A tela do cinema como prótese de percepção-2 Susan Buck Morss

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A coletividade do sculo XX, que constri sua identidade na base da imagem ao invs da palavra, , ao menos potencialmente, uma verdadeira comunidade internacional, como bem sabiam os produtores e distribuidores dos primeiros filmes mudos. Essa a vantagem poltica do cinema como prtese de cognio. Mas s esta coletividade de conformismo e no de consenso, se a uniformidade substitui a universalidade, abre-se a porta para a tirania. Se as"verdades" so universais porque so experimentadas em comurnmais que percebidas em comum porque so universais, ento a prtese cinemtica se torna um rgo de poder, e a cognio se torna doutrinamento. Quando a audincia de massa tem uma sensao de identidade imediata com a tela do cinema, e a prpria percepo se torna consenso, desaparece o espao para o debate crtico, intersubjetivo, e a discusso.

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tela do cinema p.. tese de percepoA Susan Buck- Morss

ISBN 978-85-63003-00-3

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Cultura e Barbrie

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Susan Buck-Morss

A tela do cinema como prtese de percepo

PARRHESIA(XOlB"j\O DE ENSAlOS lI"l'fl'1OlU

Cultura e BarbrieDesterro, 2009

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Ttulo Original The Cinema Screen as Prosthesis of Perception: a historical account Tradutora Ana LuizaAndrade Conselho EditorialAlexandre Nodari, Diego Cervelin, Flvia Cera, Leonardo D'vila de Oliveira, Rodrigo Lopes de Barros OliveiraB922t Buck-Morss, Susan A tela do cinema como prtese de percepo / Susan Buck-Morss; [tradutora Ana LuzaAndrade]. - Desterro [Florianpolis]: Cultura e Barbrie,2009. 42p. - (pARRHESIA, Coleo de Ensaios) Traduo de: The Cinema Screen as Prosthesis af Perception: a historical account. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-63003-00-3 1. Cinema - Filosofia. 2. Cinema - Histria e crtica. 3. Filosofia moderna ocidental. 4. Percepo. L Ttulo. CDU: 791.43.01 Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14j0711 D.W. Griffith, em uma entrevista de 1913, citado em Kracauer, Siegfried. Theory af Film: Redemption of Physical ReaZity. Nova Iorque: Oxford University Press, 1960. p. 41. 2 Husserl, Edmund. The Idea ofPhenomenology. Haia: Martinus A idia da fenomenoZogia. Nijhoff, 1964 [Edio portuguesa: Traduo de Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1989]. "A influncia de I-Iusserl em I-Ieidegger foi direta e definitiva; sua filosofia preocupou pensadores continentais to diferentes quanto Adorno e Derrida, Habermas e Lvinas, Gadamer e Sartre. O movi-

A tarefa que estou tentando cumprir sobretudo jazer voc ver. '

D. W Griffith

EM 1907, EOMUND HUSSERL apresentou palestras Escritas em Gi)ttinginsobre no intermdio entre seus primeiros

uma srie de trabalhos de

"A Idia da Fenomenologia".2 (1901) e ldeen ([912), estas

peso, Logische Untersushungen

palestras curtas explicam um projeto filosfico destinado a se tornar uma das escolas mais influentes do sculo XX ..!

Editora Cultura e BarbrieR. Jos Joo Martendal, Carvoeira - 88040-420 FlorianopolisjSC Tel:(48) 99605336 [email protected] www.culturaebarbarie.org nO 145 j 304

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que estava em jogo no projeto era evidenciar um mtodo de cognio que, enquanto mantivesse a anlise "imanente" aos contedos da conscincia, ainda podia chegar a um conhecimento "absoluto" e "univcrsal". Husserl queria que "vssemos" o que cra essencial no mundo da experincia dentro do ato de percepo (Whrnemuni) ~ o "pensamento-ato" em sua forma "pura". Pensamentos sempre foram "pensamentos sobre alguma coisa", mas seus contedos podiam ser vistos, ele insistia, como dados-em-si, sem recurso aos objetos do mundo natural, "l fora" (os objetos "transcendentes" de Descartes). Sua problemtica ainda era muito kantiana; sua questo epistemolgica ficava dentro da longa e problemtica tradio do idealismo burgus. Mas a sua preocupao com o olho filosfico, sua tentativa esforada de "inspecionar" atos mentais at que suas essncias pudessem ser puramente, intuitivamente "vistas" como absolutas e no contingentes, o que marca seu projeto com uma diferena definitiva. A repetida metfora da viso, no seu ensaio de 1907, to impressionante em sua presena quanto opaca em sua habilidade para comunicar a inteno de Husserl. Ele excmento da fenomenologia est atualmente institucionalizado a nvel global. Sob a liderana de N. Matroschilova, Instituto de Filosofia, Moscou, tem uma forte e vital ramificao dentro da antiga Unio Sovitica.

o

cuta uma srie de operaes filosficas bizarras sobre os atos de percepo - as famosas "redues" fenomenolgicas - que, pelo princpio de "epochc", ou "parenttico", tentam alcanar os objetos "puros" ou "reduzidos" que podem ser "vistos" absolutamente, em seu "imediato darse". A primeira operao, a chamada "reduo apodtica", coloca entre parntesis tanto os objetos materiais do ato mental quanto o sujeito psicolgico que os pensa (ou tem a "inteno") por esse ato (e com isso elimina a "atitude natural" da cincia). Atravs da segunda operao, a "reduo eidtica", o objeto-pensamento reduzido ele prprio examinado fenomenologicamente,4 para "ver" as essncias universais de que constitudo. Um enorme rigor filosfico est envolvido nesses procedimentos. O leitor do texto de Husserl hoje, como aquele que ouvia as suas palestras ento, precisa fazer um enorme esforo intelectual, lutando diligentemente para "ver" com o grande filsofo estes fenmenos "maravilhosamente" reduzidos, para ter uma "intuio pura" do tipo descrito por suas palavras. Ele nos diz que para ser comparada "viso intelectual" descrita pelos msticos.5 E, no entanto, no o misticismo medieval que nos d4 "A percepo est, por assim dizer, diante dos meus olhos como um dado actual" (Husserl, The Idea ofPhenomenology, 1964, p. 24 [55J). 5 1bidem, p. 50 [92].

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o caminho mais acessvel ao projeto de Husserl. Se qui sermos ter uma viso do objeto puro, este "dado-em si", "dado-absoluto" que no nem coisa fsica nem fato psicolgico mas (frase de abismar!) uma "coisa intencionalmente inexistente",6 seria melhor abandonar o texto, e ir ao Cl1lema. Afirmo isso em seu sentido mais exato e literal. Pois a experincia cotidiana do cinema que nos deixa "ver", sem pretenso, o objeto fenomenolgico de cognio apoditicamente reduzido de que fala Husserl. Se ouvimos as palavras de Husserl, mas pensamos a imagem cinemtica, a obscuridade da fenomenologia comea a se dissipar diante de nossos olhos. Ir ao cinema um "ato de puro ver",? se que existe um. O que percebido na imagem cinemtica no um fato psicolgico, mas fenomenolgico. "reduzido", ou seja, a realidade "colocada entre parntesis". A imagem sempre uma imagem "de alguma coisa"; intencional, apontando a realidade alm de si mesma;8 e no entanto essa realidade transcendente nunca "dada" nas prprias imagens do cinema, que "no so ele[ a)" Ibidem, p. XIV. 7 Ibidem, p. 23 [55]. H "As vivncias cognitivas - e isto pertence il1tel1tio, visam (meil1en) algo, referem-se, de prprio delas referir-se uma objectalidade. mesmo se a objectalidade lhes no pertence"

s prprios os objectos nem contm como ingrcdientes os objectos".~ Como conseqncia, uma qucsto de total "irrelevncia"IO - uma "nulidade epistemolgica" - se o objeto "dado" percepo da imagem do cinema realmente existe. Para usar dois exemplos de filmes antigos: o trem absolutamente irreal de Viagem Impossvel ('904 - figura r) de Mlies no menos do que o trem absolutamente realista do Chegada de um trem Estao de La Ciotat (1895 - figura 2) "autodado no sentido mais estrito, de tal modo que nada do intentado deixa de estar dado"."

O objeto "real" ou "transcendente" no s "colocado entre parntesis". O sujeito tambm sofre uma reduo. A imagem do cinema, embora construda por seres humanos especficos (diretor, cinegrafista, edi tor) , no dependente deles ou de qualquer outro sujeito individual, psicolgico, para o seu significado. Ela "constituda"J2 comoIbidem, p. 56 [102]. Ibidem, p. 43 [83]. li Ibidem, p. 49 [90]. A imagem do cinema "absoluta, privada de toda a transcendncia, dada como fenmeno puro no sentido da fenomenologia" (Ibidem, p. 35 [71J). 12 Os objetos percebidos "no so os actos de pensamento", mas "esto no entanto neles constitudos, vm neles a dar-se; e, por essncia, somente assim constitudos se mostram como aquilo que eles so. Mas no so todas estas coisas puros milagres? Onde comea este constituir de objectalidades e onde cessa?" (Ibidem, p. 57 [10:3; traduo modificada]).9 10

essncia - tm uma um ou outro modo, a a uma objectalidade, (Ibidem, p. 43 [83]).

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um ato completamente intencional; no entanto, pode nos apresentar somente alguma coisa percebida como "dada" - permitindo-nos "ignorar o ego", ou pelo menos abstrairmo nos de "nossos seres psicolgicos"'] (figura 3).

mas foi forado a acrescentar imediatamente: "ou, me Ihor dito, aquilo que o prprio diretor v na ao em questo"'4 implicando a total dependncia do mundo exterior por parte do diretor. Este o paradoxo da mon tagem. Aquilo que nos mostra dado (nos pedaos de filme), e construido (na justaposio que d significado a estes pedaos). "No esto postos como existncias num eu, num mundo temporal, mas como dados absolutos captados no 'ver' puramente imanente"'" no qual se pe diante dos nosos prprios olhos "a unidade de conhecimento e objecto cogniscitivo".'6 cognio que "se v".'? Num "c1ose-up" deA Me de Pudovkin (figura 4) automaticamente vemos o fenmeno "eideticamente reduzido", puro fenmeno de tristeza. No foi sempre assim. As platias do cinema antigo - contemporneas das platias da palestra de Husserl-- foram, em uma primeira instncia, incapazes de fazer os tipos de redues fenomenolgicas que 1-[ usserl descreve. Dizem nos que quando "uma imen14 Pudovkin, V. L Film Technique and Film Acting [1929]. Nova Iorque: Grove Press, 1978. Husserl, The Idea ofPhenomenology, 1964,p. 35 [72]. "Falamos, ento, justamente de tais dados absolutos; ainda que se refiram intencionalmente realidade objectiva, o referir-se neles uma certa caracterstica, enquanto que nada se preconceitua acerca do ser e no ser da realidade. E assim lanamos j a ncora na costa da fenomenologia [...]" (idem [71-72]). 16 Ibidem, p. 30 [63]. 17 Ibidem, p. 28 [61;traduo modificada].15

Figura

I Mlics,A

Viagem Impossvel,1904

Pudovkin, tentando argumentar a favor do infinito poder do cinegrafista, declarou primeiro que o espectador v "somente aquilo que o diretor deseja mostrar a ele",'" Ibidem, p. 34 [70].

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sa cabe\~a 'decepada' sorriu para o pblico pela primeira vez houve pnico no cinema" .,H "Quando os primeiros 'elo seups' apareceram na tela os espectadores alardeavam e gritavam: 'Mostrem nos seus ps!'" .'Y Somente de forma gradual os espectadores se adaptaram tela do cinema.

Figura 2 [,umirc, Chegada de um trem Estao de La Ciotat, 1895

Seu objetivo era o oposto - conhecimento absoluto, puro, universal (o objetivo tradicional do idealismo burgus). Por que, ento, tentar argumentar que a filosofia fenomenolgica encontra seu prottipo ("Urforma", para usar o termo de Walter Benjamin) na ida ao cinema? De um lado, fao uma afirmao filosfica. Ao pedir que se "veja" as prprias realidades tcnico-materiais impuras dentro das categorias filosficas puras de Husserl, estou sugerindo, contra Husserl, que a verdade no intencio nal. A realidade objetiva e passageira, parntesis que ele quer extrair do cogitatio, penetra precisamente naquele domnio de atos mentais "reduzidos" onde ele se pensava mais seguro.20 De outro lado, estou argumentando a favor do cinema e sobre a tela como prtese. A superfcie da tela do cinema funciona como um rgo artificial de cognio. O rgo prottico da tela do cinema no s duplica a percepo cognitiva humana, mas tambm transforma sua natureza. Com relao ao espao e ao tempo, o efeito das tcni cas do cinema de espreitar a percepo, liberta de um20 Isto, incidentalmente, encontra paralelo no entendimento filosfico de Theodor Adorno do materiali.smo como "crtica imanente", ao mostrar que as vises (insighLs) da fenomenologia so determinadas justamente por aquelas especificidades do mundo material e histrico que tanto ameaam a busca fenomenolgica pelo puro conhecimento. Logo, o idealismo no- intencionalmente expressa a verdade material e histrica.

Husserl no fala sobre o cinema, esta inveno supernova de sua gerao. Ele no tinha nenhuma inteno de descrever uma experincia historicamente to especfica.Bla Balzs, citado em Lotman, Jurij. Semiotics ofLhe Cinema. Ann Arbor: Michigan Slavic Contributions n. 5, 1976. p. 29. '9 Ivor Montagu, citado em Lotman, SemioLics of Lhe Cinema, 1976,p.29.IR

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mundo mais amplo do qual faz parte, sujeit Ia a uma condensao temporal21 e espacial22 extrema, e mant Ia em suspenso, flutuando em uma seqncia de dimenses21 Como Gilles Deleuze apontou, foi Henri Bergson quem primeiro enunciou o singular da temporalidade do cinema com o conceito da "durao" (dure), oposta categoria formal do tempo divisvel, mensurvel. O que notvel do nosso ponto de vista que Bergson desenvolveu este conceito de "dure" em scu livro Evo/uo Criativa, publicado exatamente no mesmo ano (1907) que o ensaio de Husserl A Idia da Fenomen%gia. Como Husserl, Bergson no tinha inteno de ver o cinema como o prottipo de sua concepo. De fato, em Matria e Memria (1896), Bergson equacionou o tempo divisvel, formal, "iluso cinemtica". Deleuze nota que a cmera do cinema ainda no tinha abandonado o ponto de vista fixo. Uma vez que a cmera se torna mvel, o conceito de dure se tornou uma descrio absolutamente acurada da nova imagem-movimento que caracterizava a temporalidade no cinema (Ver: Deleuze, Gilles. Cinema I: The Movement-Image. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986 [Edio brasileira: Imagem-movimento: cinema 1. Traduo de Stella Senra. So Paulo: Brasiliense, 1985]). 22 "Vamos supor que em um certo lugar estamos fotografando um certo objeto. Ento, em um lugar muito diferente, filmamos gente olhando este objeto. Editamos a coisa toda, alternando a imagem do objeto e a imagem das pessoas que o olhavam. Em Oprojeto do engenheiro Prite mostro gente olhando torres eltricas desse jeito. Fiz ento uma descoberta acidental: graas montagem, possvel criar, por assim dizer, uma nova geografia, um novo lugar de ao. possvel criar assim novas relaes entre os objetos, a natureza, as pessoas e o progresso do filme" (Kuleshov, LevVladimirovich. "The origins of montage". Em: Scnhitzer, Luda e Jean; Martin, Marcel (orgs.). Cinema in Revo/ution. Londres: Secker & Warburg, 1973. p. 68).

aparentemente autnomas. Lotman fala da temporal idade flmica como exclusivamente o presente.LI No entanto sempre se trata de um presente simulado, porque h uma lacuna entre a gravao da percepo e seu estar sendo "vista". Deve-se a esta lacuna, nas palavras de Husserl, a "irrclevncia" de ser ou no ser real o que est sendo percebido. A imagem do cinema o trao cintico gravado de uma ausncia. a imagem presente de um objeto que ou desapareceu, ou talvez nem mesmo tenha existido.24 Em resumo, a forma - uma das Ur-formas - do simulacrum. Minha alegao no ontolgica no sentido forte do termo. No estou argumentando que a prtese cognitiva do cinema tenha um s sentido inerente de ser. A metafsica do perodo inicial do cinema se desenvolveu dentro de um conjunto de determinantes histricas e culturais, o que quer dizer que poderia ter se desenvolvido de outra maneira. De fato, especialmente depois da Guerra Mundial, o cinema experimental e de vanguarda se preo-

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Lotman, Semio/cs ofthe Cinema, 1976,p. 77. "O que eu acho que foi bem mais interessante [que a criao de novas geografias; ver nota 22] foi a criao de uma mulher que nunca existiu. Fiz este experimento com meus alunos. Filmei a cena de uma mulher em sua toilette: ela penteou o cabelo, maquiou-se, colocou as meias e o vestido ...Filmei o rosto, a cabea, as mos, os cabelos, as pernas, os ps de mulheres diferentes, mas editei-as como se fosse tudo uma mesma mulher, e, graas montagem, consegui criar uma mulher que no existe na realidade, s no cinema" (Kuleshov, "The origins ofmontage", 1973, p. 70).2:3

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cupou em fazer da prpria pr tese cinemtica o ohjeto da experincia do cinema, para expor sua metafsica histori camente desenvolvida. De fato, os diretores tentaram lutar contra aquela metafsica atravs das prprias tcnicas do cinema. Mas o que fascinava os primeiros produtores de cinema era precisamente o fato de que podia ser uma questo indiferente se o que percehido real ou no. Na tela, as imagens moventes tm um significado presente, a despeito da ausncia de corpos de carne e OSS02" que, por isso, se tornam uma questo indiferente. O que conta o simulacro, no o objeto corpreo por detrsdele. Na cognio prottica do cinema, a diferena entre documentrio e fico, portanto, apagada. Claro que ainda "sabemos" que so diferentes. Mas eles habitam a superfcie da tela como equivalentes cognitivos. Tanto o evento real quanto o encenado esto ausentes. Sua aparncia de estar presente igualmente simulada. Ambos so construdos ou "constitudos" por uma conscincia intencional, dependentes dos mesmos princpios de filmagem e montagem para seu significado. Como nos mostrou Kuleshov, no a atualidade da careta de Muzequin que significante, mas quais cenas vieram antes ou depois. Nos termos de Baudrillard, o cdigo sobrepe-se e domina o

significado: "o cdigo no remete mais qualquer 'rea lidade' subjetiva ou objetiva, mas sua prpria lgica".'!'

Figura 3 Vcrtov, () homem com uma a/mera, '920

Uma vez que esta reduo tenha lugar, uma vez que a iminncia simulada do objeto reduzido do cinema seja a fonte do significado, ento uma espcie de violncia se torna possvel. No falo s da violncia de emoldurar e montar que corta a realidade, desmembra o corpo e esquarteja cada aspecto do continuum da realidade no pro26 Baudrillard, Jean. The Mirrar of Praduction. Press, 1975.p. 127.

25 Isto " e permanece, enquanto dura, um abosluto, um istoaqui [...]" (Husserl, The Idea ofPhenomenology, 1964, p. 24 [56]).

St. Louis: Telos

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cesso de construir a imagem. Estou falando da violncia da prpria percepo prottica.

Figura 4 Pudovkill,A Me, '926UMA NOVA ESPCIE DE VIOLNCIA

D.W GRIFF[TH em O Nascimento de uma Nao ('lheBirth of a Natirm, [9(5) criou uma longa seqncia sobre

tro lado do Canal. Seu filme Coraes do Mundo (Hearts Urld, [9[8) foi terminado em Hollywood, em uma fazenda privada. Virilio nos diz: "o filme alcana grande sueesso nos Estados Unidos e causa forte impacto sobre a opinio pblica".28 A guerra moderna no pode ser compreendida como experincia crua. Como muitas das realidades da mo dernidade, a guerra precisa do rgo prottico da tela do cinema para ser "vista". Virilio declara diretamente: "/1 guerra o cinema e o cinema a guerra" .2YNo precisamos ir to longe para perceber que o que conhecemos como guerra no pode ser separado de sua representao cine mtica. Isto no verdade s em relao ao pblico. Nenhumgeneral moderno, nenhum piloto de bombardeio pode atuar sem a percepo simulada da imagem cintica. A questo que certos eventos s podem ter lugar na superfcie prottica da tela. Certos fenmenos s podem existir dentro das dimenses da percepo cinemtica.ofthe

as hostilidades da guerra civil estadunidense. Muitos anos depois, mais para o fim da I Guerra Mundial, ele visitou o "front" francs para fazer um filme de propaganda. Declarou que estava "muito decepcionado com a realidade do campo de batalha".27 Voltou Inglaterra onde criou sinteticamente as batalhas que aconteciam do ou27 Citado em Virilio, Paul. War and Cinema: The logistcs 0/ perception. Londres: Verso, 1989. p. 15 [Edio brasileira: Guerra e

Walter Benjamin acreditava que a cidade s poderia ser experimentada verdadeiramente por este meio, e resta claro que as multides das ruas e dos lugares pblicos das cidades modernas (Paris, Berlim, Moscou) se tornaramcinema. Logstica da percepo. Traduode Paulo Roberto Pires. So Paulo: Boitempo (coleo Estado de Stio), 2005. p. 401. 28 Virilio, War and Cinema, 1989, p. 15 [41]. 29 Ibidem, p. 26 [61; traduo modificada].

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