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A TEORIA ECONOMICA E OS PAíSES SUBDESENVOLVIDOS LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA "Grande parte dos livros que se publicam nos paí- ses dosenvolvidos sôbr« os problemee dos países sub- desenvolvidos são superficiais e completamente ina- plicáveis." - GUNNAR MYRDAL Afrase de GUNNARMYRDALque transcrevemos acima diz respeito aos trabalhos dos economistas dos países indus- trializados sôbre o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. Portanto, segundo MYRDAL,a teoria do desenvolvimento, que especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, vem sendo formulada, pouco valor tem, porque é superficial e inaplicável. Sem a menor sombra de dúvida, o grande economista sueco tem razão. Entretan- to, neste artigo, nosso objetivo principal não é fazer a crítica dessa teoria do desenvolvimento. Ainda que con- traditória, imprecisa, são-sistemática, desadaptada, eiva- da de juízo de valor não confessado é ela uma esperança, um caminho para a formulação de uma ciência econô- mica efetivamente adequada aos países subdesenvolvidos. Pretendemos com êste trabalho apresentar uma crítica preliminar ao próprio cerne da teoria econômica dos países desenvolvidos - uma crítica da micro e da macroecono- mia - na medida em que também se pretende aplicá-la aos países subdesenvolvidos. E com vistas a êsse objetivo, a afirmação de MYRDALé preciosa. Se a teoria do desenvolvimento, que vem sendo formulada pelos economistas dos países desenvolvidos, é LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA - Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas.

A TEORIA ECONOMICA EOS PAíSESSUBDESENVOLVIDOS · A TEORIA ECONOMICA EOS PAíSESSUBDESENVOLVIDOS LUIZ CARLOS BRESSERPEREIRA "Grande parte dos livros que se publicam nos paí-ses dosenvolvidos

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A TEORIA ECONOMICAE OS PAíSES SUBDESENVOLVIDOS

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

"Grande parte dos livros que se publicam nos paí-ses dosenvolvidos sôbr« os problemee dos países sub-desenvolvidos são superficiais e completamente ina-plicáveis." - GUNNAR MYRDAL

A frase de GUNNARMYRDALque transcrevemos acima dizrespeito aos trabalhos dos economistas dos países indus-trializados sôbre o desenvolvimento econômico dos paísessubdesenvolvidos. Portanto, segundo MYRDAL,a teoria dodesenvolvimento, que especialmente a partir da SegundaGuerra Mundial, vem sendo formulada, pouco valor tem,porque é superficial e inaplicável. Sem a menor sombra dedúvida, o grande economista sueco tem razão. Entretan-to, neste artigo, nosso objetivo principal não é fazer acrítica dessa teoria do desenvolvimento. Ainda que con-traditória, imprecisa, são-sistemática, desadaptada, eiva-da de juízo de valor não confessado é ela uma esperança,um caminho para a formulação de uma ciência econô-mica efetivamente adequada aos países subdesenvolvidos.Pretendemos com êste trabalho apresentar uma críticapreliminar ao próprio cerne da teoria econômica dos paísesdesenvolvidos - uma crítica da micro e da macroecono-mia - na medida em que também se pretende aplicá-laaos países subdesenvolvidos.

E com vistas a êsse objetivo, a afirmação de MYRDALépreciosa. Se a teoria do desenvolvimento, que vem sendoformulada pelos economistas dos países desenvolvidos, é

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA - Professor-Adjunto do Departamento deCiências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, daFundação Getúlio Vargas.

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inaplicável, o que dizer da teoria econômica básica, damicro e da macroeconomia? Naturalmente, será ela tam-bém inaplicável por redobradas razões.

Isto que parece tão evidente face a esta rápida análise,não o é para um grande número de economistas dos paísessubdesenvolvidos. A prova do que afirmamos é o simplesexame dos currículos e programas das Escolas de Economiae de Administração de Emprêsas no Brasil. Nas boas eSC'O-las há um domínio dos programas pela análise econômicadesenvolvida, pela teoria' marginalista marshalliana e pelamacroeconomia keynesiana. Quanto às más escolas, nema êsse estágio ainda conseguiram chegar. Estão na fase daeconomia conceitual, que se compraz e limita a definições;da economia descritiva, muitas vêzes, reduzida a uma po-bre geografia econômica, e da história das doutrinas eco-nômicas. Não nos interessa aqui o caso das Escolas deEconomia e Administração de segunda categoria. Signifi-cativo é que o ensino da análise econômica desenvolvidaconstitui-se um sinal distintivo das melhores escolas dopaís.

Muito mais grave do que isto, porém, é o fato de ser a po-lítica econômica dos governos da maioria dos países sub-desenvolvidos freqüentemente ineficiente e mesmo preju-dicial aos respectivos países. Isto ocorre, geralmente, por-que êsses governos procuram aplicar a teoria econômicaortodoxa. A teoria econômica dos países capitalistas, emsuas economias subdesenvolvidas. É conhecido, por exem-plo, o imenso prejuízo que a aplicação da teoria do comér-cio internacional causou aos países subdesenvolvidos. NoBrasil, enquanto nossos governos, até o fim da PrimeiraRepública, acreditaram nessa teoria e a aplicaram, o Brasilnão teve condições de desenvolver-se industrialmente.Atualmente, em problemas como o combate à inflação, otratamento a ser dado a capitais estrangeiros, o sistemade planejamento econômico etc., geram enormes dificul-dades para os países subdesenvolvidos quando os mesmostentam aplicar de forma ortodoxa a teoria econômica dosdesenvolvidos.

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Como veremos no transcorrer dêste artigo, a ênfase quese dá ao ensino da teoria econômica dos países desenvolvi-dos, nas Universidades, e a tendência de os Governos dospaíses subdesenvolvidos aplicarem os princípios dessa teo-ria ao formularem e executarem sua política econômicanão deriva simplesmente da crença na validade da teoriapara os países subdesenvolvidos. É resultante também dofato de que não existe uma alternativa plenamente defi-nida e estruturada. Enquanto a teoria econômica dos paísesdesenvolvidos é um sistema de pensamento altamente ela-borado, a teoria econômica dos países subdesenvolvidosestá apenas dando seus primeiros passos.

Dêste fato, porém, não podemos concluir que a única solu-ção é continuar a ensinar e aplicar a teoria econômica dospaíses desenvolvidos. Pelo contrário, importa criticá-la, de-terminar os motivos que a tornam inaplicável às econo-mias dos países periféricos. É o que pretendemos fazerneste artigo, dentro da perspectiva de que uma das con-dições para o surgimento de uma teoria econômica válidapara os países subdesenvolvidos é exatamente a existênciade críticas do tipo que pretendemos realizar.

A TEORIA ECONÔMICA DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS

A teoria econômica dos países desenvolvidos a que nosestamos referindo é aquela que vem sendo formulada peloseconomistas dos países ocidentais desde os fisiocratas eADAM SMITH, nos albores da Revolução Industrial, até opresente. É a teoria econômica ou simplesmente economiacapitalista. Não obstante tôdas as divergências internas,tôdas as subescolas de que se compõe, chegou essa teoriaa um alto nível de desenvolvimento, de coerência e deunidade, de forma, por exemplo, a ser possível a publica-ção de livros, textos de manuais de economia por autoresos mais variados, que revelam uma notável semelhançaquanto aos temas abordados e o tratamento a êles dado.

Não significa isto, naturalmente, que seja a única teoriaeconômica. A ciência econômica está muito longe de haver

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atingido o nível das ciências físicas e matemáticas, que,no nível dos conceitos e leis gerais básicas, conhecemmenor divergência e as "escolas" sofrem enorme diminui-ção. Além da teoria econômica capitalista, existe a teoriaeconômica socialista (embora não se deva esquecer queessa teoria, em última análise, é um ramo da teoria econô-mica capitalista clássica) e mais recentemente vem sendoformulada uma teoria do desenvolvimento e do subdesen-volvimento econômico.Temos, portanto, no seio da ciência econômica, trêsteorias básicas - a teoria econômica capitalista, a teo-ria econômica socialista, e a teoria econômica do desen-volvimento. É indiscutível, porém, que aquela que atin-giu o mais elevado nível de elaboração teórica, de rigore precisão em seus enunciados, foi a teoria capitalis-ta. Observe-se que ao fazermos tal afirmação não estamospretendendo atribuir qualquer superioridade intrínsecaà teoria econômica capitalista. É fácil verificar, porém,que a teoria econômica socialista, depois da genial con-tribuição de MARX, passou por um longo período deestagnação, na medida em que, de um lado, os aspectospolíticos ganhavam excessiva importância, e de outro omarxismo, também por motivos políticos, sofria um pro-cesso de dogmatização. Já a teoria econômica do desenvol-vimento tem suas limitações baseadas em quatro fontes:em primeiro lugar, é uma teoria muito recente; em segun-do, ambiciona cobrir um universo econômico extremamen-te heterogêneo; em terceiro, deve descrever e prever ocomporta.mento de agentes econômicos que muito freqüen-temente não agem de forma racional; e em quarto lugar,baseia-se, sem ter ainda realizado a necessária crítica, nateoria econômica capitalista.

A teoria econômica dos países desenvolvidos capitalistasou simplesmente teoria econômica capitalista, tem duaspartes principais: a microeconomia ou teoria dos preços, ea macroeconomia.

A microeconomia estuda a determinação dos preços dosbens e dos fatôres de produção, e distribuição da renda,

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através dos mecanismos de mercado, através da análise docomportamento dos consumidores, das emprêsas e dosdemais agentes econômicos dentro do mercado. É no cam-po da microeconomia que se estudam a oferta e a procura,a determinação do preço, a teoria do consumidor com basena teoria da utilidade, os custos de produção, o equilíbrioda emprêsa na competição perfeita e nos demais tipos demercado - no monopólio, no oligopólio, e na competiçãomonopolística - a determinação dos preços dos fatôresde produção e a sua distribuição em função da produtivi-dade marginal, e, finalmente, o equilíbrio geral do sistemacapitalista. A microeconomia é fruto da elaboração da es-cola clássica, da austríaca e da neoclássica. Se quisermos,todavia, isolar um nome, será provàvelmente o do econo-mista inglês, de fins do século passado e comêço dêsteséculo, ALFRED MARSHALL.

Já a macroeconomia, embora muitos autores para elatenham contribuído, é hoje, fundamentalmente, a econo-mia keynesiana, a teoria econômica formulada durante agrande depressão dos anos trinta por JOHN MYNARD

KEYNES. Como a microeconomia, a macroeconomia é umateoria estática, preocupada fundamentalmente com o equi-líbrio. Seu objeto principal é o estudo dos componentes _bàsicamente, o consumo e o investimento - do produtonacional e os seus relacionamentos. Os fatôres de produçãoe a própria renda nacional são estàticamente consideradoscomo dados, e o problema é alcançar o equilíbrio atravésdo pleno emprêgo e à plena capacidade. Entre os princi-pais problemas estudados pela macroeconomia estão afunção do consumo e a função do investimento, a propen-pensão a consumir e a propenção marginal a consumir,a poupança, a eficiência marginal do capital, a preferênciapara a liquidez, a taxa de juro, o multiplicador dos investi-mentos, e os instrumentos de política econômica: a polí-tica monetária, a política fiscal e a política de investimen-tos governamentais.

Em resumo, a microeconomia:

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• explica e orienta o comportamento dos agentes econô-micos dentro do mercado; e

• demonstra a racionalidade do sistema capitalista,desde que mantidas as condições da concorrênciaperfeita.

A macroeconomia:

• limita o significado e a extensão dessa racionalidade;

• descreve o sistema econômico em têrmos agregados(produto nacional, investimento e consumo glo-bais); e

• fornece elementos de política econômica destinadosa superar as limitações da racionalidade do sistemaataravés da intervenção do govêrno.

Tanto a micro quanto a macroeconomia, não obstante tôdaa sua aspiração à objetividade e ao desligamento de umsistema normativo de valôres, na verdade estão pejadasde conteúdo ideológico. Uma ideologia é um sistema devalôres politicamente orientado. A teoria econômica dospaíses desenvolvidos, como aliás não poderia deixar deser, está inteiramente permeada pela ideologia liberal e ca-pitalista, que dominou o mundo ocidental a partir da emer-gência da burguesia como classe dominante. Na verdade,a micro e a macroeconomia fazem parte integrante dessaideologia, para a qual Se constituem suporte teórico einstrumento de ação. Êste fato foi visto com tôda a suaclareza por MARX, que o denunciou através de tôda a suaobra. Na Crítica da Economia Política, em O Capital e noAnti-Dubring, MARX e ENGELS examinaram êste proble-ma de forma extensa, em função de sua teoria do materia-lismo histórico. Hoje, a consciência de que não existe umaciência econômica pura, desligada de juízos de valor, e,portanto, de sistemas ideológicos, é um fato corriqueiro.Não só a teoria econômica capitalista, mas também a teo-ria econômica socialista são vítimas desta circunstância.O próprio fato de existir uma teoria econômica capitalista

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e outra socialista já denuncia o fundamento ideológico deambas. Não insistiremos sôbre o problema, que aliás foibrilhantemente estudado por pelo menos dois grandes eco-nomistas não marxistas - JOANROBINSON,em FilosofiaEconômica, e GUNNARMYRDAL,em Aspectos Políticos daTeoria Econômice.' Limitar-nos-emos a citar, dêste último,o seguinte trecho: "A tese geral de que a ciência econô-mica, para ser científica, devia abster-se de buscar estabe-lecer normas políticas, foi aceita pelos principais econo-mistas por mais ou menos cem anos e é hoje um lugar-comum. Mas a plena significação dêsse postulado aparen-temente não é percebida de um modo geral, e as doutrinaspolíticas ainda estão conosco. Foram originàriamente for-muladas por homens que acreditavam em sua objetivida-de e que tentaram prová-las cientificamente. Alguns eco-nomistas, hoje, são igualmente explícitos no seu emprêgode métodos normativos. Mais freqüentemente, contudo, asnormas são suprimidas e aparecem apenas, implicitamentenas recomendações políticas específicas apresentadascomo resultado de análises econômicas"," Em outras pala-vras, já que não é possível separar a teoria econômica dasnormas valorativas, importa torná-las explícitas.

UMA CIÊNCIA SOCIAL DESENVOLVIDA

Não obstante seu caráter político, ligado ao interêsse degrupos e classes sociais, a teoria econômica dos países de-senvolvidos capitalistas, através de seus dois ramos prin-cipais, a micro e a macroeconomia,somados à teoria damoeda e do crédito e do comércio internacional, constitui-se provàvelmente na ciência social que alcançou maiornível de desenvolvimento e formulação teórica. Sem dú-vida uma afirmação dêsse tipo é muito discutível. Muitopoderia ser dito em favor da sociologia ou da psicologia.Mas, mesmo sem entrarmos pelo caminho infrutífero das

1) Ambos os livros estão publicados em português pela Zahar Editôres, Riode Janeiro, GB.

2) GUNNAR MYRDAL - Aspectos Políticos da Teoria Econômica; Rio deJaneiro: Zahl3T Editôres, 1962, pág. 34.

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comparações entre ciências, acreditamos, que existem argu-mentos ponderáveis em favor do que afirmamos.

A teoria econômica dos países desenvolvidos, a microeco-nomia, a macroeconomia, a teoria da moeda e do créditoe a teoria do comércio internacional atingiu um alto nívelde sistematização, de forma que cada uma em separado,e tôdas em conjunto formam um todo relativamente har-mônico e coerente. A grande maioria das relações de causae efeito, das leis de caráter descritivo e das leis de compor-tamento puderam ser reduzidas a modelos precisos, quepodem ser expressos matemàticamente o que não querdizer que possam ser provados.

A partir de um dado estágio no desenvolvimento de ciên-cia econômica clássica, vale dizer capitalista, formou-seuma base que permitiu o acúmulo de conhecimentos, desdeque se continuasse a teorizar ao longo dos mesmos pres-supostos. E isto foi o que realmente aconteceu, pois nãose criou uma mentalidade crítica que viesse questionar osdados iniciais. A única variante foi a negação sistemáticaque resultou num outro sistema, ou seja, a economia socia-lista. Outra evidência do desenvolvimento da ciência eco-nômica foi a formulação quantitativa da teoria. Por tôdasessas razões, a capacidade de previsão, e conseqüentemen-te a operacionalidade dessa teoria tornou-se bastantegrande nos países desenvolvidos.

Hoje é indiscutível que a teoria econômica é um instru-mento precioso de intervenção social para os países desen-volvidos capitalistas. Muitos dêles ainda não se aprovei-tam de tôdas as suas virtualidades, através do planeja-mento econômico, como o faz a França; mesmo assim, empaíses como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Alema-nha, a ciência econômica fornece a todos os seus agentes e,particularmente, ao govêrno elementos de extraordináriavalia para a interpretação do que acontece e para a inter-venção no processo econômico.

Por que a teoria econômica dos países desenvolvidos con-seguiu êsse caráter sistemático e integrado, esta precisão

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que a torna redutível a modelos matemáticos, esta unida-de de pontos de vista sôbre uma série de assuntos básicos,êste alto nível de quantificação e esta operacionalidade,características que nenhuma outra ciência social conseguiu,e que tornam a teoria econômica tão fascinante para todos,inclusive para os economistas dos países subdesenvolvidos?Há três razões para que isto aconteça:

• Parte de uma concepção extremamente simplificada danatureza humana - o bomo economicus.

• Limita-se a uma análise estática do sistema econômico,em que tôda a ênfase é colocada nos modelos de equilíbrio.

• Simplifica e esquematiza de maneira drástica o mun-do real, ignorando a estrutura social (como já ignoraraas estruturas psicológicas individuais ao postular o homoeconomicus) .

Reduz a estrutura econômica às condições de uma econo-mia de mercado integrada, na qual: 1) mesmo quando nãohá concorrência perfeita, há outras formas de mercado(monopólio, oligopólio, concorrência monopolística) e nãoa pura e simples ausência de mercado; 2) um grande núme-ro de compradores, agindo em têrmos racionais, comprame vendem artigos razoàvelmente homogêneos e padroni-zados; 3) há um mercado financeiro atuante, da mesmaforma que o mercado de fatôres de produção é uma rea-lidade, permitida inclusive pela perfeita mobilidade dosmesmos fatôres, tudo isso levando à existência de um preçoúnico no mercado; 4) o produto nacional é suficientemen-te grande e a sua distribuição em têrmos de renda sufi-cientemente equitativa de forma a permitir que a maioriada população participe do mercado; 5) há uma relativaabundância de fatôres de produção, de forma que o pro-blema é simplesmente o de promover uma distribuiçãoótima dêsses fatôres entre os diversos usos; e, finalmente,6) o papel econômico do govêrno é secundário.

As três características básicas - o homo economicus, aênfase no equilíbrio estático, e a simplificação do mundo

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real, que foi reduzido ao mundo econômico e em seguidaidentificado com uma economia de mercado integrada, -permitiram o alto desenvolvimento e operacionalidade dateoria econômica capitalista. Na medida em que se sim-plifiquem as variáveis em jôgo e se transformem tôdas asvariáveis independentes menos uma em constantes, é pos-sível desenvolver modelos bem mais perfeitos. Foi o quefizeram os economistas dos países desenvolvidos. E desdeque as generalizações, simplificações e limitações impos-tas à realidade das economias dos países industrializadosfôssem válidas como provaram ser em suas linhas mes-tras, êsse método tornava-se perfeitamente legítimo.

[NAPLICAvEL AOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

Pergunta-se, agora: será essa teoria também aplicável aospaíses subdesenvolvidos? Na introdução a êste trabalhojá optamos pela negativa. Esta resposta, todavia, só PO-derá ser considerada definitiva depois de verificarmos seaquelas características básicas da teoria econômica capi-talista que acabamos de examinar são válidas tambémpara os países subdesenvolvidos.

Poderíamos, sem dúvida, invocar argumentos do tipomegister dixit. Já ENGELSafirmava que "a Economia Po-lítica não pode ser a mesma para todos os países e paratôdas as épocas históricas"," Ora, os países subdesenvolvi-dos são muito diferentes dos desenvolvidos e atravessamuma fase histórica muito diversa. Mais recentemente,RAULPREBISCHdenuncia a pretendida universalidade daeconomia capitalista, afirmando: "uma das falhas maisconspícuas de que padece a teoria econômica geral, con-templada do ponto de vista da periferia (os países' sub-desenvolvidos, por exemplo) é seu falso sentido de univer-salidade"." Com isso, sem dúvida, PREBISH não queria

3) FREDERIC ENGELS - Anti-Duhring, citado em V. B. SINGH, Da EconomiaPolítica; Rio de Janeiro: Zahar Editôres, 1966, pág. 15.

4) RAÚL PREBISCH - "El desarrollo econômico de la América Latina y al-gunos de sus principales problemas", EI Trimestre Econômico, julho-setembro de 1949, pág. 358 e 359.

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negar todo e qualquer sentido universal à teoria econô-mica. Há sem dúvida uma base comum. Muito do traba-lho dos economistas de todos os países, após dois séculosde grande desenvolvimento da ciência econômica, trouxecontribuições decisivas ao conhecimento humano quenenhum economista de um país subdesenvolvido tem odireito de ignorar. Mas o problema está em conhecer oponto onde termina o caráter universal da ciência econô-mica e começam os aspectos particulares, definidos pelosaspectos regionais e pelos sistemas de valor. Conformediz CELSOFURTADO,"não acreditamos em ciência eco-nômica pura, isto é, independente de um conjunto de prin-cípios de convivência social preestabelecidos, de julgamen-tos de valor. Alguns dêsses princípios podem tender à uni-versalidade, como a norma de que 'eibem-estar social deveprevalecer sôbre o interêsse individual. Contudo, no está-gio em que nos encontramos de grandes disparidades degraus de desenvolvimento econômico e integração social- para não falar dos antagonismos que prevalecem comrespeito aos ideais da convivência social - seria total-mente errôneo postular para o economista uma equívocaidéia de objetividade, emprestada às ciências físicas"."

Finalmente, para não estendermos indefinidamente estascitações, a respeito do problema da validade da teoriaeconômica dos países desenvolvidos quando aplicada aospaíses subdesenvolvidos, transcreveremos a opinião de umfamoso economista especializado no comércio internacio-nal, jACOBVINER, cujas posições são marcadas por umestrito conservantismo. Afirma êle: "O crescimento daimportância política e da articulação dos chamados paísessubdesenvolvidos tornou inaceitável, ao menos para êles,uma economia cuja tônica, seleção de problemas e formade análise se produzem somente em têrmos estáticos eunicamente, ou em sua maior parte, à luz das condiçõese das necessidades dos países mais avançados industrial-

5) CELSO FURTADO - A Pré-Revolução Bresileira; Rio de Janeiro: Edi-tôra Fundo de Cultura, 1962, pág. 81.

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mente, socialmente mais estáveis e econômicamente maisprósperos"."

Poderíamos continuar a trazer mais testemunhos em favorde nossa tese. Ao invés disto, porém, tentaremos sair dasgeneralidades e examinar, uma a uma, as característicasda teoria econômica capitalista que apresentamos acima.Algumas dessas características são na verdade os pressu-postos da teoria econômica. É o caso do homo economicus,e da economia de mercado integrada e o seu caráter está-tico, que se explica em função dos objetivos e necessida-des do próprio sistema econômico.

o HOMO ECONOMICUS E A TEORIA ECONÔMICA

o homo economicus foi uma solução brilhante encontra-da pelos economistas clássicos para resolver o problemado fator humano na teoria econômica. Tôda ciência social,a partir do momento em que pretende desenvolver umpadrão, um esquema abstrato e 'simplificado do funciona-mento da sociedade, necessita, previamente de um modê-10 do comportamento humano, no qual as motivações dossêres humanos estejam definidas e sejam consideradasconstantes. Em outras palavras, não é possível descrevere prever o comportamento social, sem se possuir uma con-cepção anterior da natureza humana, e de como ela reageaos diversos estímulos do ambiente. Nesses têrmos, a ciên-cia econômica, na medida em que é antes de mais nadauma ciência social - a ciência que estuda o comporta-mento humano em função da produção e distribuição debens e serviços, e da distribuição da renda assim gerada- tinha também necessidade de uma concepção básicada natureza humana. Desta evidência para escolha do.homo economicus como protótipo da ciência econômicafoi um passo.

O homo economicus é um produto do racionalismo, quea partir do Século XVI, dominou o mundo ocidental. Na

6) JACOB VINER - Imernetionel Trade and Economia Development; Oxford:The Clerence Press, 1953, pág. 7.

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grande fraqueza desta concepção da natureza humanaestá, ao mesmo tempo, sua grande fôrça. O homo econo-micus é um modêlo extraordinàriamente simplificado, epor isso indefensável do ponto de vista estritamente cien-tífico, como descrição válida do que seja o homem e decomo êle se comporta. É o ser absolutamente racional, queage sempre de forma deliberada, visando a um únicoobjetivo, a maximização de seus ganhos econômicos. So-ma-se a isto o fato de que, para atingir seu objetivo, êleé onisciente e conhece tôdas as oportunidades que lhe sãooferecidas pelo mercado, de forma que pode sempre esco-lher a alternativa que mais o favorece. Evidentemente oshomens não são assim, nem sempre são racionais e deli-berados, muitas vêzes, preferem outros objetivos que osimples ganho material, e em hipótese alguma são onis-cientes. Nesses têrmos, a tentativa que realizou a EscolaClássica de Administração, sob a liderança de TAYLOR eFAY'OL, de adotar o modêlo do homo economicus, não foibem sucedida. No campo da Economia, porém, é precisoadmitir que a adoção desta concepção da natureza huma-na foi extremamente feliz. Com ela pretendia-se descre-ver o comportamento médio ou o comportamento típicode um indivíduo produzindo, vendendo e comprando nomercado. Ora, o comportamento dos homens no merca-do, na produção e distribuição de bens, tende natural-mente a ser racional, visando a lucros de maneira delibe-rada. Além disso, na medida em que a onisciência do agen-te econômico limita-se ao conhecimento dos preços e qua-lidades dos produtos que são oferecidos, ela não se tornatão absurda. Finalmente, é preciso não esquecer que êsseagente econômico - produtor ou consumidor - agindono mercado, é um produto da civilização ocidental e bur-guesa, da qual assimilou os valôres fundamentais, entre osquais estão o comportamento racional e a maximizaçãodos ganhos econômicos, sejam lucros, salários, juros, oualuguéis. E, se a isto tudo adicionarmos o fato de que ateoria econômica, mesmo a microeconomia, vale-se da leidos grandes números, ou seja, da lei segundo a qual, desdeque se esteja descrevendo o comportamento de um gran-

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de número de sêres, os extremos, as exceções tendem acompensar-se, concluiremos que, pelo menos para umaprimeira abordagem e uma descrição mais ampla do sis-tema econômico, a concepção do homo economicus é umpressuposto válido.

O problema, todavia, não é apenas de o homo economicusser um pressuposto válido para a teoria econômica. Porsua simplicidade, foi possível construir tôda a teoriaeconômica com grande precisão e rigor. Se trabalhás-semos com uma concepção de natureza humana fluída,instável, complexa, contraditória, seria totalmente impos-sível construir uma teoria econômica harmônica e sig-nificativa. Ficaríamos às voltas com um amontoado deteorias parciais e contraditórias, que limitam decisivamen-te a operacionalidade dessas ciências como é o caso daSociologia ou da Administração, que naturalmente nãopodem se contentar, nem para início de pesquisa e ela-boração teórica, com o homo economicus.

Mas, será válido o homo economicus também para a teo-ria econômica dos países subdesenvolvidos? A resposta aesta pergunta dependerá, fundamentalmente, de duas con-dições: a hegemonia de uma civilização ocidental utilita-rista e racionalista e da existência de um mercado inte-grado. Sôbre a segunda condição falaremos logo a seguir,pois é provàvelmente o pressuposto mais importante dateoria econômica capitalista. Em relação à primeira con-dição, o que podemos afirmar é que o processo de desen-volvimento econômico, na medida em que se identificaem grande parte com industrialização, tem se definido'como um processo de introdução não só das técnicas deprodução e distribuição mas também dos valôres e ins-tituições ocidentais. Desta forma, quanto mais subdesen-volvido um país, menos se poderá falar em prevalência devalôres ocidentais. Os países da África Negra, por exem-plo, sofreram uma influência muito menor da civilizaçãoocidental do que as da América Latina. Além disso, quan-to maior fôr a solidez e consistência dos valôres e institui-ções tradicionais, mais difícil será a penetração da civili-

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zação ocidental. É o caso dos países asiáticos, que somamà mais profunda pobreza, valôres e instituições seculares.Do ponto de vista dos valôres prevalentes na sociedade,portanto, temos de admitir que o homo economicus estálonge de adaptar-se aos países subdesenvolvidos. Mesmonos países latino-americanos há sérias restrições ao em-prêgo do pressuposto do homo economicus de forma in-discriminada. As necessidades de ganho pessoal, de cres-cente bem estar e do poder e prestígio derivados da ri-queza, são sem dúvida, em suas linhas gerais, comuns atôda a humanidade. Poderemos excetuar apenas algumastribos primitivas. Mas a intensidade dessas necessidadese o seu conceito variam de forma extraordinária. Para al-gumas civilizações, como a ocidental, o bem estar mate-rial e a riqueza são objetivos da maior importância, en-quanto em outras civilizações, altamente influenciadas pordoutrinas ascéticas e contemplativas, nas quais as opor-tunidades de êxito econômico eram muito pequenas, comoé o caso da civilização hindu, a importância dêsses obje-tivos era muito menor. O conceito de bem estar tambémvaria. Especialmente, é preciso perguntar, qual o grau delazer considerado ideal para uma determinada sociedade.E não há dúvida que a maioria dos povos subdesenvolvi-dos, em parte, por causa também do reduzido número deoportunidades econômicas, dá importância muito maiorao lazer do que os países desenvolvidos.

A EXISTÊNCIA DE UM MERCADO INTEGRADO

O segundo pressuposto fundamental da teoria econômicados países desenvolvidos capitalistas é a existência de ummercado integrado. Sem êsse mercado, em que os preçosse determinam ao sabor da lei da oferta e da procura, emque produtores e consumidores trocam incessantementebens e serviços, não é possível pensar-se em teoria econô-mica capitalista. Já vimos que o próprio conceito do homoeconomicus só se sustenta na medida em que houver ummercado integrado. Mas existirá êsse mercado nos paísessubdesenvolvidos? Ao invés de respondermos a esta per-gunta de forma global, vejamos cada uma das principais

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características dêsse mercado e se são elas existentes nospaíses subdesenvolvidos.

Todos Participam do Mercado

Para que haja mercado integrado é preciso, antes de maisnada, que haja um mercado, e que todos ou pelo menosa grande maioria dos agentes econômicos participe dêle,produzindo para trocar seus produtos nesse mercado. Ora,é fácil verifícar que nos países subdesenvolvidos apenasuma minoria participa do mercado de bens industriais,exceto, naturalmente, tecidos baratos e mais. alguns pro-dutos industriais de primeira necessidade. No Brasil, porexemplo, a grande maioria das emprêsas industriais deartigos de consumo, quando tem que definir seu mercado,define-o como sendo de aproximadamente um quarto dapopulação do país, mercado êsse concentrado na região sul,particularmente no Estado de São Paulo, e nas capitais dosprincipais estados.

No setor agrícola, ou temos grandes latifúndios auto-sufi-cientes, que produzem pràticamente tudo de que necessi-tam os que nêles trabalham, além de um excedente comer-cializável que permite o lucro do proprietário, de formaque apenas êle participa do mercado, ficando todos 081

demais excluídos, ou então dominam os minifúndios, nosquais os camponeses procuram a auto-suficiência para evi-tar a exploração dos intermediários. Além disso, no casodos minifúndios, o camponês não tem grandes estímulosa participar do mercado em virtude da deficiência dostransportes e comunicações e das variações dos preços dosprodutos agrícolas. A êstes fatos, muitos sociólogos, prin-cipalmente aquêles especializados em mudança social,somam a ignorância e o espírito tradicional dos campo-neses, que os leva a não participar do mercado.

Um Sistema de Preços Único

Para que haja um mercado integrado, é fundamental queo sistema de preços seja único. Os preços das mercadorias,dos salários, dos juros, da terra, desde que a qualidade

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do bem ou serviço em pauta seja idêntica, só variarão emfunção dos custos de transporte e armazenamento. Ora,evidentemente não é êste o caso dos países subdesenvol-vidos. A dualidade de suas economias já foi discutida demaneira exaustiva pelos economistas da teoria do desen-volvimento. Há sempre um setor tradicional, constituídoda agricultura de consumo interno e de artesanato local,e um setor moderno constituído das indústrias e da agri-cultura capitalista de exportação. Os salários, nesses doissetores, para serviços exatamente iguais, são muito dife-rentes, sempre com vantagem para os salários do setormoderno, que assim desfruta de uma situação de oferta detrabalho irrestrita. Além disso, as diferenças de salário,entre os salários rurais tradicionais de trabalhadores nãoespecializados, e o salário de trabalhadores urbanos semi-especializados e especializados, em regra, não têm rela-ção com a produtividade marginal dos mesmos. Comoconseqüência disso, provocam-se também distorções nospreços das mercadorias, especialmente nos gêneros ali-mentícios. Os preços no setor tradicional são muito me-nores do que no setor urbano, não podendo essa diferençaexplicar-se pelos custos normais de comercialização. Emesmo dentro de cada um dos setores, há freqüentemen-te diferenças de preço notáveis, determinadas pela faltade um bom sistema de comunicações.

Mobilidade dos Fatôres de Produção

Esta característica está intimamente ligada à anterior.Por mobilidade dos fatôres de produção entende-se a ca-pacidade que os mesmos têm de se deslocar ràpidamentede região ou de setor de produção, desde que, em outraregião ou setor, os lucros, os salários, os juros estejammais altos. O único fator de produção que por definiçãonão é móvel é a terra. Os demais estão sempre se deslo-cando, à procura das melhores oportunidades de ganho.E assim se obtém a identidade de preços acima mencio-nada. Ora, a inexistência de um sistema único de preçosjá implica na inexistência de uma mobilidade satisfatóriados fatôres de produção, que permita remunerá-las se-

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gundo sua produtividade marginal. Os obstáculos a essamobilidade são de suas ordens. De um lado, temos obstá-culos institucionais. O trabalhador é, muitas vêzes, apega-do ao local em que nasceu, aos fortes laços que o ligamà sua família. Sem dúvida, o grande movimento de migra-ção interna ocorrido no Brasil, do Nordeste para o Sulé um argumento em oposição ao que estamos afirmando.Mas é preciso lembrar, nesse caso, dois problemas: de umlado, as diferenças de salário eram de tal ordem, que eradifícil aos laços tradicionais segurar o migrante; de outrolado, o Brasil está longe de poder ser considerado um paíssubdesenvolvido típico, já que uma região importante deseu território, com centro em São Paulo, atingiu um nívelconsiderável de produção e diversificação industrial.

Também em relação ao capitalista, surgem obstáculos àmobilidade. O industrial, geralmente o pequeno industrial,dos países subdesenvolvidos, tem uma visão familiar epersonalizada de sua emprêsa, baseada no fato de quea mesma ainda não atingiu um suficiente grau de racio-nalização e auto-suficiência administrativa que a tornerelativamente independente de seu proprietário. Essavisão, condicionada pelo tamanho reduzido da emprêsa,é em geral correta. Impede, todavia, a mobilidade do ca-pital. Quando surgem oportunidades em outra região, oumesmo em outro setor industrial, o empresário sente-setolhido pela falta de autonomia de sua própria emprêsa,que exige dêle um tempo integral, e assim deixa de fazeros investimentos que as condições econômicas sugerem.

Mercado Financeiro Atuante

Esta é uma condição especialmente importante para amacroeconomia. Para a microeconomia o sistema mone-tário e creditício é, sem dúvida, também um pressupostosubjacente. Mas no caso da macroeconomia, só é possíveltorná-la operacional desde que:

• haja um mercado financeiro atuante e VIVO;

R.A.E.;24 TEORIÀ ECONÓMICÀ 33• as taxas de juro sejam determinadas fundamentalmen-te pelos mecanismos de mercado embora com a interven-ção da política financeira do govêrno;

• haja um amplo mercado de ações e títulos de crédito,de forma a permitir aos investidores uma ampla gama deescolha.

Nestes têrmos, os investimentos serão realizados em fun-ção da eficiência marginal do capital e da taxa de juros.Ora, nos países subdesenvolvidos, sabemos muito bem queexistem extensas áreas, nos setores tradicionais da econo-mia, nos quais sequer entrou uma economia monetária.Estão essas regiões ainda em plena economia de subsis-tência, de auto-consumo somado a alguma troca em es-pécie. O sistema monetário, portanto, está longe de estarintegrado. O caso do crédito é muito mais grave. Além deser muito restrito, dadas as limitações das instituições fi-nanceiras e o pouco comércio já existente, é ainda emgrande parte dominado por bancos comerciais e de desen-volvimento oficiais, cujas taxas de juro não são em abso-luto determinadas pelo mercado. E quanto ao mercadode ações e de outros títulos, êste é pràticamente inexis-tente de forma que os investidores têm à sua disposiçãoum número muito reduzido de oportunidades de investi-mentos além do seu próprio negócio.

Papel Subsidiário do Govêrno

Êste é o último pressuposto da teoria econômica capitalis-ta que nos parece importante assinalar. A microeconomiaé fundamentalmente a teoria econômica do liberalismo,do laissez-faire, e a macroeconomia keynesiana, apesar dejá preconizar a intervenção do govêrno, reserva a êste umpapel secundário. O contrôle da economia será feito bàsi-camente pelas fôrças do mercado. Sendo êste integrado,com um grande número de produtores e compradores con-correndo, o contrôle da economia será automático, e aogovêrno caberá unicamente o papel de espectador que,em determinados momentos, realiza pequenas interven-ções para corrigir algumas anomalias.

34 TEORIA ECONÔMICA R.A.E.j24

Ora, nos países subdesenvolvidos, exatamente pela inexis-tência de um mercado integrado, como foi visto anterior-mente, cabe ao govêrno um papel no domínio econômicomuito mais importante. Em todos os países subdesenvol-vidos em que houve um mínimo de esfôrço no sentido dodesenvolvimento, o govêrno assumiu imediatamente umpapel preponderante. Sua intervenção na economia nãoé só através da política fiscal, creditícia ou financeira. Êleintervém no próprio sistema de concessão de crédito, atra-vés dos bancos oficiais, e, principalmente, torna-se respon-sável por investimentos nos setores principais da econo-mia. No Brasil, por exemplo, nos últimos anos, mais de60% do investimento anual tem sido feito pelo Govêrno.Êste, em todos os países subdesenvolvidos, intervém emsetores como a energia, os transportes, o petróleo, a mi-neração, a siderurgia, etc., porque é êle o único agenteeconômico que tem condições para realizar tais investi-mentos. O resultado disto é que a economia de mercadodos países subdesenvolvidos fica por mais essa razão com-prometida, na medida em que o govêrno não age segun-do critérios capitalistas de maximização dos lucros, alémde ter monopólio da maioria das atividades a que sededica.

OBJETIVOS DIVERSOS

Não bastasse o fato de que os dois pressupostos funda-mentais da análise econômica capitalista - a concepçãoda natureza humana em têrmos de homo economicus ea existência de um mercado integrado - não são válidostotal ou parcialmente nos países subdesenvolvidos, temosainda a considerar que o próprio objetivo da teoria econô-mica capitalista e tôda a forma de abordagem dos pro-blemas decorrente dêsse objetivo conflitam-se com osobjetivos de uma teoria econômica para os países subde-senvolvidos.

O objetivo fundamental de tôda a análise econômica érigorosamente o equilíbrio, seja a curto prazo, ou a longoprazo. Sem dúvida, em cada caso o conceito de equilíbrio

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pode ser diverso, todavia, conquanto não conflitante, ésempre um conceito estático. Para a análise microeconô-mica o equilíbrio identifica-se com a maximização doslucros da emprêsa, ou a maximização da utilidade do con-sumidor. Para a macroeconomia, o equilíbrio ocorre quan-do há o pleno emprêgo. O desenvolvimento econômico,para a microeconomia, é uma decorrência do equilíbriona concorrência perfeita, e os conhecedores da teoria dospreços sabem a que nível de abstração, de alienação mes-mo da realidade, é preciso chegar, para atingir-se o equi-líbrio da concorrência perfeita. Para a macroeconomia, odesenvolvimento será função do pleno emprêgo. De acôr-do com a teoria keynesiana, em face às características par-ticulares da função. consumo, há sempre na economia dospaíses uma tendência à depressão, ao desemprêgo, queterá de ser contrabalançada pela política econômica dogovêrno.

Portanto, o desenvolvimento é tratado em têrmos implí-citos,quer na micro quer na macroeconomia. A análise éestática, e o objetivo é o equilíbrio. O pressuposto é o deque os fatôres de produção são abundantes e que todo oproblema econômico é o de bem aplicar êsses fatôres. Aaplicação dos recursos, the resource allocation, transfor-ma-se no problema fundamental de tôda teoria econômica.

Ora, a teoria econômica de que necessitam os países sub-desenvolvidos evidentemente não pode partir de tal pres-suposto, e muito menos pode ter semelhante objetivo. Ateoria econômica do desenvolvimento parte exatamentedo pressuposto, ou melhor da verificação oposta - a deque os recursos econômicos e os fatôres de produção sãoescassos.

E, verdadeiramente, tal ocorre nos países subdesenvolvi-dos por razões:

• naturais - terras áridas, subsolos pobres, dificulda-des naturais de transportes, climas inadequados, etc.;• econômicas - poupança reduzida e conseqüente baixacapacidade de investimento, relações comerciais internacio-

e

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nais desvantajosas, sistema educacional inadequado e insu-ficiente, mão-de-obra desqualificada, pesquisa de recursosnaturais incompleta, distribuição excessivamente desequi-librada da terra e da renda, poucas oportunidades de inves-timentos lucrativos, etc.;

• institucionais - colonialísmo, estrutura social rígida,dificultando a mobilidade social, sistemas de privilégios tra-dicionais ou legais, existência de uma aristocracia de senho-res de terra desinteressada no desenvolvimento, domíniodo país por uma tecnocracia alienada da realidade prática;existência de crenças que dificultam o desenvolvimento,como as vacas sagradas da Índia, baixo índice de espíritoempresarial, etc.

Por outro lado, o objetivo fundamental da teoria econô-mica do desenvolvimento é, como seu próprio nome o in-dica, não equilíbrio mas promoção do desenvolvimentoeconômico. Resulta daí que a sua principal preocupaçãonão será a de aplicar recursos abundantes de forma ótima,mas, criar previamente condições para que surjam recur-sos econômicos. Muitos recursos poderão existir em esta-do latente. Modificações de ordem institucional, o uso deuma nova tecnologia adaptada às condições existentes,podem fazer com que êsses recursos se transformem emfatôres de produção efetivos. Em seguida, surgirá semdúvida, a necessidade de se preocupar com a aplicaçãoótima dos recursos, mas, dada a inexistência de um mer-cado integrado e de um homo economicus, os princípiosque orientarão a aplicação dos recursos serão necessària-mente diversos.

CONCLUSÃO

Pela evidência dêsses fatos, somos levados a concluir quea teoria econômica dos países desenvolvidos não se aplicaaos países subdesenvolvidos. E, mais do que isso, levadosa concluir que as condições existentes nos países desen-volvidos e subdesenvolvidos são de tal forma diferentes,que não bastam adaptações da teoria econômica para que

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a mesma se torne válida para os países subdesenvolvidos.Ao invés, temos necessidade de uma teoria econômica dosubdesenvolvimento e do desenvolvimento que seja au-tônoma, sistemática e integrada.

Teríamos assim, de um lado, a Teoria Econômica dosPaíses Desenvolvidos Capitalistas e a Teoria Econômi-ca dos Países Desenvolvidos Socialistas, e de outro, a Teo-ria Econômica dos Países Subdesenvolvidos. Esta teoriaeconômica também pode subdividir-se de acôrdo com o ca-ráter socialista ou capitalista das economias subdesenvol-vidas. Mas imaginamos, aqui, não terem as distinções tantaimportância quanto no caso da Teoria Econômica dosPaíses Desenvolvidos, porque, provàvelmente, uma solu-ção capitalista para os países desenvolvidos teria de im-plicar em uma ampla dose de planejamento econômico econtrôle direto do Estado sôbre a economia, quanto umasolução de caráter socialista seria levada a deixar umaampla margem para a iniciativa particular na agricultura,no comércio interno, na pequena indústria e no setor deserviços pessoais.

Estará essa Teoria Econômica dos Países Subdesenvol-vidos sendo formulada? Sem dúvida, grandes esforçostêm sido feitos nesse sentido, especialmente a partirdo fim da Segunda Guerra Mundial. Em verdade, o desen-volvimento econômico tornou-se, aproximadamente a par-tir dessa época, não só o grande problema político de tôdaa humanidade, à medida em que a grande maioria subde-senvolvida da população mundial despertava para a lutapelo desenvolvimento, bem como o grande tema de indaga-ção dos economistas contemporâneos. Ainda não há, porém,uma Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos, e suaconsolidação ainda parece remota. Conforme observam comgrande clareza os dois economistas chilenos, ANIBALPINTOe OSVALDOSUNKEL,{tateoria do desenvolvimento - comomostra claramente uma vista de olhos a qualquer livrodidático sôbre o tema - não consiste senão numa estranhamistura de generalizações econômicas e proposiçõespseudo-sociológicas, uma mescla de elementos de análise

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de curto prazo e de enforques dinâmicos e estáticos, devárias doutrinas e escolas de pensamento, etc..Muito poucofoi dito, na realidade, para reformular sistemàticamentea teoria econômica sôbre a base da mudança dos pressu-postos e à consideração de novos elementos que a reali-dade exige dos países pouco desenvolvidos"."

Não pretendemos discutir agora, em profundidade, as ra-zões de não existir ainda um Teoria Econômica dos PaísesSubdesenvolvidos. Há muito pouco, começou-se a pensarsôbre o assunto. A maioria dos economistas que vêm es-tudando o problema vivem nos países desenvolvidos, oque leva a ter, geralmente, uma visão alienada de realidadedos países subdesenvolvidos. Além disso, tanto êles quantoos economistas dos países subdesenvolvidos, partiram sem-pre do pressuposto de que o necessário era adaptar a teoriaeconômica aos países subdesenvolvidos, quando na verdade,como vimos através dêste trabalho, o que se impõe é umareformulação da teoria econômica. Por outro lado, esta"realidade" dos países subdesenvolvidos à qual nos refe-rimos acima é extremamente ilusória e indefinida. As di-ferenças entre os países subdesenvolvidos, não só em têrmosde graus de subdesenvolvimento, mas também em têrmosda própria tipologia do subdesenvolvimento, são enormes.Nesses têrmos, não há dúvida de que a tarefa de refor-mular a teoria econômica, visando a construir-se uma Te-oria Econômica dos Países Subdesenvolvidos, será umatarefa extremamente difícil.

Embora difícil, é todavia, uma tarefa imprescindível. Nestetrabalho procuramos mostrar essa necessidade, através dademonstração de que a Teoria Econômica dos Países De-senvolvidos não se aplica aos países subdesenvolvidos. Porum lado, a inadequação é o grande argumento a favor daformulação de uma teoria econômica para os países sub-desenvolvidos. Por outro, é ela o ponto de partida neces-sário e fundamental para que essa reformulação possa ter

7) ANIBAL PIN'I'.O e OSVALDOSUNKEL - "Economistas Latino-Americanosnos Países Desenvolvidos", Revista Civilização Bresileira, n.? 8, julho de1966, pág. 119.

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êxito. Enquanto se pensar que para a construção de umateoria do desenvolvimento dever-se-á simplesmente adap-tar à análise econômica existente, nada de útil poderá serfeito.Sem dúvida, nos países subdesenvolvidos deveremos con-tinuar a estudar a teoria econômica dos países desenvol-vidos. O estudo da micro e da macroeconomia continuambásicos para a formação de qualquer economia de um paíssubdesenvolvido. Ninguém poderá pretender ser um eco-nomista ou afirmar conhecer economia, sem ter uma visãobastante clara da análise econômica dos países desenvol-vidos. Será perda de tempo, porém, preocupar-se com osrefinamentos dessa teoria, os quais, embora possam cons-tituir-se em um fascinante exercício mental, pouco contri-buirão para o objetivo fundamental, que é o da formulaçãode uma teoria econômica para os países subdesenvolvidos.

Quando estávamos concluindo êste artigo, chegou-nos àsmãos o último número da Revista Brasileira de Economia,no qual WERNER BAER escreveu um artigo sôbre o mesmoproblema que estamos analisando." Nesse trabalho o autorclassificou com grande inteligência os economistas brasi-leiros em dois tipos, revisionistas e tradicionalistas, e depoisadotou a solução cômoda de optar por uma posição inter-mediária. Examinando o problema, já amplamente deba-tido, da aplicabilidade da Teoria do ComércioInternacionalaos países subdesenvolvidos, concluiu que ao invés de re-jeitar ou aderir inteiramente a tal teoria, o que se deveriafazer é ampliá-la, dinamizá-la. Estamos de pleno acôrdo.Apenas acreditamos que para dinamizá-la e ampliá-la se-ria realmente necessário reformular essa teoria. Não nosdetemos no problema da Teoria do Comércio Internacio-nal neste artigo porque nos parece que sua inaplicabilidadeaos países subdesenvolvidos ficou de tal forma compro-vada, que seria inútil insistir sôbre o assunto. Preferimosexaminar com mais cuidado as próprias bases da teoria

8) WERNER BAER _ "On the Relevance of Traditional Analytical Tools inStudying Brazilian Economic problems", Revista Brasileira de Economia,junho-setembro de 1966, págs. 7 a 16.

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econômica, a micro e a macroeconomia. Por isto, dentroda análise do Prof. BAER, enquadramo-nos entre os revisio-nistas, embora obviamente não de acôrdo com uma sériede posições que aos mesmos foram atribuídas, e que real-mente não se sustentam do ponto de vista econômico. Naverdade, não acreditamos que possa haver economistasneutros em. relação ao problema. É possível apenas sermais ou menos radical em suas posições ortodoxas ou re-visionistas.

Nossa posição é de um revisionismo sem extremos. Dentrodêsse prisma cabe aos economistas dos países subdesen-volvidos uma série de tarefas altamente necessárias:

• É preciso denunciar a inaplicabilidade da teoria econô-mica. Isto só poderá ser feito, porém, depois de um cuidado-so estudo da mesma.

• Estudar e tentar aplicar os modelos já existentes, quevêm sendo construídos pela teoria do desenvolvimento,ainda que os mesmos não tenham a mesma fascinante pre-cisão da teoria ortodoxa.

• Desenvolver a pesquisa de campo, bem como aperfei-çoar os processos de levantamentos estatísticos nos paísessubdesenvolvidos, e com base nos dados assim levantados,usar da imaginação - uma qualidade essencial para qual-quer economista - para contribuir no esfôrço de reformu-lação sistemática da teoria econômica, tendo em vista ascaracterísticas e necessidades .específicas dos países sub-desenvolvidos.

Nessa reformulação, o que houver de universal na teoriaeconômica deverá sem dúvida ser mantido. Mas todo osistema e cada um dos seus aspectos particulares deverápassar por uma análise crítica completa.