A Tirania dos Fantasmas - Crítica do Poder Pastoral e da Sobrevivência do Teológico-Político

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Investigação filosófica sobre a tirania de valores religiosos no espaço público a partir de pensadores como Foucault, Nietzsche, Diderot, Max Stirner e Karl Marx.

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Universidade Federal de Gois Departamento de Filosofia Ps-Graduao - Mestrado

A TIRANIA DOS FANTASMAS- Anlise crtica do poder pastoral e da sobrevivncia do teolgico-poltico -

Eduardo Carli de Moraes Professora Adriana Delb Fevereiro de 2012

Visto que as religies instituem culturas de massa so um fenmeno que perpassa e atravessa as sociedades por inteiro e do espetculo no podem prescindir de rituais e cerimnias -, no nos deve surpreender que, mundo afora, elas tenham facilmente se sentido em seu elemento e em conformidade com os ares do tempo quando do surgimento da sociedade de massa e da indstria cultural. E, todavia, nos surpreendemos. Nossa surpresa no vem tanto dessa presena das religies nos meios de comunicao ou de sua visibilidade nas praas e nas ruas, de seus signos nos trajes, nos hbitos e nos gestos, e sim da fora do apelo religioso para, nos dias de hoje, mobilizar poltica e militarmente milhes de pessoas em todo o planeta. Que, nos estertores da Guerra Fria, Ronald Reagan tenha realizado uma corrida armamentista sem precedentes sob a alegao de preparar o 'mundo livre' para a vitria na batalha csmica do Armagedon, ou que os massacres de Sabra e Chatila, a guerra civil em Ulster e Belfast, em Beirute, Teer e Kabul, os nacionalismos balcnicos em luta e praticando genocdio em Sarajevo e Kosovo, a guerra em Gaza, Jerusalm e Bagd apaream sob a imagem de lutas religiosas, culminando em atentados suicidas como atos de sacrifcio de si e de inocentes, em nome de Deus, nos leva a indagar se (e em caso afirmativo, por que) a cultura poltica contempornea dominante est efetivamente fundada em valores religiosos. MARILENA DE SOUZA CHAU in: O Retorno do Teolgico Poltico. Pg. 93-94.

INTRODUO E OBJETIVOS ...o poder pastoral em sua tipologia, em sua organizao, em seu modo de funcionamento, o poder pastoral que se exerceu como poder sem dvida algo de que ainda no nos libertamos. () Houve revolues antifeudais, nunca houve uma revoluo antipastoral. O pastorado ainda no passou pelo processo de revoluo profunda que o teria aposentado definitivamente da histria. MICHEL FOUCAULT. Aula de 15 de Fevereiro de 1978. in: Segurana, Territrio e Populao. Ed. Martins Fontes. Pg. 197-199. As afirmaes de Foucault - ainda no nos libertamos do poder pastoral e o pastorado ainda no passou pelo processo de revoluo profunda que o teria aposentado definitivamente da histria - nos intrigam com algumas questes suplementares: qual a razo desta persistncia da figura da autoridade religiosa na histria humana? Que encantamentos e que correntes prosseguem a prender os mortais s doutrinas de padres e pastores que pregam o sacrifcio, a auto-imolao, a humildade perante um Ser Supremo? Christopher Hitchens sugere que a religio no se satisfaz com suas prprias alegaes maravilhosas e garantias sublimes. Ela precisa tentar intervir na vida dos no-crentes, dos hereges ou dos que professam outras crenas. Ela pode falar sobre a bem-aventurana do prximo mundo, mas quer o poder neste1. As religies, portanto, no se satisfazem em seres meras propagadoras de mensagens, doutrinas, conselhos: ambicionam o poder poltico atravs do quo podem impor o que Max Stirner chamaria de uma tirania do Esprito. Longe de ser mera deciso individual que deve ser inteiramente encerrada na esfera privada, a religio prossegue mesclada aos assuntos scio-polticos, motivando comportamentos, erguendo templos, arrecadando dinheiro em dzimos... 2 Mais de um sculo se passou desde que Nietzsche proclamou: Deus est morto!, sugerindo que a f religiosa caa progressivamente em descrdito na Europa de seu tempo. Mas se focarmos nossa ateno, no em apenas em um punhado de europeus doutos e cultos dos sculos XVIII e XIX, que sentiram o impacto das ideias de Feuerbach, Schopenhauer e Stirner, mas num horizonte mais amplo, no conjunto da populao global do Planeta Terra e seus 7 bilhes de humanos, plausvel de fato supor que as religies estejam em decadncia e o atesmo em ascenso? Ficaram definitivamente para trs os trevosos tempos de medievalescas guerras entre religies, de perseguies e homicdios perpetrados contra hereges e feiticeiras, de uma mescla sem pudores entre o teolgico e o poltico, o Estado e a Igreja? Procuraremos neste trabalho investigar quais as caractersticas principais que definem o que chamaremos, seguindo sempre a estrela-guia de Foucault e Nietzsche, de Poder Pastoral ou Sacerdotal. Isto implica uma tentativa de analisar psicologicamente quais os traos que caracterizam estes padres, pastores e papas que arrogam-se a funo de porta-vozes de Deus e que desejam conduzir seus rebanhos Parasos prometidos por antecedncia. Que mecanismos psicolgicos, quais tbuas de valores e que tipo de viso-de-mundo esto envolvidos neste fenmeno1 HITCHENS. Deus No Grande Como a Religio Envenena Tudo. Editora Ediouro. 2 No Brasil de hoje, para frisar a intensa atualidade do tema, a Igreja Universal do Reino de Deus e sua assecla miditica, a Rede Record, esto pondo no mercado um carto-de-crdito do crente para que os fiis pratiquem mais piamente o ato sagrado de vender tudo o que o que tm e dar para a Igreja. Deus te pagar em dobro!, prometem os pastores... cujas contas bancrias decerto se multiplicaram bem mais do que meras duas vezes desde que entraram neste to intere$$sante ramo comercial. Grandes igrejas, grandes negcios.

do lder pastoral? Quais as razes e os frutos desta rvore que to insistentemente viceja no jardim terrestre? Uma vez que fomos instados a empreender esta pesquisa especialmente pela convico da forte premncia do tema, que necessita ser urgentemente tratado pela filosofia exatamente pois lida com algo que prossegue a nos tiranizar nos mais variados ramos, da medicina sexualidade, do Direito Poltica, cabe realizar aqui uma breve tentativa de mostrar, atravs de alguns exemplos histricos recentes, a urgncia da temtica, a atualidade do Poder Pastoral. Ainda estamos, de fato, como Foucault tambm julga, sob seu jugo: Lderes religiosos ainda condenam artistas e escritores morte: no faz muito tempo que o escritor indiano Salman Rushdie, quando da publicao de seu romance Os Versculos Satnicos, foi fulminado pela fatwa decretada pelo aiatol xiita do Ir, s podendo sobreviver por ter recebido guarida na Inglaterra3; e tambm no faz muito, cartunistas foram assassinados por islmicos radicais por terem publicado caricaturas de Maom. Avanos na rea da medicina so obstaculizados em sua implementao por aes contrrias de religiosos fundamentalistas que esto mais preocupados com os embries humanos do que com a possibilidade de salvar vidas oferecida pela pesquisa com clulas-tronco e so capazes de pregar contra o uso da camisinha na frica subsaariana, enquanto milhes de pessoas morrem de AIDS nessa regio a cada ano. Harris relata outro caso similar: o papilomavrus humano (HPV, na sigla em ingls) hoje a doena sexualmente transmissvel mais comum nos Estados Unidos. Esse vrus infecta mais da metade da populao americana, causando a morte de quase 5 mil mulheres a cada ano, de cncer cervical. O Centro para Controle de Doenas (Center For Disease Control CDC) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente dessa doena no mundo inteiro. Hoje temos uma vacina para o HPV que parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste clnico.4 Contudo, os conservadores cristos no governo americano opem resistncia ao programa de vacinao, alegando que o HPV um impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e mulheres piedosos desejam preservar o cncer cervical como incentivo para a abstinncia sexual, embora ele tire a vida de milhares de mulheres a cada ano.5 Fanticos religiosos assassinam quem age em desacordo com seus credos: tambm no faz muito tempo, o caso Paul Hill, de ampla repercusso nos Estados Unidos, comentado em detalhe por Richard Dawkins em seu best-seller internacional Deus: Um Delrio, mostrou ao mundo o perigo que correm certos mdicos que realizam abortos e que encontram a agresso dos crentes, assassinados por fundamentalistas catlicos que ironicamente se auto-intitulam Pro-Life... Escndalos revelam um lado podre de figuras sacerdotais que, ainda que se faam de santas e se pretendam purssimas, por vezes deixam entrever o quanto so humanas, demasiado humanas:

3 RUSHDIE, Salman, defendeu-se das perseguies nos seguintes termos: Os Versculos Satnicos celebra a hibridez, a impureza, a mistura, a transformao que provm de novas e inesperadas combinaes de seres humanos, culturas, idias, polticas, filmes, canes. Exulta com o cruzamento de raas e teme o absolutismo do Puro [] Certamente que no pe em causa os direitos das pessoas sua f, embora eu no tenha nenhuma. Discorda manifestamente das ortodoxias impostas de todos os tipos, da opinio que o mundo muito claramente Isto e no Aquilo. Discorda do fim do debate, da disputa, da discordncia. Discorda tambm do sectarismo comunalista hindu, do tipo de terrorismo sikh que faz explodir avies, das fatuidades do criacionismo cristo, bem como das definies mais limitadas do Isl [] uma cano de amor nossos eus mestios. In: Ptrias Imaginrias, p. 452, Publicaes Dom Quixote, Lisboa. 4 The New York Times, Forbidden Vaccine, editorial de 30/12/2005. 5 HARRIS, S. Carta a uma Nao Crist. Editora Companhia das Letras. 2006. Prefcio de Richard Dawkins. Pg. 38.

prossegue em nossos dias a revelao peridica dos casos de pedofilia na Igreja Catlica6, um fenmeno de propores bem maiores do que imagina o comum dos crentes, a ponto de ser possvel suspeitar de uma epidemia de padres que abusam sexualmente de crianas. 7 O psicanalista Wilhelm Reich, que teve seus livros queimados nos EUA ultra-conservador dos anos 50, teria muito a nos ensinar a respeito das conexes entre credo religioso sexulmente repressivo e a emergncia de neuroses e perverses. No Brasil, como aponta Marilena Chau j no incio de O Retorno do Teolgico Poltico, h uma profuso de canais de televiso e estaes de rdio com programao variada que vai de telecultos, telecursos de exegese bblica e teleconselhos at testemunhos de converso e publicidade para a venda de materiais religiosos, entremeada com apresenes de canto e dana, alm de vdeos edificantes. E Chau complementa: Nas grandes cidades brasileiras, templos evanglicos espalham-se por toda parte, ocupando lugares que anteriormente pertenciam a cinemas, teatros, fbricas e galerias comerciais. Em contrapartida, estdios de futebol so periodicamente transformados em catedrais para pregaes, cnticos e possesses carismticas. Aos domingos, militantes religiosos distribuem panfletos e santinhos nos semforos e batem s portas das casas com o oferecimento de explicaes da Bblia. E se Mel Gibson faz furor comercial com sua Paixo de Cristo, no lhe fica atrs (guardadas as devidas propores nos gastos de produo e na qualidade do produto) o Padre Marcelo, que, alm de gravaes musicais e grandes missas-shows, tambm entrou para a indstria cinematogrfica e alcana multides com seu Maria Me de Jesus.8 Alm disso, no esqueamos que o noticirio de poltica internacional, nos ltimos anos, esteve repleto de bombsticas manchetes, muitas vezes de profunda tragicidade, sobre os atentados terroristas perpetrados por muulmanos contra a ainda to crist Civilizao Ocidental. A Guerra do Iraque e do Afeganisto, alm das causas econmicas que decerto tambm as motivaram (em especial o interesse americano no petrleo abundante do Oriente Mdio...), foram conflitos saturados de religiosidade e maniquesmo. A mquina de propaganda servio dos EUA, e a mdia a ele subserviente, pintaram o retrato de um herico e glorioso combate entre as foras demonacas, encarnadas pela Al-Qaeda e pelo regime de Saddam Hussein, e as foras celestiais e do Bem que iriam supostamente conceder queles povos a ddiva da democracia e da modernizao capitalista. As imagens que nos chegam de Abu Ghraib e de Guantnamo convidam-nos a ser mais cticos em relao pretensa santidade do Imprio.

Estes poucos exemplos nos garantem que o teolgico-poltico ainda vive, que o Poder Sacertodal ainda tenta imperar e que no so pequenos ou insignificantes os imensos rebanhos de fiis. De modo que a tentativa de compreenso do fenmeno religioso prossegue tema de grande importncia, e para o qual certamente nos prestariam muitos servios os estudos j realizados por William James (especialmente The Varieties of Religious Experience), mile Durkheim (especialmente As Formas Elementares da Vida Religiosa), alm das obras de Mircea Eliade, Heinrich Zimmer, Franois Jullien, dentre outros.6 "Os casos de abusos sexuais a menores j custaram Igreja Catlica em nvel internacional mais de US$ 2 bilhes, informaram nesta quarta-feira os americanos Michael Bemi e Patricia Neal no simpsio organizado pelo Vaticano para discutir os escndalos de clrigos pedfilos. [...] Esses US$ 2 bilhes foram pagos nos acordos estabelecidos durante os processos das vtimas contra as dioceses, em julgamentos, assessorias legais, tratamentos para as vtimas e acompanhamento dos agressores, entre outros gastos. Sobre as pessoas que sofreram abusos, Bemi e Neal destacaram que ainda no existe um estudo em nvel mundial, mas que, s nos Estados Unidos, a estimativa que 100 mil pessoas foram vtimas desses abusos. Esse nmero deve ser somado s centenas de casos denunciados na Irlanda, Alemanha, Austrlia, ustria, Blgica, Brasil, Canad, Chile, ndia, Holanda, Filipinas e Sua, entre outros pases." Reportagem do Portal Terra. Acesso pelo link: http://bit.ly/zEtk3u 7 O documentrio de Amy Berg, Deliver Us From Evil, uma excelente investigao sobre o tema. 8 CHAU, M. O Retorno do Teolgico Poltico. In: Retorno ao Republicanismo. Org. De Sergio Cardoso. Editora da UFMG. 2004.

Mas no este o nosso fim neste trabalho, no qual queremos acompanhar brevemente algumas ideias a respeito do Poder Pastoral presentes em autores como Foucault e Nietzsche, relacionando-os, quando isso nos parecer oportuno, com outros pensadores de tendncias similares: caso do iluminista Denis Diderot, que ter seu romance A Religiosa brevemente analisado e sintetizado, e do pensador berlinense Max Stirner, que realizou em nico e sua Propriedade uma das crticas mais radicais ao imprio de um esprito que exige que uma individualidade se castre, se reprima e se sacrifcio servindo uma autoridade superior. A escolha decerto poderia ter recado sobre outros objetos: A Letra Escarlate (de Nathaniel Hawthorne), A Feiticeira (de Jules Michelet) ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo (de Jos Saramago) seriam outras obras de grande riqueza para a compreenso do pastoralismo e dos estigmas e antemas que ele lana sobre adlteras, pagos, descrentes etc. Os destinos histricos de figuras como Giordano Bruno ou Joana D'Ark tambm poderiam nos inspirar outras reflexes interessantes, assim como obras tericas clssicas de grande instigncia como O Futuro de uma Iluso, Moiss e o Monotesmo e Totem e Tabu (de Freud), Tratado Teolgico-Poltico (de Spinoza) ou A Essncia do Cristianismo (de Ludwig Feuerbach). So outras vias potencialmente explorveis na elucidao do fenmeno da religio e do poder que ela se vincula. Se nossa escolha recaiu sobre Nietzsche, Foucault, Diderot e Stirner foi pela convico de que neles se encontra concentrada uma frtil reflexo filosfica sobre o tema e que, ao invs de lidar com o assunto com luvas de pelica, ousam colocar sob suspeita, averiguar com olhar ctico e questionar com a mais lcida das crticas um fenmeno cujo poder talvez se explique, ao menos parcialmente, justamente por este vu de sis que o recobre de mistrio. Esforcemo-nos, pois, para dispersar estas nvoas que nos impedem de enxergar os reais contornos do poder teologicamente fundado e dos crimes do fanatismo. ***** FOUCAULT E O PASTOREIO COMO IDEAL POLTICO H muitas metforas que servem para descrever o papel do chefe poltico: este pode ser concebido como uma espcie de pai-de-famlia, que precisa cuidar daqueles que esto sob sua dependncia, provendo alimentao, sade, educao etc.. Pode ser compreendido como um marinheiro com o leme do navio do Estado, ou seja, aquele que tem a seu encargo a cidade deve conduzi-la como um bom piloto governa decididamente seu navio, e deve evitar os escolhos e conduzi-lo ao porto () O objeto do governo a prpria cidade, que como um navio entre os escolhos, como um navio em meio tempestade, um navio que obrigado a bordejar a fim de evitar os piratas, os inimigos, um navio que tem de ser levado a bom porto...9 Existe tambm uma outra concepo sobre a autoridade poltica, e que nos dedicaremos a investigar em mincias na sequncia: aquela que concebe o governante como um pastor e a populao governada como rebanho. Foucault constata no Oriente mediterrneo (por exemplo no Egito, na Assria e na Mesopotmia), a existncia de um iderio que concebe o rei/soberano como uma espcie de pastor de homens, tema que entre os hebreus se desenvolveu e intensificou10 e que o cristianismo teria adotado e imposto por bem ou por mal11. Nenhuma civilizao, nenhuma sociedade foi mais pastoral do que as sociedades crists desde o fim do mundo antigo at o nascimento do mundo moderno.12 O tema do pastorado, de importao oriental, pde se difundir em todo o mundo helnico, de modo que a histria do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de9 10 11 12 FOUCAULT. Segurana, Territrio e Populao. Ed. Martins Fontes. Pg. 165. Op Cit. Pg. 166-67. Op Cit. Pg. 217. Op Cit. Pg. 219.

governo dos homens, essa histria do pastorado no mundo ocidental, s comea com o cristianismo...13 Esta concepo de poltica que, segundo Foucault, estranha tanto aos gregos quanto ao Imprio Romano, pensa a poltica como pastoreio: o governante entendido como um pastor de um rebanho que zela para que as ovelhas no sofram, vai buscar as que se desgarram, cuida das que esto feridas14. Como explica Foucault, o poder do pastor um poder que no se exerce sobre um territrio, um poder que, por definio, se exerce sobre um rebanho, mais exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, sobre uma multiplicidade em movimento.15 Ora, este poder pastoral possui como objetivo essencial... a salvao do rebanho:O pastor aquele que alimenta, conduzindo s boas campinas... cuida do rebanho, zela para que as ovelhas no sofram, vai buscar as que se desgarram, cuida das que esto feridas. () A forma que o poder pastoral adquire no , inicialmente, a manifestao fulgurante da sua fora e da sua superioridade. O poder pastoral se manifesta inicialmente por seu zelo, sua dedicao, sua aplicao infinita.16

O prprio Foucault reconhece que este poder pastoral, to ornado de intenes sublimes, e que marcou tantos sculos da histria poltica de diversas sociedades, gerou uma civilizao das mais sangrentas: Em todo caso, uma das que certamente praticaram as maiores violncias... o homem ocidental aprendeu durante milnios o que nenhum grego sem dvida jamais teria aceitado admitir, aprendeu durante milnios a se considerar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milnios, ele aprendeu a pedir sua salvao a um pastor que se sacrifica por ele.17 O poder pastoral precisa impor disciplinas queles que esto sob seu controle: o primeiro gesto da disciplina circunscrever um espao no qual seu poder e os mecanismos do seu poder funcionaro plenamente e sem limites, escreve Foucault. A disciplina regulamenta tudo. () No s ela no permite o laisser-faire, mas seu princpio que at as coisas mais nfimas no devem ser deixadas entregues a si mesmas.18 Aponta ainda que a distino entre o permitido e o proibido radicalmente maniquesta, isto , instituem-se tbuas de valores, para usar uma expresso de Nietzsche, que exigem que o sujeito se mantenha longe de certos comportamentos/atos tidos por ilcitos, sob ameaa de severas punies. O modelo de saturao disciplinar, sugere Foucault, a vida monstica onde o que o monge faz inteiramente regulado, dia e noite19 A relao da ovelha com aquele que a dirige uma relao de dependncia integral 20 a tal ponto que a perfeio, o mrito de um novio consiste em considerar uma falta qualquer coisa que viesse a fazer sem ter recebido ordem explcita. A vida inteira deve ser codificada pela fato de que cada um dos seus episdios, cada um dos seus momentos deve ser comandado, ordenado por algum.21 Explorando o tema da mortificao da vontade, denunciado to enfaticamente por Nietzsche como um subproduto do poder exercido pelo sacerdote asctico sobre si mesmo e sobre suas ovelhas, Foucault comenta, tendo em mente o elogio cristo da humildade, da servilidade e da obedincia:13 14 15 16 17 18 19 20 21 Op Cit. Pg. 196. Op Cit. Pg. 170. Op Cit. Pg. 178. Op Cit. Pg. 170-71. Op Cit. Pg. 174. Op Cit. Pg. 59. Op Cit. Pg. 61. Op Cit. Pg. 231. Op Cit. Pg. 232.

Ser humilde, no fundo, principalmente saber que toda vontade prpria uma vontade ruim. () A finalidade da obedincia mortificar sua vontade, fazer que sua vontade como vontade prpria morra...22. Ora, o pastor no somente aquele que zela pelo bem-estar de seu rebanho, que os conduz s campinhas frteis, que os alerta contra os perigos e os predadores, que os edifica com lindos preceitos morais e os ensina o caminho para a Terra Prometida... O pastor tambm aquele que transforma seu rebanho numa seita, que persuade sua seita a crer-se eleita, preferida pelos deuses e ornada de privilgios de nascena, e que convida ao dio e destruio daqueles que pensam ou agem diferente; que manda que se acendam as fogueiras onde queimaro vivas as bruxas e os hereges; que ordena os massacres contra os mpios, isto , contra todos que no fazem parte do rebanho, da seita... O pastoreio considerado como ideal poltico, pois, conduz noo de que os melhores sditos so aqueles que se assemelham a ovelhas apticas que seguem servilmente todas as ordens que lhes so dadas, por mais absurdas que sejam, e que alm disso sintam tamanha fobia do diferente, do exterior seita, que saibam recorrer violncia e agresso contra o inimigo externo. FOUCAULT: HERDEIRO DO ILUMINISMO? Em sua obra As Razes do Iluminismo, debatendo o livro de Jos Guilherme Merquior dedicado a Foucault, Srgio Paulo Rouanet alega que o autor de Vigiar e Punir seria um herdeiro do Iluminismo. Tal classificao realmente se aplica ao pensador francs, rotulado por outros como estruturalista ou ps-moderno? Rouanet sustenta que sim, considerando que a caracterizao do Iluminismo de Taine em Les Origines de la France Contemporaine - uma vasta obra de demolio em trs etapas: a desmoralizao da religio por Voltaire, dos costumes por Diderot e da ordem social por Rousseau conservadora e apenas parcial. Segundo Rouanet, essa descrio no alude ao trabalho de reconstruo terica que se seguiu ao de destruio, de modo que, em sua concepo, o Iluminismo foi ao mesmo tempo a empresa de demolio global corretamente descrita por Taine e um movimento regido pela razo e pela cincia.23. Foucault seria iluminista pois no abriria mo do que o Iluminismo tinha de mais inalienavelmente seu: o esprito de crtica permanente24. E tambm porque em seus mtodos de trabalho e na organizao de seu material ele um historiador eminentemente racional25. O prprio Foucault, que sabia operar atravs do procedimento genealgico que Nietzsche celebrizou em A Genealogia da Moral, explica queA genealogia exige a mincia do saber, um grande nmero de materiais acumulados, exige pacincia. [] Em suma, uma certa obstinao na erudio. A genealogia no se ope histria como a viso altiva e profunda do filsofo se ope ao olhar de toupeira do cientista; ela se ope, ao contrrio, ao desdobramento meta-histrico das significaes ideais e das indefinidas teleologias.

Discordando das caracterizaes de Foucault como um irracionalista ou um niilista, Rouanet sustenta que o autor da Microfsica do Poder movido por uma tica de emancipao e que foi um intelectual francs clssico, engajado, como Voltaire e Sartre, em lutas contra o poder26. Um exemplo a dedicao foucaultiana de revelar a verdade sobre suplcios punitivos e estratgias carcerrias, atitude que Rouanet remete queda da Bastilha, episdio crucial da Revoluo Francesa22 23 24 25 26 Op Cit. Pg. 234. ROUANET. As Razes do Iluminismo. Cia das Letras, 1987, pgs. 222-223. Op Cit. Pg. 195. Op Cit. Pg. 207. Op Cit. Pg. 214-215.

(1789): Foi o Iluminismo, transformado em fora histrica, que, ao demolir a Bastilha, comeou, com a crtica das armas, a denncia da 'instncia carceral' que Foucault prosseguiria com a arma crtica, quase duzentos anos depois.27 Estas lutas contra o poder que Foucault teria empreendido, segundo Rouanet, eram lutascontra um poder concreto dominao de classe ou disciplina molecular, mas em todo caso um poder encarnado na Quinta Repblica, no Ir do X ou na Unio Sovitica. Ele desfralda bandeiras absolutamente antiniilistas, como a da reforma penal. Toma partido, defende causas, tem aliados, formula estratgias em suma, comporta-se como quem tem valores ticos e est disposto a lutar por eles. No chamaria Foucault de um 'humanista', porque seria agredir quem lutou toda a vida contra a filosofia antropocntrica. Mas diria que, em sua defesa dos presos, dos homossexuais, de todos os grupos marginais, de todos os saberes 'desqualificados', Foucault foi o oposto de um niilista. No final de sua vida, esse lado generoso s fez reforar-se. () A conquista da liberdade pela livre aplicao do saber, com vistas ao aperfeioamento tico da humanidade: mais que nunca, a batalha de Foucault a do Iluminsmo... 28

***** A RELIGIOSA, de DIDEROT: UMA STIRA CRUEL DOS CONVENTOS A poca histrica em que emergiu o Iluminismo foi marcada por um exacerbamento de tendncias anti-eclesisticas e crticas custicas s religies institudas. Os mercadores de iluses e vendedores de pios psquicos passaram a ser desmascarados e destronados pela sagacidade e ironia de grandes mestres da stira, da ironia e da revolta. Este ataque aos Poderes Pastorais ento reinantes foi levada cabo atravs da pena ferina de autores como Voltaire e Diderot, dentre outros. Este ltimo, por exemplo, escreveu um romance lapidar - A Religiosa (tambm adaptado para o cinema, por Jacques Rivette, em 1995) - retratando os abusos de poder e as crueldades sdicas cometidos por autoridades que se pretendem ungidas pelo Senhor - neste caso especfico, as madres superioras e as freiras a elas subordinadas. O livro foi inspirado no caso real de Marguerite Delamarre (no romance referida apenas como Suzanne), uma jovem francesa que, na segunda metade do sculo XVIII, foi encarcerada num convento em Longchamps e reclamou juridicamente sua libertao, j que fora despoticamente forada a entrar para a vida religiosa por seus pais. "Peo para ser livre pois o sacrifcio de minha liberdade no foi voluntrio", diz ela ao requisitar sua libertao. A narrao da via-crcis de Suzanne foi um triunfo artstico tamanho de Diderot que a obra chegou a ser descrita como a mais cruel stira j feita contra os clautros". Trata-se, portanto, d um romance paradigmtico da atitude iluminista: segurar a Tocha da Razo para dispersar as trevas da Superstio, iluminar com a exposio e o escancaramente as violncias e iniquidades cometidas por intituies e autoridades religiosas. Suzanne, narradora em primeira pessoa de seu prprio martrio, pinta um retrato sombrio de tudo aquilo que padeceu nas mos das madres superioras retratadas pela pena de Diderot como pequenos lcifers de hbito. Segundo Suzanne, as religiosas s quais ela devia obedincia... "semearam vidros quebrados sob meus ps"29, "no me deram seno o alimento necessrio para que no morresse de fome; sobrecarregaram-me de mortificaes; multiplicaram o pavor em torno de mim, tiraram-me completamente o repouso noturno; tudo o que pode abater a sade e perturbar o27 Op Cit. Pg. 196. 28 ROUANET. Op cit. Pg. 205. 29 DIDEROT, Denis. A Religiosa (La Religieuse). Trad. Antonio Bulhes e Micio Tati. Editora Abril Cultural, So Paulo, 1980.

esprito foi feito; era um refinamento de crueldades de que no fazeis idia"... Diz que era obrigada a "passar o ofcio de joelhos", a "permanecer fechada na cela", a "atender s funes vis da casa". Confessa: "davam-me simultaneamente ordens incompatveis e me puniam por ter faltado a elas", "atiravam-me os alimentos mais grosseiros, e ainda os estragavam com cinzas e toda espcie de sujidades", "vivia ento entre quatro paredes nuas, em um quarto sem porta, sem cadeira, em p ou sobre uma esteira de palha, sem nenhum dos vasos mais necessrios, forada a sair de noite para satisfazer as necessidades da natureza, e acusada de manh de perturbar o sossego da casa, de errar e de enlouquecer"... Nas veredas da histria que narra com tanta maestria de romancista, Diderot insere reflexes filosficas altamente relevantes sobre o Poder Pastoral, chamando a ateno para os perigos da vida monstica e isolada, numa crtica ao ideal asctico que plausvel supor que Nietzsche aceitaria sem reproches. Para Diderot, a represso instintual e a vida completamente retirada do mundo conduz muito mais loucura, a pensamentos extravagantes e afeies bizarras. Dezenas de dcadas antes de Freud e Reich, Diderot j estava bem prximo de algumas idias da psicanlise que vinculam a emergncia de neuroses excessiva represso instintual:Votos que ferem a inclinao geral da natureza podero ser alguma vez bem observados, a no ser por criaturas mal organizadas, em que emurcheceram os germes das paixes, e que alinharamos com justa medida entre os monstros, se nossas luzes nos permitissem conhecer to facilmente, e to bem, a estrutura interior do homem quanto sua forma exterior? Todas essas lgubres cerimnias que observamos na tomada do hbito e na profisso-de-f, quando se consagra um homem ou uma mulher vida monstica e infelicidade, interrompem por acaso as funes animais? Ao contrrio, no se sublevam, no silncio, no constrangimento e na ociosidade, com uma violncia desconhecida das pessoas do mundo, que tm a ocup-las uma multido de distraes?

Diderot, mais uma vez manifestando um certo parentesco espiritual com o nietzschianismo, descreve o cristianismo como uma religio do martrio, criada mais para o consolo dos miserveis e dos infelizes do que destinada aos saudveis e felizes. Suzanne, ao filosofar sobre sua prpria religio, deixa isso subentendido:Foi ento que senti a superioridade da religio crist sobre todas as religies do mundo; que profunda sabedoria existe no que a cega filosofia chama a loucura da cruz. No estado em que me achava, de que teria me servido a imagem de um legislador feliz e coberto de glria? Eu via o inocente, o flanco atravessado, a testa coroada de espinhos, as mos e os ps cravados de pregos, expirando entre sofrimentos; eu me dizia: 'Eis a o meu Deus, e eu ouso queixar-me!...' Eu me agarrava a essa idia, e senti a consolao renascer-me no peito; conheci a vanidade da vida, e me senti feliz demais em perd-la antes de ter tido tempo de multiplicar minhas faltas." ()"No h seno um recurso, o de tornar nossa condio o menos deplorvel possvel... no se evitam os desgostos, decide-se apenas a suport-los. As pessoas religiosas s so felizes quando fazem um mrito, perante Deus, de suas cruzes; alegram-se ento, antecipam-se s mortificaes; quanto mais amargas e frequentes, tanto mais se felicitam; uma permuta da felicidade presente pela felicidade por vir; asseguram-se desta, aqui, pelo sacrifcio voluntrio daquela.

Diderot, como um dos representantes desta tendncia cultural iluminista e anti-eclesistica, mostra-nos nesta obra, atravs de descries extremamente vvidas, com frequncia saturadas de violncia, o quanto o poder pastoral capaz de engolfar uma vida humana transformando-a num inferno-na-terra. Neste sentido, A Religiosa pode ser considerado como um legtimo romance de combate no qual o autor procura demolir com palavras uma ordem social que pretende "encerrar em sepulcros jovens criaturas palpitantes de vida".

NIETZSCHE CONTRA O IMPRIO DO IDEAL ASCTICOAlgum quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?... Muito bem! Aqui se abre a vista a essa negra oficina... A fraqueza mentirosamente mudada em mrito... e a impotncia que no acerta contas mudada em bondade; a baixeza medrosa, em humildade; a submisso queles que se odeia em obedincia (h algum que dizem impor essa submisso chamam-no Deus). O que h de inofensivo no fraco, a prpria covardia na qual prdigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitvel ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de pacincia... Falam tambm do 'amor aos inimigos'... ...eles me dizem que sua misria uma eleio e distino por parte de Deus, que batemos nos ces que mais amamos; talvez essa misria seja uma preparao, uma prova, um treino, talvez ainda mais algo que um dia ser recompensado e pago com juros enormes, no em ouro mas em felicidade! A isto chamam de 'bem-aventurana', 'beatitude'. Agora me do a entender que no apenas so melhores que os poderosos, os senhores da terra cujo escarro tm de lamber (no por temor, de modo algum por temor! E sim porque Deus ordena que seja honrada a autoridade)... Mas basta, basta! No aguento mais! O ar ruim! O ar ruim! Esta oficina onde se fabricam ideais minha impresso de que est fedendo de tanta mentira! A GENEALOGIA DA MORAL. 1 Dissertao. #14. Cia de Bolso: pg. 34-35.

A filosofia de Nietzsche, descrita pelo mesmo como uma escola de suspeita, uma das mais radicais investigaes j empreendidas por um intelecto humano do fenmeno do idealismo, isto , da fbrica de forjar ideais que cada ser humano carrega consigo em seu corpo, em seu crebro, e que passada pelo crivo de uma suspeita radical. Todas as religies so, no seu nvel mais profundo, sistemas de crueldades30, escreve Nietzsche, cuja obra questiona o imprio do ideal asctico e das autoridades sacerdotais com um ardor poucas vezes encontrada antes ou depois dele. A filosofia nietzschiana provoca no intento de fazer refletir e tira qualquer um de sua zona de conforto, desestabilizando ortodoxias e dogmas: nunca se perguntaram realmente a si mesmos quanto custou nesse mundo a construo de cada ideal?, lana-nos Nietzsche em desafio. Quanta realidade teve de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser santificada, quanta conscincia transtornada, quanto 'Deus' sacrificado? Como veremos em mais detalhe quando tratarmos do pensamento Max Striner, o poder pastoral/sacerdotal compreendido tambm por Nietzsche como o reinado de homens criadores de ideais e que baseiam seus credos na exigncia de submisso, obedincia e auto-sacrifcio (sacrifcio da autonomia, do pensamento crtico, do desejo sexual etc....) em nome desses ideais transcendentes. Se h um fenmeno histrico-cultural central por trs das tempestuosas meditaes da Genealogia, do Anticristo e de tantas outras obras nietzschianas, parece-se ser aquilo que Nietzsche chama de a vitria de Israel sobre Roma, isto , como esclarece Leiter,the triumph of Christianity in the Roman Empire. This, of course, did not occur by force of arms, as the outcome of some violent uprising or revolution. It was, instead, a profound and gradual change of consciousness that culminated with the conversion of the

30 NIETZSCHE. Genealogia da Moral. Op Cit. 2a D. #03. Pg. 46.

emperor Constantine in 312 AD.31

Sabe-se que Nietzsche era filho e neto de pastores protestantes e que cresceu tendo as expectativas familiares voltadas demanda de que se tornasse religioso, como pai e av, e que chegou mesmo a estudar Teologia na Universidade de Bonn, antes de voltar-se para o estudo minucioso da produo cultural antiga como fillogo. o que se pode chamar de um apstata, que rompeu com o cristianismo (e o protestantismo) no seio do qual cresceu, e isto por razes muito complexas para que especulemos sobre elas por aqui, mas que talvez tenham relao com o trauma da criana que, aos 5 anos de idade, fica rf de pai e, pouco tempo depois, v morrer um beb, seu irmo. Se Nietzsche, na histria da filosofia, um dos filsofos que mais esforos concentra na minuciosa crtica e questionamento a respeito do cristianismo, em particular, e do fenmeno idealista-religioso, em geral, plausvel que isto se deva um longo processo de desconverso atravs da qual um intelecto intedependente emerge heroicamente, atravs de sua audcia e sua temerria lucidez, do constrangimento em que foi encerrado pela doutrinao cultural. Como relata seu bigrafo Rdinger Safranski (que possui obras dedicadas tambm a Schopenhauer e Heidegger)num tratado sobre 'A infncia dos povos', o rapaz [Nietzsche] de 17 anos se aprofunda na genealogia das religies universais. Escreve que elas se deviam a 'homens melanclicos que, levados pelas asas de sua imaginao descontrolada, se faziam passar por enviados dos deuses mais importantes..."32

Em 1865, Nietzsche confessa com franqueza irm o que pensa sobre a f e lhe d um relatrio sobre o que pensa sobre a religio:Escreve que mais cmodo acreditar no que nos consola. Mais difcil perseguir a verdade. Pois o verdadeiro no precisa limitar-se ao belo e ao bom. O amigo da verdade no deve pretender paz, calma e felicidade, pois a verdade pode 'ser muito feia e repulsiva', e por isso os caminhos das pessoas se separam diante da questo: 'queres paz da alma e felicidade, ento cr; queres ser apstolo da verdade, ento investiga'... 33

Nietzsche escolheu, decerto, ser apstolo da verdade e arregaou as mangas dos miolos para... investigar: o sacerdote do ideal asctico, a m conscincia resultante da introverso de tendncias reprimidas, o levante de escravos na moralidade, as religies como sistemas de crueldade dotados de sdicas mnemotcnicas... tudo passa pelo crivo da infatigvel suspeita nietzschiana. De acordo com uma penetrante anlise nietzschiana, por exemplo, a figura do sacerdote asctico teria como um de suas principais funes a justificao do sofrimento, j que aquilo que revolta no sofrimento no o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido34. A idia de Nietzche profunda e penetrante, como digno de um psiclogo perceptivo: o que o homem no suporta sofrer gratuitamente, sem ter feito nada para merec-lo. A figura do sacerdote asctico surge dotado de um discurso, de uma ideologia, de uma mitologia, que confere aos sofrentes justamente isto: uma explicao, uma justificao, um consolo, uma promessa de redeno. O que diz o padre cristo em seus sermes de missa? Persuade os homens de que, se eles sofrem, foi porque pecaram. Toda dor decorrente de uma falta moral prvia. No h sofrimento gratuito, imerecido. Como a Bblia relata de modo inequvoco, a humanidade, desde o casal primevo, est marcada pelo pecado, que se transmite de Ado e Eva para cada um dos recm-nascidos (criancinhas que morriam sem ser batizadas, segundo a teologia crist, eram condenadas ao limbo...). Os homens so convencidos de que precisam purgar-se do pecado atravs da penitncia, do auto31 32 33 34 LEITER, B. Nietzsche On Morality. Routledge, 2002, pg. 221. SAFRANSKI, Rdiger. Nietzsche: Biografia de uma Tragdia. Trad. Lya Luft. Gerao Editorial, 2011. Pg. 26 Idem. NIETZSCHE. Genealogia... op cit. 2a Dissertao. #07.

flagelamento, da confisso de suas indignidades. E, claro, pastores, padres, sacerdotes, a casta dos pregadores em geral, possui o privilgio e o poder de perdoar... Receitam uns 50 Pais-Nossos pra este pecador aqui, umas 150 Aves-Marias para aquele pecador acol, umas 400 chibatadas ou uns 3.000 degraus subidos de joelhos para aquel'outro, mais luxurioso ou desobediente, e assim distribuem clemncias. No s o sofrimento ganha sentido, como existe uma instituio social que os perdoa, j que os sacerdotes vendem a idia de que tem linha-direta com o Outro Mundo, como se comunicassem com Deus-Pai em transaes ntimas. Se Nietzsche rebela-se tanto contra o cristianismo pois considera-o no somente uma doutrina falsa e enganosa, baseada no conto-de-fadas embusteiro de uma dimenso transcendente onde tudo imperecvel, puro e belo, mas pois o cristianismo se apresenta, no domnio prtico e atravs de seu domnio poltico, como algo extremamente nocivo para a sade fsica e moral da humanidade. O advento do Deus cristo, o deus mximo at agora alcanado, trouxe tambm ao mundo o mximo de sentimento de culpa35, e foi esta neurose da culpa e do pecado que adoeceu ainda mais os homens, uma vez que o prprio prosperar fisiolgico, a prpria alegria provinda do sentimento de potncia, so rechaados pela doutrina crist. A moral judaico-crist, alm de baseada numa concepo metafsica platnica que Nietzsche rejeita como ilusria, criticada com severidade por vrias razes: por ser hostil vida (dirige o olhar, verde e maligno, contra o prprio prosperar fisiolgico36), sexualmente repressora (conseguiu fazer de Eros e Afrodite duendes infernais37), nascida de afetos reativos como o ressentimento e a crueldade internalizada (a ponto de ser equiparada a um levante de escravos na moral):A Igreja combate as paixes atravs do mtodo da extirpao radical; seu sistema, seu tratamento, a castrao. No se pergunta jamais: como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Em todas as pocas o peso da disciplina foi posto a servio de extermnio. (...) Mas atacar a paixo atacar a raiz da vida; o processo da Igreja nocivo vida.38

Nietzsche diagnostica na moralidade judaico-crist uma calnia contra a realidade terrena, uma averso a tudo que mundano, e esta tbua de valores anti-naturais no passaria de um doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos 39. Dois trechos, um da Genealogia e outro d'O Anticristo, sintetizam tais opinies:dio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa aos sentidos, razo mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparncia, mudana, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo tudo isso significa, ousemos compreend-lo, uma vontade de nada, uma m-vontade contra a vida 40 No encontramos nenhum deus, nem na histria nem na natureza, nem por trs da natureza mas sim sentimos aquilo que foi venerado como Deus, no como divino, mas como digno de lstima, como absurdo, como pernicioso, no somente como erro mas como crime contra a vida41

Dinamietzsche, pois, radical na crtica a esta figura do poder pastoral que deseja reduzir a vontade humana apatia para melhor reinar sobre ela, que quer uma humanidade de joelhos, em estado de absoluta submisso a seus ditames. Os valores que os pastores procuram impingir a suas 35 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. D2, #20, p. 73)36 37 38 39 40 41 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. Terceira Dissertao, 11. p. 358. NIETZSCHE. Aurora, 76. P. 149. NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos. A Moral Como Manifestao Contra a Natureza. 01. NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. II Dissertao. 7. Op Cit. III Dissertao. 28. NIETZSCHE. O Anticristo, 47.

ovelhas so aqueles que lanam o antema contra os prazeres carnais e o deleite esttico dos sentidos, que condenam a sexualidade e as alegrias terrestres, que gostariam de nos convencer de que somos todos pecadores indignos necessitados de penitncia, jejum e auto-flagelamento. Albert Camus, um dos luminares do existencialismo francs que mais foi influenciado pelo pensamento nietzschiano, destaca ainda, em uma obra que tem como tema a pena de morte e foi escrita a quatro mos com Arthur Koestler, que atravs dos sculos a punio capital foi com frequncia foi praticada com abundncia e justificada com argumentos teolgicos pelas autoridades religiosas:En fait, le chtiment suprme a toujours t, travers le sicles, une peine religieuse. Inflige au nom du roi, reprsentant de Dieu sur la terre, ou par les prtres, ou au nom de la socit considre comme uns corps sacr, ce n'est pas la solidarit humaine qu'elle rompt alors, mais l'appartenance du coupable la communaut divine... La vie terrestre lui est sans doute retire, mais la chance de rparation lui est maintenue. Le jugement rel n'est pas prononc, il le sera dans l'autre monde. Les valeurs religieuses, et particulirement la croyance la vie ternelle, sont donc seules pouvoir fonder le chtiment suprme puisqu'elles empchent, selon leus logique propre, qu'il soit dfinitif et irrparable. () Le bourreau se trouve alors investi d'une fonction sacre. Il est l'homme qui dtruit le corps pour livrer l'me la sentence divine...42

Aqueles que se auto-proclamam virtuosos, que se acreditam indubitavelmente pertencentes aos Eleitos e aos Bons, tambm arrogam-se certos privilgios, lembra-nos Nietzche como o de levar seu prprio feixezinho de lenha para a fogueira do condenado43. O poder pastoral, pois, estaria marcado por essa arrogncia tpica dos que ordenaram as Cruzadas e as torturas da Inquio. Quanto mais diminuir o imprio das religies e de todas as artes da narcose, sustenta Nietzsche, tanto mais os homens se preocuparo em realmente eliminar os males44. STIRNER CONTRA A TIRANIA DO SER SUPREMO Publicada em 1844, O nico e sua Propriedade, dinamite em formato de livro do provocador filosfico Max Stirner, causou grande alvoroo na Alemanha de seu tempo. Por sua radicalidade anarquista individualista foi rejeitado oficialmente como escandaloso ou absurdo pelo meio filosfico acadmico45. Apesar de ter sido proscrito do mundo intelectual srio e tratado como um pria pelos doutores em suas togas, Stirner fascinou e instigou grandes espritos de sua poca, de Karl Marx46 (que foi levado a escrever uma crtica dessa obra, mais ampla do que o livro criticado) a Feuerbach (que escreveu a seu irmo que Stirner era o escritor mais genial e livre que conheci). Outra das mais poderosas mentes do sculo XIX, Friedrich Nietzsche, muito provavelmente sofreu o impacto do pensamento stirneriano. Segundo o bigrafo Rdiger Safranski, logo depois do colapso de Nietzsche em Turim, desencadeou-se na Alemanha uma disputa acirrada sobre se Nietzsche teria conhecido Stirner e se deixara estimular por ele 47 e houve at aqueles que acusaram o autor do Zaratustra de ter plagiado idias stirnerianas. Algumas pessoas que conheceram Nietzsche, inclusive alguns de seus alunos, garantem que este citava Stirner como um pensador em quem reconhecia uma espcie de parentesco espiritual e uma semelhana de diagnsticos e objetivos filosficos.42 43 44 45 46 CAMUS, Albert. Rflexions Sur La Peine Capitale. Paris: Gallimard, 1957, 2002. P. 188-189. NIETZSCHE. Humando Demasiado Humano. #67. Op Cit. #108. SAFRANSKI. Op Cit. Pg. 113. In: MARX, Karl. A Ideologia Alem Crtica da mais recente filosofia alem em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemo em seus diferentes profetas. Editora Boitempo, 2007. 47 SAFRANSKI. Op Cit. Pg. 113.

O nico e sua Propriedade, principal obra de Stirner, uma crtica radical de todas aquelas causas sagradas e misses celestiais que algumas doutrinas querem sugerir que dever do homem honrar com submisso e sacrifcio. H tanta coisa a querer ser minha causa! A comear pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade para alm disso, a causa do meu povo, do meu prncipe, da minha ptria e, finalmente, at a causa do esprito e milhares de outras. A nica coisa que no est prevista que a minha causa seja a causa de mim mesmo! 48 Ateu convicto, Stirner um crtico profundo de todo idealismo e toda superstio: No cerne do ser humano, escreve Safranski, ele descobre uma fora criadora que produz fantasmas, para depois deixar-se oprimir pelos prprios produtos49 A pretenso dos detentores do poder pastoral de serem peritos em matria de causas que estaramos destinados a servir por imposio de foras transcendentes desmontado pela acidez do pensamento de Stirner at que se revele como um jogo espectral de fantasmagorias e tapeaes. Os homens em geral no so levados em considerao quando se cr no mandamento preciso obedecer mais a Deus do que aos homens (aluso s palavras de Pedro e dos apstolos, Atos 5, 29). A partir deste ponto de vista elevado, tudo o que terreno remetido para a distncia e desprezado porque o ponto de vista agora o celestial.50 O advento do Cristianismo descrito por Stirner, tal qual em Nietzsche, como uma indesmentvel inverso de valores em relao ao que vigia no sculo de Pricles, auge da cultura dita sofista. Descrito como inovador revolucionrio e herdeiro desrespeitador em relao ao judasmo, o Cristianismo dessacralizou o sbado dos pais para consagrar o seu domingo e interrompeu o curso do tempo para dar incio a uma nova contagem sua.51 Evidncia clara de que ainda no nos libertamos disto o fato de ainda estarmos presos a uma contagem de anos e de sculos que tomam como referncia primeira o nascimento de Cristo: dizemos que estamos em 2012 d.C., e no, como seria plenamente justificvel caso outra tendncia cultural tivesse triunfado, 2.509 depois de Sfocles, 448 depois de Shakespeare ou 203 depois de Darwin O cristo que acredita que a morte lhe abrir as portas para que adentre a ptria celeste, a Jerusalm l de cima, tender a postular que o mundo terreno vo, corrupto e sem valor, sentindo-se estrangeiro sobre esta Terra pecaminosa, j que aspira imaginariamente perfeio da morada dos Cus. Esta idealizao de um Alm perfeito, onde o devoto imagina que um dia habitar, gera, no presente, uma aguada batalha contra o sensvel e um encarniado desprezo do mundo, do corpo e dos desejos carnais. Mas no so somente os cristos que aderiram a uma perspectiva de negao do mundo como esta, claro, e Stirner reconhece alguns predecessores desta atitude nos esticos, nos cticos e nos msticos orientais hindus. O Cristianismo seria, portanto, uma dentre muitas doutrinas que pregaria o distanciamento em relao realidade terrena e faria da apatia, da impassibilidade e da imperturbabilidade em relao ao sensrio e ao carnal virtudes santas. O cristo ama apenas o esprito mas onde est o indivduo que realmente seja esprito e nada mais? 52 O cristo, segundo Stirner, devido ao ideal que possui do que um homem deveria ser, no cessa de condenar os homens de carne-e-osso por no serem a encarnao deste ideal espectral que ele imaginariamente lhes impe. Os homens s existem para serem criticados, ridicularizados, profundamente desprezados: eles so, no menos que para o padre fantico, apenas esterco53 . O cristianismo, que tambm segundo Nietzsche depositou sobre os ombros da humanidade o pesado fardo da culpa e tentou inculcar a noo de que somos todos pecadores, lana seu antema e acende suas fogueiras contra os homens que julga no fazerem jus ao seu ideal. E uma das figuras48 49 50 51 52 53 STIRNER, Max. O nico e Sua Propriedade. Trad. Joo Barrento. Ed. Martins Fontes, 2009. Pg. 09. SAFRANSKI. Op Cit. Pg. 115. STIRNER. Op Cit. Pg. 27. Op Cit. Pg. 24. Op Cit. Pg. 37. Idem item 51.

mais anatemizadas , segundo Stirner, a do egosta:Quem para ti o egosta? Um ser humano que, em vez de viver para uma idia, ou seja, uma causa espiritual, sacrificando a ela seus interesses pessoais, serve a estes ltimos. (42) Pode-se dizer, por exemplo, que o egosta, numa situao de guerra, aquele que recusa-se a fazer como o bom patriota que sacrifica-se no altar da ptria. por isso que tu desprezas o egosta: porque ele remete para segundo plano o espiritual para privilegiar o pessoal e pensa em si mesmo quando tu esperarias v-lo agir por amor a uma idia amaldioas todos aqueles que no vem no interesse espiritual seu verdadeiro e supremo objetivo54.

Mas no se trata somente de estigmatizar e perseguir aqueles que recusam-se a se sacrificar por um ideal transcendente: o prprio crente, como Nietzsche aponta em seus estudos sobre a m conscincia e a crueldade interiorizada, acaba vendo em si mesmo um inimigo. o que Stirner tambm diagnostica: Tu s um fantico contra tudo o que no esprito, e por isso te insurges contra ti prprio por no conseguires livrar-te de um resto de matria no espiritual.55 Manifesta-se a o que Nietzsche chamava de uma moralidade como anti-Natureza: o puro renuncia sua relao natural com o mundo para seguir apenas o anelo ideal que o domina 56. A renncia a si mesmo travestida de virtude e chamada de altrusmo. A tentativa de aniquilao da vontade prpria e o esforo constante para ser obediente e servil a um ser supremo acaba gerando fraqueza e apatia: o hbito da renncia arrefece o calor de teu desejo, escreve Stirner, e as rosas de tua juventude empalidecem na anemia de tua beatitude.57 J que o corpo e a realidade terrena foram estigmatizados como mpios e pecaminosos, o devoto passa a viver possudo pela crena de que s no esforo na direo do sagrado que ser consagrado. S atingir a bem-aventurana eterna e o descanso celestial junto ao coro dos anjos aquele que servir causa de Deus, causa do esprito. E a se escancara que os devotos, que tanto atacam o egosmo dos pecadores, possuem em seu desejo de redeno e salvao um interesse altamente egosta! J que sonham com um cu que o fim da renncia e lugar da livre fruio58, os fiis no passam de egostas que no se confessam como tais, hedonistas que adiam para o alm- tmulo a grande festa de prazeres infindos que desejam Os devotos que desejam que sua alma viva eternamente em meio s mais deleitosas delcias paradisacas, que realizam atos de altrusmo e filantropia sempre tendo em vista a recompensa celestial que lhes ser dada, so justamente aqueles que condenam com selvageria o egosmo dos mpios! O sagrado s existe para o egosta que no se reconhece, para o egosta involuntrio, para aquele que se coloca sempre em primeiro lugar sem, no entanto, se considerar o ser supremo, que s serve a si prprio e ao mesmo tempo pensa servir a um ser superior em suma, para o egosta que no quer ser egosta e se rebaixa, ou seja, combate seu egosmo, mas ao mesmo tempo s se rebaixa parar poder ser elevado, que o mesmo que dizer: para satisfazer seu egosmo. Como quer deixar de ser egosta, procura no cu e na terra seres superiores a quem servir e a quem se sacrificar; mas por mais que se sacuda e se mortifique, ao cabo de tudo, o que faz o faz to-somente por interesse pessoal, e seu famigerado egosmo nunca o abandona.59 Stirner critica a religio por povoar o mundo de espectros e assombraes que so criaes humanas demasiado humanas. Os devotos, que tm o costume de dizer que seus inimigos so possessos, na verdade so eles mesmos vtimas de uma possesso por idias fixas: obcecados pelo bem, pela virtude, pela moralidade, eles se fixam em suas opinies e concebem que o sagrado no54 55 56 57 58 59 STIRNER. Op Cit. Pg. 43. Op Cit. Pg. 44. Op Cit. Pg. 79. Op Cit. Pg. 82. Op Cit. Pg. 90. Op Cit. Pg. 50.

nada mais do que aquilo que merece o entusiasmo mais fantico. Tal como Nietzsche, que dizia que convices so prises, Stirner no v com bons olhos estes que se aferram a perspectivas que querem imutveis em seu interesse fantico pelo sagrado60 (60). O sagrado tambm aquilo que justifica os maiores sacrifcios. E aqueles que mais sacrificam so aqueles que mais pretendem ser abnegados e altrustas, acusando de egostas, frios e calculistas aqueles que recusam a auto-imolao nos altares de Deus, do Esprito, da Ptria, da Humanidade Stirner coloca em questo:no sero interesseiros e egostas estes homens que tudo sacrificam? Como tm apenas uma paixo, buscam uma nica satisfao, mas de forma tanto mais fantica: todo o sentido da sua vida se esgota nela. () Uma grande idia, uma boa causa, so, por ex., a honra de Deus, pela qual milhes encontraram a morte; o cristianismo, que encontrou seus mrtires voluntrios; a Igreja, nica via da salvao, que se alimentou avidamente do sacrifcio dos hereges; a liberdade e a igualdade, que estiveram a servio de sangrentas guilhotinas (...) Encontramos aqui a velha iluso do mundo que ainda no aprendeu a se libertar do clericalismo que lhe diz que a vocao do homem viver e trabalhar por uma idia e que seu valor humano se mede pela fidelidade em sua realizao.61

O desprezo pelo terreno e a negao da sensualidade e da naturalidade o preo deste fanatismo pelo sagrado. O homem de carne-e-osso imolado em nome do homem ideal ou do esprito. A voz da carne considerada como diablica e forada a se silenciar, e como subprodutos desta represso emergem muitas neuroses, j que s quando se d conta da voz da carne que um ser humano se d conta completamente de si, e s quando se d conta completamente de si que ele um ser verdadeiramente perceptivo e racional. O cristo no percebe a misria de sua natureza amordaada62. Contra isto, Stirner faz aluso a uma tarefa ainda por realizar: a de dissolver o esprito em seu nada fazer o esprito descer ao nvel da nulidade63. Pois o esprito no passa de uma produo humana, um espectro inventado pelo crebro, uma fantasia febril da funo fabulatriz. Somos seres de carne-e-osso que sonharam que eram espritos e acreditaram em sua prpria lorota. hora de despertar! Stirner lembra-nos ainda que as crianas so apresentadas religio e moralidade atravs do doutrinamento, do catecismo, da imposio pelos mais velhos de supostas verdades atemporais. Esta pedagogia que exige das crianas a venerao e a submisso, enquanto so dogmaticamente educados, acaba por inculcar-lhes idias que jamais produziriam se fosse mais respeitada a reflexo prpria e a autonomia de pensamento.Abarrotados assim de sentimentos impostos, apresentamo-nos no tribunal da maioridade e somos declarados adultos e responsveis. Nosso equipamento para a viagem consiste em sentimentos edificantes, pensamentos sublimes, mximas inspiradoras, princpios eternos. Os jovens so dados como adultos quando papagueiam os mais velhos; na escola, enchem-lhes os ouvidos com a velha ladainha e, uma vez assimilada esta, concede-se-lhes acesso maioridade.64

Refletindo sobre os meios de que utilizam as autoridades pastorais para atingir influncia moral sobre o rebanho, Stirner destaca o papel da humilhao, que quebra e faz vergar a coragem, reduzindo-a humildade:Espera-se que um indivduo concreto se vergue ante a vocao do homem, que seja obediente e humilde, que renuncie sua vontade em favor de uma outra que lhe estranha e quer valer como mandamento e lei. Ele deve, ento, se humilhar perante algo superior: auto-humilhao. Aquele que se humilhar ser exaltado (Mateus 23, 12). Pois60 61 62 63 64 Op Cit. Pg. 60. Op Cit. Pg. 100. Op Cit. Pg. 84. Op Cit. Pg. 93. Op. Cit. Pg. 87.

, as crianas tm de ser educadas a tempo no sentido da devoo, da religiosidade e da honradez; um indivduo de boa educao aquele a quem os bons princpios foram ensinados e inculcados, metidos na cabea fora pela sova e pela doutrina.65

Stirner sonha com uma rebelio de espritos livres que chacoalhem esta ladainha que lhes inculcada e queno vo querer herdar vossa estupidez como vs a herdastes de vossos pais; vo eliminar de vez o pecado que herdaram, o pecado original. Quando lhes ordenares: Curva-te perante o Altssimo!, eles vo responder: Se Ele nos quer fazer vergar, que venha c e o faa, que ns no o faremos de livre vontade. E quando os ameaardes com Sua ira e Seu castigo, ele vo reagir como se o ameasseis com o Bicho Papo. E se no conseguirdes meter-lhes medo com fantasmas, isso sinal de que chegou ao fim o domnio dos fantasmas e de que as histrias da carochinha j no encontram quem nelas tenha f.66

CONSIDERAES FINAIS ....o retorno dos fundamentalismos religiosos nos coloca diante de um risco de imensas propores. Em primeiro lugar, porque, tendo a modernidade lanado a religio para o espao privado, hoje, o encolhimento do espao pblico e o alargamento do espao privado podem dar novamente s religies a funo de produzir a ordenao e a coeso sociais. Em segundo lugar, porque a histria j mostrou os efeitos dessa ordenao e coeso promovidas pela religio, ou seja, a luta sangrenta pelo poder sob a forma das guerras de religio. MARILENA CHAU 67 Quo conveniente para os tiranos e monarcas nicos era reinar sobre um povo imbudo da crena de que aquele que senta sobre o trono foi ungido e consagrado pelos deuses! Ou melhor, por Deus: pois Ele imaginado como nico, tal qual a autoridade suprema no palcio. Esta fraude j foi devidamente protestada historicamente s lembrar das majestosas cabeas que rolaram com as guilhotinas jacobinas na Degola dos Reis na Revoluo Francesa, ou dos atentados e homicdios perpetrados pelos russos contra os czares. A falcia do direito divino, declarada enfim ilegtima, fraudelenta e baseada num embuste interesseiro, tentou ser varrida fora do palco da Histria: no mais o the king is dead, long live the King!; a repblica ou a comuna so reclamados, fora de baionetas, contra a caduquice da monarquia teocrtica. O sagrado expulso da poltica e a laicidade vitoriosa solicita que a f se restrinja, no mximo, esfera privada. Aps este percurso em que seguimos Foucault, Diderot, Nietzsche, Stirner, Chau etc. em suas investigaes sobre a religio e as autoridades religiosas, e no qual procuramos mostrar a atualidade deste fenmeno do teolgico-poltico, impe-se a concluso de que o poder pastoral realmente no passou pelo processo de revoluo profunda que o teria aposentado definitivamente da histria. O autoritarismo pastoral tm a tendncia a desejar sempre mais fiis, mais seguidores, mais ovelhas no rebanho ou seja, nas palavras de Stirner, as autoridades sacerdotais encarnam aquele tipo de idealista tirnico no qual o esprito quer estender-se para fundar seu reino. Em sua obra em que lida da polmica entre Karl Marx e Stirner, Jos Crisstomo de Souza aponta que a obra stirneriana, utilizando-se de um procedimento menos afim dialtica hegeliana do que a um certo nietzschianismo audazmente especulativo, procura demonstrar o caminho da constituio, pelo indivduo, do esprito como transcendente; e da sua subseqente alienao nele68.65 Op. Cit. Pg. 107. 66 Op. Cit. Pg. 108. 67 CHAU. O retorno do teolgico-poltico... Op cit. Pg. 112. 68 CRISSTOMO DE SOUZA, Jos. A Questo da Individualidade A Crtica do humano e do social na polmica

O indviduo aliena-se de si mesmo ao acreditar na existncia transcendente de suas prprias criaes: homens de carne-e-osso criaram fantasmagorias como Deus e Alma Imortal e depois, acreditando que existissem fora deles mesmos, puseram-se de joelhos, jurando obedincia e servido quilo que no existe fora deles: Os pensamentos, nascidos do meu crebro, puseram-se acima de mim, tomando uma aparncia real e pessoal, como verdadeiros espectros tais como Deus, a Humanidade ou a Ptria... 69 Devolver os espritos sua inanidade para que eles deixem de ter poder sobre o indivduo: eis a o essencial do empreendimento demolitrio comum a Stirner e Nietzsche, estes ghostbusters que pretendem exterminar todos os espectros e iluses que dominam o indivduo no seu ntimo e o afastam de si enquanto indivduo70. O ato de submisso autoridade de um ser transcendente equivaleria a uma espcie de autoaniquilao: na medida em que me curvo perante o esprito perfeito, escreve Stirner, como um esprito que no me prprio, mas sim um esprito transcendente, sinto a minha vacuidade. 71 Nietzsche diz algo semelhante quando se refere vontade do homem cristo de sentir-se culpado e desprezvel: sua vontade de erigir um ideal o do 'santo Deus' e em vista dele ter a certeza tangvel de sua total indignidade72.Na poca dos espritos, os pensamentos dominavam minha cabea, da qual eles eram, no entanto, produtos; como fantasias delirantes, eles flutuavam ao meu redor e me agitavam como um poder aterrorizante. Os pensamentos haviam se tornado corpreos, eram fantasmas como Deus, o imperador, o papa, a ptria etc.; se destruo a sua corporeidade, Eu os reintegro minha corporeidade e digo: apenas eu sou corpreo.73

Segundo a clebre frmula de Marx, a religio o pio do povo e conduziria a um certo comodismo e apatia tpicos daqueles que esperam que a salvao caia dos cus, enquanto que o materialismo histrico exige, ao contrrio, que os oprimidos e deserdados enxotem seu prprio servilismo e partam para a revoluo concreta da realidade econmica e social. Nada ser dado de graa; tudo dever ser reclamado e tomado. Nietzsche aponta, neste sentido, que para os servis a religio crist til, pois nela o servilismo toma o aspecto de uma virtude crist e fica espantosamente embelezado74. O autor de O nico e Sua Propriedade considerava as representaes ilusrias da religio, as fantasmagorias inventadas pelo crebro humano e tomadas erroneamente por potncias externas tirnicas, s quais dever-se-ia servir e em prol de quem digno se sacrificar, como algo de amplas ressonncias no mundo objetivo, por assim dizer. Os espectros no esto isolados do Real: os espectros motivam aes humanas, moldam personalidades, sugerem condutas, aprovam hierarquias, de modo que a espectralidade, atravs da ao real dos idealistas sobre o mundo, consegue moldar objetivamente a realidade social humana. Os fantasmas, possuindo mentes humanas, tiranizam objetivamente! As religies erguem imensos templos de tijolo e concreto, e dentro deles juntam-se milhes de pessoas de carne-e-osso, que juntas pesam toneladas e cujas vozes cantando em unssono representa um verdadeiro ciclone de ar em movimento; as religies moldam comportamentos, influenciam fenmenos na esfera econmica, social e cultural, motivam atos grandiosos, desde a filantropia mais desapegada aos homens-bomba terroristas, desde cultos de massa a CDs e DVDs que se tornam best-sellers; pretendem pr a colher em assuntos dos mais variados: pesquisa com clulastronco, legalizao do aborto, direitos civis dos homossexuais etc.Stirner-Marx. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. Pg. 19. 69 70 71 72 73 74 Idem. Op Cit. Pg. 21. Citado por MARX, Karl. A Ideologia Alem. Op cit. Pg. 375. NIETZSCHE. Genealogia... 2a D, #22, pg. 75. MARX, Karl. Ideologia Alem, sesso So Max. Op Cit. Pg. 129. NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. #115.

J Marx, na leitura de Crisstomo, consideraria o pio do povo de modo um pouco diverso: como mero representar falsamente o mundo, aparentemente sem qualquer incidncia sobre sua organizao e funcionamento... uma falsa representao, de modo geral incua ou irrelevante, de um mundo objetivamente alienado.75 Libertar-se da religio seria, para Stirner, uma libertao da opresso [exercida] pelo esprito e que conduziria o indivduo soberano ao reconhecimento de sua unicidade e autonomia. J Marx concebe a vitria sobre as iluses religiosas como um mero abandono de lentes deformantes.76 Ao invs de considerar a religo como 'causa sui', diz Marx, deve-se esclarec-las a partir das condies empricas e indicar como determinadas condies industriais e de intercmbio esto necessariamente ligadas a uma determinada forma de sociedade, portanto a uma determinada forma de Estado e, por conseguinte, a uma determinada forma de conscincia religiosa.77 A crtica de Marx a Stirner estaria na suposio que o autor d'O Capital atribui a Stirner de que o homem destri verdadeiramente estes poderes ao expulsar de sua cabea a falsa opinio que deles tinha78. O que Marx critica em Stirner este crer que o imperador, o papa ou o pastor deixam de ter poder s porque eu expulsei da cabea a falsa opinio que deles tinha: Ao contrrio, prossegue Marx, adotando o tom de um conselheiro poltico, um lder de foras coordenadas na transformao concreta das sociedades,agora que no enxerga mais o mundo atravs das lentes de sua imaginao, ele tem de atentar para a estrutura prtica deste mundo, tomar conhecimento dela e agir de acordo com ela. Ao destruir a corporeidade imaginria que, para ele, o mundo encarnava, ele acaba por encontrar a real corporeidade do mundo, fora de sua imaginao. Com o desaparecimento da corporeidade fantasmagrica do imperador, desaparece para ele no a corporeidade mas sim o carter fantasmagrico do imperador, cujo poder ele pode agora, enfim, apreciar em toda a sua extenso.79

Trata-se, portanto, de duas propostas de salvao para um mundo sem Deus: Stirner oferece a via de um Eu que recusa submisso e obedincia a seres supremos e transcendentes, quaisquer que sejam: a ptria, a religio ou a ideia abstrata de humanidade; Marx, sugere a via daqueles que percebem nas condies materiais dos homens a fonte destes epifenmenos culturais que so religies e filosofias, e que no esperam somente da crtica terica que realize sua libertao: ao invs de somente compreender o mundo, ao invs de superar apenas mentalmente a submisso a ideais, deve-se revolucionar a estrutura social, como indicado no clebre trecho que em que Marx lida com o pio do povo - e com o qual encerramos nosso estudo sobre o poder pastoral, suas causas e fontes, as cicatrizes que deixou na histria, os mecanismos de sua tirania e as vias plausveis de ao em nossa tentativa de libertao:A abolio da religio como a felicidade ilusria do povo necessria para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as iluses sobre sua condio o apelo para abandonarem uma condio que necessita de iluses. A crtica da religio , portanto, em embrio, a crtica do vale das dores, cuja aurola a religio. A crtica arrancou as flores imaginrias que enfeitavam as cadeias, no para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolao, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crtica da religio desaponta o homem com o fito de faz-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razo, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.

75 76 77 78 79

CRISSTOMO. Op Cit. Pg. 21. Op Cit. Pg. 22. MARX. Op Cit. Pg. 156. Op Cit. Pg. 130. Idem.

A prova evidente do radicalismo da teoria alem, e deste modo a sua energia prtica, o fato de comear pela decisiva superao positiva da religio. A crtica da religio culmina na doutrina de que o homem o ser supremo para o homem. Culmina, por conseguinte, no imperativo categrico de derrubar todas as condies em que o homem aparece como um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezvel.80

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