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A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JEFFERSON CARDIM DE ALENCAR OSÓRIO: BRASIL-URUGUAI (1960-1970) Bruno Marinho Trindade Mestrando do PPG em História/UFSM [email protected] Cristiane Medianeira Ávila Dias Doutoranda do PPG em História/UFRGS [email protected] RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar algumas considerações sobre a trajetória política do ex-coronel do Exército, Jefferson Cardim de Alencar Osório 1 , entre os anos de 1960 e 1970. Os destaques foram a participação de Cardim na Campanha da Legalidade (1961), na Guerrilha de Três Passos (1965) e sua prisão em Buenos Aires (1970), numa ação conjunta entre os serviços secretos do Brasil e da Argentina. As fontes utilizadas para compor essa trajetória foram documentos produzidos por órgãos de segurança brasileiros e depoimentos. Com base nesses dados pretende-se utilizar como referencial teórico os aportes do Terrorismo de Estado (TDE), vinculado a um num processo mais amplo o de implantação de ditaduras civis-militares de segurança nacional nos países do Cone Sul, nas décadas de 1960 e 1970. PALAVRAS CHAVES: Jefferson Cardim; Ditadura Civil-Militar; Exílio; Terrorismo de Estado. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente trabalho tem o objetivo de apresentar uma breve análise sobre as ações políticas de Jefferson Cardim, principalmente na Campanha da Legalidade em 1961 e na Guerrilha de Três Passos um movimento de oposição à ditadura civil- militar de SN brasileira, estruturado no Uruguai e colocado em andamento no Brasil no ano de 1965. A participação do ex-coronel do Exército nesses eventos chamou a atenção dos órgãos de segurança brasileiros, que passaram a vigiar as suas atividades em território nacional e no exterior. Dessa forma, Cardim foi preso em duas ocasiões; a primeira, no Paraná em 1965, depois que a Guerrilha de Três Passos foi desmantelada 1 No restante do artigo, o ex-coronel irá ser chamado de Jefferson Cardim.

A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JEFFERSON CARDIM DE … · movimentos de oposição nos países da América Latina que, mais tarde, desencadeariam a guerra subversiva em seus territórios

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A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JEFFERSON CARDIM DE ALENCAR

OSÓRIO: BRASIL-URUGUAI (1960-1970)

Bruno Marinho Trindade

Mestrando do PPG em História/UFSM

[email protected]

Cristiane Medianeira Ávila Dias

Doutoranda do PPG em História/UFRGS

[email protected]

RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar algumas considerações sobre a

trajetória política do ex-coronel do Exército, Jefferson Cardim de Alencar Osório1, entre

os anos de 1960 e 1970. Os destaques foram a participação de Cardim na Campanha da

Legalidade (1961), na Guerrilha de Três Passos (1965) e sua prisão em Buenos Aires

(1970), numa ação conjunta entre os serviços secretos do Brasil e da Argentina. As

fontes utilizadas para compor essa trajetória foram documentos produzidos por órgãos

de segurança brasileiros e depoimentos. Com base nesses dados pretende-se utilizar

como referencial teórico os aportes do Terrorismo de Estado (TDE), vinculado a um

num processo mais amplo – o de implantação de ditaduras civis-militares de segurança

nacional nos países do Cone Sul, nas décadas de 1960 e 1970.

PALAVRAS – CHAVES: Jefferson Cardim; Ditadura Civil-Militar; Exílio;

Terrorismo de Estado.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem o objetivo de apresentar uma breve análise sobre as

ações políticas de Jefferson Cardim, principalmente na Campanha da Legalidade em

1961 e na Guerrilha de Três Passos – um movimento de oposição à ditadura civil-

militar de SN brasileira, estruturado no Uruguai e colocado em andamento no Brasil –

no ano de 1965. A participação do ex-coronel do Exército nesses eventos chamou a

atenção dos órgãos de segurança brasileiros, que passaram a vigiar as suas atividades

em território nacional e no exterior. Dessa forma, Cardim foi preso em duas ocasiões; a

primeira, no Paraná em 1965, depois que a Guerrilha de Três Passos foi desmantelada

1 No restante do artigo, o ex-coronel irá ser chamado de Jefferson Cardim.

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pelas Forças Armadas, e a segunda, na Argentina em 1970, quando ele tentou atravessar

o país com o objetivo de alcançar o Chile, onde pretendia se exilar com a família.

A perseguição a Jefferson Cardim ocorreu porque a ditadura de SN brasileira,

baseada nas diretrizes teóricas da Doutrina de Segurança Nacional2 (DSN), entendia as

ações políticas do ex-coronel como subversivas e perigosas à manutenção da ordem e da

estabilidade política interna. Por supostamente atentar contra os valores “democráticos,

cristãos e ocidentais” da sociedade brasileira, Cardim foi enquadrado no conceito de

“inimigo interno”, agravado pelo fato dele ter pertencido ao Exército que, na visão das

Forças Armadas, o qualificava como um traidor da pátria.

Nessa perspectiva, para a DSN, o cidadão só se realizava como tal ao tomar

consciência do seu pertencimento à nação, uma comunidade coesa e harmônica, sem

conflitos sociais, capacitada a atender e satisfazer todas as duas demandas. O sujeito que

discordava publicamente dessa concepção, como Jefferson Cardim, passava a ser

considerado um “mau brasileiro”, propagador de “ideologias estranhas”, que precisava

ser combatido pelo aparato estatal. Essa repressão poderia ocorrer tanto em âmbito

interno como externo, pois o conceito de “fronteiras ideológicas”, gerado pela mesma

doutrina, salientava a necessidade do inimigo interno ser perseguido onde ele se

encontrasse. Por essa razão Cardim foi preso na Argentina e encaminhado de volta ao

Brasil, no final de 1970.

As fontes históricas utilizadas para compor esse artigo foram o depoimento de

Jefferson Lopetegui de Alencar Osório3, filho do ex-coronel, prestado aos consultores

da Comissão Nacional da Verdade4 (CNV), em 2013. Cabe destacar que a CNV foi

instaurada no Brasil no ano de 2012, com o objetivo de apurar as violações de direitos

humanos praticadas por agentes do Estado, entre os anos de 1946 e 1988. Em seu

relatório final, publicado no final de 2014, a comissão trouxe uma série de informações

2 “A Doutrina de Segurança Nacional (DSN) era uma espécie de “esqueleto teórico”, que baseava suas

prerrogativas na Guerra Fria e na existência de um conflito permanente entre dois mundos inimigos:

mundo comunista e bárbaro, representado pela União Soviética, em oposição ao mundo livre, ocidental e

capitalista, representado pelos Estados Unidos” (PADRÓS, 2005, p. 185). 3 No restante do artigo, o filho do ex-coronel será chamado de Jefferson Osório. 4 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 03 mai.

2018.

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a respeito da ação conjunta que reuniu agentes do serviço secreto brasileiro e argentino,

com o objetivo de efetuar a prisão de Jefferson Cardim no país vizinho5.

A outra fonte usada são documentos produzidos pelo Centro de Informações do

Exterior (CIEX). O acervo do CIEX tornou-se conhecido em 2007, quando o Correio

Braziliense publicou uma série de reportagens expondo detalhes sobre o órgão de

segurança, que seria formado por diplomatas de vários escalões, funcionando como uma

espécie de serviço de Inteligência do Itamaraty. Nesse sentido, o CIEX teria atuado

entre 1966 e 1985, período no qual reuniu um acervo com mais de 20 mil páginas de

documentos contendo detalhes sobre as atividades dos brasileiros em países da América

Latina, Europa, ex-União Soviética e África6.

2. AS FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS ANTES E APÓS O GOLPE CIVIL-

MILITAR DE 1964

Vale destacar que o início da década de 1960 foi um período particularmente

conturbado na história do Brasil e da América Latina, em razão dos desdobramentos da

Guerra Fria. Dessa forma, o governo dos Estados Unidos, temendo um alinhamento

político-ideológico dos países latino-americanos a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas (URSS), a exemplo do que ocorreu com Cuba após a Revolução de 1959,

passou a intervir com mais intensidade junto as Forças Armadas dessa região,

propagandeando, por intermédio da DSN, o perigo que o comunismo poderia

representar para a estabilidade de todo o continente.

O general Golbery do Couto e Silva, principal teórico da DSN no Brasil,

defendia que diante da nova tática utilizada pelo comunismo para a conquista do mundo

ocidental, – a “guerra limitada” ou “subversiva” –, o país devia se alinhar aos Estados

Unidos para combater o regime soviético. Para Golbery, nesse tipo de conflito a tarefa

da União Soviética consistia em incitar os descontentamentos sociais e a formação de

5 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado a CNV em 16 de janeiro de 2013, no

Rio de Janeiro. 6 SEQUEIRA, Cláudio Dantas. O serviço secreto do Itamaraty. Correio Braziliense (DF). 22/07/2007.

Disponível em: <http://www.deunojornal.org.br/materia.php?mat=173506&pl=Jucelino>. Acesso em: 23

jun. de 2018.

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movimentos de oposição nos países da América Latina que, mais tarde, desencadeariam

a guerra subversiva em seus territórios nacionais. Assim, na medida em que a miséria

aumentava na região, também aumentava o perigo insurrecional e a possibilidade de

instauração de “um governo favorável à ideologia comunista” (SILVA, 1981, p. 193).

O setor das Forças Armadas influenciado pela DSN estava concentrado

principalmente na Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949 com o apoio do

governo dos Estados Unidos. Tal aproximação ocorreu durante a Segunda Guerra

Mundial (1939-1945), quando oficiais brasileiros alinharam-se ideologicamente aos

estadunidenses, encantado com a máquina de guerra estruturada por aquele país. Os

oficiais formados nessa escola integravam os grupos que, reunidos no Instituto de

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e no Instituto Brasileiro de Ação Democrática

(IBAD), se organizaram para derrubar o presidente João Goulart com o golpe civil-

militar, no início de 1964 (COMBLIN, 1978).

Deve-se destacar que a DSN foi crucial para se entender as motivações que

levaram alguns ex-militares, entre os quais Jefferson Cardim, a serem perseguidos pelas

Forças Armadas após o golpe 1964 e a instauração da ditadura no Brasil. Isto porque,

apesar de ser preponderante dentro das Forças Armadas, a DSN não contava com uma

total adesão dentro dos quartéis que desde meados da década de 1940, especialmente

sobre os militares subalternos7 e, em menor grau, sobre os oficiais8, sofriam a influência

da corrente nacionalista. Um de seus adeptos, o ex-tenente do Exército José Wilson da

Silva, relata em seu livro de memórias intitulado O tenente vermelho, a presença das

ideias nacionalistas entre os militares brasileiros:

O Movimento Nacionalista passou a defender os minérios estratégicos e

todas as riquezas do subsolo como propriedades da Nação e não susceptíveis

de ser explorado por empresas estrangeiras. [...]. O oficial ou sargento que se

posicionasse defendendo as teses nacionalistas era afastado de comandos,

transferido para unidades longínquas, criando dificuldades para sua carreira

(DA SILVA, 2011, p. 205).

7 Deste grupo fazem parte os militares graduados ou praças, o que corresponde a soldados, marinheiros,

cabos, sargentos e subtenentes. 8 Deste grupo fazem parte os militares com os postos de tenentes, capitães, coronéis, almirantes, generais

e marechais. O coronel Cardim fazia parte deste grupo minoritário de oficiais nacionalistas.

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Não se deve desconsiderar também a penetração que o Partido Comunista

Brasileiro (PCB) e a chamada esquerda pecebista teve, mesmo que em menor escala do

que o nacionalismo, dentro das Forças Armadas. No começo da década de 1960, esse

partido defendia durante essa fase, o desencadeamento de uma revolução dividida em

duas etapas, da qual a primeira correspondia a uma fase democrático-burguesa, e a

segunda, a implantação definitiva do socialismo. Esse posicionamento aproximou o

PCB da esquerda trabalhista, representada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Observa-se que Jefferson Cardim manteve ligações políticas com o PCB, apesar de não

ter se filiado oficialmente ao partido.

Nesse período, o Brasil sofria os efeitos de uma grave crise econômica que

afetou a conjuntura política nacional, provocando a renúncia de Jânio Quadros ao cargo

de presidente da República, em 1961. Diante desse quadro, um grupo de militares se

uniu na tentativa impedir a posse do vice-presidente João Goulart, que naquele

momento realizava uma viagem oficial a China, enquanto outro, constituído

principalmente de militares do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, se contrapôs

a esses setores, aderindo a um movimento radiofônico organizado pelo ex-governador

Leonel Brizola, com o objetivo de garantir a posse de Jango.

A Campanha da Legalidade, como ficou conhecida essa mobilização, garantiu a

posse de João Goulart na presidência, ao mesmo tempo em que projetou a figura de

Leonel Brizola no cenário político nacional. Assim, Brizola se tornou a principal

liderança política da chamada esquerda nacionalista, que possuía propostas mais

avançadas em relação à realidade brasileira do que aquelas defendidas pela esquerda

pecebista e trabalhista. Por essa razão, enquanto o PTB e o PCB defendiam o projeto

das Reformas de Base, que previam ajustes no sistema educacional, financeiro, agrário e

estudantil brasileiro, os nacionalistas adotavam posições anti-imperialistas defendendo,

por exemplo, a nacionalização de vários recursos existentes no Brasil.

O movimento também tornou mais visível, as divergências ideológicas

existentes dentro das Forças Armadas. Nesse sentido, parte dos militares, alinhados as

ideias da esquerda – pecebista, petebista ou nacionalista – defenderam a posse de João

Goulart, como determinava a Constituição brasileira. Tal grupo era constituído

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majoritariamente por militares que integravam os setores subalternos das Forças

Armadas, em sua maioria sargentos e por um número reduzido de oficiais, entre os

quais se encontrava o então coronel do Exército, Jefferson Cardim. Para José Wilson da

Silva, “em esmagadora maioria os sargentos e uns poucos oficiais ficaram com os

dispositivos constitucionais, enquanto um forte contingente de oficiais tentou jogar suas

tropas para o lado dos ministros golpistas. Os oficiais nacionalistas e democratas

ficaram ao lado da constitucionalidade” (2011, p. 33).

Diante dessa divisão interna, vários militares que participaram da Campanha da

Legalidade foram acusados de quebrar a hierarquia e a disciplina interna das Forças

Armadas brasileiras. Por essa razão, esses militares passaram a ser perseguidos, presos

e, posteriormente, transferidos para unidades militares existentes em outras regiões do

Brasil. Essas punições começaram durante o movimento e se estenderam após a posse

de João Goulart. Entre os militares punidos se encontrava Jefferson Cardim, detido em

1961, acusado de participar desse evento.

A partir dessa fase, os setores das Forças Armadas alinhados ideologicamente

com a DSN, passaram a arquitetar o golpe que resultou na deposição de João Goulart,

em 1964. Após a instauração da ditadura civil-militar de SN, os militares utilizaram as

premissas dessa doutrina para criar leis que permitiam atuar de forma clandestina no

sentido de perseguir e punir com violência os setores de oposição, que em muitos casos

não estavam vinculados a partidos ou organizações de esquerda. Nesse sentido, todas

aquelas pessoas que não concordavam de alguma maneira com a ditadura i eram

consideradas, de forma genérica como, “subversivas” ou “comunistas”. Sobre isso,

acrescenta-se que:

A identificação de um “inimigo interno” que visava desestabilizar as relações

do seu país com os EUA, produzindo mudanças, ratificou a necessidade de

sua eliminação, enquanto foco de tensão. Tal situação implicou em introjetar,

nos marcos nacionais, a realidade conflitiva da Guerra Fria. A defesa dos

interesses estadunidenses na América Latina – sua zona de influência abalada

desde 1959 – levou a superpotência capitalista a considerar a política interna

de cada país da região como extensão da sua política externa, ou seja, os

assuntos de segurança interna desses países passaram a ser entendidos como

sendo da sua segurança. Sendo assim, apoiando-se nos setores confiáveis da

classe dominante, os EUA estimularam a adoção da ideia de que havia uma

“guerra interna” a ser enfrentada (PADRÓS, 2005, p. 55).

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Na fase pós-golpe, os militares identificados com as ideias de esquerda foram

presos, expulsos ou desertaram das Forças Armadas. Vários desses militares,

juntamente com o presidente deposto, João Goulart e o ex-governador do Rio Grande

do Sul, Leonel Brizola, ao lado de outras lideranças políticas e sindicais, se exilaram no

Uruguai. Esse foi o caso também de Jefferson Cardim que, na época, já residia em

Montevidéu, em função dos serviços que prestava ao governo Jango, como diretor-

técnico do Lloyd Brasileiro9. Após o fracasso dos planos para uma resistência imediata

ao golpe, Brizola se uniu a outras lideranças políticas, sindicais e militares, que também

se encontravam exiladas em território uruguaio, para articular um novo movimento de

oposição à ditadura no Brasil. O desenvolvimento desse projeto, porém, gerou

divergências nesse grupo de exilados, conforme relatou José Wilson da Silva:

Paulo Schiling, coronel Jefferson, até nosso amigo coronel Alvarez não se

conformavam em não saber o que estávamos fazendo àquela altura. Ficaram

fora desse núcleo valorosos e decididos amigos que ao longo do tempo

passaram a duvidar do que procurávamos fazer, mas havia uma realidade: se

fôssemos contar a cada um tudo que planejávamos, então era melhor fazer

comício, com a quebra total da reserva dos assuntos. Então estaríamos

entregando companheiros que se encontravam debaixo do tacão da ditadura

para serem presos e torturados (DA SILVA, 2011, p. 138).

O afastamento do ex-coronel Jefferson Cardim do grupo de Leonel Brizola, no

que se refere aos novos planos de luta contra a ditadura brasileira, articulados no

Uruguai, é ainda um ponto controverso. A dúvida recai quanto ao apoio dado pelo ex-

governador a tais ações. De acordo com José Wilson da Silva (2011), as movimentações

do grupo de Cardim teriam ocorrido de forma independente, devido ao crescente

descontentamento do ex-coronel com Brizola. Por essa razão, o dinheiro que financiou o

grupo de Cardim teria vindo de outras lideranças políticas, entre as quais, João Goulart.

O depoimento de Paulo Schilling10, presente no livro do jornalista José da Costa, sobre

a Guerrilha do Caparaó11, corrobora com os argumentos do ex-tenente, quando diz que:

9 Esta era uma companhia estatal brasileira de navegação. 10 Foi um dos líderes ligados a Brizola durante o exílio no Uruguai e participou das articulações para

ações armadas no Brasil durante a ditadura. Nos anos anteriores ao golpe civil-militar, chefiou a

assessoria agrária do governo de Brizola, quando este era governador do Rio Grande do Sul. 11 Campo de treinamento montado na serra do Caparaó, entre os anos de 1966 e 1967, na divisa entre os

estados de Minas Gerais e Espírito Santo, da qual foi montada pelo Movimento Nacionalista

Revolucionário (MNR). Esta organização foi criada no Uruguai, por Brizola e outras lideranças políticas

e militares exiladas no país, após o fracasso das tentativas de levante com o golpe de 1964.

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Foi essa gente que fez aquela loucura [...]. Pegaram um caminhão, encheram

de gente e resolveram fazer a revolução [...]. O Jefferson ficou com ódio total

de nós e resolveu se vingar. Foi logo preso e disse, em seu depoimento, que

eu, o Brizola e o Dagoberto é que o havíamos mandado fazer aquilo. Fomos

julgados à revelia, eu peguei minha maior pena: condenados a nove anos de

prisão, eu, o Brizola e o Dagoberto (COSTA, 2007, p. 311).

No diário de Jefferson Cardim, em meio às suas anotações sobre a travessia que

fez na fronteira do Uruguai em direção ao Brasil fica subentendido que Brizola teria

participado da elaboração das ações armadas organizadas por seu grupo12. Tal

movimento, liderado por Cardim e o ex-sargento da Brigada Militar, Alberi Vieira dos

Santos, ficou conhecido como a Guerrilha de Três Passos ou Guerrilha do Alto Uruguai,

devido ao fato de ter partido das cidades de Três Passos e de Tenente Portela, situadas

no interior do Rio Grande do Sul. Sob o comando do ex-coronel, o grupo armado de

vinte e três pessoas, entre civis e ex-militares (estes também vindos do Uruguai), partiu

em direção ao estado do Mato Grosso, onde, de acordo com Maciel, planejavam “tomar

a Base Aérea de Campo Grande para se juntar às forças sob o comando do ex-coronel

da Aeronáutica, Emanuel Nicoll, e acreditava que ainda haveria adesões ao longo do

percurso” (2013, p. 79).

O grupo guerrilheiro, no entanto foi surpreendido pelas tropas do Exército no

estado do Paraná, próximo ao município de Capitão Leônidas Marques e acabou

desarticulado, com a prisão de vários integrantes, entre os quais os líderes da Guerrilha

de Três Passos, Jefferson Cardim e Alberi Vieira dos Santos. Na prisão, Cardim, sofreu

uma série de torturas físicas e psicológicas. Posteriormente, o ex-coronel foi condenado

pelo Superior Tribunal Militar (STM) a dez anos de prisão e permaneceu, segundo o seu

filho, Jefferson Osório, “incomunicável durante muitos anos13”.

No ano de 1968, Jefferson Cardim, que se encontrava preso em Curitiba, no 5º

Regimento de Obuses (5º RO), estabeleceu contato com um militar da ativa que se

posicionava contra a ditadura. Conforme Jefferson Osório, na época com 15 anos de

idade, ao entrar em contato com seu pai, foi informado que o mesmo “estava tendo um

12 Diário do Coronel Jefferson Cardin. Documentos Revelados. Disponível em:

<https://www.documentosrevelados.com.br/repressao/finalmente-revelado-o-diario-do-coronel-jefferson-

cardin-lider-da-guerrilha-dos-dentes-de-ouro/> Acesso em: 15 jun. 2018. 13 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado a CNV em 16 de janeiro de 2013, no

Rio de Janeiro.

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relacionamento muito bom com um cabo desse quartel, chamado Victor e que esse cabo

tinha tendências socialistas e que estava querendo ajudá-lo”14. Com o apoio desse cabo,

de seu filho e do ex-major do Exército, Joaquim Pires Cerveira, Cardim conseguiu

articular um plano e fugir da prisão.

Após a fuga, Jefferson Cardim e o filho foram para o Rio de Janeiro. Em

seguida, o ex-coronel procurou a embaixada do México e solicitou asilo político. Sua

solicitação foi atendida e Cardim partiu para o exílio em território mexicano, ficando

afastado da família até retornar ao Uruguai, em 1970. Observa-se que a esposa do ex-

coronel era uruguaia e os seus filhos possuíam dupla cidadania, fato que auxiliou o

estabelecimento da família no país vizinho. O exílio, porém, não evitou que os órgãos

de segurança brasileiros vigiassem as atividades de Cardim e de seus familiares, fato

que resultou na sua prisão, no final desse ano, durante a travessia pela Argentina.

3. A PRISÃO DE JEFFERSON CARDIM NA ARGENTINA

No final de 1968, quando Jefferson Cardim já se encontrava exilado no México,

a ditadura de SN brasileira decretou o Ato Institucional n.º 5, AI-5. Para Alves (2005), o

processo de institucionalização da repressão estatal que teve início após o golpe e a

criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, atingiu o ápice com esse

ato, ao permitir a abolição do habeas corpus para crimes políticos. Tal medida forneceu

o respaldo que os órgãos de segurança necessitavam para agir deliberadamente contra

cidadãos supostamente vinculados a ações de caráter “subversivo”, atingindo

organizações de esquerda, adeptas ou não da luta armada, como também parte da

população não envolvida diretamente em atividades políticas.

Padrós (2005) enfatiza que o AI-5 permitiu a instauração do Terrorismo de

Estado (TDE) no Brasil, ao conceder os subsídios institucionais que os órgãos de

segurança precisavam para fazer uso da violência indiscriminada, com o objetivo de

acabar com as ações de todos os sujeitos que se enquadravam no conceito de inimigo

14 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado a CNV em 16 de janeiro de 2013, no

Rio de Janeiro.

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interno. Nesse sentido, em 1969, a ditadura funda a Operação Bandeirante (OBAN), em

São Paulo, integrando as operações da polícia e das Forças Armadas, que passam a

monitorar, perseguir, prender, torturar, assassinar e desaparecer, um número cada vez

mais elevado de opositores políticos.

Os efeitos da aplicação sistemática de violência estatal não tardaram a aparecer,

pois um ano após a criação da OBAN, a maioria das organizações de luta armada se

encontrava praticamente desestruturadas no Brasil, com a maior parte de seus

integrantes sendo torturados em prisões espalhadas pelo país. Os militantes que

conseguiram deixar a prisão e os que temiam se tornarem as próximas vitimas do

aparato repressivo estatal, resolveram deixar o país e seguir em direção ao exílio.

O Uruguai, porém, não era mais o território seguro e livre que os brasileiros

encontraram na fase posterior a decretação do golpe civil-militar de 1964 no Brasil. O

país que havia servido de pano de fundo para a montagem da Guerrilha de Três Passos,

a partir da chegada de Pacheco Areco a presidência, em 1967, se aproximou da ditadura

brasileira e passou a compartilhar com seus órgãos de repressão, informações sobre a

comunidade de exilados residentes no país. Posteriormente, vários brasileiros se

tornaram vítimas de operações repressivas, estruturadas em conjunto pelos serviços

secretos dos dois países.

Diante desse panorama, a maior parte dos brasileiros optou por se exilar no

Chile que, diferentemente do Uruguai, vivia um clima de abertura política, com a vitória

do candidato socialista, Salvador Allende, para a presidência nas eleições de 1970. O

programa da Unidade Popular15 (UP), coalização de partidos e organizações de esquerda

que dava sustentação ao governo Allende, previa a transformação do sistema capitalista

sem romper os limites institucionais vigentes no país. Tal projeto, inédito a nível

mundial, atraiu a atenção de militantes de esquerda, não apenas brasileiros, como latino-

americanos, que foram para o país interessados em acompanhar, apoiar ou mesmo

integrar, a experiência chilena de implantação do socialismo.

15 PROGRAMA DE LA UNIDAD POPULAR, 1969. Disponível em:

<http://www.archivochile.com/entrada.html>. Acesso em: 05 jul. 2012.

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Entre esses ativistas encontrava-se Jefferson Cardim que, após deixar o México

em 1969 e realizar uma série de viagens a países da América Latina, Europa e África,

resolveu se exilar no Chile com a família, no final de 1970. O objetivo do ex-coronel era

estabelecer contato com a comunidade de brasileiros, que a cada dia, aumentava no país.

Além disso, em seu depoimento a CNV, Jefferson Osório salientou que Cardim tomou

essa decisão depois que Salvador Allende lhe ofereceu o cargo de assessor da

presidência em assuntos que envolviam questões militares e fronteiriças com os demais

países do Cone Sul16.

No momento em que realizava a travessia para o Chile, no entanto, Jefferson

Cardim foi preso juntamente com o filho e o sobrinho em Buenos Aires, numa operação

que reuniu órgãos de segurança brasileiros e argentinos. Uma série de documentos,

localizados no arquivo do CIEX em Brasília, evidenciam que as atividades do ex-

coronel do Exército, nas ocasiões em que ele realizou viagens para o Uruguai ou a

Argentina, estavam sendo monitoradas desde o início de 1970:

1.JEFFERSON CARDIM DE ALENCAR OSÓRIO estaria atualmente

tentando estruturar no Uruguai movimento com a colaboração do deputado

comunista (castrista) uruguaio ARIELL COLLAZO e buscando contatos com

a organização terrorista “TUPAMAROS”, através do cidadão uruguaio

RUBEM MONTES DE OCA, proprietário de uma editora em Montevidéu de

nome “SANDINO”. 2. JEFFERSON já teria se entrevistado com COLLAZO

por duas vezes, havendo o deputado uruguaio financiado viagem efetuada por

JEFFERSON ao Chile. 3. Em 21/JAN/70, o filho mais velho de JEFFERSON

teria viajado da ROU para o Brasil, em ônibus da companhia “EVES”. 4.

Durante a estada em Buenos Aires, JEFFERSON teria comparecido à

Embaixada da Argélia naquela capital, solicitando prorrogação do passaporte

argelino de que é portador17.

Partindo de uma das premissas do TDE, que prevê a irradiação da violência para

além do inimigo interno, atingindo também as pessoas de seu entorno social, como

amigos, familiares e colegas de trabalho, o aparato repressivo estatal brasileiro

monitorou também as atividades da família de Jefferson Cardim no exterior. Nesse

sentido, um informe produzido pelo CIEX em abril de 1970, fornecia dados a respeito

da viagem realizada pela esposa e o filho do ex-coronel ao Uruguai: “1. Em fevereiro de

16 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade

(CNV), no dia 16 de janeiro de 2013, no Rio de Janeiro. 17 Arquivo Nacional Brasília DF/Acervo dos Órgãos de Informações do Regime Militar/Centro de

Informações do Exterior (CIEX)/BR AN, BSB IE.05.2, p. 26/42. Asilados brasileiros no Uruguai.

Jefferson Cardim de Alencar Osório. Ligações com “Tupamaros”. 05 de fevereiro de 1970.

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1970, viajaram a Montevidéu, no Uruguai, com destino a Porto Alegre, no RS, em

ônibus da “Cia Eves”, JEFFERSON LOPETEGUI DE ALENCAR OSÓRIO e

CORINA CARDIM DE ALENCAR OSÓRIO, filhos do ex-coronel brasileiro,

JEFFERSON DE ALENCAR OSÓRIO”18.

Um dos responsáveis pelo repasse dessas informações ao CIEX era Alberto

Conrado, filho de um ex-diplomata brasileiro, que atuaria como agente infiltrado desse

órgão de segurança junto à comunidade de brasileiros exilados no Uruguai e,

posteriormente, no Chile. Entre outras atribuições, Conrado teria recebido a missão de

vigiar as atividades de Jefferson Cardim e de sua família, em outros países. A

proximidade entre o agente e o ex-coronel, foi confirmada no depoimento de Jefferson

Osório a CNV, onde ele relatou o seguinte:

Então fomos ao Chile, papai se encontrou com o Dr. Almino Afonso, com

várias pessoas lá, depois voltamos para Montevidéu com o Alberto, ai não

saia de casa e ai o papai já havia sido convidado pelo presidente Salvador

Allende para trabalhar junto com ele, assessorar ele em assuntos militares,

países do Conesul e de fronteiras e isso ai que assustou e isso ai que assustou

o governo brasileiro e o Alberto [Conrado] deve ter dado essa informação

para o Exército [...]. [Alberto Conrado] era próximo de várias casas, de vários

exilados, ele tomava chá com todo mundo19.

Dessa forma, o jornalista uruguaio Alberto Conrado, utilizando os pseudônimos

de “Altair”, “Zuleica”, “Johnson” e “Carlos Silveira”, atuaria com um dos agentes do

CIEX infiltrado entre os brasileiros e suas respectivas organizações de esquerda, em

envolvidas em ações políticas no Uruguai e no Chile20. Um relatório de oitocentas e

doze páginas21, produzidos por esse órgão de segurança, demonstra que Conrado

monitorou as atividades de vários brasileiros exilados, além de ter trocado informações

com agentes de outros serviços secretos em atividade nos países do Cone Sul.

Tal relatório demonstra que Alberto Conrado teve envolvimento direto com a

prisão de Jefferson Cardim na Argentina, enviando informações a agentes locados em

18 Arquivo Nacional Brasília DF/Acervo dos Órgãos de Informações do Regime Militar/Centro de

Informações do Exterior (CIEX)/BR AN, BSB IE.05.3, p.06/82. Uruguai. Familiares de JEFFERSON

OSORIO viajam ao Brasil. 15 de abril de 1970. 19 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade

(CNV), no dia 16 de janeiro de 2013, no Rio de Janeiro. 20 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 03 mai.

2018. 21 Arquivo Nacional-Brasília-DF/ Acervo dos Órgãos de Informações do Regime Militar/Centro de

Informações do Exterior (CIEX)/ BR AN, BSB IE.25.1. Alberto Octavio Conrado Avegno. 812 páginas.

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Buenos Aires sobre o carro do ex-coronel, as pessoas que o acompanhavam na

travessia, entre outras. Após a prisão, Conrado relata os dados que os policiais

argentinos teriam obtido durante os interrogatórios do sobrinho, do filho e do próprio

Cardim, em suas dependências, bem como o retorno desse grupo ao Brasil,

acompanhados de agentes do aparato repressivo estatal brasileiro. Ao final, Conrado

alerta para o fato de que essa prisão pode gerar suspeitas na comunidade de brasileiros

residentes no Uruguai, pois o agente foi a última pessoa a estabelecer contato com o ex-

coronel, antes dele e seus familiares deixarem o Uruguai22. O filho do ex-coronel

confirma a montagem de uma operação para prendê-los durante o desembarque na

Argentina.23

Nesse contexto, a prisão de Jefferson Cardim e de seus familiares na Argentina,

não foi uma operação aleatória, pois suas atividades no exterior foram sistematicamente

monitoradas por agentes do CIEX. Uma das razões que motivou tal vigilância foi o fato

dele ter sido um integrante das Forças Armadas que, no decorrer de sua carreira, se

afastou dessa instituição para liderar uma ação de guerrilha contra um governo, que na

interpretação da maior parte dos militares brasileiros, havia salvado o país da influência

comunista. Assim, Cardim não era apenas mais um subversivo, mas um inimigo

perigoso, com treinamento militar que o capacitou a participar da estruturação de um

movimento de oposição à ditadura como a Guerrilha de Três Passos.

De acordo com Padrós (2005), a ênfase na manutenção da disciplina e da

hierarquia institucional foram compromissos que se fizeram presentes não apenas nas

Forças Armadas do Brasil, como dos demais países do Cone Sul, nas décadas de 1960 e

1970. Esses foram utilizados, na medida em que transcorriam as ditaduras de SN na

região, para “diluir” as responsabilidades pelos atos arbitrários praticados no período

entre a corporação e evitar futuras deserções. Os militares que não aderiram ou se

posicionaram contra essas diretrizes, tornaram-se alvos do aparato repressivo, fato que

culminou, em alguns casos, na chamada “queima de arquivo”, pois “a quebra do

22Arquivo Nacional-Brasília-DF/ Acervo dos Órgãos de Informações do Regime Militar/Centro de

Informações do Exterior (CIEX)/ BR AN, BSB IE.25.1. Alberto Octavio Conrado Avegno. 812 páginas. 23 OSÓRIO, Jefferson Lopetegui de Alencar. Depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade

(CNV), no dia 16 de janeiro de 2013, no Rio de Janeiro.

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compromisso corporativo condena os desertores à condição de traidores, antipatriotas;

pior, traidores entre camaradas de armas, fato imperdoável (p.96)”.

Soma-se a isso o fato de Jefferson Cardim poderia, ao se exilar no Chile,

estabelecer contato e formar uma rede de solidariedade, não apenas com os brasileiros

exilados no país, como com os partidos e organizações de esquerda chilenas, já que o

seu filho apontou a aproximação existente entre o ex-coronel e o presidente Salvador

Allende. Tais relações poderiam auxiliar na formação de outros movimentos de

oposição a ditadura, que teriam como base o Chile.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessas considerações, entende-se que Jefferson Cardim, ao participar da

Campanha da Legalidade em 1961 e, principalmente, ao liderar a Guerrilha de Três

Passos, tornou-se um dos alvos do aparato repressivo estatal brasileiro, em território

nacional e no exterior. O ex-coronel do Exército e seus familiares, conseguiram

sobreviver à operação clandestina montada pelos serviços secretos do Brasil e da

Argentina no final de 1970. Outros brasileiros exilados, no entanto, foram presos em

situações semelhantes e encontram-se desaparecidos; Edmur Péricles Camargo, em

1971, Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, em 1973, e Onofre Pinto, Joel José de

Carvalho, Gilberto Faria Lima, José Lavecchia, Daniel de Carvalho, Enrique Ruggia e

Victor Ramos, em 1974.

Nessa perspectiva, mesmo que a troca de informações e a montagem de

operações em conjunto entre as ditaduras de SN do Cone Sul tenha se oficializado

somente em 1975, com a Operação Condor, desde o início da década de 1970, os

serviços secretos mantinham relações de colaboração no sentido de atingir seus

opositores políticos exilados em outros territórios. Nesse cenário, destaca-se o papel do

CIEX, um órgão de segurança fundado em 1966, com o objetivo de monitorar a

comunidade de brasileiros exilados no Uruguai, que mais tarde ampliou suas atividades

para o Chile, além de outros países da América Latina, África e Europa.

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Petrópolis: Vozes, 2005.

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América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

COSTA, José Caldas. Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura. São Paulo:

Boitempo, 2007.

DA SILVA, José Wilson. O tenente vermelho. 4. ed. Porto Alegre: Age, 2011.

MACIEL, Wilma Antunes. Militares de esquerda: participação política e engajamento

na luta armada. Perseu: História, Memória e Política, v. 8, p. 64-91, 2013.

PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay...:Terror de Estado e Segurança

Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre:

UFRGS, 2005. Tese (Doutorado História) – Programa de Pós-Graduação em História,

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Porto Alegre, 2005. 2 t.

SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o Poder Executivo &

Geopolítica do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.