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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA • GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MURILO GARCIA DE MATOS AMARAL A TEORIA PICTÓRICA DA PROPOSIÇÃO NO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS DE LUDWIG WITTGENSTEIN Salvador 2011

A Teoria Pictórica da proposição no Tractatus Logico

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA • GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MURILO GARCIA DE MATOS AMARAL

A TEORIA PICTÓRICA DA PROPOSIÇÃO NO TRACTATUS

LOGICO-PHILOSOPHICUS DE LUDWIG WITTGENSTEIN

Salvador

2011

2

Resumo

O Tractatus logico-philosophicus apresenta a teoria pictórica como uma teoria

sobre as condições lógicas-essenciais de possibilidade de toda e qualquer representação.

Ou seja, esta teoria oferece os aspectos lógicos que uma representação deve satisfazer

para constituir-se efetivamente. Isto permite que se façam considerações lógicas sobre

os limites do que pode ser representado através dos sinais linguísticos, considerações

estas que consistem no mais destacado propósito do Tractatus.

Na teoria pictórica, Wittgenstein se propõe a mostrar que toda representação é

essencialmente uma figuração lógica; e uma vez que ele concebia a proposição como a

representação de um fato, logo ela também deveria ser uma figuração lógica. A teoria

pictórica da proposição é, portanto, a afirmação de que a proposição é uma figuração

lógica. Contudo, ela não é auto-evidente ou intuitiva. Assim, Wittgenstein empenha-se

não apenas em explicar a noção de figuração lógica e em mostrar que ela consiste na

essência da representação (Capítulo 1), mas também em mostrar que, enquanto

representação de um fato, a proposição é mesmo uma figuração lógica (Capítulo 2).

3

Sumário

Agradecimentos

04

Introdução

05

Capítulo 1 — A TEORIA PICTÓRICA

1.1 Figuração e forma de afiguração

10

1.2 A relação afiguradora e o sinal simples

14

1.3 Propriedades internas e propriedades externas

16

1.4 Espaço lógico e negação

17

1.5 O método de projeção

19

Capítulo 2 — A TEORIA PICTÓRICA DA PROPOSIÇÃO

2.1 Considerações iniciais sobre a natureza da proposição

22

2.2 As proposições elementares e as proposições moleculares

23

2.3 Tautologias e Contradições

27

2.4 A forma geral da proposição e os limites da linguagem

28

Considerações finais 30

Bibliografia 31

4

Agradecimentos

Os bons desta monografia, eu os atribuo à feliz orientação do professor e amigo

João Carlos Salles. Quanto às inconsistências e aos eventuais erros, certamente não

foram por falta de assistência; pois além da sempre presente orientação, não foram

poucas as críticas e sugestões que recebi ao apresentar os meus textos preliminares ao

Grupo de Estudos e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e Gramática. Assim, agradeço

oportunamente a todos os colegas e amigos deste prezado grupo. Em especial, agradeço

a Thiago Dória, André Nascimento e Leonardo Bernardes pelo cuidado e paciência com

que trataram a minha pesquisa e sobretudo pelos entusiasmados debates. Deixo aqui

registrada a promessa de proceder dessa mesma forma com os futuros novos membros

do grupo. Agradeço imensamente a Wagner Teles e, mais uma vez, a André Nascimento

por estes aceitarem compor a minha banca de avaliação e trazerem contribuições sem as

quais o meu trabalho assemelhar-se-ia a um edifício sem vigas.

Não posso deixar de exprimir a minha gratidão pelo empenho que os meus pais

tiveram em me proporcionar boas condições de estudo. Certamente, todo o meu trabalho

acadêmico teria um resultado bem inferior sem este apoio.

Por fim, agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia por me

conceder uma bolsa de iniciação científica para a pesquisa A teoria pictórica no Tractatus

de Wittgenstein, que então resultou nesta monografia de graduação.

5

Introdução

O objetivo desta monografia é apresentar a teoria pictórica da proposição no

contexto do Tractatus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein. A introdução a

seguir situa a teoria na obra e mostra o seu papel diante das pretensões de Wittgenstein,

além de trazer algumas considerações sobre a forma de se ler a palavra “pictórica”.

A pretensão do Tractatus logico-philosophicus de traçar um limite para o pensar

– tal como está anunciada no prefácio – não identifica-se com uma investigação sobre a

competência dos instrumentos cognitivos através das quais nós temos acesso a realidade

ou com um inventário das faculdades da razão. Ludwig Wittgenstein não reservou a esta

pretensão um itinerário epistemológico. A sua reflexão filosófica situa-se, na verdade,

em um plano mais abstrato, e promete somente considerar a estrutura lógica-essencial

do pensamento. Uma investigação exclusivamente lógica dos limites do pensamento,

todavia, apresenta uma dificuldade inerente à sua própria incumbência, pois “a fim de

traçar um limite para o pensar, deveríamos poder pensar os dois lados desse limite

(deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado)”1. Este obstáculo

inflige moderações ao Tractatus, e Wittgenstein se vê obrigado a admitir que a estrutura

lógica-essencial do pensamento apenas poderia ser determinada a partir da expressão

dos pensamentos, ou seja, a partir da linguagem – e não no pensamento ele mesmo.

Quando Wittgenstein escreveu o Tractatus, ele concebia a linguagem como uma

maneira de representar o mundo. A linguagem, assim, era entendida como a totalidade

das possíveis proposições aptas a representar fatos do mundo2, correta ou falsamente.

De acordo com isso, uma interjeição, por exemplo, não pertenceria à concepção de

linguagem, pois ela não representa nenhum fato do mundo – ela não é passível de

verdade ou falsidade. Ora, uma interjeição como “Ai!” não diz algo sobre o mundo de

tal sorte a ser verdadeira ou falsa. Ou seja, esta interjeição não é uma representação no

sentido que interessa ao Tractatus. Já a sentença “O gato está em cima do telhado”

parece representar um fato do mundo, pois ela é claramente passível de verdade ou

falsidade. Esta sentença monta uma situação para teste3, e a experiência ou não do fato

1 Tractatus logico-philosophicus, Prefácio.

2 Tractatus logico-philosophicus, 4.001 3 Tractatus logico-philosophicus, 4.031

6

representado por ela há de decidir sobre o seu valor de verdade. Tem-se aqui uma visão

mais aproximada do que Wittgenstein entendia por linguagem no período em que ele

escreveu o Tractatus. Na multidão de sinais escritos e sonoros que compõem o nosso

repertório linguístico, somente aqueles que são representações – verdadeiras ou falsas –

de fatos do mundo são, efetivamente, a linguagem a qual o Tractatus se reporta.

Uma vez que a linguagem era concebida, no essencial, como uma maneira de

representar os fatos do mundo, Wittgenstein adentrou em uma investigação sobre as

condições lógicas de possibilidade de uma representação. Assim, esperava-se que tais

condições, uma vez esclarecidas, determinariam o que pode realmente ser representado

na linguagem e determinariam, dessa maneira, os limites do uso significativo dos sinais

linguísticos. Fora desse limite, os sinais seriam como que arbitrariamente concatenados,

assumindo – em última instância – o caráter de absurdo, ou ainda, de um contra-senso

que nada quer dizer, talvez no mesmo nível de um balbucio. Nas fronteiras desse limite,

a saber, situam-se as tautologias e contradições, que embora não sejam bipolares e não

representem fatos do mundo no sentido que interessa ao Tractatus, são constituídas por

concatenações de sinais legítimas (não arbitrárias). A partir disso, esperava-se também

que os limites do pensamento viessem a calhar; pois coincidiria que o pensamento é a

proposição com sentido4. A proposição logicamente articulada é o próprio pensamento,

haja vista que não é possível se pensar nada ilogicamente5. Se há uma articulação lógica

de elementos, esta pode ser pensada; e se determinados elementos não se articulam

logicamente, eles não podem ser pensados.

O Tractatus, portanto, busca esclarecer as relações necessárias entre pensamento,

linguagem e mundo. Alguém poderia, em uma situação curiosa, não fazer idéia do que

está falando ou propositalmente falar algo de forma aleatória para perturbar o ouvinte;

ou seja, esta pessoa desconhece ou ignora completamente o significado dos sinais que

está a pronunciar. O que ela está a pensar e o que está a enunciar não apresentam uma

relação necessária. Casos como este, embora muitas vezes infelizes, são possíveis; mas

não são de nenhum interesse para o Tractatus. Enquanto tratado de lógica e filosofia, o

Tractatus apenas interessa-se pelo que é necessário, porquanto na lógica, nada é casual6.

Dessa maneira, com a premissa de que o pensamento, a linguagem e o mundo partilham

4 Tractatus logico-philosophicus, 4.

5 Tractatus logico-philosophicus, 3.03.

6 Tractatus logico-philosophicus, 2.012.

7

uma mesma estrutura lógica – ou um isomorfismo necessário – Wittgenstein detêm-se

sobre este aspecto e apresenta a sua teoria da proposição como Bild dos fatos do mundo,

que é a teoria pictórica da proposição. Esta teoria traria à tona as condições lógicas

essenciais das conexões necessárias entre o sinal proposicional e o modo como nós

projetamos o pensamento sobre ele para representar objetivamente um fato do mundo.

As conexões necessárias são entendidas pelo Tractatus apenas como necessidade

lógica. Esta não habita os fatos do mundo ou a natureza das coisas, mas se constitui de

maneira puramente formal e, portanto, ela não demanda a descrição de uma condição

humana psicológica que justifique a recepção de sua objetividade. A lógica seria, dessa

maneira, uma disciplina à priori, que comporta necessidade, e que é puramente formal,

sendo um excelente recurso para a investigação das relações também necessárias entre o

pensamento, a linguagem e o mundo.

A teoria da proposição como Bild dos fatos recebe diferentes denominações na

bibliografia secundária sobre o Tractatus em língua portuguesa. Vê-se mais comumente

teoria pictórica da proposição7, teoria da figuração

8 e teoria figurativa da proposição

9.

Nesta monografia, ela será mencionada como teoria pictórica da proposição, mas não

sem que antes sejam feitas algumas ressalvas. O cuidado que Arley Ramos Moreno

apresenta em seu ensaio Os labirintos da linguagem10

é notável: “O termo utilizado por

Wittgenstein para referir-se à proposição como imagem é Bild; seu emprego é, assim,

metafórico e procura evocar a relação de representação ponto a ponto”11

. Aqui, a

palavra Bild faz lembrar o conceito matemático de imagem, que diz respeito ao conjunto

de elementos que – em uma função sobrejetora, por exemplo – se relacionam, ponto a

ponto, com os elementos do domínio. MORENO ainda adverte que a palavra Bild não

pode ser enfática quanto à ideia empírica de imagem fotográfica ou de imagem pictórica

(embora a tradução seja legítima em determinados contextos), pois “A pertinência da

metáfora reside, especificamente, na ideia de que há uma articulação lógica entre os

elementos da proposição e que tal articulação corresponde, ponto a ponto, com aquela

do fato representado”12

.

7 SANTOS, 2008. MARGUTTI, 1998.

8 CUTTER, 1993.

9 MACHADO, 2007.

10 MORENO, 2006, p.16.

11 MORENO, 2006, p.16.

12 MORENO, 2006, p.16.

8

Além disso, convém entender a noção de Bild em um contexto geral da tradição

filosófica alemã. Se for correto o que consta em Wittgenstein on Philosophy of Logic

and Mathematics13

, a noção de Bild na tradição alemã, de fato, deve muito à

matemática, bem como aos modelos de escalas ou maquetes na engenharia; mas o ponto

realmente decisivo para o seu aparecimento no Tractatus foi o contato de Wittgenstein

com a física de Hertz. A imagem – ou modelo – em Hertz significa algo como um

esquema lógico-conceitual capaz de representar o mundo. Uma imagem, assim, poderia

ser mais fiel, ou menos fiel, segundo a sua eficiência em descrever e prever com

precisão os fenômenos físicos. Nenhuma imagem, para Hertz, pode ser entendida como

um erro, ou uma representação equivocada. Na verdade, uma imagem não supera outra

porque é perfeita e nos dá a natureza do mundo como ela realmente é, enquanto a outra

imagem falha neste objetivo, sendo, portanto, errada. As diferentes imagens se dão em

graus de acerto – umas acertam mais, outras acertam menos, mas todas elas são imagens

do mundo. Talvez baseado nesta concepção Wittgenstein tenha dito no prefácio que a

verdade dos pensamentos comunicados pelo Tractatus – embora seja intocável – esteja

longe de alcançar o alvo. Enfim, com a noção de imagem de Hertz, a natureza mesma

do mundo deixa de ser o objeto das investigações da física e, a partir disso, o interesse

do físico volta-se apenas para a construção de modelos lógicos do mundo. O resultado

desta atitude é a derrocada da metafísica, pois as perguntas desta disciplina mostram-se

irrelevantes ou sem sentido quando a natureza mesma do mundo é preterida.

Esta proposta de Hertz acompanha claramente o espírito do Tractatus, bem como

as suas consequências. A única consideração que Wittgenstein faz acerca da natureza do

mundo é que ele deve possuir uma estrutura lógica, haja vista que os fatos são passíveis

de representação. Assim, a ontologia do Tractatus, que abre a obra já no primeiro grupo

de aforismos, é, pois, por muitas vezes dita uma ontologia esvaziada. Wittgenstein trata

dos aspectos lógicos que o mundo deve ter a fim de que possa ser representado, mas não

fala do mundo ele mesmo nem da natureza das coisas que lhe constitui. Além do mais, a

filosofia, para Wittgesntein, deixaria de ser uma disciplina que trata das verdades sobre

13

The notion of Bild has a long philosophical history, but in German tradition it is connected with the

general nature of symbolism, transparency to thought of a geometrical diagram, and with the notion of

education or self-development (Bildung). Wittgenstein’s distinctive uses of this notion were simulated, in

part, by his observation of the use of scale models in enginnering, but he was also especially taken with

an idea he found in Hertz’s Principles of Mechanics. FLOYD, Juliet. Wittgenstein on Philosophy of Logic

and Mathematics , em The Oxford Handbook of Philosophy of Mathematics and Logic, p. 79-80.

9

o mundo – tal como as ciências naturais – e passaria a ser vista como uma atividade de

clarificação dos pensamentos, o que enfraquece a proposta de uma disciplina metafísica,

assim como também aspirava Hertz. O interessante é que todas essas considerações são

apoiadas na teoria pictórica da proposição, razão pela qual alguns comentadores têm se

referido a esta teoria como a espinha dorsal do Tractatus.

Bem, nesta introdução, quis sobretudo frisar um cuidado que se deve ter com a

denominação teoria pictórica da proposição ao mostrar brevemente que a palavra Bild

foi colhida no contexto da matemática e da física de Hertz. Esta expressão, pois, tem um

sentido muito peculiar, e se distancia de uma representação pictórica propriamente dita,

que diz respeito a um retrato ou pintura que busca imitar a forma física de um objeto

material. A escolha da palavra pictórica, portanto, apenas se justifica a título de

conveniência, uma vez que ela é bastante adotada pelos comentadores de Wittgenstein e

também por diversos comunicadores em colóquios que tenho frequentado.

A teoria pictórica da proposição é, na verdade, a especificação de uma teoria que

diz respeito a toda espécie de representação, que é a teoria pictórica. Esta apresenta-se

completamente dada entre os aforismos 2.1 e 2.225 e fornece as condições lógicas-

essenciais que toda e qualquer representação precisa satisfazer para ser efetivamente

representação, sendo, portanto, uma imagem – ou figuração – que liga ponto a ponto os

seus elementos aos elementos do que é representado. Contudo, ambas tratam-se de uma

mesma teoria. A especificação da teoria pictórica da proposição faz-se presente apenas

pela seguinte razão: que o sinal proposicional seja um fato, isto é velado pela forma

habitual de expressão escrita ou impressa14

.

Dessa maneira, duas etapas compõem aqui a explicação da teoria pictórica da

proposição. Primeiramente, são apresentadas as condições lógicas essenciais de todo e

qualquer tipo de representação, sendo esta não-necessariamente linguística (Capítulo 1).

Depois, enfim, está explicado como o sinal proposicional (ou seja, a proposição em seu

aspecto empírico) é mesmo uma figuração lógica do mundo, uma articulação lógica de

sinais que representa um fato do mundo (Capítulo 2).

14

Tractatus logico-philosophicus, 3.143

10

CAPÍTULO 1

A teoria pictórica

1.1 Figuração e forma de afiguração

A teoria pictórica nos dá as condições essenciais de representação da realidade.

Ou seja, ela apresenta quais traços essenciais uma representação deve possuir para que

seja mesmo capaz de representar a realidade. A sua proposta é que toda representação

da realidade é, no essencial, uma figuração lógica. A representação de um espaço físico

por uma maquete, p. ex., é uma figuração espacial; mas é, antes disso, uma figuração

lógica. Toda figuração é também uma figuração lógica. (No entanto, nem toda figuração

é uma figuração espacial.)15

. O sinal proposicional, é claro, não é uma figuração

espacial, mas é uma figuração lógica. Segundo Wittgenstein, fica muito clara a essência

do sinal proposicional quando o concebemos composto não de sinais escritos, mas de

objetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros). A posição relativa dessas coisas

exprime, nesse caso, o sentido da proposição16

. Vejamos, dessa maneira, um exemplo

de figuração espacial que mostra o que é uma figuração lógica e ajuda a compreender as

demais noções que compõem a teoria pictórica.

Sejam a, b e c, três objetos sobre uma mesma reta em um plano de tal sorte que

a encontra-se à esquerda de b, que por sua vez está à esquerda de c. (Ora, obviamente,

sabe-se aqui que b está entre a e c). Uma representação por sinais desta disposição dos

objetos poderia ser “a – b – c”17

. Assim, o sinal “a” seria nome do objeto a, o sinal “b”

seria um nome do sinal b e o sinal “c” seria um nome do objeto c. Entende-se que os

nomes aqui são simples uma vez que eles não são dotados de partes que também

cumpririam a função de simbolizar. Faz-se prudente aqui que seja esclarecido como

Wittgenstein se refere ao símbolo no Tractatus. O sinal, seja ele simples ou complexo, é

uma expressão empírica do símbolo. O sinal simples é um símbolo na medida em que

nomeia um objeto. O sinal complexo, por sua vez, é um símbolo na medida em que

15

Tractatus logico-philosophicus, 2.182. 16

Tractatus logico-philosophicus, 3.1431. 17

Os objetos a, b e c serão doravante representados pelas letras em itálico; os seus repectivos nomes “a”,

“b” e “c” acompanham aspas e não se apresentam em itálico.

11

representa uma combinação de objetos. Portanto, pode-se dizer tanto do simples quanto

do complexo que eles são símbolos. Se os nomes são simples, então quando se diz que

não há partes em sua composição que também cumprem a função de simbolizar,

obviamente se quer dizer que não há partes em sua composição que nomeiam objetos ou

representam uma combinação de objetos.

A representação “a – b – c” é uma combinação de sinais simples – ou nomes –

que mostra como os objetos estão efetivamente relacionados e, portanto, é verdadeira,

ou ainda, diz-se que é o caso que “a – b – c”. Todavia, se os objetos não estivessem

dispostos conforme aparecem nesta combinação de sinais, ela seria falsa, ou ainda, diz-

se que não seria o caso que “a – b – c”. A representação por sinais, dessa maneira, pode

ser verdadeira ou falsa; e que os seus elementos estejam uns para os outros de uma

determinada maneira representa que as coisas assim estão umas para as outras18

. Ora, há

diversas maneiras dos três objetos estarem dispostos espacialmente. No Tractatus, o

conjunto das possibilidades de combinações entre os objetos é o espaço de manobra da

figuração. Veem-se, abaixo, as maneiras possíveis dos três objetos estarem dispostos

espacialmente de acordo com a relação que está em pauta (a saber, a disposição espacial

dos objetos), ou seja, o espaço de manobra da figuração espacial:

(i) a encontra-se à esquerda de b, e b está à esquerda de c;

(ii) a encontra-se à esquerda de c, e c está à esquerda de b;

(iii) b encontra-se à esquerda de a, e a está à esquerda de c;

(iv) b encontra-se à esquerda de c, e c está à esquerda de a;

(v) c encontra-se à esquerda de a, e a está à esquerda de b;

(vi) c encontra-se à esquerda de b, e b está à esquerda de a.

Como foi estabelecido de antemão que a encontra-se à esquerda de b e que b por

sua vez está à esquerda de c, tem-se que a possibilidade (i) é um fato; pois um fato se

define por ser a existência de estados de coisas19

. Neste ponto, é curioso notar que

Wittgenstein nunca utiliza a expressão “fatos possíveis” (embora ela seja perfeitamente

compreensível); ele utiliza, ao invés disso, “estados de coisas possíveis”20

. Este cuidado

é apenas um exemplo da exímia estrutura lógica do Tractatus, que tenta a todo custo

18

Tractatus logico-philosophicus, 2.15. 19

O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas. Tractatus logico-philosophicus, 2. 20

Fatos são sempre definidos como existentes. Wittgenstein nunca fala de fatos possíveis. Entretanto, fala

de estados de coisas possíveis e também de estados de coisas existentes. (MACHADO, 2007, p. 47).

12

evitar contradições internas à própria obra. Um fato é, portanto, a definição de estados

de coisas existentes. Outro ponto notável é que a sutil distinção entre fato e estados de

coisas se desenvolve ainda nas primeiras páginas do Tractatus, sem nenhuma razão

aparente, pois era satisfatório manter apenas a expressão “estado de coisas existente”;

porém, mais tarde, Wittgenstein afirma que o sinal proposicional é um fato. Se ele

dissesse simplesmente que o sinal proposicional é um estado de coisas existente (e não

introduzisse a noção de fato), cada palavra do sinal proposicional deveria ser entendida

invariavelmente como um sinal simples. Ora, isto poderia ocorrer, mas não é de maneira

alguma um ponto necessário. Assim, a introdução da expressão “fato” se faz útil porque

ela também pode ser entendida como uma combinação de estado de coisas21

e então ela

não precisa coincidir necessariamente com um estado de coisas. Logo, torna-se possível

afirmar que o sinal proposicional é um fato – e não um estado de coisas existente – sem

originar um problema que obrigaria cada palavra do sinal proposicional a ser tomada

enquanto elemento simples22

.

Bem, a possibilidade (i), então, é um fato; esta possibilidade ocorre efetivamente

no mundo (embora todas as outras também pudessem ocorrer); esta possibilidade existe.

A representação por sinais dada (“a – b – c”) é verdadeira para a possibilidade (i) e é

falsa para todas as demais possibilidades. Ela representa uma situação possível no

espaço lógico23

. Ora, a representação por sinais “a – b – c” também admite outras

disposições entre os seus sinais simples; e isto, aliás, segundo o Tractatus, é uma

condição necessária para que ela possa mesmo representar o fato que a encontra-se à

esquerda de b e que b por sua vez está à esquerda de c.

Nota-se que as possibilidades combinatórias dos elementos da representação por

sinais são idênticas às possibilidades combinatórias dos objetos do fato representado.

Isto, aliás, é a própria condição de legitimidade da representação. Ambas as partes, a

representação por sinais e o fato, possuem a mesma forma. A figuração, aliás, pode

afigurar toda realidade cuja forma ela tenha24

. O que a figuração deve ter em comum

com a realidade para poder afigurá-la à sua maneira – correta ou falsamente – é a sua

forma de afiguração25

. No caso deste exemplo, a forma de afiguração é espacial. Mas o

21

Isto se traduz na utilização do plural “estados de coisas”, quando o fato é definido no aforismo 2. 22

MACHADO, 2007, p. 47. 23

Tractatus logico-philosophicus, 2.202. 24

Tractatus logico-philosophicus, 2.171. 25

Tractatus logico-philosophicus, 2.17.

13

que toda figuração, qualquer que seja a sua forma, deve ter em comum com a realidade

para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é,

a forma da realidade26

. A figuração não precisa ser espacial para figurar uma relação

espacial, pois é suficiente – além de necessário, é claro – que ela possua a mesma forma

lógica que a relação espacial. Assim, se se quer figurar uma relação espacial com sinais

sonoros, basta que os sinais sonoros e os objetos dispostos espacialmente tenham as

mesmas possibilidades combinatórias, garantindo, dessa maneira, o isomorfismo entre

as estruturas, que é condição de possibilidade da figuração.

Se a forma lógica do sinal complexo “a – b – c” não fosse idêntica à forma

lógica do fato a ser afigurado, se não houvesse isomorfismo entre figuração e afigurado,

não haveria como o sinal complexo efetivamente afigurar este fato. Portanto, ele não

seria um símbolo, ou melhor, não seria um símbolo deste fato em especial – ele não

seria capaz de representar o fato, correta ou falsamente. Isto ocorreria porque certas

possibilidades combinatórias dos elementos do sinal “a – b – c” estariam fadadas à

insignificância, pois jamais encontrariam os seus estados de coisas correspondentes no

espaço de possibilidades combinatórias entre os objetos do fato. Portanto, algumas

combinações de sinais não teriam condições de verdade, mas apenas de falsidade.

Todavia, lembremos que a figuração sempre representa uma situação possível no espaço

lógico27

. Ou seja, uma figuração deve ter sempre a possibilidade de ser verdadeira ou

falsa. A figuração concorda ou não com a realidade; é correta ou incorreta, verdadeira

ou falsa28

. Vê-se, a seguir, o espaço de manobra determinado pela forma do sinal

complexo dado, “a – b – c”:

(i) “a – b – c”;

(ii) “a – c – b”;

(iii) “b – a – c”;

(iv) “b – c – a”;

(v) “c – a – b”;

(vi) “c – b – a”.

A figuração, portanto, é uma ligação de elementos simples, uma estrutura, que

representa outra estrutura, correta ou falsamente. A figuração consiste em estarem seus

26

Tractatus logico-philosophicus, 2.18. 27

Tractatus logico-philosophicus, 2.202. 28

Tractatus logico-philosophicus, 2.21.

14

elementos uns para os outros de uma determinada maneira29

. Se a estrutura representada

pela figuração – ou seja, o afigurado – apresenta os seus elementos uns para os outros

de uma determinada maneira que corresponde ao modo como estão ligados os

elementos da figuração, então a figuração é verdadeira. No caso contrário, se a estrutura

representada pela figuração apresenta os seus elementos uns para os outros de uma

determinada maneira que não corresponde ao modo como estão ligados os elementos da

figuração, então a figuração é falsa. A figuração, pois, pode ser verdadeira ou falsa, o

que vai depender do modo como os seus elementos estão combinados e do modo como

estão combinados os elementos do afigurado. Ademais, faz-se necessário ressaltar que

na figuração e no afigurado deve haver algo de idêntico, a fim de que um possa ser, de

modo geral, uma figuração do outro30

. O que é idêntico à figuração e ao afigurado,

como foi apresentado a pouco, é a forma lógica de afiguração.

1.2 A relação afiguradora e o sinal simples

Um ponto importante é a relação afiguradora, que é a correspondência, ponto a

ponto, de cada elemento da figuração a cada elemento do afigurado. Ou seja, a relação

afiguradora consiste na coordenação entre os elementos da figuração e as coisas31

. Essas

coordenações são como que as antenas dos elementos da figuração, com as quais ela

toca a realidade32

. Seria bastante natural pensar que as coordenações são estabelecidas

previamente à figuração. Por exemplo, quando foi dado o exemplo acima com o sinal

complexo “a – b – c”, ficou subtendido que a disposição espacial dos sinais

representava uma disposição possível dos objetos; ademais, ficou subtendido que “a”

correspondia ao objeto a, que “b” correspondia ao objeto b e que “c” correspondia ao

objeto c. Todavia, as coordenações só são estabelecidas no contexto da figuração. O

nome “a” deve ser capaz de ocupar os mesmos lugares no espaço de possibilidades

combinatórias que o objeto a; ou seja, ambos devem possuir a mesma forma lógica.

Sem esta condição, a relação afiguradora não seria possível. Portanto, se um nome

designasse um objeto fora do contexto de uma figuração, ele não necessariamente

29

Tractatus logico-philosophicus, 2.14. 30

Tractatus logico-philosophicus, 2.161. 31

Tractatus logico-philosophicus, 2.1514. 32

Tractatus logico-philosophicus, 2.1515.

15

possuiria a mesma forma lógica que o objeto e isto comprometeria a integridade

figuração; pois isto viabilizaria que alguma combinação de sinais possa não ter condição

de verdade. O nome, portanto, deve ter a mesma forma lógica que o objeto. Assim, diz-

se que à figuração pertence também a relação afiguradora, que a faz figuração33

.

Faz-se saber que a coisa, o objeto e o nome são simples. Wittgenstein usa a

noção de objeto para referir-se às coisas de estados de coisas já figurados. Quanto aos

nomes, estes são os sinais simples empregados em uma proposição34

e que, é claro,

nomeiam os objetos. O que é simples opõe-se ao que é complexo, ou seja, a os estados

de coisas ou ainda, aos fatos. No Tractatus, o simples é postulado enquanto condição do

caráter determinado do sentido. Se não houvessem os elementos simples, toda figuração

seria composta de partes complexas que também demandariam uma articulação de suas

partes para cumprir a função de simbolizar; e isto implicaria numa cadeia de figurações

intermináveis, de tal sorte que o sentido de uma figuração não poderia ser determinado.

Logo, os elementos simples devem ser postulados, haja vista que muitas proposições

possuem sentido determinado. Ou seja, o postulado da possibilidade dos sinais simples

é o postulado do caráter determinado do sentido35

.

A relação afiguradora pressupõe que um, e apenas um nome, coordena-se com

um objeto determinado. Não há dois nomes que possam referir-se a um mesmo objeto,

nem dois objetos que possam ser nomeados por dois nomes distintos. Se este é mesmo

um traço natural do sinal simples, o problema de saber se os nomes “a” e “b” são

mesmo nomes de dois objetos distintos ou se nomeiam o mesmo objetos perde o seu

sentido; pois “a” e “b” – segundo a teoria pictórica – são necessariamente dois nomes

de dois objetos distintos, haja vista que é um traço do sinal simples que ele nomeie

apenas um objeto. Assim, uma proposição tal como “a=b” trata-se apenas de um mero

expediente de representação, estabelecendo que “a” e “b” podem ser substituídos um

pelo outro; mas “a=b” não mostra nada sobre a natureza do sinal simples. Este é apenas

um exemplo de um problema da lógica que é dissolvido pela teoria pictórica.

33

Tractatus logico-philosophicus, 2.1513. 34

Tractatus logico-philosophicus, 3.202. 35

Tractatus logico-philosophicus, 3.23.

16

1.3 Propriedades internas e propriedades externas

A teoria pictórica implica em uma distinção entre as propriedades internas e as

propriedades externas da figuração. A figuração que representa uma posição espacial

entre três objetos representa, obviamente, a posição relativa destes objetos. Ora, a

figuração espacial pode afigurar tudo que seja espacial, a figuração colorida, tudo que

seja colorido, etc.36

As propriedades internas de uma figuração espacial são aquelas que

dizem respeito apenas à maneira como os objetos estão dispostos espacialmente – são,

exclusivamente, as posições relativas entre os objetos; trata-se de um traço fisionômico

da estrutura37

. Quanto às propriedades externas, estas, por sua vez, são aquelas que

estão situadas fora da figuração espacial, como, por exemplo, as cores e as formas dos

objetos, ou ainda, a diferença entre as dimensões dos objetos, suas durezas, etc.

Se, em outro momento, deseja-se figurar a diferença que há entre os tamanhos

dos objetos com o mesmo sinal que foi usado anteriormente para representar uma

posição espacial (“a – b – c”) e com isso se quer dizer que eles estão em ordem

decrescente – do maior para o menor –, isto é perfeitamente possível. Neste caso, o sinal

complexo seria uma figuração verdadeira se a fosse efetivamente maior que b, e b maior

que c. O sinal seria uma figuração falsa em qualquer outro caso. Ora, se o sinal agora

simboliza uma diferença entre os tamanhos dos objetos, então isto é tudo que importa à

figuração. As propriedades referentes às posições espaciais relativas passam agora a ser

externas à esta figuração, pois já não importa para o seu sentido que o objeto a esteja à

esquerda ou à direita de b.

As propriedades internas e externas, portanto, são relativas à forma da figuração.

As propriedades internas são aquelas que se apresentam como as propriedades que dão a

forma de uma figuração; as externas – enquanto externas – não são parte constituinte

desta figuração. As cores dos objetos não têm nenhuma relevância quando o que se quer

asserir sobre eles é uma diferença entre os seus tamanhos. Não é sequer necessário,

neste caso, que os objetos tenham cores, pois um cego poderia compreender muito bem

sinais sonoros que simbolizam uma relação entre os tamanhos desses três objetos. Mas

se o que se quer afigurar é a diferença entre a intensidade das cores dos objetos e assim

se quer asserir qual objeto tem a cor mais clara, então a forma ou a posição espacial dos

36

Tractatus logico-philosophicus, 2.171. 37 Tractatus logico-philosophicus, 4.1221.

17

objetos em nada contribuiriam para o sentido desta figuração; a forma e a posição dos

objetos seriam propriedades externas à figuração que representa uma diferença entre a

intensidade de cores. Por isso, Wittgenstein diz: “Para conhecer um objeto, na verdade

não preciso conhecer suas propriedades externas – mas preciso compreender todas as

suas propriedades internas”38

. O objeto, portanto, define-se pelas suas propriedades

internas – define-se pelas propriedades que lhe permitem constituir uma certa figuração,

com uma forma determinada. Quanto às propriedades externas, estas não precisam ser

conhecidas, haja vista que elas não definem o objeto enquanto objeto lógico, pois não

apresentam estrutura lógica (até que elas possam constituir uma figuração). Fica claro,

portanto, que uma propriedade externa ou uma propriedade interna define-se conforme a

forma da figuração, sendo impossível dizer se uma propriedade de um objeto é externa

ou interna sem que se considere a figuração a qual este objeto é parte constituinte e

também qual é a forma desta figuração.

Não se deve confundir as propriedades do Tractatus como sendo propriedades

empíricas, quando fala-se aqui em cores, por exemplo. O que importa ao Tractatus são

as propriedades lógicas que as cores assumem em seus aparecimentos em figurações. Se

se fala em cores ou em objetos espaciais, faz-se importante perceber que esta diferença

empírica não é o que constitui as propriedades dessas coisas. Quando, no entanto, essas

coisas são de alguma forma afiguradas, suas propriedades se estabelecem. Propriedades

internas são traços de uma figuração e, logo, elas são lógicas. Propriedades externas não

são traços uma figuração e, logo, elas não são lógicas.

1.4 Espaço lógico e negação

Curiosamente, nota-se que uma mesma ligação de sinais é capaz de afigurar

diferentes fatos. Isto é possível porque a forma lógica que é determinada pelas possíveis

ligações destes sinais estabelece um espaço lógico de afiguração, que abarca todos os

estados de coisas que podem vir a ser afigurados. Ora, os estados de coisas que podem

vir a ser afigurados são exatamente aqueles que possuem a mesma forma lógica que a

ligação de sinais. Neste sentido, o espaço lógico de afiguração não é apenas a armadura

lógica à volta de uma figuração, mas sim o conjunto de todos os estados de coisas que

38

Tractatus logico-philosophicus, 2.01231.

18

podem vir a ser afigurados por uma mesma ligação de sinais, a depender do método de

projeção empregado (ver seção 1.5). O espaço lógico de afiguração é, assim, o conjunto

de todos os estados de coisas que possuem a mesma forma lógica que uma determinada

combinação de sinais. “O espaço lógico percorre todo o campo possível. (...) a forma

lógica da afiguração esgota todo o campo da afiguração possível.”39

Na verdade, aqui

pode-se ler que a definição de espaço lógico no Tractatus tem um sentido mais preciso e

usual e, portanto, faz-se necessário que este ponto seja esclarecido.

Quando encontra-se, no Tractatus, a expressão espaço lógico da figuração,

deve-se entender que Wittgenstein refere-se à armação lógica à volta da figuração. O

espaço lógico, neste caso, consiste no conjunto dos lugares lógicos ou situações que

fazem uma determinada figuração verdadeira ou falsa. Isto se mostra de forma clara no

aforismo 3.42: “A armação lógica à volta da figuração determina o espaço lógico. A

proposição alcança todo o espaço lógico”40

. Nenhum lugar lógico capaz de tornar a

figuração verdadeira ou falsa situa-se fora do espaço lógico, e no espaço lógico, não há

nenhum lugar não seja capaz de fazer a figuração verdadeira ou falsa, não há nenhum

lugar que não seja capaz de conferir um valor de verdade à figuração. Esta definição

coincide com o espaço de manobra da figuração, explicado na seção 1.1.

Compreender bem o que é o espaço lógico da figuração no Tractatus é condição

para que também se compreenda a noção de negação. A negação, no Tractatus, trata-se

de um sinal que acompanha a proposição, mas que não tem papel na formação do

sentido proposicional. Este sinal, na verdade, apenas indica uma nova maneira de

entender os possíveis valores de verdade de uma proposição já significativa. A negação

da proposição p, dada como ~p, indica uma inversão dos possíveis valores de verdade

de p. Se para p, um determinado lugar x no espaço lógico a faz verdadeira e todos os

outros lugares a fazem falsa, este lugar x fará ~p falsa, e todos os outros lugares lógicos

farão ~p verdadeira. (Na seção 1.1, o exemplo dado fornece a lista de todas as situações

possíveis no espaço lógico de uma figuração que ajuda a entender este ponto). Assim, “a

proposição negativa determina um lugar lógico com o auxílio do lugar lógico da

proposição negada, descrevendo aquele como situado fora deste”41

. O sinal de negação

39

CUTTER, 1993, p. 134. 40 Tractatus logico-philosophicus, 3.42. 41 Tractatus logico-philosophicus, 4.0641.

19

“~” indica apenas uma tomada de decisão frente a uma proposição já figurada, não

sendo, portanto, uma condição especial de formação do sentido da proposição.

1.5 O método de projeção

Até aqui, portanto, foram colocadas todas as condições lógicas de figuração. Em

resumo, sabe-se que: (i) a figuração e o afigurado devem possuir o mesmo número de

elementos; (ii) os elementos da figuração e do afigurado devem possuir a mesma

multiplicidade lógica; e (iii) deve ser possível uma correspondência, ponto a ponto, entre

os elementos da figuração e os elementos do afigurado. Se um sinal complexo e uma

combinação de objetos satisfazem estas condições, aquele pode ser uma figuração deste.

Contudo, convém ressaltar que não é algo próprio do sinal complexo ser uma figuração

de um fato. Nós figuramos os fatos42

. A figuração lógica dos fatos é o pensamento43

. O

pensamento é onde se dá da figuração, e não o sinal complexo ele mesmo. Afinal, já foi

visto que um mesmo sinal complexo pode afigurar diferentes formas dos objetos, a

depender do que se pretende representar. Dessa maneira, para que a relação afiguradora

seja estabelecida – conforme as condições lógicas que foram dadas – é necessário um

método de projeção, que se dá no pensamento. O método de projeção é pensar o sentido

da proposição44

. Entende-se proposição, aqui, enquanto figuração (mais adiante será

explicado que a proposição é mesmo uma figuração). O metodo de projeção, assim, é o

que estabelece a correspondência, ponto a ponto, entre os elementos da figuração e os

elementos do afigurado, entre os nomes e os objetos; o método de projeção é o que

estabelece a relação afiguradora. A este respeito, Wittgenstein diz:

Que haja uma regra geral por meio da qual o músico pode extrair a sinfonia

da partitura, uma por meio da qual se pode derivar a sinfonia dos sulcos dos

discos e, segundo a primeira regra, derivar novamente a partitura, é

precisamente nisso que consiste a semelhança interna dessas configurações,

que parecem tão completamente diferentes. E essa regra é a lei de projeção,

lei que projeta a sinfonia na linguagem das notas. É a regra de tradução da

linguagem das notas na linguagem do disco gramofônico45

.

42

Tractatus logico-philosophicus, 2.1. 43

Tractatus logico-philosophicus, 3. 44

Tractatus logico-philosophicus, 3.11. 45

Tractatus logico-philosophicus, 4.0141.

20

Como bem aponta Luiz Henrique Lopes dos Santos, “dado um desenho, cabe um

método de interpretação identificar nele o fato diagramático e, em princípio, diferentes

métodos podem identificar, num mesmo desenho, diferentes diagramas”46

. Esta posição,

aliás, está de acordo com o que foi dito na seção 1.3 sobre um mesmo sinal complexo

poder figurar diferentes fatos. Sobre a passagem de Wittgenstein, sabe-se, pois, que a

partitura ela mesma não é uma figuração, mas sim a partitura em relação projetiva com

a realidade. A partitura enquanto figuração de um fato é efeito de um método dado pelo

pensamento e que determina quais elementos da partitura correspondem às respectivas

notas musicais, dentre outros detalhes. Não é muito difícil compreender a demanda por

um método de projeção neste exemplo, pois um leigo em música não compreende o

significado dos sinais de uma partitura. Apenas aquele que domina as regras de projeção

é capaz de entender a música representada em uma partitura.

Wittgenstein usa também o exemplo de interpretação de uma figura geométrica

para explicar o que é o método de projeção. Ele afirma que perceber um complexo

significa perceber que suas partes constituintes estão, umas para as outras, assim e

assim47

. Dado um cubo com os vértices nomeados segundo a figura abaixo, nota-se que

há duas formas de conceber esse cubo:

48

Uma destas se faz presente quando se visualiza os vértices nomeados com o sinal “a” à

frente dos vértices nomeados com o sinal “b”; a segunda forma de conceber o cubo se

dá quando, por outra tomada de decisão, visualiza-se os vértices nomeados com o sinal

46

SANTOS, L.H.L. A essência da proposição e a essência do mundo, 2008, p.63. 47

Tractatus logico-philosophicus, 5.5423. 48

Tractatus logico-philosophicus, 5.5423.

21

“b” à frente dos vértices nomeados com o sinal “a”. O que realmente vemos são fatos

diferentes. O método de projeção é, portanto, articulador dos nomes e dos objetos, de tal

sorte a constituir um sentido determinado da figuração a partir dos sinais complexos e

dos estados de coisas.

22

CAPÍTULO 2

A teoria pictórica da proposição

1.1 Considerações iniciais sobre a natureza da proposição

Uma vez que a teoria pictórica tenha determinado as condições lógicas de

possibilidade de toda e qualquer representação, Wittgenstein então precisa explicar

como o sinal proposicional é mesmo, enquanto representação, uma figuração. Esta sim é

a teoria pictórica da proposição. Na verdade, o Tractatus fornece mais de uma teoria

que compõe o quadro teórico sobre a natureza da proposição. Além da teoria pictórica,

há a concepção da proposição – à maneira de Frege e Russell – como função das

expressões nela contida49

. Esta última acaba por estabelecer uma distinção entre

proposições moleculares e proposições elementares. As proposições elementares são

figurações de estados de coisas. As proposições moleculares (ou proposições) são

resultado da aplicação de uma operação lógica sobre as proposições elementares. Elas

são a expressão da concordância e discordância com as possibilidades de verdade das

proposições elementares50

. Assim, as proposições são também figurações. Ora, sabe-se

que, o sinal proposicional é entendido como a expressão sensível da proposição. Logo,

o sinal proposicional é uma figuração na medida em que é uma proposição [molecular],

então resultado de uma operação de verdade sobre as proposições elementares.

Wittgenstein afirma que é óbvio que devemos, na análise das proposições,

chegar a proposições elementares51

. Esta obviedade está fundada no caráter determinado

do sentido da proposição. Ora, as proposições de nossa linguagem corrente possuem um

sentido determinado – isto é claro. Se o Tractatus compreende que toda proposição é

uma função de verdade das expressões nela contida, e se é claro que a proposição possui

um sentido determinado, então deve haver proposições elementares, sendo estas o ponto

onde para a análise da proposição (e o ponto onde começa a operação de verdade). Se

não houvessem proposições elementares, então a proposição não apresentaria sentido

determinado (todavia, sabe-se que ela apresenta.). A proposição elementar, portanto, é

49

Tractatus logico-philosophicus, 3.318. 50 Tractatus logico-philosophicus, 4.4. 51

Tractatus logico-philosophicus, 4.221.

23

postulada enquanto condição de possibilidade do sentido determinado das proposições.

Também por isso, Wittgenstein afirma que é de antemão provável que a introdução das

proposições elementares seja fundamental para o entendimento de todas as outras

espécies de proposição52

.

Até o momento, segundo o que foi visto no Capítulo 1, temos que a figuração

monta uma situação para teste. Isto quer dizer que o sentido da figuração independe do

valor de verdade. Uma figuração representa um estado de coisas ainda que não se saiba

se ela é verdadeira ou falsa. Este é um ponto importante para o Tractatus, pois

determina a tese da independência do sentido da proposição. Ao entender-se como uma

proposição é figuração de um fato do mundo (pois é uma operação veritativo-funcional

sobre as proposições elementares, que figuram estados de coisas), estará dado que a

proposição é bipolar e que o seu sentindo independe do seu valor de verdade.

1.2 As proposições elementares e as proposições moleculares

A proposição elementar consiste em nomes53

. A proposição elementar é uma

vinculação, um encadeamento de nomes, estando estes em ligação imediata54

. Faz-se

saber que a especificação de todas as proposições elementares verdadeiras descreve o

mundo completamente55

. Ademais, é um sinal da proposição elementar que nenhuma

outra proposição elementar esteja em contradição com ela56

. A proposição molecular é o

resultado de uma operação de verdade aplicada sobre proposições elementares. Ou seja,

a proposição molecular é uma função de verdade das proposições elementares, enquanto

a proposição elementar é uma função de verdade dela mesma57

. Logo a seguir, será

apresentado como os traços das proposições elementares e das proposições moleculares

são estabelecidos à prori, ou seja, a partir de considerações tão somente lógicas. Afinal,

o Tractatus é um tratado de lógica e filosofia. A esta obra interessa, portanto, apenas o

52 Tractatus logico-philosophicus, 4.411. 53

Tractatus logico-philosophicus, 4.22. 54

Tractatus logico-philosophicus, 4.221. 55

Tractatus logico-philosophicus, 4.26. 56

Tractatus logico-philosophicus, 2.11. 57 Tractatus logico-philosophicus, 5.5.

24

que se pode decidir de imediato58

, sem que se faça necessário olhar o mundo59

, sem que

se recorra à experiência para solucionar um problema.

Em primeiro lugar, a afirmação de que as proposições elementares figuram toda

a realidade está fundada na defesa de que todas as relações lógicas entre proposições são

puramente formais. O Tractatus procura mostrar que as proposições moleculares são

formadas a partir de uma operação puramente formal sobre as proposições elementares,

uma operação lógica veritativo-funcional60

, idéia que permite o estabelecimento de uma

forma geral da proposição. Como o estabelecimento da forma geral da proposição é uma

pretensão do Tractatus que não pode ser descartada (já que se trata exatamente dos

limites da linguagem), então Wittgenstein precisa defender que as relações lógicas entre

proposições são mesmo estritamente veritativo-funcionais. Aqui entra, pois, o principal

argumento em favor da completude figurativa das proposições elementares, apresentado

na forma de reductio ad absurdum: se houvesse algum estado de coisas não figurado

por uma proposição elementar, este estado de coisas seria apenas representado por uma

proposição molecular; mas isto implica que a proposição molecular poderia ser capaz de

comportar relações entre proposições que não são completamente veritativo-funcionais,

importando inclusive o conteúdo destas proposições. Ora, teríamos, assim, que nem

toda proposição molecular seria formada através de uma operação puramente formal, o

que não pode ser admitido por Wittgenstein61

. Dessa maneira, faz-se necessário admitir

que a especificação de todas as proposições elementares verdadeiras descreve o mundo

completamente62

.

Wittgenstein também deve admitir à priori que as proposições elementares são

logicamente independentes entre si. Nenhuma proposição elementar pode contradizer

outra proposição elementar ou, por exemplo., apresentar uma relação de implicação

lógica. Ora, o Tractatus defende a tese da independência do sentido da proposição. Se

se tem uma proposição elementar “p” que implica necessariamente a proposição

elementar “q”, então a verdade ou falsidade de “q” é uma condição para o sentido de

“p”. Se “q” é verdadeira, então “p” pode ser verdadeira ou falsa; se “q” é falsa, então

“p” deve ser falsa. Assim, neste caso, não basta saber se o estado de coisas representado

58 Tractatus logico-philosophicus, 5.551. 59 Tractatus logico-philosophicus, 5.551. 60 A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. Tractatus logico-philosophicus, 5. 61

Este argumento foi extraído de MACHADO, A. N. Lógica e Forma de Vida: Wittgenstein e a natureza

da necessidade lógica e da filosofia. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007, p.59-60. 62 Tractatus logico-philosophicus, 4.26.

25

por “p” existe para saber se “p” é verdadeira. Ou seja, o sentido de “p” não se define

apenas por saber o que é o caso se “p” for verdadeira, mas depende também do valor de

verdade de “q”. Isto quer dizer que “p” não tem um valor de verdade independente do

valor de verdade de “q”. Portanto, considerando apenas “p”, nota-se que ela não possui

um valor de verdade (seja ele verdadeiro ou falso); e se o sentido de uma proposição são

as condições para que ela tenha um valor de verdade, temos que “p” não tem sentido, o

que não pode ser admitido pelo Tractatus. Logo, deve-se admitir que as proposições

elementares são independentes entre si; do contrário, a tese da independência do sentido

ficaria comprometida, além de que algumas proposições sequer teriam sentido.

Outro problema que se verificaria na não admissão de que as proposições

elementares são independentes entre si seria a impossibilidade de se estabelecer

definições gerais dos conectivos lógicos por meio de tabelas de verdade63

. Se “p → q”

fosse uma proposição necessariamente verdadeira, a tabela de verdade desta proposição

seria entendida dessa maneira:

p q p → q

V V V

F V V

F F V

Como é possível notar, esta não é a definição geral do conectivo “→”; e se ainda

assim – por mero devaneio – admite-se que esta é a definição geral do conectivo “→”,

tem-se que ela não serviria para expressar uma implicação entre duas outras proposições

elementares que não apresentam uma implicação necessária. Se a proposição “r” não

implica necessariamente a proposição “s”, nota-se claramente que as possibilidades de

verdade da proposição “r → s” não estariam completamente dadas na tabela acima. A

linha que representa a possibilidade de “r” ser verdadeira e “s” ser falsa estaria omitida,

porquanto, neste caso, “r → s” seria falsa. Bem, a saber, a correta definição geral do

conectivo “→” representada na tabela de verdade é:

63

Quanto ao que foi dito na nota 61, o mesmo vale para este argumento.

26

p q p → q

V V V

V F F

F V V

F F V

Nota-se, além do mais, que a primeira tabela de verdade assemelha-se a uma

tautologia, porquanto ela é verdadeira em qualquer caso. Sabe-se que, no Tractatus, uma

tautologia não é uma figuração; trata-se, na verdade, de um caso limite da ligação de

sinais64

. Todavia, a proposição necessariamente verdadeira “p → q” é uma figuração e,

portanto, ela não pode ser dita necessariamente verdadeira na mesma acepção de uma

tautologia65

. A tautologia é necessariamente verdadeira por conta de uma necessidade

que se dá estritamente no âmbito linguístico. A necessidade de “p → q” seria dada no

mundo. Como é bem sabido, não há proposições necessárias (seja ela sempre verdadeira

ou sempre falsa) no Tractatus que representem a realidade. Toda proposição realmente

significativa deve ser bipolar, pois a bipolaridade é um traço essencial da natureza da

proposição.

Uma vez que nenhuma proposição elementar se segue de outra (ou seja, de uma

proposição elementar, nenhuma outra se pode deduzir66

), Wittgenstein apresenta uma

conclusão sobre um problema que é muito caro à filosofia: a causalidade. Segundo a

teoria pictórica e a tese da independência das proposições elementares, sabe-se, assim,

que da existência de uma situação qualquer não se pode, de maneira nenhuma, inferir a

existência de uma situação completamente diferente dela67

. Um nexo causal que

justificasse uma tal inferência não existe68

. O Tractatus descarta, pois, qualquer idéia

sobre um nexo causal que possa ser atribuído a uma necessária conexão entre os fatos

do mundo.

64

Tractatus logico-philosophicus, 4.466 65

Entende-se aqui, pois, que a tautologia não possui condições de verdade ou falsidade. Está claro no

Tractatus que “tautologia e contradição não são, porém, contra-sensos; pertencem ao simbolismo”.

Tractatus logico-philosophicus, 5.134. 66

Tractatus logico-philosophicus, 5.134. 67

Tractatus logico-philosophicus, 5.135. 68

Tractatus logico-philosophicus, 5.136.

27

Tem-se, portanto, que a proposição elementar figura um estado de coisas, sendo

essencialmente bipolar e possuindo o sentido independentemente do valor de verdade.

Ademais, as proposições elementares são independentes entre si e a especificação de

todas as proposições elementares verdadeiras descreve o mundo completamente. Eis as

características da proposição elementar que podem ser dadas à priori. A proposição

molecular (ou proposição, simplesmente), por sua vez, é o resultado de uma operação de

verdade sobre as proposições elementares – toda proposição molecular é uma função de

verdade das proposições elementares. A proposição elementar é uma função de verdade

dela mesma. Quanto às tautologias e contradições, estas também são resultado de uma

operação de verdade sobre proposições elementares; mas ver-se-á, a seguir, que ambas

não representam fatos do mundo. A necessária verdade ou a necessária falsidade de uma

proposição é uma questão de âmbito estritamente linguístico.

1.3 Tautologias e Contradições

Tautologias, como se sabe, são proposições necessariamente verdadeiras; quanto

às contradições, estas são proposições necessariamente falsas. Esta necessidade apóia-se

na maneira como se dá a operação lógica sobre as proposições elementares em ambos os

casos. Por exemplo, a famosa proposição “chove ou não chove” é sempre verdadeira

não porque ela expressa um fato que ocorre invariavelmente no mundo, mas porque a

operação lógica de disjunção entre uma proposição e a negação desta mesma proposição

está fadada a ser sempre verdadeira. Nota-se que as condições de verdade desta

proposição apresentam-se de maneira tal que se torna até mesmo dispensável entender o

significado de suas proposições componentes para que o seu valor de verdade seja

estabelecido como verdadeiro. Não se faz necessário saber o que é o caso se “chove” ou

saber o que é o caso se “não chove”. A estrutura lógica da proposição é suficiente para

saber que ela é sempre verdadeira.

Pode-se então expressar a proposição “chove ou não chove” no simbolismo lógico

como “p ˅ ~p”; e sabe-se, de antemão, que qualquer proposição da nossa linguagem

com esta forma será invariavelmente verdadeira. Assim, tem-se que, na tautologia, as

condições de concordância com o mundo – as relações representativas – cancelam-se

mutuamente, de modo que ela não mantém nenhuma relação representativa com a

28

realidade69

. Tautologias e contradições são, portanto, resultados puramente formais,

onde as combinações das operações lógicas aplicadas sobre as proposições elementares

forçam a proposição a uma verdade ou uma falsidade necessária, respectivamente. A

tautologia deixa à realidade todo o – infinito – espaço lógico; a contradição preenche

todo espaço lógico e não deixa nenhum ponto à realidade70

.

Faz-se importante notar, pois, que tautologia e contradição não são figurações da

realidade. Não representam nenhuma situação possível71

. Considerando isto, pareceria

sensato dizer que estas proposições não possuem sentido ou são meros contra-sensos;

mas elas são ligações de sinais legítimas, que respeitam as regras do simbolismo lógico.

Por esta razão, Wittgenstein diz que as tautologias e contradições são os casos limite da

ligação de sinais, ou seja, sua dissolução72

. Embora não sejam figurações de fatos do

mundo, elas possuem sentido (em outra acepção, é claro).

1.4 A forma geral da proposição e os limites da linguagem

Uma vez que toda proposição consiste em uma função de verdade das proposições

elementares, torna-se possível estabelecer uma forma geral da proposição. Wittgenstein

mostra que toda função de verdade é o resultado da aplicação sucessiva da operação

(-----V)(ξ,....) a proposições elementares. Essa operação nega todas as proposições entre

os parênteses da direita; trata-se da negação dessas proposições73

. A simplificação desta

notação é , que é a negação de todos os valores da variável proposicional ξ74

.

Se se tem as proposições “p” e “q”, a operação N sobre elas é a conjunção de suas

negações, que é “~p ˄ ~q”. Curiosamente, a operação N é capaz de representar qualquer

operação dos típicos conectivos lógicos “˄”, “˅” e “→”. Isso mostra que estes

conectivos não são objetos lógicos, mas apenas convenções notacionais. Se se aplica,

por exemplo, a operação N duas vezes às proposições “p” e “q”, temos, dessa maneira,

que (i) N(p,q) [≡~p ˄ ~q] e (ii) N(N(p,q)) [≡~(~p ˄ ~q) ≡(p ˅ q)]. Isso mostra, pois, que

o conectivo “˅” pode ser representado pela aplicação da operação N duas vezes.

69

Tractatus logico-philosophicus, 4.462. 70

Tractatus logico-philosophicus, 4.463. 71

Tractatus logico-philosophicus, 4.462. 72

Tractatus logico-philosophicus, 4.466. 73

Tractatus logico-philosophicus, 5.5. 74

Tractatus logico-philosophicus, 5.502.

29

A forma geral da função de verdade é . Isso é a forma geral da

proposição.75

Isso nada diz senão que toda proposição é um resultado da aplicação

sucessiva da operação às proposições elementares76

. O sinal é a especificação

de todas as proposições elementares, enquanto o sinal determina um grupo qualquer

de proposições elementares. Uma vez esclarecida a notação do Tractatus, pode-se ver

que, dada a forma geral da proposição como uma proposição é construída, com isso já

está dada também a forma geral como, a partir de uma proposição e por meio de uma

operação, uma outra pode ser gerada77

.

A forma geral da proposição, dessa maneira, determina os limites da linguagem

na medida em que determina a regra de formação de qualquer proposição com sentido.

Todo sinal proposicional da nossa linguagem obedece a esta regra de formação; e isto

deve estar claro na análise da proposição. Do contrário, tem-se pseudo-proposições ou

contra-sensos, tais como são, segundo Wittgenstein, as “proposições filosóficas”78

. Por

esta razão, Wittgenstein prefere ver a filosofia como uma atividade de elucidação dos

pensamentos79

; e não como uma disciplina que oferece proposições verdadeiras sobre o

mundo, como fazem as ciências naturais80

. Bem, as tautologias e contradições também

são formadas segundo esta regra; todavia, não são representações de fatos do mundo –

elas constituem, portanto, os casos limite da ligação de sinais; são os casos extremos da

linguagem, situados na fronteira do campo das proposições que podem ser ditas. Fora

deste campo, tudo é um mistério. A atitude de Wittgenstein perante o que não pode ser

dito é incisiva: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”81

.

75

Tractatus logico-philosophicus, 6. 76

Tractatus logico-philosophicus, 6.001. 77

Tractatus logico-philosophicus, 6.002. 78

Tractatus logico-philosophicus, 4.112. 79

Tractatus logico-philosophicus, 4.112. 80

Tractatus logico-philosophicus, 4.11, 4.111. 81

Tractatus logico-philosophicus, 7.

30

Considerações finais

A presente monografia apresentou a teoria pictórica da proposição no Tractatus

logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein. É claro que isto não poderia ter sido feito

sem que antes a teoria fosse situada na obra e que estivesse bem esclarecida a razão pela

qual Wittgenstein a desenvolveu e quais foram as suas consequências. Isto foi exibido

na Introdução. No Capítulo 1, explicou-se as noções que compõem a teoria pictórica e

mostrou-se que toda representação é essencialmente uma figuração lógica. O Capítulo 2

teve a intenção de tornar claro que a proposição – enquanto representação – é também

uma figuração lógica. Conclui-se isto a partir da forma geral da proposição, que mostra

que toda proposição é uma função de verdade das proposições elementares; ou seja, a

proposição é uma operação lógica sobre as proposições elementares. Uma vez que as

proposições elementares são figurações lógicas, a proposição que é formada a partir de

operações estritamente lógicas sobre elas também deve ser uma figuração lógica.

31

Bibliografia

CUTER, João Vergílio. A teoria da figuração e a teoria dos tipos. O Tractatus no

contexto do projeto logicista. São Paulo, 1993. Tese (doutorado em Filosofia) – FFLCH

- USP, Universidade de São Paulo.

FLOYD, Juliet. Wittgenstein on Philosophy of Logic and Mathematics, in The Oxford

Handbook of Philosophy of Mathematics and Logic.

MACHADO, A. N. Lógica e Forma de Vida: Wittgenstein e a natureza da necessidade

lógica e da filosofia. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.

MORENO, Arley Ramos. Os labirintos da linguagem. Ensaio introdutório. São Paulo:

Editora Moderna, 2006.

SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A essência da proposição e a essência do mundo.

Em: Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 2008.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. Trad. de Luiz Henrique

dos Santos. São Paulo: EDUSP, 2008.