.

88

Clareia, escurece, clareia novamente e seu corpocontinua estrebuchando.

Plano 25 - Duração 58” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC – PDC - Cinco homens rezam ajoelhados Som (em off): música (xaxado33)

Plano 26 - Duração 4” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PPP – Plongée. Mão fechada, mão aberta e dentrodela um escorpião. FALSO RACCORD

Som (em off) música (xaxado)

Plano 27 – Duração 2” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PM – Mandacaru encravado na pedra, sua formase assemelha ao corpo de um escorpião.

Som (em off) música (xaxado)

Plano 28 - Duração 37” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP – A CAM na mão - Trav. de Ac. A CAM seaproxima da mão do homem que segura oescorpião e depois se abre mostrando os monges.Jerônimo olha para o escorpião, que está na mãode um deles, vira-se bruscamente e se afastaparecendo contrariado com o que vê.

Som (em off) música (xaxado)SilêncioSom (em off): Ruído de sineta em pescoço deanimal (cabra?)SilêncioVoz (em off) É fraqueza entre as ovelhas ser leão.

Nesta seqüência a imagem visual se estende em espaços abertos de um lugar imenso,

geografia de deserto e sertão. Os enquadramentos dessa superfície luminosa nos fazem sentir

o descentramento, deixando a impressão de que o espaço excede os planos.

33 Xaxado. Conforme Dicinário Houaiss (2001, p.2984): Rubrica: etnografia, dança, música. Regionalismo:Brasil.dança pernambucana orign. restrita ao sexo masculino, que se expandiu pelo Nordeste levada porcangaceiros [Sem acompanhamento instrumental para o canto, pode apresentar a marcação rítmica de pancadasde rifles no chão].

89

Uma característica dos planos de São Jerônimo é a estratificação, em cada plano a

imagem visual deixa ver divisões de relevo, de solo dividido em camadas de superfícies, ora

vertical, ora horizontal, ora transversal, ora combinação delas. Se as cores do solo e do céu

criam divisões horizontais e verticais, se as imensas pedras separam a terra do céu, também

projetam sombras; a profundidade de campo desproporciona o tamanho dos objetos

desencadeando figuras que chamam nossa atenção, contornando mistérios desse espaço.

Quais figuras? As diversas pedras, a compor os primeiros planos, o plano de fundo,

como também a cartografia do solo em imagens que justapostas tornam o percurso desta

seqüência abstrato. O que mais podemos ver? As camadas afetadas pela presença do

personagem Jerônimo. Ele atravessa as camadas. Da oração ao lado da cruz à convulsão, da

deglutição lenta de pedaços de alimento à leitura e estudo de sinais na rocha e no pergaminho,

da tranqüilidade da ascese ao tormento do pensamento, da contemplação da beleza do leão à

retirada do espinho que lhe causava sofrimento. E o que não podemos ver? E os cortes? O

enquadramento visual dá a se ver como cortes, cortes de pedras, às vezes até trituradas (areia),

às vezes sulcadas de rasgos e de cores quentes, às vezes superfície de um quadro de imagens

táteis, às vezes pintura de infinitos traços brancos como uma colcha a se estender e a servir de

abrigo aos corpos frágeis dos peregrinos.

� Nota de tempo nº 3

A imagem visual de Bressane é corte de pedra. Pedaços que giram e

reviram. A simetria está afetada, tanto pelos enquadramentos excessivos

que a câmera realiza (plongée e contra-plongée) quanto pela duração e

fixidez dos planos. O filme solicita um esforço de memória, ou quem sabe

um esquecimento do mundo. A imagem é tanto lida como vista.

90

Por outro lado, os personagens não ligam os planos. Eles os cortam. Estão na

superfície por cima dos cortes e dos intervalos entre os cortes. Os planos não se encadeiam

numa ligação com um plano anterior e nem posterior, como numa sucessão de instantes. A

montagem entre os planos é entrecortada por paradas, por giros, inversão de escala Norte, Sul,

Leste e Oeste.

A seqüência é marcada quase inteiramente por planos fixos, o personagem Jerônimo

entra e saí do quadro sete vezes, as sombras das mãos dos monges aparecem no quadro, eles

têm partes de seus corpos fora do quadro, a câmera realiza poucos movimentos, mas o quadro

nunca está vazio. Ele faz parte de um espaço, de um cenário, que se estende além do quadro.

De onde surgiu Jerônimo? Das entradas e saídas do quadro e dos deslocamentos da câmera se

inscrevendo ao mesmo tempo no percebido e no rememorado, na percepção da percepção, no

deserto e no sertão, convertendo o vazio em pleno.

� Nota de tempo nº 4

Inscrições petrificadas de blocos de planos, no espaço dos falsos-

raccords: sertão e deserto, disjuntos tendendo a um limite que já não lhes

pertence, criando um tempo, imagens de tempo que não mais se encadeiam,

não pertencem aos planos anteriores ou posteriores, os cortes valem por si

(interstícios).

Os falsos-raccords nos colocam diante da necessidade de analisar as imagens sonoras

da seqüência Pedra-de-sino. Os sons de sinos demarcam o início e o final desta seqüência,

91

mas não rimam. O tratamento meticuloso dado por Bressane às imagens sonoras nos ajudará a

fazer considerações a respeito das relações entre som e imagem.

Comecemos pela narração off. As duas únicas frases ouvidas nesta seqüência são

pronunciadas por uma voz off; Jerônimo diz: Devemos comer andando porque alimento aqui

é coisa passageira; e no final da seqüência: É fraqueza entre as ovelhas ser leão. A fonte

sonora nos dois casos está no extracampo relativo, um lugar “ao lado” da imagem visual: no

primeiro, Jerônimo está entre quatro monges segurando pequenos pedaços negros de alimento

e todos estão parados, e no segundo caso, ele sai de campo e ouvimos a segunda frase.

Invocamos o estudo de Deleuze, no livro A imagem-tempo, no capítulo “Os

componentes da imagem”, quando ele afirma que a composição sonora de um filme é

constituída de elementos inseparáveis, e mesmo se diferenciando conforme a apresentação das

imagens visuais se constitui como uma quarta dimensão da imagem.

É na medida em que se rivalizam, se recobrem, se atravessam, se cortam,que traçam um caminho cheio de obstáculos no espaço visual, e não sefazem ouvir sem serem também vistos, por si mesmos independente dafonte, ao mesmo tempo fazem com que a imagem seja lida, mais ou menoscomo uma partitura (DELEUZE, 1990 p. 278).

� Nota de tempo nº 5

Na seqüência Pedra-de-sino, os ruídos, os dois únicos atos de fala em off,

a música do vento, o canto dos pássaros, a música Liquid Dreams, o xaxado

e a ária de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns, foram editadas na sala de

montagem. Esses materiais sonoros integram um jogo temporal além dos

limites das imagens audiovisuais, se apresentam, se bifurcam mesmo

quando simultâneos. Serão elas imagens do tempo ou imagens de tempo?

92

Este continuum sonoro pertence à imagem visual cinematográfica do campo, mas

também ao extracampo, povoando um filme de “não-vistos visuais”. Isto não significa que o

som não seja um componente da imagem visual; na qualidade de ser componente é que ele

não devia ser redundante com o que pode ser visto no visual.

Deleuze adianta que já no célebre manifesto soviético de 1928, Eisenstein, Pudovkin e

Alexandroff (Le film, sa forme, son sens, Bourgois, p. 19-21) propunham que o som remetesse

a uma fonte no extracampo, como um contraponto visual e não como um duplo ponto de

vista. Eles acreditavam nas virtudes do extracampo, completa Deleuze, elevando a imagem

visual a uma nova síntese. A citação a seguir, embora extensa, dá conta da importância do

manifesto dos três autores, considerado visionário ao traçar um percurso do uso de som no

cinema:

A gravação do som é uma invenção de duas extremidades, e é mais provávelque proceda ao longo da linha de menor resistência, isto é, a linha desatisfação da simples curiosidade. Primeiramente haverá exploraçãocomercial da mercadoria mais vendável, FILMES FALADOS. Aqueles, nosquais, a gravação de som ocorrerá num nível naturalista, correspondendoexatamente ao movimento na tela e proporcionando certa “ilusão” depessoas falando, de objetos audíveis etc. Um primeiro período de sensaçõesnão prejudica o desenvolvimento de uma nova arte [...] dessa primeirapercepção das novas possibilidades técnicas, e que irá se acentuar numaépoca de sua utilização automática para “dramas altamente cultos” e outrasperformances [...] Dessa forma, o uso do som irá destruir a cultura damontagem, pois toda ADESÃO de som a um trecho de montagem visualaumenta sua inércia como trecho de montagem, e aumenta suaindependência de significado – e isto sem dúvida dar-se-á em detrimento damontagem, operando em primeiro lugar não nos trechos de montagem, masem sua JUSTAPOSIÇÃO, SOMENTE UM USO CONTRAPONTUAL, dosom em relação ao trecho da montagem visual proporcionará uma novapotencialidade de desenvolvimento, de perfeição da montagem. OPRIMEIRO TRABALHO EXPERIMENTAL COM SOM DEVE SERDIRECIONADO PARA SUA LINHA DE NÃO-SINCRONIZAÇÃO COMAS IMAGENS VISUAIS. É somente tal investida que dará a palpabilidadenecessária, que conduzirá mais tarde à criação de um CONTRAPONTOORQUESTRAL, de imagens visuais e auriculares [...]. O PRIMEIROIMPASSE é o subtítulo e todas tentativas em vão de ligá-lo à composição damontagem, como partes da montagem (tais como quebrá-lo em frases oumesmo palavras, aumentar ou diminuir o tamanho do tipo usado,empregando movimento de câmara, animação e assim por diante). OSEGUNDO IMPASSE são os trechos explanatórios (por exemplo, certosclose-ups inseridos) que sobrecarregam a composição da montagem eretardam o tempo. O som, tratado como um novo elemento de montagem(como fator dissociado da imagem visual), inevitavelmente introduzirá

93

novos meios de grande poder para a expressão e a solução das tarefas maiscomplicadas que hoje nos oprimem com a impossibilidade de superá-losatravés de um método fílmico imperfeito, trabalhando somente com imagensvisuais (MANZANO, 2003, p.92-93, destaques do autor).

Deleuze considera que o extracampo pode, perfeitamente, ser o ao lado e o alhures, de

modo que um som pode suprimir uma imagem. Quando o extracampo remete a um espaço

visual que prolonga o espaço visto na imagem, denominamos de som off; um som que

provém de algo que logo será visto, ou que poderá ser visto nas imagens seguintes.

A voz off que destacamos nos dois trechos desta seqüência corresponde, portanto, ao

extracampo – parte de um conjunto vasto que engloba imagens visuais de uma mesma

natureza.

Cabe ressaltar também que a sonoridade da seqüência é elaborada por outras imagens

sonoras. A tensão singularmente criada entre os planos 11 a 16 (ver p.84-85) é plasticamente

construída a partir de planos do pergaminho intensificando o sentimento de desespero de

Jerônimo e a iminência de uma explosão. A montagem acelerada acrescida ao som dos

instrumentos amplifica o sentimento da tarefa infindável do mestre doutor, da tortura

espiritual deste homem.

Os vários instrumentos que criam a sonoridade da sucessão dos planos não estão mais

ao lado, estão no extracampo absoluto e em relação com o todo, com o tempo, o tempo de um

homem e sua função terrena. Seguindo o raciocínio de Deleuze, esta relação sonora ainda

está em relação com o visual.

O contínuo sonoro da seqüência: os ruídos, as músicas, os atos de fala,

correspondências entre eles seus deslocamentos, seus cortes rivalizando-se traçam caminhos

na imagem visual, passam a serem vistos independente das fontes sonoras, é o que faz com

que a imagem seja lida como uma partitura. O sonoro povoa não só a imagem visual como

também o extracampo, o som excede o espaço, expressa o todo, o tempo se expressando na

duração, no movimento.

94

Michel Chion propõe a noção de acúsmero para a voz cuja fonte não é vista, e ainda

distingue acúsmero relativo e integral. Acúsmero relativo para voz que ainda será vista e

integral para as relações atualizáveis possíveis com outras imagens, efetuadas ou não e suas

relações virtuais com um todo das imagens, não efetuável (DELEUZE, 1990).

Procurando ampliar nosso raciocínio sobre a aplicação do som no cinema, recorremos

novamente a Eisenstein, que desenvolvendo a teoria da polifonia. Ele parte do conceito de

montagem vertical estabelecendo a relação do cinema com a música:

Todos estão familiarizados com o aspecto de uma partitura orquestral. Hávárias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um grupode instrumentos afins. Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas aestrutura vertical não desempenha um papel menos importante, interligandotodos os elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempodeterminada. Através da progressão da linha vertical, que permeia toda aorquestra, e entrelaçado horizontalmente se desenvolve o movimentomusical complexo e harmônico de toda a orquestra. [...] montagempolifônica, na qual um plano é ligado ao outro não apenas através de umaindicação – de movimento, valores de iluminação, pausa na exposição doenredo, ou algo semelhante –, mas através de um avanço simultâneo de umasérie de múltiplas linhas, cada qual mantendo um curso de composiçãoindependente e cada qual contribuindo para o curso de composição total daseqüência (EISENSTEIN apud MANZANO, 2003.p.96).

Recortamos após a teorização de Deleuze e de Eisenstein, que a voz off, nesta

seqüência, remete ao extracampo relativo do filme, e por outro lado as músicas, os sons do

vento, e sons dos cantos dos pássaros encadeiam-se no todo e o todo exterioriza-se nas

imagens. O todo muda ao mesmo tempo, que as imagens se movem.

� Nota de tempo nº 6

Estamos no circuito da imagem-movimento. Imagens do tempo no filme. A

imagem se torna legível. O componente sonoro não tem elementos rivais, é

como uma partitura que ele é escrito e lido. A imagem sonora e a imagem

visual se interpenetram. Entre os elementos sonoros, a música é um

95

elemento separável, mas com liberdade para se diferenciar e para se

comunicar com campo e com o extracampo.

A terceira seqüência foi recortada para análise devido a uma outra maneira como a voz

off é utilizada. É válido enfatizar que o cinema moderno utilizou os atos de fala tendendo-os a

se libertarem da imagem visual e ganhando um valor de autonomia: o estilo indireto livre34. O

sentido do discurso na seqüência não existe fora do autor e nem de seu personagem. Ele é

uma passagem constante de Bressane a Jerônimo, e vive-versa; o autor se situa no mesmo

nível de seu personagem, e essa relação tem a aparência de um diálogo.

A descrição plano a plano desta seqüência será agora analisada, e a denominamos,

Vozes de Jerônimo.

2.3 Seqüência: Vozes de Jerônimo / 2min50seg / 21’03” a 23’53”/ 5 planos

Plano 01 - Duração 20” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC- Grande arvore com galhos enormes, secos eretorcidos sob o céu azul nublado. Figura escura/fundo claro.

Voz (em off) de Jerônimo, tom normal:Os ares grossos feridos e feios, a secura e aridezda paisagem contaminaram o espírito de algunsmonges obssesionados pela penitência deixaramde educar seus sentidos broncos. são todosexcessivamente ignorantes.Som ambiente (em off) canto de pássaros e ruídosde animais.

Plano 2 – Duração 40” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PG. PDC- Cinco monges estão de pé, o ventosopra suas roupas, o solo possui várias tonalidadese várias texturas, pedras grandes limitam o espaçomais ao longe, depressões, um pouco de verde, emseguida um platô marrom e cinza e negro e maisao longe, montes e o céu colorir de azul a borda

Som ambiente (em off), canto de pássarosSom do uivo do vento

Voz de Jerônimo, tom normal: Bárbaros,ignorantes inúteis.Voz de Jerônimo, tom grave: Jerônimo, você incorreu em erros. O deserto é o

34 Pier Paolo Pasolini introduziu o discurso indireto livre no cinema.

96

superior do quadro.Jerônimo está entre eles, está imóvel, suas vestesbalouçam ao vento, mas não move os lábios.

mundo do invisível e do sobrenatural, repetição davida de Cristo, sobretudo a crucificação. Morrerpara o mundo. No deserto seu pasto é seucoração. Com seu coração e olhos postos no céu,você esqueceu-se dos deveres de cortesia e foiesquivo, impaciente, inflexível e exigente com seuscompanheiros. Você deve partir.

Plano 3 - Duração 10” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PC- Grande pedra branca com uma concavidadena base preenche toda a tela.

Voz (em off) de Jerônimo, tom grave:Você está desejoso de estudar e conhecer, porisso, penso em enviá-lo para ser discípulo deGregório.

Plano 4 - Duração 27” - Plano fixoExterior, dia.Imagem Som

PM- Jerônimo está em baixo da sombra de umagrande pedra enrolando um pergaminho.

Voz (em off) de Jerônimo, tom grave:Gregório é um eloqüente orador. Teólogocompetente e defensor apaixonado da virgindade eda vida ascética. Vocês são dois temperamentosfortes para se entenderem. Gregório escreveu aApologia da fuga que lhe ensinará muitoVoz (em off) de Jerônimo, tom mais grave:Viva a sua sombra Jerônimo. A sombra destapiedosa e douta eloqüência consagrada àorientação dos pobres.

Plano 5 - Duração 1’13” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP- Trav. lat. para a direita, lento. Inscrições emuma pedra.CAM fixa. Jerônimo está sob a sombra de outrapedra, acomoda escritos e livros, amarra-oslentamente. Carrega a pilha de livros para o lado,levanta o corpo e olha para a direita.

Voz (em off) de Jerônimo, mantendo o tom maisgrave:Faz com que o ato de ver e a coisa vista, oespectador e o espetáculo, o duvidador e a dúvidasejam um só. Vemos o mundo peça por peça: osol, a lua, a árvore, o animal, mas o todo do qualsão partes resplandecentes é a alma!.Voz (em off) de Jerônimo, tom normal:Dai-me sua benção Senhor!.

SilêncioSom do ventoSom (em off) de canto de pássaros.

97

Mikhail Bakhtin, na terceira parte do livro, Marxismo e filosofia da linguagem,

defende que o discurso indireto livre indica a identificação do narrador com o herói e ao

mesmo tempo conserva a posição autônoma desse narrador, que não se dissolve na atividade

mental do herói. O discurso indireto livre não nos transmite uma impressão passiva através da

enunciação de outrem, e sim, ao contrário, uma orientação ativa; não simplesmente passagem

de primeira pessoa para a terceira, porém acrescenta na enunciação as entoações que entram

em contato com as palavras citadas, interferindo nela (BAKHTIN, 1997).

O filme São Jerônimo foi encenado a partir de textos escritos em estilo direto e

indireto, sendo que alguns tomaram a forma de discurso indireto livre. A voz off se bifurca em

uma seqüência singular do filme, em que o personagem Jerônimo dialoga com duas vozes: a

voz de um recriminando Jerônimo e lhe encaminhando para outros estudos e uma outra voz

materializando a voz de Ralf Waldo Emerson, nesta citação literal:

Viva a sua sombra, Jerônimo. A sombra desta piedosa e douta eloqüênciaconsagrada à orientação dos pobres faz com que o ato de ver e a coisa vista,o espectador e o espetáculo, o duvidador e a dúvida sejam um só. Vemos omundo, sua presença, mas o todo do qual são partes resplandecentes é a alma(São Jerônimo, de Júlio Bressane).35

Com efeito, nós ouvimos o personagem Jerônimo, não o vemos falar, ele varia de

entonação quando se mudam os narradores. A própria voz off se apaga quando o personagem

Jerônimo entra em relação direta com o outro narrador, o estilo indireto deixa suas marcas em

relação direta com um outro narrador, mas de modo que o estilo direto também conserva suas

marcas no estilo indireto. Nada se fixa, vemos as vozes se bifurcarem.

35 Adriano Carvalho Araújo e Souza, em sua dissertação intitulada Devir-deserto no São Jerônimo: poéticatradutória e cartografia da cultura (2005, p.55), afirma que o trecho em questão corresponde a uma fala deRalph Waldo Emerson, que viveu no século XIX e que os escritos de Ralph sobre a leitura se alinham com aorientação de Jerônimo. Júlio Bressane (1997) afirma ainda que esta colagem é como um colapso do tempo,enfatizando a importância do texto e da leitura.

98

André Parente, no artigo “O discurso indireto livre no cinema” (1996), diz que o

cinema enquanto discurso indireto livre é possível porque produz narrativas que conservam o

mesmo princípio do diálogo, característico do discurso indireto livre literário.

Nesta seqüência Vozes de Jerônimo, ele não está na tela em dois planos. E nos outros

três o vemos, mas não o vemos falar. A imagem sonora mostra uma preponderância sobre a

imagem visual, ao mesmo tempo que a imagem visual adquire independência em relação à

imagem sonora. Esta seqüência de curta duração concentra uma questão muito discutida nos

cinemas da modernidade, a apresentação do falso tanto na imagem sonora como na visual.

Estamos numa região de fronteira, o que vemos é a fenda, o interstício, não o todo, mas a

criação de um tempo não condicionado ao movimento das imagens visuais e sonoras. Um tipo

de discurso indireto livre que liberta o tempo, emancipa o tempo da sucessão de presentes, tira

o tempo dos eixos. O encontro com a fenda rompendo com a imagem-movimento, um

acontecimento de nascimento de um tempo ainda sempre por vir e sempre já passado. Não é

Jerônimo, não é Ralf Emerson, não é o ator Everaldo, é Bressane através deles.

Independentemente de Jerônimo estar ou não estar na tela, sua voz é diálogo com

Bressane/autor.

Esta voz off é uma apresentação direta do tempo e passa a valer como um discurso

indireto livre. Uma imagem de tempo. Não mais se trata de ação e reação, nem interação, nem

reflexão, estamos presenciando o nascer de uma lenda.

A entonação de Everaldo é um sonsigno, um signo do falso, ele dirige-se a si mesmo

em terceira pessoa, como também refere-se a si como um outro.

A respeito da peculiaridade da voz de Everaldo Pontes, que interpreta o personagem

Jerônimo, destacamos o apreço de Bressane por esse ator:

[...] Aquela dicção do Everaldo, com aquele sotaque, uma leitura do texto,uma coisa extremamente elegante. Eu não poderia ter tido uma coisa quedesse mais sentido àquilo do que a voz do Everaldo. Eu devo o filme a ele, ofilme foi feito em função do Everaldo, do trabalho dele e da paixão que ele

99

teve pelo personagem [...] (BRESSANE, 2003, p.28-29 apud SOUSA, 2005,p.71).

� Nota de tempo nº 7

São Jerônimo tem na força do discurso indireto livre uma apresentação

direta do tempo, através da ruptura do vínculo sensório-motor. Imagens-

tempo quebram a sucessão cronológica, a separação do antes e do depois,

e introduzem um intervalo que dura no próprio momento.

A seqüência seguinte foi escolhida por ser a primeira vez que vemos o personagem

Jerônimo falar, como também, por conter as primeiras imagens visuais de outros personagens

falando. Um longo trecho recortado e comentado quadro a quadro, escolhido por sua

resistência ao texto e ainda por respeito ao próprio texto. Jerônimo estuda e Gregório lê a

carta do papa Damaso convidando-o para ir a Roma ser seu consultor bíblico.

2.4 Seqüência : Acontecimento / 7min56seg / 23’54” a 31’10”/ 23 planos

Plano 1 - Duração 8” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP- CAM na mão. Trav de Acomp. A CAMacompanha Jerônimo que anda rapidamente. Ovento balança suas roupas. Jerônimo é enquadradoà esquerda.

Som (em off): Música (duo violino e violoncelo).Som de panos ao vento[A melodia vai crescendo]O homem das orelhas grandes/ Carnaval dos Animais,de Saint Saëns

Plano 2 - Duração 35” - Plano seqüênciaExterior, dia.Imagem Som

PP- CAM na mão. Trav de Acomp. Tecidosvermelho e marrons e amarelos balançam aovento. Passam pela câmera. Vemos Jerônimo decostas. A CAM tangencia o trajeto de Jerônimo. O

Som (em off): Música (duo violino e violoncelo)[O diálogo entre os dois instrumentos decresce e cedelugar ao som do vento]

100

vento sopra com muita força. Jerônimo éenquadrado à direita.

Som do ventoSom de panos ao vento

Plano 3 – Duração 25” - Plano seqüênciaInterior , dia.Imagem Som

PP- Pan.trav. A CAM se lança abruptamente parabaixo, para o solo esburacado. A CAM pára, nãoestamos no solo. Uma parede de pedra texturizadaé o fundo do quadro, e à frente dela está ummonge (Gregório). Corte abrupto.

Som do vento.Som (em off) de percussão e som ambiente (emoff) de canto de pássaros.

Plano 4 - Duração 9” - Plano fixoInterior , noiteImagem Som

PC- Tela negra e no centro uma luz em forma devela, cria uma sombra: um homem com um chapéupontiagudo e capa comprida carrega alguma coisacom forma cilíndrica, suas roupas trepidam. Umaoutra sombra passa por ele, é a sombra de umhomem.

Som (em off) de sinoSom do vento

Plano 5 - Duração 9” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC- Jerônimo em baixo de uma pedra. Sentado, lêe a seu lado Gregório também lê.

Som do ventoSom ambiente (em off) de canto de pássaros,ruídos de animais e plantas.

Plano 6 - Duração 5” - Plano fixoInterior, noiteImagem Som

PA- Contra-plongée. Gregório entrega uma pluma.Seu braço se estende e esconde seus lábios. Corteseco.

Som do ventoSom ambiente (em off) de canto de pássaros,ruídos de animais e plantasGregório: Esta pena caiu do céu

Plano 7 - Duração 7” - Plano fixoInterior, noiteImagem Som

PP. Plongée. Aranha no chão. Som do ventoSom ambiente (em off) de canto de pássaros,ruídos de animais e plantasVoz (em off) de Gregório: das asas de umapomba divina. Fará voar seus escritos.

Plano 8 – Duração 13” - Plano fixoInterior , noiteImagem Som

101

PP- Plongée. Jerônimo recebe a pluma. A CAMestá à direita e acima.Vemos Jerônimo falar.

Voz (em off) de Gregório:A dor que se escreve ou a dor como se escreve ador. Jerônimo: O meu tormento é comigo, que eumesmo sou o meu perigo!Som do ventoSom (em off) de ruído elétrico

Plano 9 - Duração 20” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PG - Jerônimo lê e Gregório segura ummanuscrito. Eles estão na sombra de uma grandepedra como vultos, o vento balança roupas epapéis. Ao fundo o solo plano se encontra com océu azul.

Som do ventoSom (em off) de canto de passarinhosDiálogo.Gregório: Orígenes e Dídimo. Vamos tatear durasparedes, descobrir pequenas janelas por ondeuma escassa luz nos oriente, uma idéiagerminando em terra ingrata como uminterrogador ao porvir, água opaca

Plano 10 - Duração 9” - Plano fixoExterior diaImagem Som

PP- Jerônimo escreve no papiro, e o papiro estáescorado na rocha. Na rocha vemos inscriçõescirculares e traços. O vento balança o papel.

Som do ventoSom ambiente (em off) de canto de pássaros.Voz (em off) de Gregório:onde se reflete a maravilha das constelações.

Plano 11 - Duração 9” - Plano fixoExterior , noiteImagem Som

PG- Por do sol Som ambiente (em off) de canto de pássarosSom do vento

Plano 12 - Duração 26” - Plano fixoExterior , diaImagem Som

PG- Contra-plongée. Quatro rochas imensas estãona tela. Em uma delas no alto está Jerônimo.lendo, estudando, ele está sob um platô, abaixo nocentro de escavação de uma grande pedra e acimadele a pedra apresenta uma fenda, que com aincidência de luz cria a forma de uma cruz demalta. O céu é visto pelo espaço deixado pelaspedras, ao fundo, muito azul.

Som do ventoSom (em off) de badalar de sino inicia um discursomusical entre percussão e cordas.

Plano 13 - Duração 15” - Plano fixoInterior , diaImagem Som

102

PM- Caverna. Pouca luz, de um lado o sol iluminaa parede grossa, texturizada e alguns papéis, asombra preenche 2/3 do quadro.

Idem ao plano 12[Acordes tensos e pulsáteis]

Plano 14 - Duração 26” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PG- PDC. A CAM está à esquerda e de frente.Paisagem seca e plana. Céu e terra se encontramno horizonte. Um homem caminha em diagonalem direção à borda esquerda do quadro e umagrande pedra o encobre.

Idem ao plano anteriorSom (em off) de canto de passarinhos

Plano 15 - Duração 10” - Plano fixoExterior , diaImagem Som

PC- Gregório e Jerônimo conversam sentados numbanco de pedra.

Som (em off) de canto de passarinhosGregório: O Papa Damaso convida-o para ir aRoma ser seu secretário e seu consultor bíblico.

Plano 16 - Duração 13” - Plano fixoExterior , diaImagem Som

PG- PDC- Plongée. Paisagem de pedra e pequenosvegetais num declive acentuado desenham ummapa particular, as pedras são brancas e traçamum reticulado iluminado pelo sol.

Idem ao plano 14Som (em off) de canto de pássaros[Discurso musical :cordas e percussão (piano)]

Plano 17 - Duração 10” - Plano fixoExterior , diaImagem Som

PM - Jerônimo parado no alto de um morro, o céuescuro está dividido no quadro por uma linha depedras, oblíqua bem nítida em 1/3. Abaixo daspedras 2/3 de solo árido e Jerônimo segura um rolode pergaminho. O vento faz trepidar suas roupas eseus cabelos.

Idem ao plano anterior[Discurso musical: passagem para forte]

Plano 18 - Duração 27” - Plano seqüênciaExterior , noiteImagem Som

PP- Pan-trav Acom. Jerônimo anda sozinho daesquerda para a direita no sentido do vento. Apaisagem divide o quadro: 2/3 de céu ao anoitecere 1/3 de solo, sombra dura, onde o negropredomina..

Idem ao plano anteriorSom ambiente (em off) de canto de pássaros, degritos e de guizos.[Reverberam como se estivessem num lugar vazio eimenso]

103

Plano 19 - Duração 17” - Plano fixoExterior , noiteImagem Som

PP- Trav Acom. Jerônimo pára de costas. Apaisagem da noite chegando se derrama. O ventobalança as vestes de Jerônimo.

Idem ao plano anterior

Plano 20 – Duração 56” - Plano fixoExterior, noiteImagem Som

PC- PDC. Os vultos de Gregório e Jerônimo estãode pé ao vento, e ao fundo o céu tinge-se de tonsamarelos, vermelhos e negros. O sol está baixo,entre as pernas de Gregório.

O discurso musical do plano 19 continua comopano de fundo do diálogo.

Gregório: A sociedade cristã está desunida erevolta, são divergências dogmáticas. Ambrósionão vê com bons olhos a excessiva independênciados bispos orientais. No concílio deConstantinopla depois da morte de Melazoindicaram a mim para Papa e os bispos orientaiselegeram o arrepio. Um tal de Flaviano, com issoracharam a unidade da igreja. Ambrósio eDamaso reagiram. Damaso chegou a ser violento.Este concílio que Damaso lhe convida paraparticipar será para resolver esta discórdia.Jerônimo você tem que ir é além de sua vontade.

Plano 21 - Duração 25” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PC- Sombras de Jerônimo e Gregório no chão, àesquerda do quadro, suas vestes tremulam. Emseguida, a sombra de um jumento puxado por umhomem passa por eles.

O discurso musical páraSom do ventoSom (em off) de canto de pássaros

Gregório: Jerônimo, da sua boca sai a ligação queaproxima e une docemente as almas. Voz que seempenha em reformar os costumes e consolar osaflitos.

Jerônimo: Adeus, grande mestre santo.

Plano 22 - Duração 55” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PG- CAM frontal. Jerônimo se despede deGregório, dá as costas e caminha. O vento revoltaas roupas dos dois. O terreno onde se dá estadespedida é um terreno acidentado, sulcado e secoapresentando uma grande fenda profunda nocentro do quadro.

Som do ventoSom (em off) de canto de pássaros

104

Plano 23 - Duração 25” - Plano fixoExterior, diaImagem Som

PG - CAM lat. Os três: Jerônimo, o jumento e umhomem cortam a tela da direita para a esquerda. Ovento balança os trajes dos viajantes.

Som do ventoSom (em off) de canto de pássaros

Bressane é um cineasta brasileiro da modernidade do cinema. São Jerônimo, um filme

moderno em que os atos de fala não são dependentes da imagem visual, eles se tornam

imagens sonoras. Assim como o ruído do vento, as músicas, o canto dos pássaros, o badalar

dos sinos ganha autonomia cinematográfica, os atos de fala também. Cinema de composição.

O ponto de partida de Júlio Bressane é São Jerônimo, o Santo Doutor, um dos mais

importantes escritores latinos ocidentais, tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata, uma

monumental obra, versão da Bíblia Latina, feita diretamente dos originais em grego e em

hebraico, centro de onde saíram todas as traduções da Bíblia em línguas românicas.

São Jerônimo cria e inicia a literatura dos padres do deserto nos finais do século IV,

ditando incansavelmente para os copistas. Seu nome é ligado no Brasil ao Santo do raio, do

trovão, da justiça e do fogo. Costuma-se dizer que São Jerônimo corresponde ao orixá

Xangô36, castiga os mentirosos, os ladrões e malfeitores.

Bressane estudou os textos de São Jerônimo por onze anos, o peso da documentação

a respeito de São Jerônimo é um dos pontos onde se agita o filme de Bressane, os textos de

Jerônimo estão nos atos de fala do filme como vozes, se remetendo a si mesmas, rompendo o

esquema sensório-motor afetando a imagem visual. Afastadas da imagem visual, as falas

(re)fundam o texto do santo doutor desconhecido no ocidente. Da pedra à câmera. Da palavra

aos sentidos.

36 Adriano Carvalho Araújo e Sousa (2005, p. 95) em informação concedida por Marlyse Meyer em entrevista , aensaísta ressalta aspectos da formação da literatura brasileira, a relação entre popular (massas) e erudito, informaque São Jerônimo possui uma face bem brasileira, porque sincretiza com Xangô na religião afro-brasileira.

105

Não há mais voz off, em nenhum sentido. O falado e conjunto sonoro conquistaram

autonomia, as imagens visuais também. A imagem sonora nasce no filme de sua ruptura com

a visual. O sonoro e o visual não são nem mesmo dois componentes autônomos, são duas

imagens, uma visual e uma sonora, com uma falha, corte entre elas.

Recortamos deste Movimento um plano, o 12. Ele tem duração de 26 segundos e não

facilita o desenvolvimento da seqüência e nem do filme. O quadro é uma composição de

quatro pedras imensas, luz e sombra desenham um cenário articulado em camadas geológicas

de pedaços de rochas que denunciam abstrações de mundos que se passaram por ali, como

também dissimulam faces, lacunas, do que se esconde nele.

O olho é impedido de ver além das pedras, elas preenchem todo o quadro, mas deixam

entre elas um pequeno espaço por onde o céu é visto ao fundo. Sobre uma delas, no alto, está

Jerônimo, lendo, estudando sob um platô, abaixo no centro de escavação de uma grande

pedra, e acima dele a pedra apresenta uma fenda, que com a incidência de luz cria a forma de

uma cruz de malta. Os elementos visuais estão unidos e disjuntos. A rocha não se deixa tocar

pelas palavras, nem por qualquer som e nem pela câmera.

Paisagem imóvel, como um cartão postal audiovisual, o movimento é sentido pela

presença do vento a movimentar as folhas dos escritos. Jerônimo está com uma das mãos na

(Folha de São Paulo, São Paulo, 02 de agosto, 1998. Mais! Entrevista a Maurício Santana. As mil faces doromance).

106

cabeça. O trinado dos pássaros, o som dos sinos e o discurso musical, percussão e cordas são

ouvidos, estão nesse cartão não mais como vozes em off, porque não interessa mais se eles

vão aparecer ou não. Eles entram no filme e o perturbam, ao mesmo tempo que as imagens

visuais não os prendem, mesmo nesta armadilha de um espaço de pedras, eles são sons de

vários lados.

A imagem visual é enquadrada de baixo para cima, mas poderia ter sido enquadrada de

outros muitos diferentes pontos de vista, estamos num espaço puro. As imagens visuais e

sonoras não mais implicam ou explicam a imagem do deserto ou do sertão.

� Nota de tempo nº 8

O ato sonoro inventará música e silêncio dos sons audíveis, não mais há

extracampo, o ato sonoro livrou-se de sua dependência ao visual, conquista

um enquadramento independente da imagem visual, tende ao puro som. As

imagens visuais renunciam à exterioridade, separam-se do mundo. O filme

das vozes e o filme do visual.

3. Segundo Movimento: Roma de Bressane / 33min / 31’10”a 1h 4’/ 79 planos

Jerônimo tem que partir, tem que sair do deserto, ir a Roma e ser consultor bíblico do

Papa Damaso. No decorrer deste movimento aparecem os personagens: Papa Damaso,

Marcela, e oito mulheres estudiosas do texto bíblico, alguns monges, Jerônimo, o leão e a

caveira. Todos participam da trama romana entremeada de diálogos e leituras de cartas.

107

Jerônimo, Damaso e as mulheres estudiosas estão à procura da verdade da palavra

tradutória que poderá unir a igreja católica, este é o principal aspecto deste segmento. Os

signos dessa procura se apresentam sob diversos pontos de vista.

O ponto de partida para pensarmos esses signos são as qualidades das imagens

sonoras e visuais que eles contêm, mas tomadas em suas variações, em “fusões mútuas”

(DELEUZE, 1987, p.107). O uivo instável do vento cede lugar para o som dos trinados dos

pássaros, a luz em sua escala de gradação é agora a sombra, o grande desejo sexual é também

o voto de castidade, os burburinhos a respeito do trabalho de Jerônimo estudando com as

jovens virgens é inseparável dos grandes ruídos, a solidão de Jerônimo é povoada por

pensamentos, idéias e criações, a vida freqüenta a morte. Signos violentos, uma série de

signos; em instável oposição .

O filme São Jerônimo tem por sujeito o tempo, diz respeito a fragmentos que não

podem se (re)ajustar. Uma composição de partes, não de um quebra-cabeças a apresentar

uma totalidade.

Em Roma de Bressane não descreveremos as imagens visuais e sim os atos sonoros,

criamos um encontro com as palavras como sons. Realizamos uma cesura em nossa análise

fílmica, transcrevendo os atos de fala do filme para indagarmos como os personagens e o

diretor roubaram os textos de Jerônimo. Acreditamos que uma visão palavra a palavra nos

ajudará na análise.

Jerônimo, como sabemos, ditava incansavelmente para os escribas, seu texto chega até

nós com um ritmo, como um tempo de resistência da palavra e do ato de fala. Bressane

arranca do texto de Jerônimo a fala do ator Everaldo Pontes. O ato de fala também é música.

Qual a natureza desses atos? São especiais porque evocam a própria voz, o comentário, a

leitura, o estudo, e não a interação entre o que se vê o que se ouve. Dividimos portanto em

108

duas colunas, uma das imagens visuais congeladas e a outra das vozes (atos de fala, ruídos e

música).

Vamos à leitura.

Plano Duração Descrição sonora

01 - 36”

Exterior, dia.A CAM verticalmente desce do céu às árvores, a um grupo de mulheres, monges,Damaso e Jerônimo.Som (em off) de canto de pássaros

02 - 46”

Exterior, dia.Todos estão parados e calados, inclusive Damaso.Som (em off ) de canto de pássaros.Voz (em off) de Damaso, apresenta Jerônimo: O amante das Belas letras. O sábiotradutor. O monge do deserto e do martírio, Jerônimo, de quem se fala muito ebem. Mas,sabemos de seu mau humor, muitas vezes violento, mordaz, incendiário.

03 - 28” -

Interior, noite.Conversam Jerônimo e Damaso. Damaso fala, mas não olha para Jerônimo.Som (em off) de canto de pássarosDamaso: Todos sabemos de seu grande esforço, sua dedicação pelo texto sagrado.Gregório me fez saber de seus enormes avanços na decifração e tradução depassagens obscuras das várias versões existentes. Isso é muito louvável, mais doque isso penso ser o seu trabalho imprescindível. Quanto a isso estamos todos deacordo.

04 - 23”

Interior, dia.A conversa continua, eles não se olham.Som em off, de canto de pássaros.Canto do pássaro da abertura do filme.Damaso: Mas você, melhor do que ninguém sabe dos obstáculos que nos inibem,Você querido Jerônimo precisa conhecer alguns escritos, conversar com outrosirmãos, atentar para o que já foi feito e dedicar-se as leituras de outras línguas,juntar os textos compará-los.

110

11 - 20”

Interior, noite.A música pára.Jerônimo fala às nove mulheres, estão estáticos, em.uma sala ampla. O somreverbera.Jerônimo: Eu não enumerarei os aborrecimentos do casamento, os seios inchados,o vagido da criança, a irritação da vida doméstica com seus encontrosinoportunos. Depois de toda a felicidade que imaginamos.

12 - 4”

Interior, noite.Sombras das mulheres na parede.Som (em off) de zumbidos.Voz (em off)de Jerônimo: Vem a morte. A devastação.

13 - 44”

Interior, noite.Jerônimo discursa com veemênciaJerônimo: Não há caminho tranqüilo entre as serpentes e escorpiões. Uma carnefrágil e que logo se tornará cinza deverá sozinha lutar contra muitos adversários.O nosso inimigo o diabo ronda como um leão rugindo que procura sua presa paradevorá-la. Vou exprimir-me com audácia. Deus que tudo pode, nada pode contra aruína da virgindade. Ele pode livrá-la da pena de seu pecado. Não pode coroá-ladepois do defloramento.

14 - 3”

Interior, noite.Repetem-se as sombras na parede.Som (em off) de zumbidosVoz (em off) de Jerônimo: A virgindade pode perder-se simplesmente

15 - 17”

Interior, noite.Jerônimo e as mulheres continuam na sala.Som (em off), de ruídos, de zumbidos.Jerônimo: pelo pensamento. O que fazer? O canto da sereia é atraente, masmortal. As núpcias preenchem a terra, a virgindade.Jerônimo interrompe a pregação e inicia um monólogo interior: Paraíso. Eva noparaíso era virgem. Paraíso.

16 - 41”

Interior, noite.Jerônimo está sozinho na tela e fala.Jerônimo: Paraíso da luz. O deserto é meu paraíso. Branca e serena abstração.Vertigem de eternidade. Deserto onde mastigam as sementes amargas que dãofrutos doces. Longe, longe das pegadas humanas, contra-mundo, antinatureza.Adão antes da queda. Paraíso celeste e terrestre. Deserto adorado.

111

17 – 1’41”

Interior, noite.Jerônimo continua a discursar, enquanto fala duas mulheres caem e duas seagacham como se sentissem dores.Jerônimo: Os animais que Noé introduziu em sua arca aos pares são impuros. Onúmero ímpar é que é puro. O apóstolo nos ordena a rezar a rezar sem cessar. Osdeveres do casamento nos obrigam a interrompermos a orações. Rezamos o tempotodo e permanecemos virgens. Interrompemos as orações para atender asnecessidades e obrigações do casamento. Nenhum vaso de ouro ou de prata é tãovalioso como um corpo virginal. A virgem deve fugir do vinho como de um veneno.Para que colocar lenha em um corpo que já está fervendo? Deus não proíbe omatrimônio. Proibi-lo, seria como se quisesse que os homens vivessem como osanjos. O que devemos fazer não é magnificar a castidade, mas vivê-la, carne semcarne. Evitem a avareza. A raiz de todos os males é a avareza.Inicia-se um diálogo entre Jerônimo, o leão, a caveira e a CAM.

18 - 5”

A caveira está em cima dos escritos de Jerônimo.Sons (em off) de zumbidos de moscas

19 - 23”

Interior, noite.Tela negra, em seguida a câmera percorre o corpo do leão. O leãoruge e se mexe incomodado.Sons (em off), de zumbidos, e discurso musical de cordas friccionadas e metais(música’ Liquid Dreams)

20 - 9”

Interior, noite.Jerônimo está em uma biblioteca e segura um rolo de pergaminho.Sons do leão rugindoSons (em off ) zumbidos, desenvolvimento da música Liquid Dreams e de canto depássaros.

21 - 4”

Interior, noite.Jerônimo está sentado em cima de uma mesa e lê em silêncio.Som (em off), do leão rugindo.

22 - 4”

Interior, noite.O leão se mexe, inquieto.Som: rosnados do leão

23 - 4”

Interior, noite.O leão continua inquieto.Som: rosnados do leão

112

24 - 8”

Interior, noite.O leão anda e rosna inquieto.Som: rosnados do leão

25 - 16”

Interior, noite.ACAM se aproxima de Jerônimo como a dar um “bote”, Jerônimo olha com arameaçador.Som (em off) de rosnado de leão.

26 - 5”

Interior, noite. O leão está em pé, em cima da mesa de Jerônimo.Som: rosnado do leão, canto de pássaros e de água pingando.

27 - 23”

Exterior, dia.Lugar úmido. Monges lêem em silêncio.Som (em off) de rosnado do leão, água caindo e trinado de pássaros.

28 - 43”

Exterior, dia.Diálogo entre Damaso e Jerônimo em uma gruta ou caverna.Som (em off), de canto de pássaros.Damaso: Jerônimo, vejo que você progride num estudo mais refinado e sistemáticodas escrituras. Finalmente, você está em trânsito por um textos e obras de difícilacesso. É necessário uma religião nova, um texto sólido traduzido dos originaisem que foram escritos por Deus. Mesmo que a princípio isso cause um certoestranhamento. A tarefa é monumental, mas o homem para realizá-la, a Igreja jápossui, é você, Jerônimo.

29 - 17”

Exterior, dia.Jerônimo está sob a copa de uma grande árvore. Lugar úmido.Som (em off) de canto de pássaros e de água pingando.Jerônimo: Você me força a uma obra nova, a de analisar e decidir que exemplardas escrituras entre todas difundidas pelo mundo se ajusta melhor à verdade dotexto grego e hebraico.

30 - 28”

Exterior, dia.Muitas árvores e suas copas verdes repletas de folham balançam ao vento.Som (em off) de canto de pássaros e de água escorrendo.Damaso: Não podemos nos manter. O cristianismo não triunfará sem um textosólido e verdadeiro. Esses ricos e desesperados aristocratas romanos consideramas nossas diversas versões do texto sagrado, um roto tecido de fábulas orientais.Não poderemos nos manter firmes sobre um chão movediço.

113

31 - 16”

Exterior, dia.Árvores imensas ao fundo, Jerônimo e Damaso caminham atravessando daesquerda para a direita.Som (em off) de canto de pássarosDamaso (em off): Deus lhe ilumine Jerônimo. Qual é a origem da palavraHosana?

32 - 44”

Exterior, dia.Os dois continuam a conversar, agora num lugar fechado de pedras e árvores,como um jardim natural.Som (em off ) de canto de pássaros.Jerônimo: Eis uma dificuldade não notada nas diversas traduções. Hilário em seuscomentários sobre Mateus diz: “Hosana, em hebraico significa redenção da casade Davi”. Deus que me perdoe, mas redenção em hebraico significa fedutti e casase diz bet. Quanto a Davi, esse nome não consta na palavra. Isto parece evidente atodos, não? Outros dizem que Hosana significa glória, mas glória se diz chagode.

33 - 10”

Interior, noite.A caveira e vista novamente sob os papéis.Som em off de canto de pássaros.Jerônimo (em off)’ Outros dizem ainda que quer dizer graça, mas graça se traduzpor todahuana. Perdoai-me,

34 - 16”

Interior, noite.O leão é visto parado.Som (em off ) de canto de pássaros.Jerônimo(em off): Sei que é um esforço penoso, mas necessário.Damaso (em off): Sim, entendo perfeitamente. Eis aí a evidência da necessidade dasua grande missão. Continue, Jerônimo.

35 - 43”

Interior, dia.Os dois continuam a conversar nesta espécie de jardim, esplêndido em tonalidadesde luz e de texturas.Som (em off ) de canto de pássaros e ruídos de água escorrendo em pedras.Jerônimo: Vamos recorrer à fonte de onde os evangelistas tiraram .estas minúcias.Esta dissertação aviscossa certamente fadiga, vou tentar uma explicação minha eabreviada. A palavra Hosana por ser intraduzível para o grego como aleluia eamém, foi traduzida pelo próprio hebreu e diz Hosana. São particularidadesidiomáticas que não tem tradução, daí penso ser necessário sempre a criação deneologismos. Palavras novas, mesmo que isso a princípio dificulte a leitura.

36 - 45”

Exterior, dia.O diálogo continua, eles estão agora aos pés de uma escada de pedra em formacircular.Som (em off) de canto de pássaros e ruídos de água escorrendoJerônimo: Mateus,que escreveu em hebraico, diz “Hosana barrama”, isto é,“Hosana nas alturas”. As questões são difíceis, mas é mais honrado penar umpouco para alcançarmos a verdade e adaptar o nosso ouvido a uma língua que nosé estranha do que aceitar uma versão truncada de um idioma que não está emquestão. O cristianismo ganha e muito com os elementos da literatura secular.Não devemos servir a Deus desastradamente, por ignorância das belas-letras.

37 - 7’

Exterior, dia.Damaso fala.Som (em off) de canto de pássaros.Damaso: Uma grande e nova época, uma era gloriosa que se formará para todosos homens.

114

Os ouvidos de Roma...

38 - 9”

Exterior, dia.Escultura em pedra de uma águia cinza.Som (em off) de pássaros, trinados de diversos pássaros.

39 - 33”

Interior, noite.Som ambiente de crepitar de vela e trinados de pássarosA sombra de Jerônimo é vista na parede falando às nove mulheres.Voz de Jerônimo: Eu, por modéstia afastava os meus olhos destas nobresmulheres, mas Paula me fazia questões nem sempre oportunas. Para superar omeu recato e meu nome, era muito estimado, quando se tratava de estudos do textobíblico. Não falavam de outro assunto que não fosse perguntas sobre algunspontos obscuros para elas. Às vezes, não satisfeitas com minhas respostas,

40 - 24”

Interior, noite.A silhueta de um crânio corre sobre um pergaminho, em seguida o pergaminhopuxado para cima e deixa ver o crânio.Voz (em off) de Jerônimo: insistiam cm outras perguntas, não apenas paradiscutir, mas com desejos de encontrar soluções e objeções que lhes ocorriam.Encontrei neste ciclo sensibilidades que perceberam a necessidade de um imensoesforço intelectual concernente à escritura sagrada.

41 - 17”

Exterior, noite.Damaso e Jerônimo conversam no jardim.Sons (em off) de água corrente e de trinados de pássaros.Damaso: Semeará a terra inteira, sagradas palavras recolhidas que ecoarão pelospróximos e muitos séculos. Verbo de onde sairá a nossa humanidade. Luz sensívele adorável que brilhará como sorriso de uma aurora eterna.

42 - 23”

Exterior, dia.Jerônimo e Damaso estão andando, Damaso à frente e Jerônimo atrás.Sons (em off) de pássaros.Damaso: Língua mãe de todas as línguas, que respira o aroma paradisíaco de ummilagre, de um amanhecer, de um abrir de rosa, cuja musa é o amor. Fiostranslúcidos que pendem de uma abobada, como os cabelos de um anjo.

43 - 46”

Exterior, dia.Os dois estão agora em um outro lugar, pedras de vários tamanhos calçam o solo,sombras de árvores e umidade delimitam o ambiente.Sons (em off) de trinado de pássaros entrecortam os atos de fala de Damaso.Repetição dos trinados de pássaros.Damaso: Jerônimo, existem velhas vozes vazias e vingativas, que vivem nestasvielas viscosas dessa vila vil. Imunda cidade, onde canta a canalhacontemporânea, este teu trabalho sagrado com as virgens, a formação religiosa, oeducador de almas, olhos postos à santificação, esse ambiente estudioso que vocêcriou, nem assim a infâmia se inibe, ou se intimida. A infâmia sai em cortejo commúsicas pelas ruas, ruas da mentira e do mau.

44 - 8”

Exterior, dia.Damaso: Me perguntam porque você Jerônimo prega para as mulheres’ “Não háhomens sensíveis em Roma”?Após falar, Damaso mexe a cabeça para a esquerda.

115

45 - 2”

Interior, noite.O leão mexe a cabeça (mesmo movimento de Damaso)Silêncio.

46 - 57”

Exterior, dia.Jerônimo fala com violência.Sons (em off) de trinados de pássaros.Jerônimo: Mulheres santas. Platão nos apresenta Aspásia em discussão; Safo secorrespondia com Píndaro e Alceu’ Temista dissertava filosofia entre os grandessábios da Grécia; uma multidão de romanas veneravam e veneram Cornélia, amãe dos Gracos, isto é nossa mãe. Poderei, ainda lembrar, a filha de Catão,esposa de Brutus. Implantar o ideal monástico em alguém é lutar com árduos etenazes esforços. Moralistas mundanos! Joviniano é escravo da luxúria. Epicurodos cristãos, cachorro que comeu o próprio vômito. O padre Vigilâncio, eu ochamo de Dormitâncio. Deus pode tudo menos consertar um vaso quebrado.

47 - 8”

Exterior, dia.Damaso: Sem misericórdia, contra seus adversários, mas isso é um descuido!

Os atos de fala criam acontecimentos atravessados pelas imagens visuais. As

trajetórias das palavras e das imagens visuais não se encaixam, às vezes se cruzam, outras

vezes nem se tocam. O que esse vaivém cria no filme? Uma sensação materializada de

distanciamento entre o ato de fala e a imagem visual. Damaso e Jerônimo falam como se

ouvissem suas próprias palavras, eles não reagem a elas, elas não causam emoções nos

personagens e nem em nós espectadores. Jerônimo fala às mulheres, eles estão no mesmo

espaço visual, mas distanciados, como sombras de onde elas foram retiradas.

Os atos de fala são contínuos e descontínuos, Damaso e Jerônimo, Jerônimo e as

mulheres, são também silêncios de palavras entre Jerônimo e ele mesmo cedendo lugar aos

rugidos do leão e aos zumbidos das moscas na materialidade da caveira. Há algo entre eles de

indiscernível, optamos por indicar som em off o que é emitido por algo que está fora do

campo da imagem visual, ou seja um som pertencente ao extracampo. Entretanto, é preciso

dizer que nesta seqüência os atos de fala são em todos som in. Em Roma de Bressane não há

extracampo, os atos sonoros são um filme e as imagens visuais são outro filme, e, que se

116

atravessam Ao tentarmos preencher as imagens visuais com os atos de fala, o que daria a

perceber seriam as fissuras entre eles.

Roma é um lugar de fabulação, um dos lugares de criação do filme São Jerônimo. Os

atos de fala fundam um tempo, uma imagem de tempo de uma Roma de subterrâneas

armadilhas, mentiras e artimanhas pelo poder, imagem de tempo de grandes temáticas cristãs

através da viscosidade, umidade e impenetrabilidade dos espaços visuais do filme. Não

verdades sobre Roma, sobre o cristianismo, sobre São Jerônimo, ou sobre o todo do filme,

imagens de tempo do cinema fabulando sobre São Jerônimo, entre o peso da documentação a

respeito do santo e o filme sendo feito, imagem de tempo de Roma de Bressane.

Um pouco de silêncio se faz necessário. Destacamos um trecho deste segmento, um

trecho muito belo, um pequeno fragmento entre tantas palavras. Os planos deste trecho serão

analisados um a um, separados e juntos. Descreveremos as imagens visuais e sonoras: a

seqüência, St. Jerome, de Caravaggio (1607 - Óleo sobre tela), e o adágio da Sinfonia nº 2, de

Schumann.37

Uma frase cinema-pintura-música de aproximadamente um minuto de duração.

Expusemos esta imagem no Capítulo I, quando nos referíamos aos inúmeros quadros vivos,

ópticos e sonoros apresentados no filme; imagens especulares da rica iconografia a respeito de

São Jerônimo. E agora a repetimos, diferentemente, nos referindo a um outro sentido desta

imagem. Imagem que cria afetos, talvez como o vento inventa o filme de Bressane. E ainda

um outro sentido, provocando gestar um entre-tempo nesta dissertação, entre sua escrita e

leitura.

Caravaggio, Schumann e Bressane nos ajudaram a criar este meandro. Este rodeio se

fez necessário. Arrastamos fragmentos, cada um se dirigindo a um conjunto diferente, e

37 Depoimento de Júlio Bressane a escolha de Schumann, para esta seqüência: “... Schumann... para mim,contém a sombra de Schumann, o adágio espressivo da Sinfonia número dois, os acordes gélidos do parto e damorte. A visão da eternidade como uma geleira com nervos de aço” (BRESSANE, 1996, p. 44 apud ARAÚJO,2005, p.72).

117

assim, não remetendo a conjunto nenhum ou, quem sabe, só remetendo à técnica do filme e a

apresentação do tempo no filme São Jerônimo38.

Plano 48 – ( 49’44” – 49’49”). Plano fixoInterior , noite.- Duração 5”Imagem SomPG-PDC. Um corredor apresentando lateralmentediversas portas e uma porta fechada ao fundo. Deuma das portas laterais, o leão atravessa da direitapara a esquerda.

Som (em off): Música: Sinfonia nº 2, de Schumann(adágio).

Plano 49 - (49’49” – 50’36”) Plano fixoInterior , noite – Duração 47”Imagem SomPM- Jerônimo sentado escreve com uma pena emum grosso livro. As gradações de cores vão do

118

Sensação congelada, de e entre dois planos fixos e um plano seqüência de

aproximadamente 1 minuto de duração. Uma cena para ser contemplada. Envolvimento de

uma pena, livros, Jerônimo a escrever, pano vermelho e pano branco, volumes na horizontal

direita e esquerda se envolvem e se tornam mundo. Um pouco de tempo em estado puro,

tempo do que não muda, não uma fotografia ou reprodução do quadro de Caravaggio. Se

difere dele pela duração do que permanece na sucessão de planos mutantes. Uma imagem que

torna sensível o tempo no filme São Jerônimo.

Retornemos às palavras.

Plano Duração Descrição sonora - Atos de fala

51 - 1’06”

Interior, noite.Jerônimo à direta do quadro em primeiro plano, no mesmo lugar ocupado pelo leãodo plano anterior, fala às mulheres. Elas lêem.Jerônimo: Escolhendo a escritura sagrada. Escolhemos tudo. Vejo nas traduções eversões existentes da escritura sagrada, sobretudo as latinas, arrepiantes erros delinguagem, imundas imperfeições nas variantes. Pouco a pouco veremos essasinsuficiências dos livros canônicos desfigurados por grosseiras traduções.Sofridamente iniciaremos o conhecimento do texto original e distinguiremos abeleza nova desorientada por tantos barbarismos. Devemos pensar antes de tudoem inverter a idéia, o sentido, mais do que as palavras. Traduzir do hebraicopalavra a palavra como fez Áquila é deplorável. É preciso respeitar o caráterpróprio de cada língua e visar na língua traduzida uma certa elegância eharmonia. A eufonia preconizada fortemente pelos grandes críticos de Alexandria.

52 - 43”

Interior, noite.As mulheres estudam.Jerônimo: Repudiemos altamente a cacozélia, o zelo errado da literalidade queacaba por desembocar em cacofonias absurdas e linguagem ruim. A tradução deveser compreendia por todos, pelos mais simples, sem perder de vista a elegâncialatina. O Oriente está mais equipado com suas diversas traduções gregas dosescritos sagrados. Porque não dotar o mundo latino de uma tradução correta efiel? O trabalho é mortificador, longo, mas vivificador. Um sacrifício delicioso.

53 - 8”

Exterior, dia.Beiral de uma construção arquitetônica, mostrada de baixo para cima.Sons (em off) de trinados de muitos pássaros.

54 - 10”

Exterior, dia.Ângulos vivos dede beirais, de baixo para cima (plongée).Sons (em off) de trinados de muitos pássaros e o som do canto do pássaro daabertura de São Jerônimo.

119

55 - 17”

Exterior, dia.Outro ângulo vivo, triangular de um outro beiral., de baixo para cima (plongée).Sons (em off) de trinados de muitos pássaros e o canto do pássaro da abertura deSão Jerônimo e chibatadas.Som (em off) de tosse

56 - 1’ 11”

Exterior, dia.Damaso: Você já deve ter notado Jerônimo, que vivemos uma cidade de ciladas,ciladas executadas na noite negra da infâmia. Flor enferma, leprosa, envenenada.Os que mandam em Roma pela primeira vez sentem o perigo evidente. O mundoporcão que desaba e nós colocamos as primeiras pedras rijas na construção de umnovo mundo. O nosso texto sagrado latino consagrará e dará existência a todahumanidade.Som (em off) de trinados de pássaros

57 - 7”

Exterior, dia.O grosso caule de uma árvore preenche quase toda a tela. O lugar é úmido. Ocaule apresenta um entalhe profundo.Sons (em off) de tosse, escarro.

58 - 7”

Exterior, dia.Plano próximo do mesmo caule. Uma grande fenda está no centro da tela.Som: Idem ao plano anterior

59 - 14”

Interior, dia.Jerônimo e Damaso estão numa caverna.Sons (em off) de água corrente , tosse, escarro e respiração arfante.

60 - 9”

Exterior, dia.Grande raiz de uma árvore cobre a tela. Lugar úmido com pouca luz.Sons (em off) de água corrente , tosse, escarro e respiração arfante.

61 - 15”

Exterior, dia.Caule de uma grande árvore.Sons (em off) de água corrente, escarro, tosse, pássaros.

62 - 18

Interior, dia.Água escoa em uma tina repleta de líquidoSom de água caindo

63 - 26”

Interior, noite.Jerônimo recebe a notícia da morte do papa Damaso. O leão espreita.Som (em off): música Liquid Dreams

64 - 14”

Interior, noite.O rosto de Jerônimo preenche toda a tela. Os olhos estão lacrimejantes.Som: música Liquid Dreams (em desenvolvimento)

120

65 - 13”

Interior, noite.O leão se debate, anda, rola, ataca com patadas, vira para a esquerda e para adireita.Som (em off ): música Liquid Dreams (em desenvolvimento)

66 - 3”

Interior, noite.O leão se debate

67 - 4”

Interior, noite.Crânio em cima de folha de pergaminho gira 180ºSom (em off ): música Liquid Dreams (em desenvolvimento)

68 - 29”

Reflexo de Jerônimo na águaSom (em off): música Liquid Dreams (em desenvolvimento), som de bigorna e depássaros.

69 - 25”

Mulheres velam o corpo do PapaSom (em off) de bigorna, pássaros, animais da noite.

70 - 4”

Interior, noite.O leão atravessa o corredor novamente.

71 - 1’ 47”

Interior, dia.As nove mulheres estão em pé não se olham. Todas olham para frente falampausadamente e parecem hipnotizadas.Mulher 1: Monge do deserto com os profetas sempre às mãos. Da seda ao silício.Da riqueza ao trapo. Vestir os dois. Alimentar quem está com fome. Consolar osdoentes. O miserável não tem como solicitar. Quem não tem como solicitar,solicita com mais insistência.Mulher 2: Por que – o- i men so - mau - es tar. O - gran de - trans tor no - causa do - pe la - ado ção - de -nos sos - há bi tos - mo nás ticos, por quê? por quê?É- a - nos sa - con de na ção - aos - pri vi lé gi o s- da - ri que za -e - do- po der.Mulher 3: A versão da escravidão, recusa ao banho, a mesa lauta, aos perfumes,às futilidades.Mulher 1: Atenção e vista. Primeiro atenção e depois vista.Mulher 2: Ver - sem - atenção - é - ver - e - não - ver.Do - trapo-ao-je jum- são-as-ar mas. Pri me iro - o- je jum- de po is- o - tra po. Pri me iro- o - que- não-se -vê-de po is- o - que - es ta-à - vis ta. Se-des ses - a lia dos - ne ces sá ri os - ti vermos- que- es co lher- um. Es co lhe ria - o - je jum. Je jum - sem - tra po- em- vez- de- tra po- sem - je jum. O- je jum - nos- une- a - todas.Mulher 3: Ler, ler, ler, ler sempre. Nossas virtudes são a amabilidade e acuidadenas orações. A paciência. A caridade. A vigília. O jejum e o repouso sobre o chão.Se tudo está bom, alguma coisa não está bem. Sem Ceres, sem Baco, Vênus a frio.Sombras, sombras. Sombras dos que hão de vir. Ler, ler, ler sem cessar.Mulher 1: Nossas leituras se efetuarão a partir do hebraico.

121

72 - 56”

Interior, dia.Mulher 4: A literatura hebraica está na origem de todas as demais. Não, não é ogrego. A primeira cítara foi obra de Tubal e não de Apolo. Ocultar a verdade ésobre-véus. Moisés, mais antigo profeta da antiguidade viveu antes de Orfeu.Orfeu morreu.Mulher 5: Estamos assistindo a uma cena. A uma cena do fim. A uma cena do fimdo mundo. Mundo que desaba e isso nos obriga, ainda mais, ao recolhimento e aosilêncio.Mulher 6: Cristianismo mundano.

73 - 24”

Interior, dia.Mulher 7: Teu perfil no vácuo perpassando, Ver rubros flamejando.Mulher 8: Por toda parte escrito em fogo eterno, Inf...erno, inf...erno, inf...erno,inf...erno.

74 - 3”

Interior, dia.SilêncioVemos duas sombras no piso.

75 - 18”

Interior, dia.Jerônimo se despede das mulheres.Jerônimo: Não sofram com minha ausência. Que falte um homem a outro homem, éa pequena falta. Logo os supre Deus. E tudo melhora.

76 - 4”

Sombras na paredeSom (em off) de água escorrendo

77 - 23”

Jerônimo caminha por um longo corredor.Som (em off) de água escorrendo

78 - 7”

O leão atravessa o corredorSom: o leão rugeMúsica (em off) Carnaval do Animais, de Saint Saëns, Imagem d’O Cisne.

79 - 6”

Sombra do leão na parede.Som (em off): Música Carnaval dos Animais, de Saint Saens, Imagem d’O Cisne.

Destacamos o ato de fala das mulheres, todas falam vagarosamente, cada uma dá uma

entonação diferente, mas a sensação que se materializa é de que o tempo borbulha, elas falam

no vazio de suas presenças. A primeira a falar está com pergaminho às mãos e lê um trecho de

122

uma carta se referindo a Jerônimo e sua vida no deserto; a segunda mulher fala pausadamente

sílaba por sílaba sobre a escolha entre jejuar ou vestir trapos; a terceira, sobre as privações

para cumprir a tarefa de propagar a palavra divina; e as outras, lentas, parecem hipnotizadas,

arrancadas das leituras de Bressane, limites da própria palavra: mulheres-silêncio.

Qual a natureza desses atos de fala em Roma de Bressane? Como eles nos ajudarão

apreender o tempo no filme? Vejamos, os atos de fala são a apresentação de tempos, tempos

de Bressane, tempos de São Jerônimo. O tempo como variável independente não preenche

123

espaços mostrados anteriormente ou posteriormente, novamente o interstício é o lugar, um

lugar do Fora. A imagem visual é puro convite à leitura.

A voz se torna visível no filme São Jerônimo, a palavra abre caminho a uma matéria

em movimento. Bressane filmou a palavra sonora como algo visível, como uma matéria em

movimento, como a luz. O ato de fala torna-se visível ao mesmo tempo que se faz ouvir. O

visual e o sonoro transcorrem criando aparições de imagens e sons que se ligam, não só na

continuidade do movimento que os registra, como também nas partes que eles não juntam, o

movimento esbarra nos sons e nas imagens re-encadeando-se num filme partido, que parece

não passar.

� Nota de tempo nº 9

A imagem audiovisual em São Jerônimo é ato de resistência, aos textos de

Jerônimo e ao filme sendo feito. Relação que separa a imagem visual da

sonora compondo um outro tipo de relação.

4. Terceiro Movimento: Sertão / 8min38seg / 1h4’ a 1h12’38”/ 19 planos

Este movimento se inicia com volta de Jerônimo ao deserto. Em voz off escreve cartas

em que ressoam o atual e o antigo: os estudos na areia e a perambulação descalça sobre uma

terra salpicada de buracos escuros, numa mistura de dor e prazer, na contração desordenada

do abdômen, no escurecimento da pele, na proximidade da morte.

124

A morte pode ser sentida na imagem visual, parece haver um perigo. A imagem visual

parece tátil, os planos não se comunicam um com o outro mesmo numa ação de andar, ou de

delirar. As paradas, as mudanças de eixo da câmera são sentidas, é o tempo que se torna

sensível .

Jerônimo está de volta ao deserto. Escolhemos para analisar os dois últimos planos-

seqüências do filme, mais precisamente o espaço entre os dois. O primeiro tem duração de 40

segundos e o segundo 2min22seg. No primeiro, a câmera na mão acompanha a morte de

Jerônimo, e no segundo uma longa e lenta panorâmica nos mostra um horizonte da esquerda

para a direita, da aurora ao poente. Chegamos aos créditos finais, ao fim do filme.

Plano 1 – Duração 40” - Plano seqüênciaExterior, diaImagem SomPan-Trav. Plongée. A CAM na mão realiza ummovimento do alto para baixo acompanhando adescida do corpo de Jerônimo que cai sobre aspedras.

SilêncioMúsica (em off): Último pau-de-arara

125

Plano 1 – Duração 2’22” -Exterior, diaImagem SomPAN – A CAM acompanha lentamente a linha dohorizonte, da esquerda para a direita.

Música (em off): Último pau-de-arara

No primeiro plano seqüência a sensação da queda suave é criada pela câmera, pela

distância mantida constante entre a descida dos dois corpos: Jerônimo e câmera. O

movimento de descida delicado encontra seu limite no solo, que se deixa perceber cravejado

de pedras, textura irregular. Uma morte suave, uma bela morte.

Uma música atravessa o primeiro plano seqüência até o seu término e continua no

seguinte. A música é “Último pau de arara” , ela se opõe ao que vemos na tela, distinguimos

o antes e o depois. A música demarca um território, o território do sertão. O que essa música

faz ver? O que este ouvir nos faz ver? Primeiramente um sertão, um lugar, não o sertão das

memórias, mas um sertão de tempo.

O que seria para Bressane uma pura imagem? Será que Bressane procura uma pura

imagem? O circuito do filme sendo feito se desenrola do virtual, ao mesmo tempo nos

encontramos neste horizonte de uma lente teleobjetiva que deixa os pontos de fuga paralelos

alterando a sensação de profundidade. Estamos na superfície de uma reta, de um belo

horizonte. A consistência é vista, assim como o infinito, num entre-imagens, numa dimensão

expressa na criação de um tempo.

A música “Último pau de arara” pode ser considerada um tipo de relação sonora,

assim como os trinados dos pássaros e o vento a revelar o tempo no filme São Jerônimo.

� Nota de tempo final

O vento, potência centrífuga espalhando o filme e o canto dos pássaros,

força centrípeta a dar consistência. O “Último pau de arara”, entre os

127

Balduíno LélisServilho GomesNanego de LiraRonald de LiraElieser Filho

Dyn SganzerlaSinai Sganzerla

Carol RasoGuilherme Zarvos

Alfeu FrançaPedro RochaMarina BezzeLívia Larissa

Fernanda BrancoGustavo Duarte

Leonardo Lassance

Produção Roteiro DireçãoJúlio Bressane

Diretor de FotografiaJosé Tadeu Ribeiro

Direção de ArteRosa Dias

MontagemVirgínia Flores

FigurinistaDaniella Aparecida Galvadão

MúsicaFábio Tagliaferri

MúsicosFábio Tagliaferri (viola)

Adriano Busko (percussão)Lincon Monteiro (piano)

Técnico de somToninho Muricy

ProduçãoTB Produções Ltda.Produção ExecutivaGuilherme Spinelli

128

Diretora de ProduçãoMyriam Porto

Assistente de DireçãoLeonardo Lassance

Noa Bressane

Assistente de MontagemNoa Bressane

Assistente de FotografiaMaritza CanecaAlberto Belezio

EletricistasCarlos Alberto Ribeiro

Francisco Carlos Barreto

MaquiadoraCida Maia

AdericistaJosé Carlos

DomadoresProf. Jayro Fagundes e Mario

Fotografia de CenaRenato Menezes

EstagiáriasOlívia RabocovMiria Altberg

Colaboração na Pesquisa e RoteiroRosa Dias

Tradução do “Sonho de São Jerônimo”Francisco Achcar

Sugestão ao RoteiroGustavo Dahl

Editores de SomVirginia FloresFernando Ariani

Música“Liquid Dreams”Fernando Ariani

129

Trecho do filme “A cabra na região semi-árida”,de Ruccker Vieira, cedido pela Cinemateca do MAN

Consultor: Francisco Moreira

Letreiros e CréditosGuilherme Spinelli

TrucagemMovedoll

Ronald Palatinik

AgradecimentosCrisóstomo LucenaDébora DanowskiEduardo Viveiros

Embaixador José RacheMayra EL-JaickMônica SerpaRosa BandeiraTande Nressane

Vicentina E. Jorge SerpaCia Fábrica de tecidos S. Pedro de Alcântara

Escola de Artes Visuais do Parque LageFazenda TaperaHotel Carlton

IBAMAIngá –Trajetos Turismo

Ministério das Relações ExterioresPalácio do Itamarati

PBTURPrefeitura de Cabo Frio

TELERJ CelularTintas Guarany

Trajetos TurismoLaboratório Líder Cinematográfica

Som ROBFilmesDolby Digital

Consultor Carlos B. Klachquin

Apoio Banco Fator

FIM

130

EM TEMPO

Assisti nos últimos vinte anos de minha existência a aproximadamente 10 mil filmes, a

grande maioria deles em VHS, acervo de filmes de minha videolocadora, que esteve aberta ao

público durante todo este tempo, videolocadora conhecida na cidade de Uberlândia e região

do Triângulo Mineiro por seu nome fantasia: Sétima Arte.

131

A Sétima Arte fechou suas portas em meados de 2005, e até hoje recebo telefonemas

de pessoas pedindo filmes, que elas chamam de raridade. Como não os alugo, peço para que

as pessoas os assistam e façam uma cópia em DVD para um novo acervo neste novo formato

– o acervo das raridades.

Todos os filmes, exceto os que foram danificados pelo uso, ainda estão comigo.

Guardados num quarto. As paredes deste quarto são texturizadas com caixas contendo filmes,

filmes destes 20 anos, filmes lançados no mercado de vídeo brasileiro, mês a mês, de cruzeiro

a cruzeiro-novo, de cruzeiro novo a real, diretor por diretor, capa por capa, título por título. A

numeração dos filmes nessas prateleiras começa pelo número sete, organizada por ordem de

chegada. São 1600 dramas, 1000 aventuras, 500 policiais, 600 comédias, 600 infantis, 300

terrores, 300 musicais, 200 filmes nacionais, 200 documentários e musicais, 400 pornôs.

Eu os assisti a todos e esqueci de todos. Na medida que os esqueci, eles me vêem ao

pensamento um por um. Uma imagem é o que me constrói em cada um deles e em todos eles.

Uma imagem qualquer, uma letra de um título, o nome de um diretor, os pés de um

personagem, o olhar de outro, um lugar, um objeto, um ato de fala, um ruído, uma canção,

todos na parede, parede texturizada de imagens que não se separam do mundo e nem de mim.

Ruínas de tempo. De começos de mundos.

Onde estará o tempo num filme? O tempo num filme de Eiseinstein, num filme Fritz

Lang, num filme de Humberto Mauro, de Glauber Rocha, de Fellini, de Orson Welles,

Resnais, de Godard, assim como no de um elenco de diretores anônimos? Ele está entranhado

na imagem, no que aparece. E o que aparece? Emaranhado de tempos que um diretor

escolheu para enquadrar uma imagem/palavra, que estava no roteiro, que estava na luz que o

diretor escolheu para criar o plano, no ângulo de filmagem, no movimento de câmera, na

montagem de planos, nunca se constituindo num todo, pelo contrário o tempo salta das

partes, num movimento dessas partes. Seria o tempo no cinema?

132

Todos eles me ajudaram a ver São Jerônimo. Que tarefa dolorida escolher um filme

para pensar o tempo. O tempo é imagem do que não muda, do que permanece, percebemos o

tempo através da sensação de não passar. Paradoxo que envolve a experiência de assistir

filmes. De ver vidas passarem em qualquer tela: do cinema à televisão, do computador ao

celular, passarem imóveis num retângulo ou quadrado que não sai do lugar. Uma experiência

de tempo.

Os cinemas da modernidade fazem passar imagens que dissociam o visual do sonoro,

um tipo de montagem que nos faz ler a fissura, ler o corte, antes mesmo do passar de um

plano depois do outro. Uma parada, uma imobilidade, uma imagem de tempo.

Um signo puro de tempo, a parada do movimento de ir e vir, justamente no vaivém, no

acontecimento: a criação da imagem (desde o primeiro esboço do roteirista, do diretor, do

diretor de fotografia e do montador), paradoxalmente uma interrupção do pensamento que cria

o pensamento.

A parada, a descentralização, os escuros, os silêncios, (re)enquadramento de tempo. A

introdução da falha nos faz criar um tempo.

No filme São Jerônimo o tempo está desenhado traçando direções na montagem dos

planos e entre os planos. O sonoro – os atos de fala, quer sejam a voz em diálogos, quer sejam

na voz da narração off, nos ruídos e na música ensaiam levar o filme para fora, para fora do

campo visual enquadrado na tela, levar para os ares os atos de fala de seus personagens. Eles

gaguejam ao interpretar, eles parecem ler, lêem o tempo todo: primeira cisão.

O sonoro é um tempo resistente a espraiar-se além das palavras que São Jerônimo

deixou escritas, a maior parte delas foi ditada aos escribas. São Jerônimo pensava na leitura,

falava incessantemente. De desvios em desvios, os atos de fala recolhidos por Bressane se

desviaram de muitos outros, e a resistência do texto de Jerônimo compõe o sonoro do filme

São Jerônimo.

133

As músicas, entre elas as árias de músicas reconhecidas como patrimônio da cultura

dos homens ocidentais (Carnaval dos Animais e Réquiem de Fauré), e os ruídos que são

também música, porque as colocam em uma outra partitura, as reposicionam num outro

tempo, expandem seus sons para além das partituras em que foram compostas e até mesmo

por quem estão sendo executadas no filme. Outro desvio que resiste: o sonoro tende a uma

pureza do próprio som. O lugar para este traço é um lugar do indeterminável da procura de

outros mundos.

São Jerônimo, de Bressane e a primeira heresia: a voz de um tradutor da palavra

divina, na tarefa de traduzir para o latim vulgar as palavras divinas. Para que elas pudessem

representar e proporcionar a unidade do cristianismo, explicar e implicar todos os homens, o

diretor as conduz no filme para um limite delas próprias, para a rachadura, para o lugar do

fora, do que não tem unidade. Movimento centrífugo. Imagem de tempo.

O visual se apressa em nos tragar para territórios outros, territórios fundados pela luz,

pela fotografia: deserto e Roma. Lugares extensos e intensos. O traçado visual no filme é

centrípeto, exuberante na qualidade e quantidade da luz, os fotogramas transcorrem como

quadros, um monumento à luz, à terra enquadrada por uma câmera. Câmera que realiza

movimentos de superfície. A superfície do solo desértico escancara as rachaduras, as securas

e as falhas, e em Roma a umidade e a sombra se expõem também como superfície: Jerônimo

e as irmãs seguidoras e estudiosas estão sob o teto de uma casa, Jerônimo e o papa discutem

nos porões, os exteriores só se revelam na chegada de Jerônimo a Roma, no debate a seus

opositores e na apresentação da enfermidade do papa.

São Jerônimo, de Bressane e a segunda heresia: deserto e Roma são apresentados

como lugares desconexos, sem centro, e o visual resiste aos fotogramas, às imagens em

movimento. Os longos planos fixos, os movimentos abruptos de mudança de eixo da câmera,

os cortes secos desterritorializam tanto Roma como o deserto. A câmera nos convida o olhar

134

da esquerda para a direita, de cima para baixo, de baixo para cima, gira, pendula complicando

nossa percepção. Que terra é esta? Que mundo é este?

São Jerônimo, de Bressane se afasta da determinação e da indeterminação: a palavra

divina (o sagrado) e a tradução desta palavra para os homens (o profano) se distanciam do

sonoro a caminhar para fora, e o visual na sua insistência de ir para dentro. O filme fissura o

som como fissura o visual. Desenho de uma matéria movente na superfície da tela de São

Jerônimo e dos filmes que eu esqueci.

REFERÊNCIAS

ARNS, Paulo Evaristo. A técnica do livro segundo São Jerônimo. Tradução de CleoneAugusto Rodrigues. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

AUMONT, Jacques. O olho interminável. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo:Cosac & Naify, 2004.

______. A teoria dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004.

135

______. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro.Campinas, SP: Papirus Editora, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. Tradução de Michel Lahud eYara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.

BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. SãoPaulo: Martins Fontes, 1999.

BORGES, Jorge Luis. O Aleph. 10. ed. Tradução de Flávio José Cardozo. São Paulo: Globo,1997.

BRESSANE, Júlio. Vida luz deserto. Revista Cinemais, Rio de Janeiro, n.9, jan./fev. 1998.

______. Cinema Deleuze. In: In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica.Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000. p.545-548

______. Trajetória. Cinema inocente: retrospectiva Júlio Bresane. (Catálogo da Mostra)São Paulo: SESC, 2003. 100 p. Entrevista a Ruy Gardnier.

______. Conversa com Júlio Bressane / Miramar, Vidas Secas e o Cinema no vazio do texto.(Entrevista a SARNO, Geraldo & AVELLAR, Carlos). Revista Cinemais, Rio de Janeiro,n.6, p. 7-42, jul./ago. 1997.BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CARROL, Lewix. Alice no país das maravilhas. Tradução de Márcia Feriotti Meira. SãoPaulo: Martin Claret, 2005.

CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.

CHION, Michel. Audio-vision: Sound on Screen. Tradução de Claudia Gorbman. NewYork: Columbia University Press, 1985.

______. Un art sonore, le cinèma. Paris: Cahiers du Cinéma, 2003.

136

CRITON, Pascale. A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984: O Ritornelo e oGalope. In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Tradução de AnaLúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 495-504.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense,1985. (Cinema I)

______. A imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense:1990. (Cinema II)

______. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

_____. Diferença e repetição. 2. ed. Tradução de Luiz Orlandi; Roberto Machado. Rio deJaneiro: Graal, 2006.

______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003.

______. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio deJaneiro: Forense-Universitária, 1987.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Tradução deSuely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.

EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990a.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990b.

HEYNEMANN, Liliane. São Jerônimo de Júlio Bressane (1999). In: LOPES, Denílson(Org.). Cinema dos anos 90. Chapecó, SC: Argos Ed. Universitária, 2005.

LIMA, Waldemar. Luz tropical brasileira. 2006. Trabalho redigido especialmente para adissertação “A técnica do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, segundo um desenho dotempo”, 2007. p.139-144.

______. Apostila “Workshop – A fotografia na criação de filmes”. 2003.

137

MANZANO, Luiz Adelmo F. Som-imagem no cinema: a experiência alemã de Fritz Lang.São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.

MARTIN, Jean-Clet. O olho do fora. In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze: uma vidafilosófica. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo São Paulo: Editora 34, 2000. p. 99-117

PARENTE, André. Narrativa e modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra.Campinas, SP: Papirus, 2000.

______. O discurso indireto livre no cinema. Cadernos de Subjetividade (PUC-SP), SãoPaulo, num. esp., p.121-140, jun. 1996.

PASOLINI, Píer Paolo. Empirismo herege. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:Assírio e Alvim, 1982.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975.

PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. SãoPaulo:Perspectiva: FAPESP, 1998.

______. O tempo não-reconciliado. In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze: uma vidafilosófica. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000. p.85-97.

PEREIRA, José Mário. Atualidade de São Jerônimo. Revista Cinemais, Rio de Janeiro, n.18,p.77-87, [200-].

SOUSA, Adriano Carvalho Araújo e. Devir-deserto no São Jerônimo de Bressane: poéticatradutória e cartografias da cultura. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) –PUC-SP, São Paulo, 2005.

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Autor e estilo no cinema. Revista Cinemais, Rio de Janeiro,n.18, p. 89-102, [200-].

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Tradução deMarina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1994.

XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

138

ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas, SP:Autores Associados, 2001.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 2004.

139

A N E X O S

140

ANEXO A – LUZ TROPICAL BRASILEIRA

LUZ TROPICAL BRASILEIRA

Waldemar Lima Diretor de Fotografia ABC

A qualidade da luz do sol, originalmente branca, que chega à terra, pode ser dura ou

suave dependendo da incidência e da largura da camada atmosférica que ela atravessa. Nas

142

Vejamos alguns exemplos. O meridiano que separa a região tropical e a subtropical no

Brasil passa acima da cidade de São Paulo, logicamente não poderemos afirmar que de um

lado é região tropical e de outro subtropical. A cidade de São Paulo, vítima da poluição, é

iluminada por uma luz difusa e o sol tem a cor amarelada e o céu cinza. Já em Araraquara,

cidade do interior do estado de São Paulo a luz é transparente e o céu é azul.

A luz do sol no Brasil tem várias nuanças, e a luz tropical, em seu estado natural,

pode ser bela ou feia esteticamente falando. Como já vimos anteriormente, a luz tropical não é

inclinada, portanto não é modeladora, nem produz tons agradáveis de pele. Ela é vertical e

produz sombras negras nos olhos. Uma sombra dura não realça a beleza, acentua os

contornos. Mas defendo que esta é a nossa luz. As paisagens brasileiras, na maior parte do

dia, apresentam alto contraste de luz e sombra; a padronização dessa luz com um artificial

contraste, com um tipo de luminosidade e um padrão de cor poderá fazer dela uma luz sem

identificação.

É importante pensar e refletir um pouco. A luz solar do território brasileiro e sua vasta

gama de características possibilitam uma gama de criações estéticas fotográficas nas regiões

acima ou abaixo do Trópico de Capricórnio.

O nordeste do Brasil é uma região tropical, e por ter um clima seco com menos vapor

e em algumas regiões pouca poluição, o céu se apresenta com a cor azul bem escuro e um sol

quase branco – estas são características marcantes desta região brasileira. A luz do norte e

nordeste do interior é mais dura, de sombras contrastadas e negras, do que no litoral, onde as

cores são mais vivas e brilhantes.

Em contrapartida, o sul e o sudeste brasileiros, regiões subtropicais, onde a luz solar é

mais inclinada, onde o clima é úmido, o azul do céu se apresenta mais esbranquiçado e o sol

amarelado.

143

As diferenças de luminosidade, as diferenças cromáticas e as diferenças de contraste

acentuam as diferenças entre a luz brilhante, as sombras negras, a luz suave e sombras pouco

marcadas, portanto manter a característica da luz em um determinado espaço constrói uma

identificação com o lugar, reconhecimento e afetividade de espaços.

Se originalmente ela é assim, para fotografá-la deve-se respeitar suas características e

não, dessa ou daquela maneira, lhe dar formas suaves, modificando sua feição e as feições de

quem ou o quê ela ilumina.

Por outro lado, os tipos de solo, a umidade e a vegetação no espaço geográfico da

região tropical possibilitam criar diferentes tipos de luz e contrastes. Exemplificando, no

Maranhão, em Pernambuco e no Espírito Santo, estados inseridos na zona tropical, assim

como a caatinga, os lençóis maranhenses e a ilha de Marajó possuem cores e contrastes

particulares. Imaginemos um filme ser produzido numa fazenda marajoara e com a luz de um

filme produzido no Rio Grande do Sul. Ou um filme ser realizado na Serra Gaúcha com luz

contratada, ou ainda, um filme onde o espaço geográfico é a caatinga baiana com uma luz

suave.

Essa qualidade cambiante da luz natural brasileira é um bom ponto de partida para

uma breve análise da dramaturgia cinematográfica. Um espaço a ser tratado, ou criado com

suas características de luminosidade, cor e contraste. Por que não respeitar as diferenças

modeladoras das geografias, identificadoras das paisagens? Acredito que se não procedemos

dessa maneira, a fotografia passa a ser utilizada como suporte ilustrativo e não elemento

participante como deve ser.

O cinema é uma arte cuja leitura é feita através de imagens, uma arte que se manifesta

através de fotografia. Se o filme conta uma história em uma determinada região, a fotografia

deve fazer parte da história, as luzes e as cores da região estão lá. Caso isso não aconteça, de

que valeria ir a uma região fotografar os seus habitantes, os seus costumes, as suas danças, sua

144

arquitetura? Não estaríamos descaracterizando a textura da luz? A luz que é também uma

característica daquela região?

Fotografia é arte engajada, ela pode estar engajada na composição de luz, nas cores e

nas texturas “globalizadas” de um filme comercial privilegiando o produto, ou deve ser

engajada retratando a luz de uma obra cinematográfica sem distanciar e ou maquiar suas

características regionais. Da mesma maneira as considerações sobre a textura do filme estão

intimamente ligadas com o tipo de luz de cada região. Uma fotografia pode ser dura e

contrastada e por isso ser bela e ser também personagem de um filme.

Uma seqüência de trabalhadores negros nas salinas de Mossoró, fotografada

suavizando exageradamente a dureza característica de sua luz, é comprometedora para o

cinema brasileiro, para a estética dos filmes brasileiros. As gravações deverão acontecer nas

primeiras e últimas horas do dia, quando o sol está mais inclinado e suave. Imaginemos nas

primeiras horas do dia os habitantes daquela região estão dormindo e nas últimas horas em

suas casas descansando. Esta população vive, nasce e morre sob aquele sol.

A luz de filmes p&b brasileiros é referência para estudiosos do cinema, eles elogiam

justamente a forma contrastada dessa luz, caracterizando além de uma região, uma geografia.

O que parece estranho é sabermos que os filmes coloridos também podem trabalhar uma luz

cheia de contrastes, com nítida demarcação de claros e escuros, podendo recriar a beleza

luminosa da região e do drama, e isso raramente acontecer.

Por que não fazer com as diversas e cambiantes luzes brasileiras – a contrastada no

Norte e Nordeste, a mais suave na região subtropical – uma fotografia participante? Bela ou

não, deveríamos pensar conceitualmente propostas para o cinema nacional, para os produtores

para os diretores e para os fotógrafos. Sobre a participação do fotógrafo, acho que ela deveria

ir além. O fotógrafo de cinema, estando numa região de luz dura, poderia assumir a

responsabilidade de captar a luz, de modelá-la, de contrastá-la sem lhe tirar a autenticidade.

145

O fotógrafo cinematográfico poderia ser mais participativo e, juntamente com o

diretor dos filmes, compor uma fotografia levando em consideração a luz da região e do

drama. O diretor de fotografia de um filme está naquela equipe para ajudar e colocar seus

conhecimentos técnicos e sensibilidade artística a serviço do filme, para que as imagens

resultem afinadas com estética que o filme suscita.

A luz pode ser captada em função de vários fatores: a temática, a dramaturgia, a

estética, juntas ou separadamente. É importante frisar que utilizando a luz original de um

lugar podemos inventar e alcançar a luz desejada, pelo clima, pelo sentido da obra

cinematográfica. Nenhuma luz é feia ou bonita se for bem realizada tecnicamente, há sim a

boa luz que pensa o quadro como fazendo parte de um desejo de criar sentido, e uma má luz

que pasteuriza, que uniformiza todas as luzes dos filmes.

É tarefa do diretor pedir cores e contrastes que não se distanciem do sentido que ele

quer dar ao filme. E se a história é contada sob o sol tropical e personagens ao sol, por que

tirar as características de sol tropical? De luz vertical durante a maior parte do dia criando as

sombras negras? Por que maquiá-la exageradamente? Por que não manter suas características?

A paisagem, a luz, as cores e os contrastes interagem, dialogam e dão vida aos personagens.

Se os estudos da arquitetura, dos costumes, das tradições estão presentes no processo

de realização de filmes, criando através das imagens cinematográficas lugares, regiões e

dramas de nosso cotidiano, por que não estudar a luz do sol nesta região? Luz que é também

imagem desse lugar e dessa gente a nascer e a viver sob essa luz?

É importante que cada filme feito neste país, iluminado com esse sol de várias luzes e

variadas regiões, da mais contrastada à mais suave, seja fotografado o mais íntimo possível

com as características de sua luminosidade, qual seja uma luz tropical, uma luz vertical, uma

luz dura e contrastada.

147

ANEXO B – RELAÇÃO DE 89 TELAS SOBRE SÃO JERÔNIMO - 1400 A 1900

RELAÇÃO DE 89 TELAS SOBRE SÃO JERÔNIMO - 1400 A 1900

1- ANDREA DEL CASTAGNO - The Holy Trinity, St Jerome and Two Saints - c. 1453 - -Fresco

2- ANTONELLO da Messina - St Jerome in his Study - c. 1460 - - Wood, 46 x 36,5 cm

3- BAROCCI, Federico Fiori - St Jerome - c. 1598 - - Oil on canvas

148

4- BASSANO, Jacopo - St. Jerome - 1556 - - Oil on canvas, 119 x 154 cm

5- BELLINI, Giovanni - St Jerome Reading in the Countryside - 1480-85 - - Oil on wood, 47x 34 cm

6- BELLINI, Giovanni - St Jerome Reading in the Countryside - 1505 - - Oil on wood, 49 x39 cm

7- BELLINI, Giovanni - Sts Christopher, Jerome and Ludwig of Toulouse - 1513 - - Oil onpanel, 300 x 185 cm

8- BERNINI, Gian Lorenzo - Saint Jerome - 1661-63 - - Marble, height 180 cm

9- BIGOT, Trophîme - St Jerome - 1630s - - Oil on canvas, 105 x 138 cm

10- BLANCHARD, Jacques - St Jerome - 1632 - - Oil on canvas, 145,5 x 116 cm

11- BOSCH, Hieronymus - St Jerome in Prayer - c. 1505 - - Oil on panel, 80,1 x 60,6 cm

12- BOSCH, Hieronymus - St Jerome in Prayer (detail) - c. 1505 - - Oil on panel

13- BOTTICELLI, Sandro - St Jerome in Penitence - 1490-92 - - Tempera on panel, 21 x 269cm (entire predella)

14- BOTTICELLI, Sandro - The Last Communion of St Jerome (detail) - c. 1495 - - Temperaon panel

15- BOTTICELLI, Sandro - Transfiguration, St Jerome, St Augustine - c. 1500 - - Temperaon panel, 27,5 x 35,5 cm

16- CARAVAGGIO - St Jerome - 1605-06 - - Oil on canvas, 118 x 81 cm

17- CARAVAGGIO - St Jerome - 1607 - - Oil on canvas, 117 x 157 cm

18- CARAVAGGIO - St Jerome - c. 1606 - - Oil on canvas, 112 x 157 cm

19- CARPACCIO, Vittore - Funeral of St Jerome - 1502 - - Tempera on canvas, 141 x 211cm

20- CARPACCIO, Vittore - St Jerome and the Lion - 1502 - - Tempera on canvas, 141 x 211cm

21- CARPACCIO, Vittore - St Jerome and the Lion (detail) - 1502 - - Tempera on canvas

22- CORREGGIO - Madonna with St. Jerome (The Day) - about 1522 - - Oil on canvas,205,7 x 141 cm

23- COSTA, Lorenzo - St Jerome - 1485 - - Panel

149

24- CRIVELLI, Carlo - St Jerome and St Augustine - c. 1490 - - Tempera on wood, 187 x 72cm

25- DÜRER, Albrecht - St Jerome - 1492 - - Woodcut, 190 x 133 mm

26- DÜRER, Albrecht - St Jerome - 1521 - - Oil on panel, 60 x 48 cm

27- DÜRER, Albrecht - St Jerome by the Pollard Willow - 1512 - - Drypoint, 208 x 185 mm

28- DÜRER, Albrecht - St Jerome in His Study - 1511 - - Pen, 190 x 151 mm

29- DÜRER, Albrecht - St Jerome in his Study - 1514 - - Engraving, 259 x 201 mm

30- DÜRER, Albrecht - St Jerome Penitent in the Wilderness - c. 1496 - - Engraving, 324 x228 mm

31- EYCK, Jan van - St Jerome - 1442 - - Oil on parchment on oak panel, 20 x 12,5 cm

32- FRANCÉS, Nicolás - St Jerome in his Cell - 1450s - - Tempera on wood, 160 x 80 cm

33- FRANCESCO DI GIORGIO MARTINI - St Jerome in the Desert - c. 1485 - - Bronze, 55x 37 cm

34- FRANCIA, Francesco - Crucifixion with Sts John and Jerome - c. 1485 - - Oil on wood,52 x 33,5 cm

35- FRANCIA, Francesco - Crucifixion with Sts John and Jerome - c. 1485 - - Panel, 52 x33,5 cm

36- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome - c. 1471 - - Fresco

37- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome in his Study - 1480 - - Fresco, 184 x 119 cm

38- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome in his Study (detail) - 1480 - - Fresco

39- GOZZOLI, Benozzo - Madonna and Child with Sts John the Baptist, Peter, Jerome, andPaul - 1456 - - Tempera on panel, 122 x 212 cm

40- GOZZOLI, Benozzo - St Augustine's Vision of St Jerome (scene 16, east wall) - 1464-65- - Fresco

41- GOZZOLI, Benozzo - St Jerome Pulling a Thorn from a Lion's Paw - 1452 - - Fresco

42- GOZZOLI, Benozzo - The Departure of St Jerome from Antioch - 1452 - - Fresco

43- GRECO, El - Saint Jerome Penitent - 1610-14 - - Oil on canvas, 166 x 110 cm

44- GRECO, El - St Jerome as a Scholar - 1600-14 - - Oil on canvas, 108 x 89 cm

45- GRECO, El - St Jerome as Cardinal - c. 1600 - - Oil on canvas, 59 x 48 cm

150

46- HEMESSEN, Jan Sanders van - St Jerome - - Oil on panel, 103 x 81 cm

47- LA TOUR, Georges de - Penitent St Jerome - c. 1630 - - Oil on canvas, 152 x 109 cm

48- LA TOUR, Georges de - Saint Jerome Reading - 1621-23 - - Oil on canvas laid down onwood, 62.2 x 55 cm

49- LA TOUR, Georges de - St Jerome - 1630-35 - - Oil on canvas

50- LEONARDO da Vinci - St Jerome - c. 1480 - - Oil on panel, 103 x 75 cm

51- LIPPI, Filippino - St Jerome - 1490s - - Oil on wood, 136 x 71 cm

52- LIPPI, Fra Filippo - Funeral of St Jerome - 1460-65 - - Panel, 268 x 165 cm

53- LOTTO, Lorenzo - Penitent St Jerome - 1506 - - Oil on wood, 48 x 40 cm

54- LOTTO, Lorenzo - Penitent St Jerome - 1509-10 - - Oil on wood, 85 x 61 cm

55- MASACCIO - St Jerome and St John the Baptist - 1428 - - Panel, 114 x 55 cm

56- MASACCIO - St Jerome and St John the Baptist - 1428 - - Panel, 114 x 55 cm (fullpanel)

57- MASTER of the Isaac Stories - The Doctors of the Church (detail of St Jerome) - 1290-95- - Fresco

58- MASTER THEODERIC - St Jerome - 1360-65 - - Tempera on wood, 113 x 105 cm

59- MATTEO di Giovanni - St Jerome - 1460s - - Tempera on wood, 42 x 25 cm

60- MEMLING, Hans - St Jerome - 1485-90 - - Oil on oak panel, 87,8 x 59,2 cm

61- MEMLING, Hans - St Jerome and the Lion - 1485-90 - - Oil on oak panel, 37 x 24,5 cm

62- MONTAGNA, Bartolomeo - St Jerome - c. 1500 - - Oil on canvas, 51 x 58 cm

63- PARMIGIANINO - The Vision of St Jerome - 1527 - - Oil on wood, 343 x 149 cm

64- PATENIER, Joachim - Rocky Landscape with Saint Jerome - - Oil on wood, 47,2 x 37,3cm

65- PATENIER, Joachim - St Jerome in Rocky Landscape - c. 1520 - - Oil on oak, 36,5 x 34cm

66- PATENIER, Joachim - St Jerome in the Desert - c. 1520 - - Oil on wood, 78 x 137 cm

67- PEREDA, Antonio de - St Jerome - 1643 - - Oil on canvas, 105 x 84 cm

151

68- PIERO della FRANCESCA - St Jerome and a Donor - 1451 - - Panel, 40 x 42 cm

69- PIERO della FRANCESCA - The Penance of St. Jerome - 1450 - - Panel, 51 x 38 cm

70- PINTURICCHIO - The Crucifixion with Sts Jerome and Christopher - c. 1471 - - Oil onwood, 59 x 40 cm

71- PITTONI, Giambattista - Sts Jerome and Peter of Alcantara - - Oil on canvas, 275 x 143cm

72- RENI, Guido - St Jerome - c. 1635 - - Oil on canvas, 278 x 238 cm

73- REYMERSWAELE, Marinus van - St Jerome - 1541 - - Oil on panels, 78 x 107 cm

74- REYMERSWAELE, Marinus van - St Jerome - 1541 - - Wood, 80 x 108 cm

75- RIBERA, Jusepe de - St Jerome - 1637 - - Oil on canvas, 128,5 x 102 cm

76- RIBERA, Jusepe de - St Jerome and the Angel - 1621 - - Etching, 318 x 238 mm

77- RIBERA, Jusepe de - St Jerome and the Angel - 1626 - - Oil on canvas, 262 x 164 cm

78- SASSETTA - St Jerome (detail) - 1423 - - Panel

79- SIRANI, Elisabetta - St. Jerome - - Oil on canvas, 102 x 84 cm

80- SPADA, Lionello - St Jerome - 1610s - - Oil on canvas, 112 x 143 cm

81- STOSS, Veit - High Altar of St Mary (Jerome) - 1477-89 - - Wood

82- TINTORETTO - St Jerome and St Andrew - c. 1552 - - Oil on canvas, 235 x 145 cm

83- TIZIANO Vecellio - St Jerome - c. 1560 - - Oil on canvas, 235 x 125 cm

84- TURA, Cosme - Saint Jerome - 1474 - - Oil on wood, 100 x 57 cm

85- UCCELLO, Paolo - Sts Paul, Francis and Jerome - c. 1435 - - Fresco, 120 x 46 cm (each)

86- VALDÉS LEAL, Juan de - St Jerome - - Oil on canvas, 211 x 131 cm

87- VITTORIA, Alessandro - St Jerome - 1565 - - Marble

88- VOUET, Simon - St Jerome and the Angel - 1620s - - Oil on canvas, 144,8 x 179,8 cm

89- WEYDEN, Rogier van der - St Jerome and the Lion - c. 1450 - - Oil on oak panel, 31 x25 cm

152

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo