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Sueli da Cruz Pereira A teologia da cruz em Jon Sobrino O caminho mistagógico da kénosis Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Paulo Cezar Costa Rio de Janeiro Março de 2011

A TEOLOGIA DA CRUZ EM JON SOBRINO O CAMINHO MISTAGÓGICO DA KÉNOSIS

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  • Sueli da Cruz Pereira

    A teologia da cruz em Jon Sobrino

    O caminho mistaggico da knosis

    Dissertao de Mestrado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia.

    Orientador: Prof. Paulo Cezar Costa

    Rio de Janeiro Maro de 2011

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 0912232/CA

  • Sueli da Cruz Pereira

    A teologia da cruz em Jon Sobrino

    O caminho mistaggico da knosis

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

    Prof. Paulo Cezar Costa Orientador

    Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Lucia Pedrosa de Pdua

    Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Carlos Antonio da Silva Instituto de Filosofia e Teologia Paulo VI

    Prof. Denise Berruezo Portinari

    Coordenadora Setorial de Ps-Graduao e Pesquisa do Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

    Rio de Janeiro, 03 de maro de 2011

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  • Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou

    parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora

    e do orientador.

    Sueli da Cruz Pereira

    Graduou-se em Teologia na PUC-Rio (Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio de Janeiro) em 2007. Participou de diversos

    congressos na rea de Teologia e Catequtica. coordenadora

    da Catequese Diocesana em Duque de Caxias e So Joo de

    Meriti. Atua na formao teolgica de lideranas.

    Ficha Catalogrfica

    CDD: 200

    Pereira, Sueli da Cruz A teologia da cruz em Jon Sobrino: o caminho

    mistaggico da knosis / Sueli da Cruz Pereira; orientador: Paulo Cezar Costa. 2011.

    134 f.; 30 cm

    Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2011.

    Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Teologia da cruz. 3. Jon

    Sobrino. 4. Cruz. 5. Mistagogia. 5. Knosis. 6. Seguimento. 7. Deus crucificado. 8. Povos crucificados. 9. Mrtires. I. Costa, Paulo Cezar. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. III. Departamento de Teologia. IV. Ttulo.

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  • Para meus pais, Jos e Josefa, meus irmos

    e minhas Irms Dimesse Filhas de Maria Imaculada

    pelo apoio e confiana.

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  • Agradecimentos

    Ao meu orientador Professor Paulo Cezar Costa pelo estmulo e parceria para a

    realizao deste trabalho.

    FAPERJ e PUC-Rio pelos auxlios concedidos, sem os quais este trabalho no

    poderia ter sido realizado.

    Aos meus pais pela educao, ateno e carinho de todas as horas.

    s Irms Dimesse Filhas de Maria Imaculada pela confiana, oportunidade de

    aprofundamento, incentivo e compreenso.

    s formandas Maria Vanderleia e Jane pela compreenso e partilha do tempo para

    que esta pesquisa fosse realizada.

    Aos meus amigos da PUC-Rio.

    Aos professores que participaram da Comisso examinadora.

    A todos os professores e funcionrios do Departamento pelos ensinamentos e pela

    ajuda.

    A todos os amigos e familiares que de uma forma ou de outra me estimularam ou

    me ajudaram.

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  • Resumo

    Pereira, Sueli da Cruz; Costa, Paulo Cezar. A teologia da cruz em Jon

    Sobrino. O caminho mistaggico da knosis. 134p. Rio de Janeiro, 2011.

    Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    A reflexo cristolgica nos ltimos anos tem procurado responder s

    questes sobre Jesus Cristo trazidas ao longo dos sculos pela Igreja atravs do

    Novo Testamento e dos dogmas cristolgicos. Uma dessas questes o

    significado da cruz de Jesus. Na Amrica Latina foram desenvolvidas vrias

    reflexes a partir do seu prprio poo partindo do Jesus histrico. Dentre elas

    destaca-se a do telogo Jon Sobrino. Sua reflexo uma proposta de conduo ao

    sentido original da cruz a partir de nossa realidade ainda marcada por tanto

    sofrimento humano e onde os crucificados so uma grande maioria. Nossa

    dissertao busca apresentar possveis consequncias para todas as pessoas,

    principalmente para os seguidores de Jesus Cristo, para se vivenciar uma prtica

    mais humana e humanizadora quando o ponto de partida a compreenso da cruz

    proposta por Sobrino.

    Palavras chave

    Teologia da cruz; Jon Sobrino; cruz; mistagogia; knosis; seguimento; Deus

    crucificado; povos crucificados; mrtires.

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  • Abstract

    Pereira, Sueli da Cruz; Costa, Paulo Cezar (Advisor). The theology of the

    cross in Jon Sobrino. The mystagogical path of the knosis 134p. Rio de

    Janeiro, 2011. MSc. Dissertation Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    The Christological reflection the last years has sought to answer the

    questions about Jesus Christ that has been brought up through the centuries by the

    Church through the New Testament and Christological dogmas. One such issue is

    what is the meaning of the Jesus' cross. In Latin America there were developed

    several reflections from their own well" based on the historical Jesus. Among

    them the theologian Jon Sobrino stands out. His reflection is a proposal of

    direction towards the original meaning of the cross from our reality still marked

    by so much human suffering and crucified are a large majority. Our dissertation

    aims to discuss possible consequences for all people, especially for followers of

    Jesus Christ, to experience a more human and humanizing practice when the

    starting point is the understanding of the Cross proposed by Sobrino.

    Keywords

    Theology of the Cross; Jon Sobrino; cross; mystagogy; kenosis; follow; God

    crucified; crucified peoples; martyrs.

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  • Sumrio

    Introduo 9

    1. A morte de Jesus e seu impacto na histria 17

    1.1. O acontecimento da crucificao como condenao sumria: o escndalo da cruz

    21

    1.2. As principais interpretaes da cruz nas primeiras comunidades crists

    28

    1.3. As principais interpretaes da cruz na tradio teolgica 33

    1.4. A cruz como consequncia de uma prxis 48

    1.5. Concluso 54

    2. O mistrio pascal como revelao do mistrio de Deus 56

    2.1. A inter-relao encarnao-morte-ressurreio 58

    2.2. Cruz e silncio de Deus 68

    2.3. A originalidade da f crist: o Deus crucificado 70

    2.4. Do Deus crucificado aos povos crucificados 79

    2.5. Concluso 94

    3. A presena da cruz no caminho mistaggico do seguimento a Jesus

    96

    3.1. Seguimento: mergulho no mistrio pascal 97

    3.2. Mstica e devoes emergentes da cruz no caminho do seguimento a Jesus

    102

    3.3. A Knosis na vida de Jesus: paradigma do seguimento 108

    3.4. Superao de dualismos a partir do seguimento 116

    3.5. Concluso 122

    Concluso geral 124

    Referncias bibliogrficas 129

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  • Introduo

    A Amrica Latina marcada por uma histria de invaso, de dominao e

    de luta pelo poder. O fruto dessa histria a opresso e a misria

    experienciadas ainda hoje por milhes de pessoas. Tais pessoas (irms e irmos

    nossos!) vivem situaes desumanas de vrias categorias tornando-se os atuais

    cristos crucificados na histria. Nesse contexto, a Igreja latino-americana

    busca, na teoria e na prtica, fazer-se prxima a eles para desc-los da cruz.

    Ao referirmo-nos anteriormente teoria e prtica temos como objetivo

    ressaltar a reflexo teolgica que nasce a partir da insero em nossa realidade.

    Para falar da presena de Deus em meio a tanto sofrimento humano, muitos

    telogos latino-americanos utilizam uma linguagem que tem como eixo a

    realidade que experienciam. Por isso, escolhemos como fonte de nosso trabalho

    a reflexo do telogo Jon Sobrino por sua capacidade e eloquncia em

    apresentar a proximidade de Deus como o libertador de todos os crucificados da

    histria por sua participao nos sofrimentos de Jesus, que tambm foi exposto

    conspirao dos poderes polticos e religiosos de sua poca e condenado

    injustamente. Alm disso, o escolhemos, sobretudo, por ser uma testemunha na

    prtica daquilo que reflete.

    Nossa dissertao ter como eixo a temtica da teologia da cruz presente

    nas obras de Jon Sobrino, onde procuraremos desenvolver uma reflexo que

    nos conduza ao sentido original da cruz de Jesus e sua relao com o

    seguimento a Ele. A escolha do tema de carter pessoal pela proximidade ao

    carisma das Irms Dimesse Filhas de Maria Imaculada proposto pelo fundador

    Fr. Antnio Pagani em 1579 como uma volta s fontes no seguimento a Jesus.

    Porm, antes de continuarmos a apresentar o desenvolvimento de nossa

    pesquisa queremos situar o nosso autor e o tema escolhidos para melhor

    compreendermos o fundamento da reflexo.

    Jon Sobrino nasceu em 1938 e cresceu no Pas Basco. Aps um ano ao

    entrar na Companhia de Jesus, ainda como novio, foi transferido para El

    Salvador, na Amrica Central em 1957. Desde ento vive neste pas. Saiu

    apenas para seus estudos: por cinco anos para estudar filosofia e engenharia

    nos Estados Unidos e por sete para estudar teologia em Frankfurt, na

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    Alemanha1. Sua tese doutoral intitula-se O significado da cruz e ressurreio de

    Jesus nas cristologias sistemticas de W. Pannemberg e J. Moltmann.

    A vida de Sobrino foi marcada por fortes momentos. Quanto sua

    reflexo e sentimentos classifica dois: antes e depois do despertar do sono da

    cruel inumanidade2. Seus estudos nos Estados Unidos e na Alemanha o

    ajudaram a despertar do sono dogmtico, isto , a ter uma viso filosfica e

    teolgica mais profunda, mas continuava a olhar a realidade a partir do Primeiro

    Mundo e desejava continuar ajudando El Salvador atravs dos seus

    conhecimentos adquiridos. At 1974, quando retorna a El Salvador, o mundo dos

    pobres no existia para ele. Mesmo tendo convivido anteriormente com a

    realidade salvadorenha, ela no dizia nada para sua vida, pois veio como o

    missionrio que traz algo para oferecer. Porm, seu retorno o ajudou a perceber

    que muitos outros estavam agindo em favor dos pobres. Os pobres e a justia

    comeam a ser para ele as lentes pelas quais se devia olhar a verdade, o amor,

    a f, o Evangelho e Deus. E assim se deu o despertar do sono da cruel

    inumanidade. A partir da sentiu que no era sensato hahnerizar ou

    moltmanizar os salvadorenhos, mas fazer o contrrio: salvadorenhizar Ranher

    ou Moltmann.

    1 Cf. SOBRINO, J., O princpio Misericrdia: Descer da cruz os povos crucificados, p.12.

    2 Cf. Ibid., pp. 11-16. Sobrino assim descreve sua chegada a El Salvador: Para mim o mundo continuava sendo o Primeiro Mundo; o homem continuava sendo o homem moderno; a Igreja continuava sendo a Igreja (europia) do Conclio; a teologia continuava sendo a teologia alem; e a utopia continuava sendo, de alguma forma, que os pases do sul chegassem a ser como os pases do norte. Desejvamos isso e por isso muitos, consciente ou inconscientemente, queramos trabalhar naquele tempo. Havamos despertado do sono dogmtico, se se quiser; mas continuvamos dormindo um sono muito mais profundo e perigoso, e do qual mais difcil despertar: o sono da inumanidade, que no outra coisa que o sono do egocentrismo e do egosmo. Mas despertamos. Por um desses raros milagres que ocorrem na histria, percebi que at ento eu havia adquirido muitos conhecimentos e tinha aprendido muitas coisas, que havia me desprendido e que me tinham despojado de muitas outras coisas tradicionais; mas no fundamental nada mudara. Em palavras simples, vi que minha vida e estudos haviam me dado olhos novos para ver a realidade deste mundo tal qual nem me tinham tirado o corao de pedra ante o sofrimento deste mundo. Foi isso que experimentei quando voltei a El Salvador em 1974. E comeamos, espero, a despertar do sonho da humanidade. Ali, para surpresa minha descobri que alguns companheiros jesutas j falavam de pobres, de injustia e de libertao. Encontrei jesutas, sacerdotes e religiosas, leigos, camponeses e estudantes, inclusive alguns bispos, agindo em favor dos pobres e se metendo em srios conflitos por causa disso. Eu era recm-chegado e estava surpreso, e no sabia com o que podia contribuir. Mas desde o princpio ficou bem claro para mim que a verdade, o amor, a f, o evangelho de Jesus, Deus, o melhor que os crentes e os seres humanos temos, passava por a, pelos pobres e pela justia. Para diz-Io em palavras concretas: no se trata de Ranher ou Moltmann, a quem estudei a fundo, j no terem nada a dizer, mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos. Se eu pudesse ajudar algo com meus estudos, a tarefa teria que ser a inversa: salvadorenhizar Ranher e Moltmann, se fosse possvel... Lembrando meu querido irmo Jesuta Incio Ellacura, reitor da universidade Centro-americana Jos Simen Caas, assassinado junto com outros cinco jesutas e duas mulheres simples aos 16 de novembro de 1989, aprendi que no h nada mais essencial para viver como o ser humano do que o exerccio da misericrdia diante de um povo crucificado, e que no h nada mais humano e humanizante do que a f no Deus de Jesus. Ibid., pp.14.28

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    Seu irmo jesuta Incio Ellacura e D. Oscar Romero foram duas

    pessoas importantes em sua vida e o ajudaram a descobrir e a entrar em

    profundidade no mundo dos pobres.

    Jon Sobrino viveu o drama do povo de El Salvador e a ditadura l

    imposta. Viu o sangue derramado de um povo inocente. Em 16 de novembro de

    1989 um grupo paramilitar entrou na Universidade Centro-americana e

    assassinou seis jesutas, dentre eles seu grande amigo Ellacura, a cozinheira da

    comunidade e sua filha. Ele estava em Hua Hin (Tailndia) dando um curso a

    pedido de Leonardo Boff e assim escapou do assassinato3. Este triste episdio

    marcou profundamente a sua vida. Sobrino continuou sua reflexo tendo sempre

    os pobres e os mrtires como chaves de leitura para uma vivncia evanglica.

    A reflexo teolgica de Sobrino emerge nesse contexto latino-americano

    de perseguio onde a prpria Igreja experimenta o sofrimento junto com o povo.

    Queremos acentuar que este um perodo ps-conciliar no qual a Igreja na

    Europa pde testemunhar um novo florescer de reflexes que a ajudaram a

    dialogar com o mundo. Fazia-se necessria uma reflexo que correspondesse

    ao contexto histrico, como corajosamente props Joo XXIII ao convocar um

    Conclio que promovesse um aggiornamento da Igreja.

    Aps o Conclio a reflexo teolgica e especificamente cristolgica na

    Europa ganha destaque nas obras de K. Ranher, W. Kasper, H. Kng, Y.

    Congar, V. Balthasar, E. Schillebeeckx e outros. Surge aqui o desafio de

    harmonizar a verdade sobre Jesus Cristo transmitida pelo Novo Testamento e os dogmas eclesiais cristolgicos com a presente situao, em que se deu uma nova nfase verdadeira humanidade de Cristo e ao seu carter salvfico. Reconhece-se, ento que o dogma cristolgico pode apresentar-se na perspectiva atual sem nenhum detrimento de seu significado original, mas exige-se da cristologia o esforo de assumir de certa forma e integrar a viso do homem atual de si mesmo e da histria

    4.

    A reflexo teolgica que nasce na Amrica Latina concomitante ao

    Conclio Vaticano II recebe dele o impulso para seu desenvolvimento. A

    realidade latino-americana no era a mesma europia (e ainda no ), pois aqui

    a questo da pobreza era emergente. Surge ento uma teologia a partir do seu

    prprio poo5, cunhada como Teologia da Libertao (TdL), que inclui em seu

    interior a situao histrica e a realidade social dos povos latino-americanos.

    3 Cf . SOARES, A. M. L. (org.), Dialogando com Jon Sobrino, pp.11-12.

    4 SOBRINO, J., Jesus na Amrica Latina, p.17.

    5 Ttulo do livro de Gustavo Gutierrez: Beber em seu prprio poo.

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    A TdL compreende dois momentos distintos e complementares: formao

    e consolidao. O primeiro momento corresponde s dcadas de 60 e 70 e o

    segundo, 80 e 906. A reflexo cristolgica de Sobrino ganha destaque no final do

    primeiro momento, pois em 1976 publicou o livro Cristologia a partir da Amrica

    Latina, esboo a partir do seguimento do Jesus histrico. Esta obra inaugurou a

    sua caminhada entre os telogos da libertao e especificamente na Cristologia

    da libertao.

    Quando Sobrino retorna a El Salvador j havia acontecido a Conferncia

    do Episcopado Latino-americano em Medelln (1968). As concluses de

    Medelln, que se intitulam A Igreja na atual transformao da Amrica Latina

    luz do Conclio, iniciaram para a Igreja na Amrica Latina um novo perodo de

    sua vida eclesistica, pois o Vaticano II abre-se ao mundo moderno e Medelln

    descobre, dentro do mundo moderno, o mundo dos pobres. As afirmaes

    sobre Cristo influenciaram poderosamente no sentido de forjar pastoralmente

    uma nova imagem dele, fazendo surgir o que se denominou Cristologia latino-

    americana ou Cristologia da libertao. Ressalta-se a presena de Cristo na

    histria e a presena de Cristo nos pobres7. Em 1979 a Conferncia realizada

    em Puebla d um novo impulso opo preferencial pelos pobres. Nesse

    perodo muitos cristos vivenciam o martrio, dentre eles D. Oscar Romero, que

    acusado de morrer por uma ideologia enquanto presidia a eucaristia.

    A reflexo teolgica latino-americana desde ento cautelosamente

    analisada pela Congregao para a doutrina da f (CDF), a qual escreveu duas

    Instrues em relao Teologia da Libertao. A primeira Instruo foi a

    Libertatis nuntius (Instruo sobre alguns aspectos da Teologia da Libertao)

    de 1984 e a segunda, Libertatis conscientia (Instruo sobre a Liberdade crist e

    a libertao), de 1986. A Libertatis nuntius (ILN) critica o uso do marxismo em

    algumas formulaes da TdL. A Libertatis conscincia (ILC) ressalta a relevncia

    da articulao entre libertao e liberdade, e lanou a Doutrina Social da Igreja

    como instrumento relevante e imprescindvel para a reflexo teolgica da

    libertao8.

    A ILN reconhece a situao social da Amrica Latina, de injustia e

    misria (I,1-9;VII,12) que se constitui como interpelao e apelo a um resposta

    6 Cf. GONALVES, P. S. L., A teologia do CVII e suas consequncias na emergncia da TdL,

    pp.86-87. In: GONALVES. P.S.L.; BOMBONATTO, V.I. (orgs). Conclio Vatiano II. Anlise e

    prospectivas, pp. 69-94. Para um aprofundamento sobre as fases da Teologia da libertao sugerimos ANDRADE, P. F. C. F e eficcia. O uso da sociologia na teologia da libertao. So Paulo, Loyola, 1991. 7 Cf. SOBRINO, J., Jesus na Amrica Latina, p. 18.

    8 Cf. GONALVES, P. S. L., op. cit., pp. 69-94.

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  • 13

    de f. Porm, faz uma distino entre Teologia da Libertao e teologias da

    Libertao. As principais crticas da ILN so o reducionismo da libertao

    esfera do social, a aplicao de conceitos marxistas na anlise da realidade

    social e uma exaltao da importncia do poltico com graves consequncias

    para a f.

    Concomitante ILN, Leonardo Boff, telogo latino-americano, que havia

    lanado em 1981 o livro Igreja, carisma e poder, em 1984 foi convocado

    oficialmente pelo Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregao para a doutrina da

    f naquele momento, para um colquio. Depois disso foi condenado ao silncio

    obsequioso por um ano em 1985, e desde ento ficou sob vigilncia9. Mais tarde,

    em 2006, a CDF publicou uma Notificao sobre as obras de Jon Sobrino:

    Jesucristo liberador. Lectura histrico-teolgica de Jess de Nazaret (Madrid,

    1991) e La fe en Jesucristo. Ensayo desde las vctimas (San Salvador, 1999),

    sendo divulgada em 200710.

    A Notificao no tem um carter condenatrio, sendo uma advertncia,

    uma chamada de ateno para certas proposies que no so conformes

    doutrina da Igreja. Na introduo da Notificao s obras de Sobrino a CDF

    afirma no julgar as intenes subjetivas do Autor, nesse sentido, no esto em

    discusso as dvidas em relao sua f, mas as suas afirmaes. As

    proposies que no so conformes doutrina da Igreja, segundo a Notificao,

    referem-se: aos pressupostos metodolgicos enunciados pelo Autor, onde ele

    funda a sua reflexo teolgica; divindade de Jesus Cristo; encarnao do

    Filho de Deus; relao entre Jesus Cristo e o Reino de Deus;

    autoconscincia de Jesus Cristo; ao valor salvfico da sua morte.

    O significado da cruz de Jesus tem sido interpretado de vrias maneiras

    ao longo dos sculos. Dentre os modos de compreender a cruz, o sentido

    devocional foi mais sublinhado do que o sentido original, pois a morte de Jesus

    na cruz vista por uma grande maioria como um desgnio divino para nos

    9 Como o nosso interesse aqui no a histria da condenao de Leonardo Boff, recomendamos

    para um aprofundamento do tema a Crnica eclesistica que se encontra na REB 44, Comentrios Instruo sobre a teologia da libertao, pp. 845-868. 10

    CDF., Notificao sobre as obras de Jon Sobrino. Disponvel em: . Acesso em 01 maio 2009. Assim inicia-se a notificao: Aps um primeiro exame dos volumes Jesucristo liberador. Lectura histrico-teolgica de Jess de Nazaret (Jesucristo) e La fe en Jesucristo. Ensayo desde las vctimas (La fe), do Rev.do P. Jon Sobrino S.I., a Congregao para a Doutrina da F, dadas as inexatides e erros neles encontrados, decidiu, em Outubro de 2001, proceder a um ulterior e mais aprofundado estudo das ditas obras. Dada a ampla divulgao desses escritos e a utilizao dos mesmos em Seminrios e outros centros de estudo, sobretudo da Amrica Latina, a Congregao achou por bem aplicar a esse estudo o procedimento urgente previsto nos artigos 23-27 da Agendi Ratio in Doctrinarum Examine.

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    salvar. Certamente um dos fundamentos da f crist a certeza de Jesus Cristo

    como Salvador, por isso cruz em si mesma (isto , sem a histria de Jesus)

    tem-se dado a atribuio de um valor salvfico.

    Nossa pesquisa tem como objetivo principal adentrar na reflexo de

    Sobrino para, com rigor teolgico, haurir da elementos significativos para um

    profundo seguimento a Jesus em nossa realidade ainda marcada por tanto

    sofrimento humano e onde os crucificados so uma grande maioria. Tendo isto

    como pressuposto procuraremos demonstrar como Sobrino tem procurado

    responder s questes sobre a cruz de Jesus e seu ponto de partida e de

    chegada para suas afirmaes. Para isso, organizamos nossa pesquisa em trs

    captulos.

    No primeiro captulo nos empenharemos em analisar o sentido histrico

    da morte de Jesus, seu impacto e suas causas. O ponto nodal que perpassa a

    reflexo de Sobrino aqui apresentada a pergunta por que matam Jesus?.

    Veremos que sua reflexo parte da realidade e a ela retorna para ilumin-la com

    o texto bblico. Atravs desta metodologia Sobrino v os crucificados existentes

    como a melhor hermenutica para compreender a cruz de Jesus.

    Perpassaremos em primeiro lugar o acontecimento da crucificao de

    Jesus. Uma coisa certa: Jesus morre atravs da forma mais cruel e

    vergonhosa de sua poca. Morre como um criminoso a partir de um julgamento e

    de uma condenao. Num dilogo com outros autores apresentaremos como

    Sobrino interpreta o porqu matam Jesus e os processos religioso e poltico

    pelos quais Jesus foi submetido. Como veremos, a originalidade de Sobrino

    consiste na afirmao de que por trs do processo de Jesus h uma luta de

    divindades. E nessa luta Jesus e seu Deus parecem, a princpio, perder no

    processo.

    Dando continuidade procuraremos demonstrar os pontos essenciais das

    interpretaes sobre a cruz de Jesus nas primeiras comunidades crists e suas

    influncias para a atualidade. Sobrino demonstra que mais do que responder

    por que mataram Jesus? as primeiras comunidades tiveram a preocupao de

    responder por que Jesus morreu?. Essa pergunta nasce para dar um sentido

    ao que aconteceu com Jesus. As respostas das comunidades nascentes situam-

    se no nvel teolgico, pois colocam em Deus o sentido ltimo da cruz. Aqui a

    advertncia principal para no cairmos na ingenuidade de termos Deus como

    um dolo que precisa de sangue derramado para salvar. Pelo contrrio, a cruz

    no revela um Deus sanguinrio, mas um Deus de Amor.

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  • 15

    Das interpretaes da cruz realizada pelas primeiras comunidades

    nascentes passaremos s principais interpretaes da cruz na tradio teolgica

    ressaltando a influncia de Jrgen Moltmann, telogo luterano, na reflexo

    teolgica de Jon Sobrino.

    Concluiremos o primeiro captulo apresentando a interpretao de

    Sobrino sobre o porqu matam Jesus. Em sntese podemos afirmar que v a

    morte de Jesus como consequncia de sua prxis, isto , de sua pr-existencia

    histrica. E essa viso a forma mais adequada para recuperar o sentido

    original da cruz de Jesus.

    Trataremos no segundo captulo do sentido teolgico da cruz de Jesus na

    tentativa de apresentar uma resposta ao questionamento por que Jesus morre?

    seguindo a perspectiva de Sobrino.

    Como ponto de partida ressaltaremos a inter-relao encarnao-vida-

    morte-ressurreio de Jesus como proposta de uma viso integrada e

    integradora das dimenses de sua vida, portanto a cruz vista como parte

    intrnseca dessa relao.

    A seguir nos perguntaremos pelo sentido do silncio de Deus na cruz de

    Jesus e ressaltaremos como esse silncio denota descontinuidades em relao

    revelao de Deus como proximidade e como Pai trazidas e apresentadas por

    Jesus.

    Para responder questo anterior procuraremos apresentar a

    originalidade crist que professa um Deus crucificado que sofre e que ama,

    visto que na cruz Deus sofre com o sofrimento de seu Filho. Para Sobrino essa

    originalidade desfaz a viso de um Deus onipotente como geralmente

    compreendido. A cruz de Jesus nos faz conhecer quem Deus: um Deus

    prximo que assume em si a natureza e o sofrimento humano.

    Concluindo o captulo apresentaremos como do Deus crucificado

    Sobrino passa aos povos crucificados. Sobrino insere na cristologia os povos

    crucificados como corpo de Cristo crucificado na histria. Aqui, analogamente,

    os povos crucificados so comparados ao servo sofredor de Isaas e vistos como

    povo martirial. Alm disso, Sobrino destaca a importncia de muitas mulheres e

    homens que doaram sua vida em nossa realidade latino-americana em favor da

    vida. A esses Sobrino denomina mrtires jesunicos e prope uma mudana

    no conceito oficial de martrio para que sejam reconhecidos oficialmente como

    mrtires.

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  • 16

    Nosso terceiro e ltimo captulo pretende apresentar as consequncias

    prticas da percepo e compreenso da cruz de Jesus em seu sentido original,

    como demonstrou Sobrino, para a vida crist.

    Primeiramente sublinharemos a relevncia do seguimento a Jesus como

    fruto de uma profunda experincia de encontro com Ele em seu Mistrio pascal e

    apresentaremos como os primeiros cristos vivenciaram o seguimento e sua

    relao com a cruz.

    Continuando a reflexo ressaltaremos como a cruz foi compreendida no

    seguimento a Jesus aps as primeiras comunidades. Esse ponto tem como

    objetivo principal demonstrar as formas de msticas e devoes que surgiram a

    partir de interpretaes sobre o significado da cruz.

    Segundo Sobrino o caminho do seguimento consiste em percorrer o

    mesmo caminho de Jesus, vivenciar a knosis. Entretanto, no caminho de Jesus

    a cruz se faz presente, por isso o seu sentido original precisa ser bem

    compreendido para que a espiritualidade crist e o seguimento no se tornem

    uma mstica da dor e do sofrimento. Para demonstrar isso perpassaremos

    pontos nucleares do caminho kentico de Jesus.

    Finalmente, para concluir nossa pesquisa, apresentaremos pontos

    relevantes de um seguimento mais integrado e integrador a partir do Mistrio

    pascal que nos conduz a uma superao de dualismos em nossa vivncia crist.

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  • 1 A morte de Jesus e seu impacto na histria

    A morte de cruz de Jesus um fato. O significado da cruz de Jesus e seu

    valor salvfico um dos pontos que a reflexo cristolgica nos ltimos anos tem

    procurado interpretar. Este tema continua atualmente como eixo de grandes

    debates onde notadamente destacam-se tendncias que se opem em sua

    expresso. H os que veem a morte de Jesus como desgnio divino para trazer a

    salvao, como tambm h os que afirmam que a morte de Jesus foi

    consequncia de sua prxis. Tais afirmaes quando vistas isoladamente, em

    desarmonia, podem correr o risco de desviar o sentido originrio da cruz de

    Jesus.

    Em 1979 a Comisso Teolgica Internacional reuniu-se para tratar de

    Questes Seletas de Teologia, dentre elas a anlise da produo cristolgica,

    principalmente europia, dos vinte anos antecedentes, com o intuito de discernir

    como harmonizar a verdade sobre Jesus Cristo transmitida pelo Novo

    Testamento e os dogmas eclesiais cristolgicos com a presente situao, em

    que se deu uma nova nfase verdadeira humanidade de Cristo e seu carter

    salvfico11.

    A reflexo teolgica tem a preocupao de apresentar o dogma com um

    olhar atual, mas sem perder o seu significado original. Implicitamente ressalta-se

    o objetivo de transmitir as verdades da f em Jesus Cristo com eloquncia e com

    uma linguagem atual e mais prxima do dado bblico. Por muitos sculos foram

    mais exaltados os aspectos da divindade de Cristo e como consequncia isto

    trouxe certo distanciamento entre Jesus e o ser humano em suas relaes.

    Na Amrica Latina a Cristologia, e toda a teologia em geral, foi um reflexo

    da europia por muito tempo. As afirmaes dogmticas que sublinhavam mais

    a divindade de Cristo do que a verdadeira humanidade eram aceitas sem

    questionamentos e se enfatizava mais o seu significado salvfico individual e

    transcendente do que o histrico. Nas devoes da religiosidade popular o

    destaque foi dado, sobretudo, ao Cristo sofredor, onde o povo sentia maior

    11

    SOBRINO, J., Jesus na Amrica Latina p. 17.

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  • 18

    proximidade a Deus em seus sofrimentos12. A partir de Medelln a reflexo

    cristolgica ganha rosto na Amrica Latina e a teologia comea a ser

    desenvolvida a partir do seu prprio poo13, isto , nasce uma teologia fonte.

    Metodologicamente o momento do Jesus histrico foi ressaltado, dentro

    da totalidade de Jesus Cristo14. Sua pessoa, atividade, atitudes, processualidade

    e destino, que so acessveis investigao histrica e exegtica, foram

    privilegiados.

    A Cristologia latino-americana entende por Jesus histrico a totalidade da

    histria de Jesus e a finalidade de comear com o Jesus histrico a de que se

    prossiga sua histria na atualidade15. O interesse que os latino-americanos tm

    demonstrado pelo Jesus histrico no provm do mero interesse exegtico e

    histrico, mas porque veem nele o modo mais adequado e mais teolgico de

    enfocar os diversos temas da teologia da libertao16.

    Uma das reflexes da Cristologia latino-americana a de Jon Sobrino.

    Para ele necessrio sublinhar que no se pode conceber nem chegar ao

    absoluto seno atravs da histria17. Um dos temas centrais de sua reflexo a

    cruz de Jesus como ponto fundante do seu seguimento.

    Desde os primeiros sculos da Igreja o escndalo da cruz de Jesus foi

    motivo de grandes debates e de no aceitao por muitos, pois a concepo de

    um Deus que sofre contraditria. Porm, temos aqui o ncleo que nos

    12

    Cf. Ibid., p.17. Exemplo tpico das devoes ao Cristo sofredor nfase dada na Sexta-feira Santa, onde a participao do povo maior do que nos outros dias do Trduo pascal. Alm disso, em determinadas regies privilegia-se a procisso do Senhor morto. H tambm inmeras letras de hinos que enfatizam a morte de Cristo na cruz como expiao de nossos pecados, dentre elas destacamos Por que Ele vive: Deus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar, na cruz sofreu por meus pecados.... 13

    Expresso utilizada por G. Gutierrez no ttulo de sua obra Beber em seu prprio poo. 14

    Cf. SOBRINO, J., op. cit, p. 87. 15

    A cristologia europia iniciou a busca do Jesus histrico no sc XVII. Nesta primeira fase foram vrias as tentativas de escrever a vida de Jesus para chegar ao Jesus histrico, isto , ao que os evangelhos afirmam de Jesus que no seja interpretao de f. Nos sculos seguintes houve uma reao busca do Jesus histrico, onde se procurou aceitar o Cristo da f sem os dados histricos. O principal expoente dessa reao foi R. Bultmann. Contrapondo Bultmann, deu-se incio em 1953 uma segunda fase na busca do Jesus histrico denominada New Quest. Logo aps, em 1985, iniciou-se a terceira etapa: Third Quest. Sobrino apresenta o significado do Jesus histrico nessas cristologias em SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 78-82. Ao falar da diferena entre voltar a Jesus na Europa e na Amrica Latina, Sobrino cita J. L. Gonzles Faus: Na Europa o Jesus histrico objeto de investigao, ao passo que na Amrica Latina critrio de seguimento. Na Europa o estudo do Jesus histrico pretende estabelecer as possibilidades e racionalidade do fato de crer ou no crer. Na Amrica Latina a apelao ao Jesus histrico pretende levar ao dilema de converter-se ou no (Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, p. 82). Em relao ao nosso tema sobre a morte de Jesus podemos citar as seguintes obras da Third Quest: The Death of the Messiah (A Morte do Messias), de Raymond Brown; Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), de John Dominic Crossan; e El destino de Jess: su vida y su muerte, de H. Schrmann. 16

    SOBRINO, J., El Jesus histrico, crisis y desafio para la fe, p. 202. In: ECA, abril, 1975, n. 318, pp. 201-224. 17

    Cf. SOBRINO, J., Cristologia a partir da Amrica Latina, p.16.

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  • 19

    diferencia de outras religies. Apenas no cristianismo Deus se faz to humano e

    to prximo at mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz.

    Em Cristologia a partir da Amrica Latina18, de 1976, Sobrino faz um

    primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a

    partir da perspectiva da libertao. No sexto captulo desta obra ele apresenta

    sua reflexo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses.

    Em 1991, lana outra obra intitulada Jesus, o libertador19 com a mesma

    finalidade da anterior, porm esta mais elaborada, fruto de um grandioso

    trabalho. Assim, j na introduo da segunda obra justifica a necessidade de

    outro livro de Cristologia, onde aprofunda os contedos da primeira e ressalta a

    diferena entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias

    europias. Para Sobrino, enfatizar Jesus como o libertador de fundamental

    importncia para a realidade latino-americana, onde a crucificao acontece a

    cada momento. Portanto, h a necessidade do anncio da esperana de

    libertao20. Devido a este contexto, Sobrino teve o desejo de intitular sua obra

    Jesus Cristo crucificado, pois para ele tanto Cristo como o Continente esto hoje

    crucificados21. Assim, podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia:

    O Jesus Cristo crucificado to onipresente, realmente uma boa notcia, na

    verdade um Jesus Cristo libertador22. Nesta obra ele faz uma leitura histrico-

    teolgica da vida e morte de Jesus.

    Dando continuidade reflexo, lana em 1999 a obra A f em Jesus

    Cristo. Ensaio a partir das vtimas23, onde trata da realidade ltima de Jesus

    Cristo, proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreio e confessado

    como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na f da Igreja.

    A cruz de Jesus um ponto de partida para olharmos toda a sua vida. A

    realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos

    nossos olhos do que olhar a beleza escondida na cruz; assim colocamos

    adornos em torno dela para melhor explic-la. Sobrino enfatiza que

    na prtica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus que com ela o homem foi salvo. A repetio irreflexiva desta afirmao chegou a uma concepo mgica da redeno, e no fundo, a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histrica de Jesus

    24.

    18

    Ttulo original Cristologa desde Amrica Latina. 19

    Ttulo original Jesucristo liberador. 20

    Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, p. 11. 21

    Cf. Ibid., p. 11. 22

    Cf. Ibid., p. 22. 23

    Ttulo original La fe em Jesucristo. Ensayo desde las vctimas. 24

    SOBRINO, J., Cristologia a partir da Amrica Latina, p.192.

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  • 20

    Jesus morreu crucificado. Daqui podemos haurir que Jesus morreu

    violentamente, assassinado, como nos confirma o Novo Testamento e mais

    especificamente os quatro Evangelhos, onde encontramos as narrativas de sua

    paixo e morte. Na Amrica Latina muitas pessoas morreram e continuam

    morrendo de forma violenta como vtimas de um sistema opressor que gera a

    cada dia crucificados e excludos. Para Jon Sobrino esses dois fatos

    histricos so o ponto de partida de sua teologia da cruz:

    a cruz de Jesus remete s cruzes existentes, mas que estas, por sua vez, remetem de Jesus, e que so historicamente a grande hermenutica para compreender por que matam Jesus, e teologicamente, expressam em si mesmas a pergunta que no pode ser calada sobre o mistrio do por que Jesus morre. Os povos crucificados no Terceiro Mundo so hoje o grande lugar teolgico para compreender a cruz de Jesus

    25.

    Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si, porm

    distintos, em relao morte violenta de Jesus. O primeiro problema est

    relacionado pergunta histrica pelas causas da sua morte: por que matam

    Jesus?. O segundo refere-se pergunta teolgica pelo sentido de sua morte:

    por que Jesus morre?26.

    Com o presente captulo propomo-nos apresentar a reflexo de Jon

    Sobrino acerca do aspecto histrico da cruz de Jesus, procurando responder

    por que matam Jesus. Sua reflexo est em sintonia com a dos telogos da

    libertao, que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaes que

    igualam soteriologia e cruz, pois tais afirmaes desviam a ateno dos

    aspectos histricos da cruz de Jesus ocultando que ela no foi um erro ou um

    acaso. Segundo Sobrino,

    a cruz tudo, menos uma metfora. Significa morte e crueldade, ao que a cruz de Jesus acrescenta inocncia e indefensibilidade. Para os telogos cristos, a cruz remete-nos a Jesus de Nazar. Ele o crucificado. Por isso, ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados, ns os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a mxima dignidade

    27.

    Ressaltando os aspectos histricos da cruz de Jesus, Sobrino busca

    iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia.

    25

    Id., Jesus, o libertador, p.288. 26

    Cf. Ibid., p. 287. 27

    Id., Eplogo, p.350. In: VIGIL, J.M. (Org.)., Descer da cruz os pobres: cristologia da libertao,

    pp. 345-357.

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  • 21

    1.1. O acontecimento da crucificao como condenao sumria: o escndalo da cruz

    Jesus morre como um condenado. Condenado morte e morte de cruz.

    Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

    houvessem cometido crimes atrozes como assassnio, furto grave, traio e

    rebelio. Era a condenao mais cruel e vergonhosa.

    No se tratava somente de uma condenao particularmente cruel, mas tambm de um ato profundamente discriminatrio. Condenar morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistncia aos romanos significava tambm o seu cruel desprezo por esta gente

    28.

    A crucificao foi introduzida no Ocidente pelos persas. Era uma forma de

    pena oriental pouco utilizada pelos gregos, mas muito usada pelos cartagineses

    e romanos29. Os cidados romanos no eram crucificados. Quando condenados,

    podiam ser decapitados.

    Para os judeus a morte de cruz no mencionada na Lei. No direito penal

    judaico a pena adicional para os idlatras ou blasfemos era o pendurar no

    madeiro aps a morte mediante apedrejamento ou decapitao (Dt 21,22s), e

    assim o executado era tachado publicamente como amaldioado por Deus:

    Maldito quem for pendurado no madeiro (Dt 21, 23b)30.

    Diretamente os romanos so os principais responsveis pela morte de

    Jesus, pois o direito de proferir sentenas de morte (ius gladii) era reservado a

    eles. Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

    quarenta anos antes da destruio do templo (70 d.C)31. Se Jesus morre como

    um condenado houve um processo e uma razo para tal condenao morte.

    Sobrino afirma que a concepo que Jesus tinha de Deus que o leva

    cruz32. Para chegar a tal afirmao, tem como ponto de partida a anlise dos

    processos religioso e poltico de sua condenao.

    O processo contra Jesus comea com sua priso no Getsmani. Cada

    relato evanglico o narra de uma forma diversa. Marcos o mais sumrio,

    enquanto Mateus e Lucas estendem o relato. Joo segue um esquema prprio.

    Quanto historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

    evangelhos h muitas discusses exegticas. A exegese nos d poucas

    28

    KASPER, W., Jes, il Cristo, p. 153. 29

    Cf. MCKENZIE, J. L., Cruz, p. 203. In: ___. Dicionrio Bblico, pp. 203-204. 30

    Cf. KESSLER, H., Cristologia, p. 256. In: SCHNEIDER, T. (ORG)., Manual de dogmtica, pp. 219-400. 31

    THEISSEN, G.; MERZ, A., O Jesus histrico. Um manual, p. 482. 32

    Cf. SOBRINO, J., Cristologia a partir da Amrica Latina, p. 216.

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  • 22

    informaes acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatrios

    judiciais com as autoridades judaicas e romanas. Porm, os fatos da

    crucificao, da condenao por Pilatos e da inscrio no alto da cruz em trs

    lnguas conhecidas dos judeus so historicamente certos33.

    As narrativas da paixo so perpassadas por explicaes teolgicas com o

    objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus. Tais relatos so

    descritos a partir da ressurreio, pois a f crist tem sua origem de modo

    completo e se torna consciente de si mesma aps a ressurreio. Assim,

    encontramos nos textos a histria mesclada de reflexes teolgicas dos autores

    e interpretaes de f das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

    como uma morte criminosa e escandalosa34.

    Em relao ao processo religioso, afirmam as narrativas evanglicas que

    Jesus julgado pelos chefes religiosos do seu povo, e segundo os Sinticos,

    condenado como blasfemador (Mc 14,64; Mt 26,66) e por isso deveria morrer.

    Porm, Jesus no sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

    os casos de blasfmia. Por que Jesus deveria morrer, ou melhor, quais foram as

    causas histricas que levaram Jesus a esta condenao a questo levantada

    por Sobrino.

    Jesus foi um liberal em matria religiosa, pois suas prticas questionavam

    a opresso que a religio impunha ao povo devido concepo de Deus que

    tinham. Para Jesus a reverncia a Deus prestada atravs do rito e do culto como

    justificao automtica apresentava alguns limites. Deus no manipulvel,

    portanto no eram as prticas da lei em detrimento do ser humano que

    salvariam35. O culto, alm de hipcrita, necessita literalmente de sentido se no

    est acompanhado do amor ao irmo, porque no nem pode ser a maneira de

    corresponder a Deus36. Exemplo tpico a rigidez da observncia do sbado

    sublinhada por Jesus (Mc 2,23ss; Mt 12,1-8; Lc 6,1-5; Jo 5,9ss). Deus no um

    ser egocntrico, cuja realidade ser para si mesmo, mas um ser para os

    outros37. Alm disso, Jesus pregou um rigorismo tico e exigente e um total

    desprendimento daquilo que comumente considerado bom (famlia, posses

    33

    Cf. BOFF, L., Paixo de Cristo, paixo do mundo, p. 52. As lnguas eram o aramaico, o dialeto local; o grego, a lngua do mundo romano; e o latim, a lngua oficial da administrao romana (Cf. MCKENZIE, J. L., Cruz, p. 203. In: ___. Dicionrio Bblico, pp. 203-204. 34

    Cf. SOBRINO, J., Cristologia a partir da Amrica Latina, p.196. 35

    Cf. Ibid., p. 216. 36

    Id., A orao de Jesus e do cristo, p. 30. 37

    Ibid.

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  • 23

    etc.) daqueles que o seguem38. No resta dvida que devido a tais atitudes

    Jesus entrou historicamente em conflito com os lderes religiosos.

    O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatrio na

    casa do sumo sacerdote ocorrido noite. O processo no poderia ter ocorrido

    noite, pois no era permitido pela lei do sindrio39. Joo narra com menos

    detalhes o interrogatrio e no trata do outro interrogatrio perante o sindrio na

    parte da manh, como est descrito pelos Sinticos. Segundo Joo, o sumo

    sacerdote interrogou Jesus sobre seus discpulos e sua doutrina (18,19). Os

    lderes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religio

    estabelecida. O sumo sacerdote no encontrou na resposta de Jesus nenhum

    motivo que o levasse condenao. Porm, Jesus levou uma bofetada de um

    dos guardas por achar uma insolncia sua forma de responder ao sumo

    sacerdote. J nos Sinticos a causa de sua condenao aparece quando Jesus

    blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 26,64; Mc 14,62; Lc 22,67)40. Segundo

    Marcos, o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatrio:

    Ouvistes a blasfmia. Que vos parece? Todos julgaram que era ru de morte

    (Mc 14,64)41. No direito judaico a pretenso de ser Messias no era um delito

    que levasse morte42.

    Seguindo ainda a lgica do processo religioso, as razes da condenao

    de Jesus para outros autores so divergentes. Sobrino contrape as teses de E.

    Schillebeeckx e de Boismard43.

    Para E. Schillebeeckx as pessoas que compunham o sindrio eram

    contrrias a Jesus por diversos motivos, mas respeitavam a lei e no o

    condenariam sem uma base legal. O crime de blasfmia julgado luz de

    Deuteronmio 17,12: Quem tiver a ousadia de no escutar o sacerdote que l

    est para o servio do Senhor teu Deus, nem aceitar sua sentena, morrer 44.

    Em Israel punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerccio de sua funo de juiz, na base da qual ele tem que julgar tambm sobre a ortodoxia judaica. Desprezar a autoridade de Israel, sobretudo na sua funo de examinar a ortodoxia judaica dos mestres de Israel, era base jurdica para uma execuo legal

    45.

    38

    Cf. Id., Cristologia a partir da Amrica Latina, p. 215. 39

    Cf. BOFF, L., op. cit., p.52. 40

    Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, p. 301. 41

    Id., Cristologia a partir da Amrica Latina, p.216. 42

    KESSLER, H., op. cit., p. 256. 43

    Cf. SOBRINO, J., op. cit., pp. 301-302. 44

    Cf. Ibid., p. 301. 45

    SCHILLEBEECKX, E., Jesus. A histria de um vivente, p. 307.

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  • 24

    Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

    e desacato, e assim uma blasfmia. Jesus foi desaprovado porque ficou calado

    diante do sindrio. Esse silncio se tornou para o sindrio a base jurdica para

    condenar Jesus segundo Dt 17,1246. Porm, para Schillebeeckx todos estavam

    contra Jesus, mas no havia unanimidade sobre o motivo legal para conden-lo.

    E a que comea a culpa do sindrio. Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

    aos romanos47.

    Na base de diversas interpretaes legais, todos os membros do sindrio tinham objees contra Jesus de Nazar, mas muitos deles no achavam na doutrina e nas aes de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 17,12. Contudo, devido s objees fundamentais que todos os membros do sindrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista, encontrou-se numa segunda sesso, uma sada jurdica: por causa das implicaes polticas da atuao dele, vamos entregar aos romanos esse problema Jesus. Deixem os romanos decidir!

    48.

    Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E. Schillebeeckx parece

    pouco convincente, pois os testemunhos histricos do julgamento de falsos

    doutores ou profetas segundo Dt 17,12 foram aplicados posteriores ao ano 7049.

    O prprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 que o texto foi aplicado

    com preciso nos julgamentos, mas afirma que j no tempo de Jesus o texto de

    Deuteronmio desempenhava papel decisivo50.

    Segundo Boismard, a razo da condenao de Jesus o fato de querer

    destruir o templo (Mt 26,61; Mc 14,58). O templo era o centro configurador da

    sociedade judaica, assim compreensvel que os dirigentes judaicos, que eram

    religiosos, polticos e ricos ao mesmo tempo, quisessem elimin-lo51.

    Para Sobrino a concluso de Boismard mais convincente, pois coincide

    com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relao denncia do antirreino.

    Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relao com Deus no mais

    centrada no templo, que havia se tornado o centro de uma teocracia poltica,

    social e econmica da vida de Israel52. O modo como Jesus falava e tornava

    Deus presente no mundo o levou a morte, portanto ele condenado em nome

    de um deus53.

    46

    Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 310. 47

    SOBRINO, J., Jesus, o libertador, p. 302. 48

    SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 311. 49

    Cf. BOFF, L., op. cit., pp. 53-54. 50

    Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 307. 51

    SOBRINO, J., op. cit., p. 302. 52

    Cf. Ibid. 53

    Cf. Ibid.

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  • 25

    A deciso do Sindrio foi ratificada pelo processo poltico diante do

    procurador romano Pilatos. As acusaes de ordem religiosa so transformadas

    em difamaes de ordem poltica. Segundo Sobrino, nos Evangelhos, sobretudo

    em Lucas, h uma tendncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

    aos chefes judeus e no a Pilatos54. Porm, no h dvidas que Jesus morreu

    crucificado como um malfeitor poltico e subversivo por se proclamar o rei dos

    judeus e com um tipo de morte que s os romanos poderiam realizar. Para

    confirmar as acusaes de ordem poltica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

    troca de Jesus por Barrabs que era um subversivo poltico. Jesus equiparado

    a ele.

    Nesse contexto de processo poltico dois tipos de acusaes se inserem

    para conseguir a condenao de Jesus. Uma baseada em supostos fatos

    poltico-subversivos de Jesus, e outra, a que ocasionar a condenao, em base

    oposio religioso-poltica que representava Jesus em relao a Roma55.

    Lucas 23,2 relata as acusaes em relao os fatos poltico-subversivos

    de Jesus: Encontramos este homem subvertendo nossa nao, impedindo que

    se paguem os impostos a Csar e pretendendo ser Cristo Rei. Em Joo 19,12-

    15 confirmam-se as acusaes: aquele que se faz rei ope-se a Csar.

    A acusao de subverso uma apresentao de Jesus como algum

    politicamente perigoso diante de Pilatos. Quanto acusao de proibir o povo a

    pagar os impostos, referentes a Mc 12,13-17, Mt 22,15-22 e Lc 20,20-26, Jesus

    apenas responde que para dar a Csar o que de Csar e o que de Deus a

    Deus, distanciando-se de questes polticas. Em Joo Jesus se declara rei,

    porm com um reino que no deste mundo. Com isso, Jesus exclui a ideia de

    que o seu reino seja poltico ou como o dos polticos56.

    Todas as acusaes a Jesus no encontraram eco em Pilatos, pois no viu

    nenhum motivo para conden-lo (Jo 18,30). Pilatos no se assustou com a

    pretenso de Jesus querer ser rei (Jo 18,33) e at procurou livr-lo porque

    acreditava na sua inocncia. Porm, no final, Pilatos quem condena Jesus

    morte. Sobrino acentua que as palavras dos judeus se soltas este homem, no

    s amigo do Imperador, porque quem se faz rei se declara contra Csar (Jo

    19,12), que levaram Pilatos a conden-lo (Jo 19,16)57. A condenao de Jesus

    injusta e sem lgica, portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

    porqu matam Jesus:

    54

    Cf. Ibid., p. 303. 55

    Cf. Ibid. 56

    Cf. ibid., pp. 304-305. 57

    Cf. Ibid., pp. 305-306.

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  • 26

    As divindades e suas mediaes esto em luta, e por isto, tambm seus mediadores esto em luta. O processo contra Jesus um processo contra o mediador, mas realizado para defender uma mediao e isso feito em nome de um deus. Em outras palavras, o processo contra Jesus tambm um processo contra seu Deus. A partir de agora se pode ver a tragdia que vai acontecer. Jesus ser condenado morte em nome de um deus, e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

    58.

    Sobrino apresenta como fio condutor do seu discurso o esquema da luta

    entre os deuses na sua dupla ramificao de luta entre as mediaes e de luta

    entre os mediadores59. Os dois mediadores so Jesus e Pilatos e as duas

    mediaes so o reino de Deus e o Imprio romano (a pax romana). Por trs dos

    mediadores e das mediaes esto a luta de duas divindades: o Deus de Jesus

    e o deus de Pilatos, o imperador Csar. Os prprios Evangelhos afirmam que

    no se pode ser amigo de Jesus e de Csar ao mesmo tempo, pois todo rei se

    ope a Csar (Jo 19,12). preciso escolher entre dois senhores60.

    No encontramos explicitamente nos Evangelhos a relao de Jesus com

    o campo poltico assim como no religioso ou no social. Ento podemos nos

    perguntar por que ele seria to perigoso para o Imprio. Sobrino afirma que a

    partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

    radical, e isto se confirma pela escolha de Barrabs, um subversivo poltico, ao

    invs de Jesus, um lder religioso61.

    Em Cristologia a partir da Amrica Latina, Sobrino compara a atuao de

    Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posio diante do campo

    poltico. Os zelotas no foram duramente criticados por Jesus como foram os

    outros grupos sociais de seu tempo (fariseus, escribas e saduceus). Alguns

    pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas, pois ambos compreendiam

    sua misso como uma implantao do Reino de Deus, afirmando que estava

    prximo e exigiam uma entrega incondicional causa: Jesus exige um

    seguimento pessoal levando cruz e os zelotas tiveram muitos mrtires. Alguns

    discpulos de Jesus eram zelotas, como Simo (Lc 6,15) e talvez Judas

    Iscariotes e Pedro. Alguns atos de Jesus como a expulso dos mercadores do

    templo (Mc 11,15ss), a entrada messinica em Jerusalm (Mc 11, 1-10), o

    mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 22,36) so prximos aos

    atos de esprito zelota.

    58

    Ibid., p. 300. 59

    TAVARES, S. S., A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo, p. 37. 60

    Cf. SOBRINO, J., op. cit., p. 307. 61

    Ibid.

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  • 27

    Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

    sentidos. Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

    por serem colaboradores do poder romano de ocupao. Jesus admite entre os

    seus discpulos um cobrador de impostos (Mc 1,13s), come com eles (Mc 2,15)

    como sinal escatolgico da vinda do Reino. Alm disso, condena o uso da

    espada (Mt 26,52). E como j afirmamos anteriormente Jesus no se pronuncia

    claramente em relao aos impostos como faziam os zelotas. A instaurao do

    reino de Deus seria feita, segundo os zelotas, a partir de uma insurreio

    armada. Jesus anuncia o reino onde o amor a medida maior. Portanto, Jesus

    no pertenceu aos zelotas, pois sua concepo de Deus e de seu reino era

    diferente 62.

    O reino no se instalar atravs do poder, por isso Jesus no participa de

    nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poltico como o dos

    zelotas. O reino ser de verdade, justia e amor e ser instalado, diferentemente

    da expectativa de todos os outros grupos, pela graa63.

    Os processos religioso e poltico so frutos de uma perseguio a Jesus

    por sua forma de apresentar Deus em relao ao reino e seus destinatrios. O

    anncio do reino de Deus da forma como Jesus fazia, incomodava as estruturas

    estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6,33;18,3;19,23; Mc 10,23-27;

    Lc 18,24-25). L. Boff afirma que a aceitao que Jesus encontrava nas camadas

    populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e m vontade64.

    Jesus critica os poderes opressores, incluindo na sociedade aqueles que

    so excludos, a perseguio ocasionada porque Jesus ataca os opressores

    (dimenso histrica), os quais, alm disso, justificam a opresso em nome de

    Deus (dimenso transcendente). E, ao atac-los, defende suas vtimas65. O

    escndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inmeras cruzes da histria.

    Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D. Romero a alguns camponeses

    aterrorizados, sobreviventes do massacre de Aguilares: Vocs so o divino

    transpassado66.

    62

    Cf. Id., Cristologia a partir da Amrica Latina, p. 221-223. 63

    Cf. Id., Jesus, o libertador, p.314. 64

    BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 114. 65

    SOBRINO, J., op. cit., p. 294. 66

    Cf. Id., Eplogo, p.350. In: VIGIL, J.M. (Org.), Descer da cruz os pobres: cristologia da libertao,

    pp. 345-357.

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  • 28

    1.2. As principais interpretaes da cruz nas primeiras comunidades crists

    As primeiras comunidades crists estavam preocupadas em responder

    por que Jesus morreu?, visto que na cruz morre o Filho de Deus. Em um fato

    aparentemente negativo deve ter algo positivo e esta a explicao que o Novo

    Testamento d aps a ressurreio de Jesus. Atravs da cruz de Jesus Deus

    concedeu a salvao.

    Tal preocupao levou os cristos a buscar alguma explicao possvel e

    algum possvel sentido para a cruz de Jesus. Com isso, corre-se o perigo de se

    desvirtuar ou suavizar o que h de escndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

    histria. Assim, as explicaes e o sentido que os cristos do para a cruz so

    objetos de f, expresso de f67. As interpretaes das primeiras comunidades

    no enfatizam o porqu histrico da morte de Jesus. A principal preocupao

    encontra-se no nvel teolgico.

    A convico de f de que morte de Jesus cabe um significado

    soteriolgico especial uma convico crist primitiva j ancorada nas palavras

    da ltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

    crucificado tambm por ns)68. O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

    como sacrifcio, expiao, resgate etc. Tais interpretaes eram tentativas de

    aproximao lingustica do acontecimento. Ao transmitir a mensagem da

    ressurreio os cristos tiveram a necessidade de refletir sobre o escndalo da

    cruz69.

    Sobrino apresenta de forma lgica as respostas dos primeiros cristos

    pergunta por que Jesus morreu?, perpassando alguns pontos essenciais. No

    primeiro momento enquadra o significado da cruz no mistrio de Deus70. S nele

    se justifica a morte de Jesus.

    J no primeiro escrito do NT encontramos a considerao da cruz de

    Jesus como o destino de um profeta. Em 1Ts 2,14ss se afirma que eles (os

    judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas, e nos tm perseguido a ns....

    Com isso, unifica-se a perseguio que a comunidade sofria com o destino dos

    profetas e o de Jesus. Os evangelhos retomaro esta explicao quanto

    rejeio de Israel aos profetas (Mt 23,37; Mc 12,2ss, Lc 11,49-50; Mt 23,34ss) e

    67

    Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador., p. 320. 68

    KESSLER, H., op. cit, p.374. 69

    Ibid., p. 269. 70

    Cf. SOBRINO, J., op. cit., pp. 321-323.

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  • 29

    os sinticos acrescentaro que o profeta rejeitado retornar para julgar seus

    verdugos (Lc 12,8-9; Mt 10,32-33s; Mc 8,38).

    Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

    morte de um profeta isto ainda no responde questo por que Jesus morre,

    mas apenas esclarece por que matam Jesus.

    Uma explicao da cruz importante para os cristos provenientes da f

    judia era a argumentao de que a cruz j estava predita nas Escrituras. Assim,

    no precisavam se surpreender com o escndalo da cruz. O texto dos discpulos

    de Emas (Lc 24,13-35) enfatiza este anncio. Em 1Cor 15,4 afirma-se que

    Cristo morreu por nossos pecados segundo as escrituras. Encontramos Jesus

    interpretando sua morte como predita tambm em Marcos (cf. Mc 8,31; 9,31;

    10,33). Porm, estes textos tambm ainda no respondem ao por que da morte

    de Jesus.

    Em outros textos encontramos que Jesus morre segundo os desgnios

    da prescincia de Deus (At 2,23; 4,28). Ou ainda que a cruz era necessria

    (Lc 24,26; Mc 8,31).

    Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus.

    Segundo Sobrino

    apelar em ltima instncia para Deus, para que ao menos nele a cruz tenha sentido, mostra, por um lado, a renncia das pessoas a encontrarem esse sentido, o que sinal de honradez para o que em si mesmo s tragdia e escndalo. E mostra, por outro lado, a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido; em outras palavras, que a histria no absurda, que a esperana continua sendo uma possibilidade. E colocam esse sentido em Deus

    71.

    A apelao para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

    apresenta pontos positivos e negativos. O porqu s tem resposta em Deus,

    portanto a morte no ltima palavra, mas o prprio Deus. O perigo de pensar

    assim eliminar as arestas do escndalo da cruz e pretender saber por que e

    como a cruz de Jesus se torna algo lgico e at necessrio em Deus72.

    A resposta ao por que da cruz inserida no mistrio de Deus leva a outros

    questionamentos: Por que foi esse e no outro o desgnio de Deus?, Como um

    Deus bom, libertador dos oprimidos pode querer a morte do prprio Filho?. Da

    pergunta por que Jesus morre? se passa a para que Jesus morre e o que h

    de bom na cruz de Jesus?. A resposta que o Novo Testamento encontra que

    71

    Cf. Ibid., p. 322. 72

    Cf. Ibid., pp. 322-323.

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  • 30

    pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 5,31; Jo 11,50-52; 2Cor 5,14-

    15; 1Tm 2,6; Jo 6,51)73.

    Segundo Sobrino, este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

    sobre o para-qu salvfico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

    ateno. Um deles o restringir salvao salvao dos pecados trazida pela

    cruz de Jesus, pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaes plurais

    e estas podem no ser mais explicitadas, por exemplo, a salvao de qualquer

    tipo de opresso interna ou externa, espiritual e fsica, pessoal e social. Outro

    ponto a distino de dois nveis da soteriologia aqui explicitada: os cristos

    acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atravs de Jesus. No primeiro

    nvel da f pode-se afirmar que na cruz h salvao. No nvel mais teolgico

    pergunta-se como que na cruz pode haver salvao.74

    O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

    Testamento para defender como na cruz pode haver salvao. Para isso os

    principais modelos soteriolgicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifcio,

    nova aliana e figura do servo sofredor. Encontramos tambm os escritos de

    Paulo que apresentam o sentido salvfico da cruz de maneira prpria. Segundo

    Sobrino esses modelos so uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

    manifestou o amor salvfico de Deus, portanto no explicam a salvao que a

    cruz enquanto tal traz. Alm disso, correm o perigo de eliminar o escndalo da

    cruz em si mesma que o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

    salvao75.

    O sacrifcio um fenmeno universal e que dificilmente se conhece uma

    religio que no tenha um ritual sacrifical. Seu objetivo estabelecer ou manter

    a comunho com a divindade atravs de uma oblao por meio da consagrao

    ou consumao da coisa oferecida76. No Antigo Testamento o sacrifcio

    estabelecido para vencer a infinita distncia que separa o ser humano de Deus

    pelo pecado da criatura. O sacrifcio tornar sagrada a oferenda do mundo da

    criatura ao ser introduzida no mundo sagrado. Ao consagrar ou consumir a

    oferenda o ser humano pensa que venceu a distncia entre ele e Deus.

    Encontramos em vrios lugares do Novo Testamento a figura e a ao de Jesus

    relacionadas ao sacrifcio a partir de uma linguagem cultual sacrifical: cordeiro

    pascal imolado (1Cor 5,7), cordeiro reconciliador (Ap 5,9), o sangue de Cristo

    que aponta para o sacrifcio da cruz (Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7; 2,13), o sangue

    73

    Cf. Ibid., pp. 323-324. 74

    Cf. Ibid., p. 324. 75

    Cf. Ibid., pp. 324-325. 76

    Cf. MCKENZIE, J. L., Sacrifcio, p. 819. In: ___., op. cit, pp. 819-824.

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  • 31

    derramado por vs, por muitos nas palavras da ltima ceia (Mc 14,24; Mt

    26,28; Lc 22,20)77.

    Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

    abolido todo sacrifcio e todo sacerdcio anterior e posterior a Cristo. O texto

    critica profundamente os sacrifcios do AT, mas mantm a terminologia do

    sacrifcio para explicar a salvao trazida pela cruz de Jesus. A crtica ao AT

    que os sacrifcios no podem superar a separao, pois no so aceitos por

    Deus. Porm, o sacrifcio de Jesus realiza a comunho porque foi aceito por

    Deus78. O sacerdcio e o sacrifcio do judasmo so contrapostos ao sacerdcio

    e ao sacrifcio de Jesus. O ato de Jesus comparado ao do sumo sacerdote no

    dia da Expiao, pois com sua paixo ele oferece o nico sacrifcio verdadeiro

    (Hb 2,17). O sangue expiatrio da nova aliana o sangue de Jesus (Hb 9,12-

    14) e uma aliana s pode ser ratificada com sangue (Hb 9,15-21) e no h

    perdo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 9,22). O

    sacrifcio expiatrio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez, j que

    totalmente eficaz (Hb 9,25-28)79. Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

    oferenda perfeita que sendo aceita por Deus pode trazer a salvao.

    A aliana outro modelo soteriolgico do NT. Encontramos a relao

    entre aliana e salvao presente no AT. A aliana era selada atravs de

    derramamento de sangue. O NT se apropria desta relao para aplic-la a

    Jesus. O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova aliana. Hb

    afirma que em Jesus ocorreu uma aliana superior do Sinai (8,6), predita em Jr

    31,31-34. Na ltima ceia os sinticos e 1Cor 11,25 afirmam que o sangue de

    Jesus o que produz uma aliana nova e definitiva entre Deus e os seres

    humanos.

    A figura do servo sofredor outro modelo explicativo da salvao que a

    cruz traz. Essa figura descrita nos quatro cnticos de Isaas (42,1-9; 49,1-6;

    50,4-9; 52,13 53,12). O ltimo cntico faz referncia direta aos sofrimentos do

    servo. No imediatamente, mas aps a morte de Jesus, a comunidade primitiva

    identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

    dos cnticos para explicar como Jesus morreu. Porm, tal identificao no

    explicou o sentido histrico da morte de Jesus.

    Encontramos ainda no NT algumas reflexes de Paulo, alm das j

    mencionadas anteriormente, que ressaltam o valor salvfico da cruz. Em Paulo a

    77

    Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 325-326. 78

    Cf. Ibid., p. 326. 79

    Cf. MCKENZIE, J. L., Sacrifcio, p. 823. In: ___., op. cit, pp. 819-824.

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  • 32

    cruz de Jesus o tema central de sua pregao. Sobrino destaca pontos que

    so de suma importncia presentes em 1Cor, 2Cor e Gl80.

    Em 1Cor destaca-se a crtica de Paulo aos cristos que estavam se

    esquivando da cruz, pois pensavam que j viviam como ressuscitados: Os

    judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria, enquanto ns pregamos

    Cristo crucificado, escndalo para judeus, loucura para os pagos, mas poder e

    sabedoria de Deus para os chamados, quer judeus, quer gregos(1Cor 1,22-24).

    Segundo Sobrino, justamente o escndalo da cruz que a torna salvfica, pois

    constitui uma autntica revelao de Deus, isto , Deus se revela na cruz e

    aceit-lo desta forma aceit-lo do jeito que Ele e do jeito que se revela, e no

    como ns o queremos ou o imaginamos81. Em 2Cor acentuado o valor salvfico

    da cruz, pois a fraqueza mxima se transformou em fora (13,4), a pobreza em

    riqueza (8,9), o egosmo em descentramento (5,15), a diviso em reconciliao

    (5,19), ou seja, o negativo em positivo82. Por ltimo, na carta aos Glatas, Paulo

    explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldio. Para Paulo a lei

    boa, pois vem de Deus. Porm, a lei diz o que para ser feito, mas no d a

    fora para faz-lo. Assim, se no fosse por Cristo, o ser humano ficaria

    condenado ao fracasso. Ao nascer sujeito lei resgatou os que estavam sob a

    lei (Gl 4,4-5), e esta libertao aconteceu na cruz, pois Cristo resgatou-nos da

    maldio da lei, fazendo-se maldio por ns (Gl 3,13)83.

    Em sntese, as principais interpretaes da cruz nas primeiras

    comunidades no explicam o porqu da morte de cruz de Jesus, como pudemos

    confirmar anteriormente. Os modelos soteriolgicos (sacrifcio, aliana, expiao

    vicria do servo, libertao da lei) so afirmaes que a cruz de Jesus

    salvfica. O NT no acentua um dolorismo ou a salvao como fruto do

    sofrimento. O que o NT destaca a vida de Jesus como vida doada com amor

    gratuito e isto revela o amor de Deus84.

    80

    Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 329-330. 81

    Cf. Ibid., p. 330. 82

    Cf. Ibid. 83

    Cf. Ibid., p. 331. 84

    Para aprofundar a reflexo sobre as interpretaes da morte de Cristo nas primitivas comunidades crists sugerimos BOFF, L., Paixo de Cristo, paixo do mundo. Petrpolis: Vozes,

    1977, pp. 89-107.

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  • 33

    1.3. As principais interpretaes da cruz na tradio teolgica

    Em Cristologia a partir da Amrica Latina, Sobrino afirma que na histria

    da Igreja e da teologia houve tambm uma tendncia de passar por cima do

    escndalo da cruz85. Aqui enumera apenas trs exemplos acerca das principais

    interpretaes da cruz na tradio teolgica. O primeiro exemplo a dificuldade

    de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns telogos desde a

    antiguidade. O segundo a interpretao clssica na Idade Mdia sobre o

    sentido salvfico da morte de Jesus. Por ltimo, uma concepo do culto como

    sacrifcio. Nos exemplos citados est intrnseca uma influncia da metafsica

    grega sobre o ser e a perfeio de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

    e que de alguma forma nos influenciam hoje tambm86.

    Em relao ao abandono de Deus na cruz de Jesus, alguns Padres da

    Igreja interpretaram o Salmo 22,2 na boca de Jesus como uma metfora. Jesus

    fala em nome da humanidade pecadora e no em seu prprio nome, portanto

    no ele que se sente abandonado pelo Pai. Para Orgenes, Cirilo de

    Alexandria e Agostinho, na pessoa de Jesus os pecadores so abandonados.

    Essa interpretao deve-se a m traduo do Salmo 22,2 que ao invs de as

    vozes do meu brado, se traduziu por as vozes de meus pecados. Jesus no

    poderia falar de si mesmo j que no era pecador, assim interpretou-se que o

    abandono de Deus no o afetou, mas aos pecadores em sua pessoa. Segundo

    Eusbio e Epifnio o Salmo 22 um dilogo entre a natureza humana e divina

    de Jesus: o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

    natureza humana no sepulcro. Assim, no o Pai que abandona propriamente

    o Filho. Tertuliano, Ambrsio e Toms de Aquino admitem que Jesus sofreu o

    abandono de Deus em sua psicologia, o que lhe causou angstia, mas no

    desespero87.

    Na Idade Mdia Anselmo de Canturia (+1109), em sua obra Cur Deus

    homo (Por que Deus se fez homem?), interpreta o sentido salvfico da morte de

    Jesus com a sua teoria da satisfao vicria. Tal teoria influenciou fortemente a

    cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88.

    A teoria da satisfao vicria fruto da tentativa de dilogo com o

    judasmo e o islamismo que acreditam em Deus uno, mas rejeitam uma

    85

    SOBRINO, J., Cristologia a partir da Amrica Latina, p. 202. 86

    Cf. Ibid., pp. 202-206. 87

    Cf. Ibid., pp. 202-203. 88

    Cf. KESSLER, H., op. cit., p. 325.

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  • 34

    redeno por meio da encarnao ou at mesmo da morte do Filho de Deus.

    Anselmo expe apenas com a razo atravs de razes necessrias porque Deus

    tinha de fazer-se humano. Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

    vida ao mundo89.

    No mbito de categorias assumidas do direito germnico, como ofensa, satisfao, dignidade do ofendido, dignidade daquele que ofende etc, afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai s pode ser aplacada pela satisfao de algum que possa reparar dignamente, em uma palavra: superar a distncia infinita entre Deus e a criatura. Este s pode ser o Filho de Deus feito homem. Pela cruz do Filho o Pai reparado e perdoa os pecados dos homens

    90.

    Eis, sinteticamente, o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfao

    vicria: Deus o Senhor de tudo o que foi criado. O no reconhecimento desse

    senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

    Deus. O pecado o roubo em relao honra de Deus. O roubo exige

    reparao, ou atravs de uma pena ou de uma reparao, assim o pecador deve

    pagar voluntariamente o que deve e se no pagar Deus obtm dele contra a

    vontade do pecador. Porm, isto impossvel por causa da destinao do ser

    humano bem-aventurana, qual o Criador se atm. Ento, para reparar

    dignamente a ofensa a Deus preciso que se pague a dvida com o mesmo

    peso de Deus, isto , com um valor infinito, mas isto impossvel ao ser humano

    que finito. S Deus mesmo pode efetuar esta satisfao, assim necessrio

    que Deus se faa ser humano. Deus se encarna e sua entrega voluntria paga a

    dvida dos pecadores91.

    A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo. Deus

    comparado ao senhor feudal, portanto no tem nada a ver com o Deus de Jesus

    Cristo. Deus assume os traos de um juiz cruel, sanguinrio e vindicativo.

    Finalizando as principais interpretaes da cruz destacadas por Sobrino

    temos a concepo do culto cristo como sacrifcio. O culto cristo que

    celebrava no incio o gape, celebrao em agradecimento da salvao,

    lembrana de Jesus presente atravs do seu Esprito no meio da comunidade,

    vai se convertendo nos fins do primeiro sculo em liturgia sacrifical. Assim a cruz

    vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifcio e o seu sentido histrico

    no foi acentuado92.

    89

    Cf. KESSLER, H., op. cit., p. 325. 90

    SOBRINO, J., op. cit., p. 203. 91

    Cf. KESSLER, H., op. cit., pp. 325-326. 92

    Cf. SOBRINO, J,. op. cit, p.204.

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  • 35

    De tudo o que se disse at agora podemos deduzir a seguinte concluso: a cruz de Jesus foi um escndalo para os primeiros cristos e por isso, consciente ou inconscientemente, foram aparecendo modelos teolgicos para desvirtu-la. O mecanismo fundamental para desvirtu-la, acreditamos, consistiu em esquecer que quem morreu na cruz o Filho de Deus e, neste sentido, em ignorar como a cruz afeta o prprio Deus. Se o Pai , realmente, o ltimo correlato da vida do cristo, na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus, nesta medida se ignora a relao da cruz de Jesus com o ltimo sentido da vida do cristo, mesmo quando verbal, asctica ou culticamente se continue recordando esta cruz

    93.

    A teologia crist foi ao longo dos sculos formulada com o auxlio do

    pensamento grego, especificamente da metafsica. A influncia deste

    pensamento na reflexo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

    sentido original. Na metafsica o modo de ser de Deus ser perfeito, portanto

    um Deus assim no supe sofrimento como modo de ser de Deus. O ideal de

    perfeio pressupe imutabilidade: o perfeito o eterno e o a-histrico, por isso

    a divindade perfeita. Seria contraditrio para o pensamento grego afirmar que

    Deus sofre, pois o sofrimento supe mutabilidade e passividade94.

    Diante das principais interpretaes da cruz na tradio teolgica que

    Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas vises que merecem ser

    sublinhadas pela influncia que exerceram na reflexo teolgica.

    Toms de Aquino (+1274), em sua Suma Teolgica, sistematiza os

    tratados teolgicos. Dentre eles a cristologia dividida em duas partes. Uma

    delas refere-se soteriologia. Neste tratado ele retoma a ideia de satisfao

    como sinnimo de sacrifcio e redeno utilizados pela Igreja antiga. Segundo

    Toms, tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvao para

    ns (Sth III q. 50 a. 6c). Porm, ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo:

    Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfao, por

    pura misericrdia (Sth III q.46 a. 2 ad 3); o caminho da redeno s pode ser

    descoberto a posteriori; Cristo assumiu a pena que nos caberia, mas ela atinge

    apenas o seu corpo (Sth III q.48 a. 8c); tanto na vida quanto na paixo o

    aspecto central da vida de Jesus o amor ativo, pessoal e a obedincia a Deus;

    o amor de Cristo o aspecto que lhe d valor satisfatrio e causa efeito salvfico;

    a satisfao ocorre pelo pecado, efetua seu perdo e liberta da sujeio

    pena95.

    A insatisfao com as formulaes soteriolgicas tradicionais e doutrinais

    da Escolstica fez nascer na Idade Mdia uma mstica onde a relao com

    93

    SOBRINO, J., op. cit, p. 205. 94

    Cf. ibid., p. 206. 95

    Cf. KESSLER, H., op. cit., pp. 329-330.

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    Jesus tornou-se cada vez mais pessoal. A figura de Cristo compassivo, que sofre

    junto com a pessoa, foi centralizada na mstica e na devoo. Nesse contexto

    assume-se a cruz de Cristo com radicalidade, como Francisco de Assis, por

    exemplo, e busca-se viver como o Cristo, assumindo as cruzes do dia a dia na

    prpria vida. Assim surgem livros e meditaes sobre a vida de Cristo e os mais

    difundidos foram Imitao de Cristo de Toms de Kempis (lido at hoje) e Vita

    Christi de Ludolfo da Saxnia96.

    A salvao continuou ponto de interrogao para muitos. A Reforma

    protestante do sculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

    buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

    existente no mundo e com a imagem de um Deus to distante que se criou.

    Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos bblicos e sem

    o uso da filosofia grega como mediao. A cruz o centro de sua cristologia.

    Diante de um mundo cheio de sofrimento humano, vivenciado pela

    coletividade, a crena em um Deus justo, bom e poderoso s poderia ser

    desconsiderada. O sofrimento humano questiona a onipotncia de Deus97.

    Devido a todo sofrimento trazido pela ganncia, pelas guerras e por tantas

    outras formas causadas pelos prprios seres humanos nos perguntamos: por

    que Deus permite tudo isso?, ou ainda, por que ele no intervm na histria?.

    A contradio da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

    tradio crist e na pregao da Igreja em relao aos sofrimentos do mundo

    contribuiu na difuso do anncio da morte de Deus98. A verdade deste anncio

    que Deus aceita ser ignorado, rechaado, negado, blasfemado, e isto pode ser

    confirmado nos relatos evanglicos onde Jesus se coloca a servio dos

    excludos daquela sociedade como os enfermos, os pobres, as mulheres, as

    crianas etc., para carregar nossas dores. Alm disso, ressalta-se todo o

    caminho de humilhao que passou at a crucificao99.

    Deus foi mantido pela religio, de certa forma, distncia de seu Filho,

    portanto tornava-se difcil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

    humano. Alguns telogos modernos tentaram pensar a f luz da cruz. Dentre

    eles destaca-se no campo protestante Jrgen Moltmann e no campo catlico,

    Hans Urs Von Balthazar. Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

    96

    Cf. KESSLER, H., op. cit., p. 331. 97

    O que geralmente compreendemos por onipotncia como atributo de Deus no condiz com aquilo que de fato . No segundo captulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temtica. 98

    A morte de Deus foi um anncio do movimento filosfico no sculo XIX diante de tanto

    sofrimento. Para uma maior compreenso do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT, J., Dios que viene al hombre. Del duelo al desvelamiento de Dios. Salamanca: Ed. Sgueme, 2007. 99

    Cf. MOINGT, J., Dios que viene al hombre. Del duelo al desvelamiento de Dios, p. 458.

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    reflexo de Moltmann100, visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

    traduzi-la para a Amrica Latina102.

    A experincia dos campos de concentrao, especificamente o de

    Auschwitz, marcou profundamente a vida de Moltmann. A pergunta sobre a

    presena de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

    presena de Deus no sofrimento do prprio Filho.

    Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

    sua reflexo teolgica: a da teologia da esperana e a do Deus crucificado. A

    segunda etapa est centrada na cruz de Jesus103. Em trs obras principais

    Moltmann desenvolve sua teologia da cruz: O Deus crucificado104, A Trindade e

    o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo, cristologia em dimenses

    messinicas106.

    Em 1972, em O Deus crucificado, tentou responder o que significa a morte

    de Cristo para o prprio Deus, como ele mesmo afirma:

    Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus: que significa a morte de Cristo para o prprio Deus? Tentei superar o antigo axioma metafsico da apatia na doutrina de Deus, para poder falar a respeito do essencial sofrimento de Deus no apenas em forma metafrica, mas diretamente. Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o critrio para toda a teologia que pretende ser crist. A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questo da

    teodiceia e refutou o tesmo abstrato como tambm o atesmo abstrato 107

    .

    100

    Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo, Alemanha. Lutou na II Guerra Mundial, foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentrao na Inglaterra. De 1945-1948 foi prisioneiro da Blgica, Esccia e Inglaterra. Esses anos de priso levaram-no a refletir sobre o sentido da vocao crist. Em 1943, Hamburgo foi destruda pela Operao Gomorra da Fora Area Britnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram. Assim, com 17 anos, viu morrer seus amigos e se perguntou: Meu Deus, onde ests? Por que estou vivo e no morto como tantos outros?. Na priso ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos bblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus. Em 1948 voltou Alemanha e foi estudar teologia. A partir de 1952, atuou como pastor da Igreja Luterana. Desde 1967, foi professor de teologia sistemtica na Universidade de Tubinga. Cf. ALMEIDA, E. F., O drama pascal na cristologia de J. Moltmann e as representaes contemporneas do sofrimento e da morte. Tese de doutorado. Puc-rio, 2002, pp. 2-5. Tambm em Cf. BINGEMER, M.C.L., O Deus desarmado. A teologia da cruz de J. Moltmann e seu impacto na teologia catlica. Estudos de Religio, v. 23, n. 36, 230-248, jan./jun. 2009. 101

    Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975, com o ttulo Significado de la cruz y resurreccin de Jess en las cristologias sistemticas de W. Pannenberg y J. Moltmann. 102

    Em O princpio misericrdia, descer da cruz os povos crucificados, pp.14-28, como vimos na introduo de nossa pesquisa, Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos. Ele sente a ne