A Trama e o Drama Do Engenheiro

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HELENA MARIA TARCHI CRIVELLARI

A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIRO

MUDANA DE PARADIGMA PRODUTIVO E RELAES EDUCATIVAS EM MINAS GERAIS

CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO DA UNICAMP 1998

HELENA MARIA TARCHI CRIVELLARI

A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIROMUDANA DE PARADIGMA TECNOLGICO E RELAES EDUCATIVAS EM

MINAS GERAIS

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE REDAO FINAL DA TESE DEFENDIDA POR HELENA MARIA TARCHI CRIVELLARI E APROVADA PELA COMISSO JULGADORA. DATA: 25/06/98 _________________________________ PROFA. DRA. MRCIA DE PAULA LEITE ORIENTADORA

CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO DA UNICAMP 1998

FICHA CATALOGRFICA

TESE APRESENTADA COMO EXIGNCIA PARCIAL PARA OBTENO DO TTULO DE DOUTOR EM EDUCAO NA REA DE CONCENTRAO: CINCIAS SOCIAIS APLICADAS EDUCAO COMISSO JULGADORA DA FACULDADE DE EDUCAO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, SOB A ORIENTAO DA PROFA. DRA. MRCIA DE PAULA LEITE.

COMISSO JULGADORA:

PROFA. DRA. MRCIA DE PAULA LEITE (ORIENTADORA)

MINHA ME, LDA,S MINHAS FILHAS,

LUCIANA E ELISA.

E MEMRIA DE MEU PAI, GERALDO CRIVELLARI.

AGRADECIMENTOS

AGRADEO

A TODAS AQUELAS PESSOAS E ORGANIZAES,

PBLICAS E PRIVADAS, NO

BRASIL

E NA

FRANA,

CUJO

APOIO E INTERESSE TORNARAM POSSVEL A REALIZAO DESTA TESE.

...

A NOVA ORDEM DEVE SER FUNDADA NA COMPREENSO

DE QUE A GERAO DE RIQUEZA NO PODE PRESCINDIR DO TRABALHO PRODUTIVO, COM A ENGENHARIA MANTENDO SEU PAPEL HISTORICAMENTE RELEVANTE.

DEVE

O TRABALHO,

POIS, SER RECONDUZIDO AO LUGAR DE DESTAQUE, HOJE OCUPADO PELOS JOGOS FINANCEIROS, QUE MESMO

MOVIMENTANDO GRANDES VOLUMES DE CAPITAL EM ESCALA MUNDIAL BSICOS. NO CONSEGUEM RESOLVER PROBLEMAS

NA

VERDADE, PARECEM VISAR APENAS A TROCA

DE DONOS DE EMPRESAS E A PRODUO DE INJUSTIA E CAOS SOCIAL: DE DESEMPREGO, RENDA PARA E AMPLIAO TRANSFERNCIA AS MOS DOS DA DO J

CONCENTRAO PATRIMNIO

PBLICO

ECONOMICAMENTE PRIVILEGIADOS.

SRGIO B. ALMEIDA PRESIDENTE SINDICATO DOS ENGENHEIROS DO RIO JANEIRO. (SENGE, 1995: 8)

DO DE

RESUMO

Baseada em fontes secundrias e entrevistas com dirigentes das principais escolas de engenharia e grandes empresas do ramo da minerao, siderurgia e indstria automobilstica, localizadas em MinasGerais, a tese discute a relao educativa que articula as escolas e as empresas. O conceito de relao educativa faz parte do corpo terico da Escola Francesa da Regulao, de onde se evidencia que, durante o perodo fordista, o Estado teve um papel preponderante na formao de engenheiros que trabalhariam no prprio aparelho do Estado, ou na indstria por ele controlada. J durante o ps-fordismo, num contexto de privatizao da indstria e de autonomia universitria, novas relaes de foras se estabelecem e pressionam pela definio de um outro padro de relao educativa, capaz de envolver diferentes atores sociais.

ABSTRACT

Based on secondary sources and through enterviews with manages of some of the important engineers schools and large metallurgie enterprises, located in Minas Gerais (Brazil), this study comprises into two parts. The first discusses the fordism period and its educational rapport, when the State role predominated on the engineers background education and development, in order to work with the State it self and industry setting controlled by the State. The second part discusses the main issues of this issues of this study: - in the post-fordism period, within the context of industry privatization as well as the university autonomy, a new educational rapport should be built? Wich new social actors will be involved with the qualification politics to industrial production? With what rapport? With which policies?

SUMRIO

LISTA DE TABELAS, FIGURAS E QUADROS 1INTRODUO

14PARTE I : O CENRIO E OS ATORES

2 2.1

O SUCESSO E O ESGOTAMENTO DO FORDISMO A VIA KEYNESIANA

26 26 28 29 31 34 36 39 46 51 53 55 59 62 67 73 73 75 80 81 84 87 89 93 94 98 103 105 109 114 116

2.2 O FORDISMO 2.2.1 A ORGANIZAO INDUSTRIAL FORDISTA 2.2.2 POLTICA SALARIAL FORDISTA 2.2.3 FORDISMO NO BRASIL 2.3 O PS-FORDISMO 2.3.1 ENTRE A COOPERAO E A COMPETIO 2.3.2 A MUNDIALIZAO FINANCEIRA 2.4 O TRABALHO NA ERA PS-FORDISTA 2.4.1 MUDANAS NA ESTRUTURA INDUSTRIAL: CADEIAS E REDES PRODUTIVAS 2.4.2 MARCHAS E CONTRAMARCHAS DA EXPERINCIA JAPONESA 2.4.3 MIMETISMO EM MO DUPLA 2.4.4 RELAO SALARIAL E CONSTRUO DE IDENTIDADES PROFISSIONAIS 2.4.5 BRASIL: REESTRUTURAO PRODUTIVA E QUALIFICAO DA MO-DEOBRA

3

ENGENHEIROS: FORMAO PROFISSIONAL E RELAO EDUCATIVA

3.1 ASPECTOS CONCEITUAIS 3.1.1 QUALIFICAO E FORMAO PROFISSIONAL 3.1.2 UM ESPAO DE LUTA 3.2 ENGENHEIROS: CONSTRUO E TRANSFORMAO DA CATEGORIA SOCIAL 3.2.1 SEMELHANAS E DIFERENAS ENTRE OS MODELOS DE FORMAOPROFISSIONAL

3.2.2 AS ESPECIALIDADES SE MULTIPLICAM 3.2.3 A PERDA RELATIVA DE PRESTGIO 3.2.4 HOMENS DE ORGANIZAO 3.2.5 FORDISMO E INVESTIMENTO EM CAPITAL HUMANO 3.2.6 FORMAO E PROFISSO NA ERA PS-FORDISTA 3.2.6.1 MULTIPLICIDADE DE ATORES E DE VARIVEIS 3.3 RELAO EDUCATIVA: COMPARAO INTERNACIONAL 3.3.1 FRANA E ALEMANHA: DOIS MODELOS PARADIGMTICOS 3.3.2 JAPO: ENGENHEIROS E TCNICOS 3.3.3 BAIXA COOPERAO NOS ESTADOS UNIDOS

4 4.1 4.2 4.3 4.4 4.5 4.6 4.7 4.8

ENGENHEIROS EM MINAS GERAIS A CRIAO DA ESCOLA DE MINAS GORCEIX, SEU ESPRITO E O ESPRITO DA POCA O INCIO DA PRODUO DO AO RELAO EDUCATIVA NA LTIMA VIRADA DO SCULO ENGENHEIROS EM BELO HORIZONTE PRIMEIRA METADE DO SCULO A EXPLOSO ESCOLAR DOS ANOS 60 ENGENHEIROS BRASILEIROS NA CRISE

118 119 122 125 129 131 135 139 141

PARTE II : A TRAMA (PESQUISA DE CAMPO)

5

ENCADEAMENTO DAS EMPRESAS PESQUISADAS

148 152 159 168 172 173 186 188 198 198 204 206 210 220 220 229 243 247

5.1 MINERAO : A COMPANHIA VALE DO RIO DOCE 5.1.1 A CVRD E O PROCESSO DE REESTRUTURAO PRODUTIVA 5.1.2 PRIVATIZAO DA VALE. 5.2 SIDERURGIA : A USIMINAS 5.2.1 USIMINAS. 5.3 INDSTRIA AUTOMOBILSTICA : A FIAT 5.3.1 A FIAT DE BETIM. 6ESCOLAS DE ENGENHARIA

6.1 A ESCOLA DE MINAS 6.2 6.3 6.4 7 7.1 7.2 8 9ESCOLA DE ENGENHARIA DA UFMG INSTITUTO POLITCNICO DA PUC-MG COOPERAO OU DEFECO? RELAO EDUCATIVA EM MINAS GERAIS. SOBRE AS EMPRESAS E AS ESCOLAS RELAO EDUCATIVA CONCLUSES REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

LISTA DE FIGURAS / QUADROS / TABELAS

FIGURAS FIGURA FIGURA FIGURA

123-

O CRCULO VIRTUOSO DO FORDISMO. NOS ANOS 80, A COMPETITIVIDADE PEDE MAIOR POLIVALNCIA() (...) PARA UM MODELO ALTERNATIVO AO FORDISMO.

32 231 233

QUADROS QUADRO 1QUADRO 2QUADRO 3QUADRO 4QUADRO 5QUADRO 6QUADRO 7QUADRO 8QUADRO 9TABELAS TABELA TABELA TABELA TABELA TABELA TABELA RELAO EDUCATIVA: UMA DEFINIO. CARACTERSTICAS DA RELAO SALARIAL A RELAO ENTRE O SISTEMA EDUCACIONAL E OS REQUISITOS DA FIRMA USIMINAS: NVEL DE INTEGRAO DOS EQUIPAMENTOS AUTOMATIZADOS USIMINAS: AUTOMAO X EXPANSO, REDUO E REALOCAO DA MO-DE-OBRA FIAT: FORNECEDORES INSTALADOS EM MG. FIAT: PRINCIPAIS FORNECEDORES. QUADRO COMPARATIVO DAS ESCOLAS. COMPARAO ENTRE A INDSTRIA E A ESCOLA.

106 107 108 181 182 193 193 213 238

123456-

TABELA 7TABELA 8TABELA 9TABELA 10TABELA 11TABELA 12-

EVOLUO DOS ATIVOS FINANCEIROS POR TIPO DE INVESTIDOR CVRD: EVOLUO DAS UNIDADES PRODUZIDAS. CVRD: EVOLUO DAS VENDAS PARA O MERCADO INTERNO E EXTERNO CVRD: ITENS IMPORTANTES PARA O CONSUMIDOR CVRD: EVOLUO DOS INVESTIMENTOS USIMINAS: EVOLUO DAS VENDAS PARA O MERCADO INTERNO E EXTERNO USIMINAS: TREINAMENTO ANUAL. FIAT: EVOLUO DO EMPREGO FIAT: EVOLUO DOS INVESTIMENTOS RENTABILIDADE DOS BANCOS DAS MONTADORAS. ALUNOS DE GRADUAO DO IPUC ENGENHEIROS EMPREGADOS POR SETOR IBGE (REG. METROP. BH).

50 160 161 162 163 178 185 189 190 192 207 223

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1

INTRODUO

O processo de reestruturao produtiva, como o demonstram diversos estudos, afeta profundamente os modos de organizao do trabalho e as qualificaes profissionais. Esta tese se prope analisar as mudanas requeridas para a formao de engenheiros, a partir da cadeia produtiva, articulada para a produo de automveis em Minas Gerais, mostrando a existncia de uma correlao entre a lgica da firma, que exprime uma demanda por engenheiros, e a lgica dos sistemas de formao. Esta correlao, tambm chamada relao educativa, o objeto principal de anlise da tese, a qual vai enfatizar as relaes sociais e econmicas que permeiam e definem o modo de formao dos engenheiros, em cada poca e local. A relao educativa uma expresso do prprio modelo econmico vigente, conforme ser demonstrado ao longo da anlise. A organizao do trabalho no interior das firmas, bem como as relaes de emprego, estariam associados na definio do modo de formao profissional. E o Estado um ator fundamental no processo, na medida em que a ele vinculam-se as polticas econmicas e as de ensino. As inovaes tecnolgicas , embora tenham grande importncia na reordenao das prticas cotidianas, no so determinantes. Diversos estudos j demonstraram que a mesma tecnologia pode ser associada a diferentes arranjos organizacionais, esquemas de controle do trabalho e estilos de gesto da mo-de-obra (Leite, G. Ferreira, Schmitz, Crivellari, entre outros). Sobre a forte relao entre a economia, o Estado, os sistemas de formao tcnica e de engenheiros, tem-se os estudos de Boyer e Caroli, B. Lautier e Tortajadas, Andr Grelon, L. Kawamura, e outros.

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As atuais mudanas no mundo produtivo e as suas interaes com os modos de qualificao da fora de trabalho envolvem diferentes instituies. Para dar conta de abranger o conjunto das relaes que se estabelecem entre Estado, escolas, empresas, sindicatos, economia e mercados recorreu-se aos estudos de diferentes autores da Escola Francesa da Regulao (Boyer, Coriat, Orlan, Delorme e Andr, entre outros). A escolha pelos trabalhos regulacionistas procedente, pois eles se preocupam em

analisar a crise atual tomando por base uma anlise histrica e periodizada dos ciclos anteriores. Outro aspecto relevante, observado pelos regulacionistas, o local onde se desenvolve a situao histrica e econmica analisada. Tempo e espao so, pois, variveis fundamentais. Do ponto de vista terico-metodolgico, o presente estudo trabalha, portanto, com o conceito de relao educativa. O conceito usa de emprstimo o mesmo nome atribudo por Maurice, Sellier e Silvestre (1984), mas ganha outra configurao no estudo de Boyer e Caroli (1993a). Redefinido, o conceito passa a se caracterizar atravs de quatro componentes principais: 1) hierarquizao dos trabalhadores na empresa, 2) modo de organizao e de gesto da formao tcnica, 3) modo de

reconhecimento e de valorizao das qualificaes, 4) natureza das relaes de trabalho na empresa. O conceito de relao educativa, conforme sugere Boyer, articula-se noo de relao salarial, um dos conceitos centrais para os regulacionistas. A relao salarial, por sua vez, desdobra-se em cinco componentes, conforme explicita Ferreira (1996): 1) organizao do processo de trabalho, 2) hierarquia das qualificaes da mode-obra, 3) mobilidade dos trabalhadores (dentro e fora da firma), 4) regras de formao do salrio direto e indireto, 5) modo de utilizao da renda salarial (principalmente as normas de consumo vigente). O conceito de relao salarial importante neste

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trabalho porque seu primeiro elemento - organizao do processo de trabalho permite a anlise da evoluo tecnolgica e organizacional ocorrida no interior das empresas; o segundo elemento - hierarquia das qualificaes - permite observar as mudanas ocorridas em termos de exigncias de qualificao da mo-de-obra e a resposta dada pelos sistemas de formao; em relao ao terceiro elemento - mobilidade dos trabalhadores - este possibilita a anlise das relaes de emprego, considerando a transferibiladade dos conhecimentos; e, quanto aos dois ltimos elementos - regras de formao e de utilizao do salrio permitem a anlise das relaes sociais de trabalho, resultantes do reconhecimento das qualificaes adquiridas. So as interaes entre organizao produtiva e sistema educativo, em cada poca e local, que do especificidade relao educativa. (Boyer e Caroli, 1993a). Concebido no mbito da Teoria da Regulao, o estudo de Boyer e Caroli (1993a) atribui um papel relevante formao histrica destas relaes, que resultariam numa configurao especfica para cada pas. Nesse sentido, o sistema educativo no se resumiria a um mercado sobre o qual se encontram ofertas e demandas de formao. Na medida em que se considera a histria prpria a cada formao social, observa-se a constituio de linhas de formao, que selecionam os indivduos tendo em vista tarefas profissionais diferentes, e mesmo hierarquizadas. Do ponto de vista das anlises sobre os sistemas produtivos, o modelo observa que, no interior das empresas, a introduo de mudanas tcnicas, longe de ser um processo montono e contnuo, marcado pela sucesso de fases que se inscrevem no interior de paradigmas tecnolgicos, ou seja, das diferentes configuraes dos regimes produtivos. Estas diferenas so decorrentes dos diversos modos de organizao produtiva e de diviso do trabalho, que embora variando conforme a empresa, a poca e o local, seguem uma certa "logstica", apresentam certos traos comuns. As mudanas

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tecnolgicas ocorridas a partir dos anos 80 mudaram a performance relativa de vrios pases, e cada qual seguiu sua prpria trajetria histrica, evidenciando as diferenas. O estudo de Boyer e Caroli (1993a) volta a ser abordado mais adiante. No momento, o importante destacar que, para as anlises desenvolvidas nesta tese, o conceito de qualificao est associado ao quadro mais amplo dos conceitos regulacionistas de relao educativa e de relao salarial. J o conceito de

reestruturao produtiva fica associado noo de regime ps-fordiano, tambm concebido pelos autores da instituies. A idia da tese confrontar as micro e as macro decises, periodizando-as e situando-as no conjunto das relaes entre as diferentes instituies envolvidas. Portanto, associando a relao entre as empresas e escolas estudadas aos fenmenos macroeconmicos mais abrangentes, os quais variam em cada poca e local, imbricados numa dinmica interinstitucional. Para Boyer (1996), a variabilidade dos fenmenos macroeconmicos no tempo e no espao dificilmente poderia ser explicada apenas pelas preferncias de um agente econmico representativo. Fundamentalmente, observa ele, as relaes verificadas no plano agregado derivam no somente de racionalidades situadas ou contingentes, mas principalmente de modalidades que colocam os agentes em interao atravs de formas institucionais que so a relao salarial, as formas de concorrncia, o regime monetrio, a articulao ao sistema internacional e a natureza das relaes entre o Estado e a economia. Para estudar as relaes entre empresas e escolas de engenharia foi escolhida uma abordagem analtica que fraciona a realidade para estud-la em partes. Empresa e escola sero aspectos estudados separadamente e, num segundo momento, as partes teoria da regulao ou da macroeconomia das

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isoladas sero religadas e articuladas em seus aspectos fragmentrios. Este segundo momento busca um princpio unitrio de explicao. Essa mesma metodologia de anlise foi utilizada por Delorme e Andr (1983), para analisar as inter-relaes entre o Estado e a economia. A formao do engenheiro no ser vista como mera relao de demanda entre empresa e escola de engenharia, mas como resultante do conjunto de relaes sociais entre diferentes atores. Por isso, uma relao em movimento. A tarefa de deslindar essas relaes exigiria um trabalho imenso. O presente estudo no se prope a fornecer uma viso completa dessas relaes, mas apenas clarear o problema no mbito de um conjunto de empresas e escolas situadas dentro de uma mesma regio. Ao mesmo tempo, estabelece a ligao histrica com outros elementos macro. A anlise histrica abrange o perodo de 1876, ano de criao da Escola de Minas de Ouro Preto - um ator relevante nesta tese, at os nossos dias. O texto enfatiza as condies histricas e econmicas que resultaram no surgimento desta e das outras unidades estudadas, a saber: Escola de Engenharia da UFMG, Instituto Politcnico da PUC-MG, Cia. Vale do Rio Doce, USIMINAS e FIAT (MG). Pretende-se mostrar os processos de interao entre as unidades pesquisadas, ressaltando alguns traos importantes da trajetria de formao do engenheiro na regio metalrgica de Minas Gerais, relacionando-a com a trajetria da indstria mineradora e metalrgica na mesma regio. Para analisar as atuais mudanas ocorridas nas empresas estudadas e que so, em grande parte, relacionadas aos processos de reestruturao produtiva e de globalizao da economia, toma-se como base de anlise comparativa o perodo

precedente. A partir deste enfoque tenta-se mostrar a emergncia da configurao fordiana de relao salarial, evidenciada num tipo de economia e de gesto do Estado

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em padres keynesianos, na forma como estas categorias se explicitaram no Brasil. A relao educativa, na mesma poca e no mesmo local, parece no fugir

fundamentalmente s mesmas regras ou, ao menos, funcionar a partir de uma mesma lgica. Torna-se interessante, portanto, observar os debates que se desenvolvem atualmente, na Frana, sobre a evoluo do conhecimento e dos modelos tericos. Citando Boyer (1996), as teorias (...) no evoluem simplesmente em funo dos debates puramente internos profisso e luz de critrios de coerncia lgica, mas de maneira freqentemente implcita, o trabalho dos tericos responde tambm aos problemas maiores do pas e da poca aos quais eles pertencem. Dentro do mesmo raciocnio, e ainda a partir do pensamento de Boyer (1996), preciso observar que se as instituies econmicas apresentam trajetrias nacionais contrastantes, isso resulta da impregnao de uma rede de instituies forjadas na histria e que no tem necessariamente a propriedade de convergir para uma organizao nica que seria a mais eficaz. Pode-se inferir que, guardada a forte relao entre as atividades econmicas e a formao dos engenheiros, esta ltima passa a apresentar configuraes prprias, a depender da poca e do local onde se desenvolve, e cujas referncias maiores

repousam sobre a trajetria industrial a qual se reporta. Mas, vice-versa, as trajetrias industriais nacionais tambm guardam estreita relao com o padro de formao dada aos seus tcnicos, ou seja, com as qualificaes disponveis. Na verdade, a varivel formao no a principal determinante nesse processo, mas ela capaz de impor fortes limites na escolha entre modelos industriais e os regimes de produtividade a serem perseguidos.

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Os regimes de produtividade variam enormemente e esto relacionados a inmeros fatores, entre os quais situam-se os sistemas de formao e a estratificao das qualificaes. Mas relacionam-se tambm aos padres de relao salarial, aos

sistemas de inovaes tecnolgicas e de produtos, aos sistemas de subveno de impostos, as formas de concorrncia e aos regimes de demanda, entre outros. Esses fatores esto imbricados na mesma dinmica e no funcionam, isoladamente, como varivel exgena. Para Boyer, essa simultaneidade central para a regulao: teoria da

Ela (teoria da regulao) , de fato, erigida sobre a idia de que os agentes econmicos fazem o melhor de sua informao, capacidades de clculo e de coordenao, graas economia considervel que realizam as regras, as organizaes e as instituies. Desse fato, a conjuno das estratgias localmente adaptadas, porque conformes lgica das formas institucionais, pode conduzir ao final a uma desestabilizao, seja local, seja global. Por definio, as crises estruturais registram uma perda de coerncia entre a arquitetura institucional e a dinmica econmica, de sorte que os determinismos anteriores no operam mais ao nvel da regulao do conjunto. As unidades econmicas so ento incitadas a inovar ou buscar solues alternativas, mas se colocam ento redobrados problemas de coordenao. (Boyer, 1996 a: 5-6)

A instncia poltica apresenta-se, ento, como o locus adequado para instituir novos princpios de organizao dos sistemas de qualificao, salrio, tecnologias, concorrncia, etc. Portanto, o sistema de formao de engenheiros e suas mudanas so objeto da regulao entre diferentes atores, de forma a melhor integrar esse sistema no conjunto das instituies ao qual ele concerne. As atuais modificaes, desejveis e necessrias, para a qualificao profissional num quadro de reestruturao produtiva e economia globalizada no podem derivar, por isso, da escolha isolada de apenas um ou dois agentes - escola e empresa. Essas discusses precisam envolver maior representatividade social.

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Vale a pena salientar que empresa e escola, embora sejam instituies de natureza diferente, parecem fazer parte cada vez mais de um mesmo grupo uniforme, onde a formao tcnica passa a trabalhar num quase just-in-time em relao s demandas do mundo empresarial. Certamente essa no uma questo bem resolvida, se observada pela tica dos interesses gerais da sociedade onde se inserem as mesmas empresas e o mesmo sistema de formao profissional. E ainda, se observada de uma perspectiva de mdio e longo prazo. Essa uma discusso para o final do trabalho. Para dar conta das anlises propostas, a pesquisa implicou na obteno de dados histricos, acessados atravs do levantamento em fontes secundrias de informao e de outros estudos publicados que se relacionam ao mesmo objeto de anlise. Os dados contemporneos baseiam-se tambm em fontes secundrias mas, principalmente, na pesquisa de campo e em entrevistas. Cabe explicitar que certas referncias a outras experincias de relao educativa, a nvel internacional, pontuam este trabalho. Particularmente o caso francs ser citado, dada a influncia histrica da engenharia francesa em diversos pases, inclusive no Brasil e na regio estudada. Outra fundamental variante de anlise para o presente estudo, refere-se base fornecida pela sociologia, em trs campos diferentes: a sociologia do trabalho, a sociologia do conhecimento e a sociologia das profisses. Essa variante permite compreender as relaes sociais e de poder que se desenrolam no interior da indstria e das escolas de engenharia, permitindo mesmo perceber certa relao simblica entre os diferentes atores ou objetos de anlise. A abordagem da sociologia do trabalho possibilita explorar o interior das instituies pesquisadas, enquanto organizao do trabalho produtivo. Esta uma abordagem pertinente tanto para a anlise das empresas quanto das prprias escolas, na medida em que estas ltimas so organizaes produtoras de servios de formao

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profissional ou de pesquisa e, assim como a empresa, a escola tambm tem seus prprios processos e organizao do trabalho, relaes de emprego, sistemas de qualificaes dos seus quadros profissionais. A sociologia do trabalho que, freqentemente, est imbricada dos conceitos de economia do trabalho (e vice-versa), vai permitir um mergulho em profundidade no sistema de relaes sociais e econmicas, no mbito de cada uma das organizaes pesquisadas, atravs da metodologia de estudos de caso, ao tempo em que permite estabelecer os liames entre estas micro-organizaes e as macro-instituies que as incorporam. J entre os autores da sociologia das profisses e da sociologia do conhecimento, encontra-se a base para a anlise das relaes de poder que se estabelecem a partir da formao tcnico-escolar, da obteno do diploma universitrio, da constituio das associaes profissionais e de outros aspectos relacionados ao estudo das profisses. Diversos estudos do campo da sociologia, da economia do trabalho e campos correlatos foram fundamentais para a construo desta tese, mas enfatizo as contribuies de Mrcia de Paula Leite e de Bruno Lautier, meus orientadores no Brasil e na Frana1 que, alm dos seus trabalhos escritos, muito contriburam pessoalmente. Alm destes, devo mencionar os companheiros do projeto Reestruturao Produtiva e Qualificao2, em cujo quadro esta tese foi desenvolvida. Como resultado de uma relao dialgica com outros pesquisadores, que se expressaram atravs dos seus escritos ou pessoalmente, os problemas de pesquisa foram respondidos. Algumas perguntas bsicas acompanharam este trabalho. A primeira, relaciona-se tendncia atual para o uso de um trabalhador polivalente nas novas formas produtivas. Ora, polivalncia requerida aos trabalhadores de cho de1

Doutorado-sandwich realizado no IEDES/Universit Paris I-Panthon/Sorbonne.

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fbrica, corresponderia uma formao de engenheiros de tipo generalista? A cooperao, outro requisito fundamental para o sucesso dos novos modelos, est presente na lgica dos sistemas de formao? Qual a dinmica da relao educativa que abrange as instituies pesquisadas? A quem compete decidir sobre as eventuais mudanas no modo de formao profissional dos engenheiros? As questes expostas neste texto introdutrio so discutidas no seu conjunto, ao longo da presente tese, estruturada de forma a desenvolver e abranger vrios aspectos determinantes do debate proposto. As anlises so desenvolvidas em duas partes principais. A primeira, intitulada O cenrio e os atores, inclui o Captulo 2, que discorre sobre os aspectos conceituais e histricos do perodo fordista, sua crise e as caractersticas do regime ps-fordista. Ainda na primeira parte, encontra-se o Captulo 3, que apresenta uma discusso conceitual sobre a escola e a formao profissional dos engenheiros no perodo fordista e no perodo ps-fordista, enfatizando o conceito de relao educativa, que encerra a discusso terica. Na segunda parte: A Trama dos atores, no caso de Minas Gerais, evidencia as particularidades observadas pela pesquisa de campo, a partir do Captulo 4. Neste se desenvolve a anlise histrica da formao dos engenheiros para a industria mnerometalrgica da regio, e da relao educativa da qual ela resulta. O Captulo 5 apresenta os estudos de caso sobre as empresas pesquisadas: CVRD, USIMINAS e Fiat, enfatizando as mudanas ocorridas nos ltimos anos. Segue a apresentao do estudo sobre as escolas de engenharia: Escola de Minas, EE-UFMG e IPUC-MG, no Captulo 6, onde se pode observar o modo como as escolas tentam responder s mudanas nas empresas pesquisadas. O Captulo 7 rene as partes isoladas

2

Coordenado e financiado pelo CEDES/UNICAMP, FINEP e CNPq.

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nos dois captulos anteriores, sob o ttulo: Relao Educativa em Minas Gerais, que prepara as concluses finais, apresentadas no Captulo 8.

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PARTE I

O CENRIO E OS ATORES

26

2

SUCESSO O ESGOTAMENTO DO FORDISMO

O perodo que sucedeu a segunda guerra mundial apresentava, nos pases centrais, e mesmo no Brasil, guardadas certas restries, o cenrio de um Estado forte e um acelerado processo de expanso industrial. Neste quadro, os engenheiros ocupavam uma posio de destaque, em postos de trabalho bem remunerados. No Brasil, o senso comum observava, os diplomados em engenharia tinham uma carreira de futuro, saam direto dos seus bailes de formatura para os canteiros de obra, as fbricas, as usinas e as refinarias. Essa situao seria modificada, a partir da dcada de 70, trazendo perplexidade para os profissionais e suas escolas. exatamente esta perplexidade o centro das anlises no presente estudo. O objetivo desta primeira parte do trabalho mostrar as condies econmicas que configuraram este perodo da histria. O apogeu da indstria, durante o perodo chamado fordista e sua crise, constituem o cenrio principal, o pano de fundo conceitual, e a nosso ver explicativo, do drama atual dos nossos atores, os engenheiros, melhor dizendo, de tantos outros trabalhadores na maior parte do mundo civilizado.

2.1

A VIA KEYNESIANA

No foram os postulados liberais da economia clssica do sculo XIX, ou as leis de livre mercado, que vieram a se constituir na base de sustentao do modelo poltico e econmico, adotado pelas principais economias mundiais aps a segunda guerra. Tampouco obedeceu via das correntes socialistas, inspiradas no modelo sovitico, a reconstruo do ps-guerra. Foi a terceira via, ou via keynesiana, que sustentou o

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sucesso econmico dos trinta gloriosos anos que, iniciados ao final da segunda guerra, alongaram-se at o incio dos anos 70. A via keynesiana implicava um mnimo de reformas econmicas, financeiras e sociais para garantir o retorno da eficcia de mercado, cujas atividades descentralizadas funcionavam sob a coordenao do Estado, incumbido de garantir a estabilidade econmica. Segundo Boyer (1984), as transformaes estruturais posteriores a 1945 inscreveram-se, efetivamente, na lgica keynesiana , erigidas sobre trs pilares. Em primeiro lugar, encontram-se os novos mecanismos de formao do salrio nominal, atravs dos quais ocorreu uma alta progressiva do nvel de vida dos assalariados, garantida pelas convenes salariais e pelo desenvolvimento das despesas com servios sociais, ou, salrio indireto. Por outro lado, a dinmica do processo foi tambm garantida pela recomposio da economia internacional, sob a gide dos Estados Unidos, e pela reconquista dos mercados internos, atravs dos quais as economias reconstituram as bases de um crescimento auto-centrado, moderadamente aberto ao mercado externo. Complementando as duas primeiras caractersticas, uma noo de investimento a longo prazo viabilizou a socializao dos investimentos, o controle do crdito e os novos princpios de poltica monetria. A estabilidade foi favorecida pela expanso do setor pblico, garantindo a planificao nacional e, alm do mais, o imperativo de reconstruo do ps-guerra privilegiou o investimento produtivo, levando o Estado a atuar tambm como empresrio e banqueiro, reduzindo o poder do capitalismo financeiro e estimulando a modernizao industrial, atravs dos mtodos de produo americanos tayloriano e fordiano, cujo significado discutido na seo seguinte.

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2.2

O FORDISMO

O fordismo deve ser compreendido em duas dimenses: relao salarial e organizao do trabalho. Enquanto modo de organizao do trabalho, o fordismo introduziu inovaes significativas em relao ao at ento predominante sistema

taylorista.3 Atravs da articulao de transportadores, a linha de montagem mecanizou a circulao de objetos e dos meios de trabalho ao longo do processo produtivo. Resultando em maior fixao e integrao dos postos de trabalho, a circulao de trabalhadores no interior das oficinas foi bastante reduzida, como tambm diminuram as "porosidades" da jornada de trabalho. Outra inovao importante refere-se estandardizao dos produtos, obtida pela padronizao das peas que compem o produto acabado e, para tanto, mquinas especializadas. Por essa razo se diz que o fordismo veio aperfeioar os dispositivos tayloristas, j que o controle dos tempos e movimentos foi incorporado ao prprio capital fixo, possibilitando maiores ganhos para o capital, tanto pela intensificao do trabalho, quanto pelo aumento da produtividade: foram substitudas as mquinas universais pelas

3

O sistema taylorista de organizao do trabalho operado em trs etapas: anlise do trabalho, mediante estudo dos tempos e movimentos; seleo e sistematizao do modo operatrio do trabalhador, executadas pelos escritrios de mtodos; estabelecida a melhor maneira de se executar uma tarefa, esta imposta ao trabalhador (cf. Ferreira, 1987: 10)

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"Dizemos que ocorre uma intensificao do trabalho4 quando, com uma tecnologia constante, um mesmo nmero de trabalhadores produz no mesmo tempo uma quantidade maior de produtos (neste caso, o aumento da produo s pode resultar do incremento do ritmo de trabalho, ou, o que vem a ser o mesmo, da reduo das porosidades e dos tempos mortos no curso da produo). (...) Ocorre um aumento de produtividade do trabalho quando, dentro de um mesmo ritmo de trabalho, a mesma quantidade de trabalhadores d uma produo maior, devido maior eficincia tcnica dos meios de produo." (Caire, 1984 apud Ferreira,1987: 36)

2.2.1 A organizao industrial fordista

Associada noo de "produo em massa", a organizao industrial assume diferentes modalidades. No caso da produo discreta, manufatura de bens tangveis, o sistema de produo o que mais se aproxima da descrio feita acima sobre a produo fordista, tendo na indstria metal-mecnica o exemplo paradigmtico. Com caractersticas significativamente diferentes da anterior, encontra-se a indstria de processo contnuo, que engloba a petroqumica, cimento, celulose, e outros ramos. Na produo contnua, as matrias-primas e os insumos (geralmente lquidos ou gases), aps entrarem no processo produtivo, no so facilmente distintos ou divisveis entre si e em relao ao produto final. Os equipamentos utilizados correspondem especificidade desse processo e do a impresso de serem um nico equipamento, dado o seu alto grau de integrao. no interior deste sistema integrado que ocorrem as diversas etapas de produo, da o nome: processo contnuo, no qual a relao do homem se d estritamente com a mquina e no com o produto. Num outro extremo encontram-se os servios, que se caracterizam por atividades mais flexveis, em que a produo muitas vezes ocorre na presena do seu usurio. Um aspecto importante, salientado por Offe (1989: 23), a racionalidade4

Os grifos no constam do original.

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prpria do trabalhador em servios: "uma caracterstica essencial daquele trabalhador reflexivo em servios me parece consistir em que ele mesmo elabora e mantm o prprio trabalho, e produz a produo mental e organizatoriamente." A classificao aqui adotada: produo discreta, processo contnuo e servios excessivamente ampla na medida em que, no interior de cada uma destas trs grandes reas de atividades, localizam-se inmeras outras subdivises. No entanto, mesmo em linhas gerais, esta diviso facilita a discusso sobre as diferenas na aplicabilidade do modelo de organizao fordista do trabalho. Essas diferenas esto relacionadas prpria natureza dos processos de transformao ou, de outra parte, s caractersticas sociais do ambiente produtivo. Novas variaes ocorrem, ainda, em decorrncia de fatores tecnolgicos, dos padres de relaes de trabalho vigentes, de fatores sociais tais como gnero, educao, entre outros. Estas variaes incidem sobre as possibilidades de extrao de maiores rendimentos e da obteno de maior controle sobre os processos produtivos. Diante das inmeras possibilidades e restries, considera-se uma organizao industrial fordista "genuna" apenas a indstria automobilstica da primeira metade deste sculo. O mtodo fordista, quando aplicado a outros sistemas de produo, pode sofrer fortes limitaes:

"Dentro de cada pas, nem todas as indstrias puderam implementar os mtodos fordistas. Na indstria da construo, por exemplo, as especificidades do processo de trabalho impediram que o ideal do fluxo contnuo prevalecesse. Na indstria como a qumica e as refinarias de petrleo, a maior parte da produtividade provm do sistema de equipamentos e seu monitoramento, diferentemente do que se d na tpica linha de montagem da indstria automobilstica. Finalmente, a maior parte das atividades do setor tercirio apresentam limitaes especiais para uma organizao de acordo com os princpios da gerncia cientfica, embora isto tenha sido tentado, como por exemplo no trabalho dos 'colarinhos brancos' nos bancos e companhias de seguro." (Boyer, 1989:5)

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Outras caractersticas do modelo de produo industrial, predominante nos pases centrais aps a segunda guerra, foram salientados por Perez (1984): o uso intensivo do petrleo e da energia, baratos em comparao s bases atuais. A produo massiva de produtos idnticos. O tipo ideal de empresa era a corporao, manejada por uma hierarquia administrativa e gerencial de carter profissional e claramente separada das atividades de produo. Os ramos industriais que serviram de motor para a dinamizao do sistema foram as grandes empresas de petrleo, qumica, automvel e outros bens produzidos em massa para os mercados de consumo e militares.

2.2.2 A poltica salarial fordista

O fordismo, alm de significar mudanas nos procedimentos e organizao do trabalho, com impactos positivos para a valorizao do capital, significou tambm fortes mudanas nas polticas de salrio. As mudanas salariais introduzidas na usina Ford, no incio deste sculo, referem-se adoo do FDD (Five Dollars Day) que, praticamente, dobrava os padres salariais do local e da poca. Essas medidas internas foram posteriormente acompanhadas, no plano macro, pelas prticas do Welfare State: garantia de emprego, reduo das jornadas de trabalho, sistema previdencirio. Essas medidas resultaram na formao do salrio indireto. Organizao do trabalho e regime salarial so, pois, as duas vertentes que caracterizaram a fase inicial do fordismo, que passaram a assumir novas e diferentes configuraes, na medida do avano deste sculo, bem como das diversidades regionais. Ao tempo em que concebido como um modelo de produo em massa, o fordismo tambm associado s prticas do consumo em massa, o que, por sua vez, seria possibilitado pelas normas salariais fordistas. A estabilidade da demanda era

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garantida por um sistema de relaes salariais, tambm tipicamente fordista. Ou seja, a prpria expanso do taylorismo/fordismo viabilizou ganhos em produtividade, que terminaram sendo incorporados ao salrio-direto da classe trabalhadora, evidenciando um aumento real de remunerao. Paralelamente, foram criados ou ampliados os salrios indiretos, tornando-se uma frao cada vez mais importante da renda total. Isso, num quadro de estabilidade relativa de emprego. Essas condies viabilizaram e consolidaram um modo de consumo de massa, estabelecendo um "crculo virtuoso: produtividade-crescimento-investimento-consumo". (Boyer, in Ferreira, 1993:2)

Figura 1- O Crculo Virtuoso do Fordismo

Neste contexto, os sindicatos e as negociaes salariais assumem um papel relevante na formao dos salrios diretos. Em seu estudo sobre a crise do fordismo, Ferreira (1993b) discute a posio dos autores regulacionistas sobre o movimento de formao das relaes de trabalho (a relao salarial) de tipo fordista, particularmente

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nos Estados Unidos, no incio do sculo. A crise dos anos 30 atribuda ao gapp entre a capacidade produtiva da economia - favorecida pelos princpios fordistas de organizao do trabalho - e, de outro lado, ausncia de um consumo de massa, o qual s foi viabilizado, efetivamente, pelas mudanas na rbita das relaes de trabalho. Assim, sindicatos e Estado orquestram uma nova poltica de salrios diretos e indiretos. As reformas polticas do New Deal possibilitaram uma legislao trabalhista, um sistema previdencirio e a institucionalizao do sindicato. Este ltimo, tendo reconhecido seu papel social, consagra o sistema de negociaes coletivas nos Estados Unidos, provocando uma mudana no sentido de crescimento sustentado do nvel de salrio a longo prazo, caracterizando portanto o fordismo como regime de acumulao (Ferreira, 1993). No plano internacional, o perodo que vai do ps-guerra at o incio dos anos 70 (crise do petrleo), correspondeu ao apogeu da Era de Ouro do regime de acumulao fordista, traduzido em aumento significativo das taxas de emprego; elevao do peso relativo da participao do setor industrial na economia e no emprego; aumento de gastos governamentais com seguridade social; crescimento dos salrios mdios reais; crescimento dos padres de consumo. Isso ocorreu para os EUA, pases da Europa Ocidental e Japo, havendo restries para a aplicabilidade do conceito de fordismo aos pases em desenvolvimento da Amrica Latina e, para o Brasil, conforme ser visto a seguir.5

5

Para outros continentes, existem restries ainda mais fortes. Recente seminrio, em Paris, concluiu pela inaplicabilidade do conceito frica.

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2.2.3 O fordismo no Brasil

O processo brasileiro de industrializao teve uma fase crucial, com a implantao de uma indstria de base controlada pelo governo federal, durante o Estado Novo. No perodo ps-guerra, entre 1950 e 1980, a indstria apresentou um novo impulso dinmico, constituindo uma matriz complexa e bastante integrada, a partir de trs momentos principais. No primeiro, at meados da dcada de 50, predomina a implantao e a consolidao da indstria leve (bens de consumo no durveis); no segundo, que vai de meados da dcada de 50 at o incio dos anos 70, foram implantadas as indstrias de bens de consumo durveis e um segmento importante das indstrias de bens intermedirios, em grande parte voltado para o atendimento das primeiras; no ltimo momento, iniciado a partir de meados da dcada de 70,a principal caracterstica a ampliao da indstria de bens de consumo intermedirio e de bens de capital.6 No Brasil, ao contrrio do que ocorreu na Europa, a Era de Ouro foi vivida em situao de ditadura militar, que durou de 1964 a 1985. A poltica de incentivo produo de bens de consumo durveis consolidou-se com baixos salrios e sem distribuio de renda, resultando em forte concentrao de renda e na elevao do poder de compra dos grupos mdios e altos. Esse movimento iniciado j no final da dcada de 50 avanaria pelos anos 60 e se consolidaria na dcada de 70, durante o "milagre econmico" (1968 -1974). Foi um perodo de muitos investimentos, muita mobilidade social, mas tambm de arrocho salarial.7

6 7

Cf. Oliveira (1996). Cf. Mattoso (1995)

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Analisando os pases de industrializao tardia, inclusive o Brasil, Lipietz (1991), elabora o conceito de fordismo perifrico, para demonstrar a diferena entre o processo de industrializao nos pases centrais e naqueles menos desenvolvidos:

tal como o fordismo, est baseado na reunio da acumulao intensiva com o crescimento dos mercados de bens finais. Mas permanece sendo perifrico, no sentido em que, nos circuitos mundiais dos ramos produtivos, os empregos qualificados (sobretudo no domnio da engenharia) so majoritariamente exteriores a estes pases. Alm disso, os mercados correspondem a uma combinao especfica de consumo local das classes mdias, consumo crescente de bens durveis por parte dos trabalhadores e de exportao a baixo preo para os capitalismos centrais. (Lipietz (1991 : 119), citado por Oliveira , 1996)

Outra diferena significativa, no caso brasileiro, refere-se participao restrita dos sindicatos de trabalhadores, desorganizados e fortemente reprimidos na maior parte do perodo ps-guerra, contrastando com o exemplo europeu, onde os sindicatos mostraram-se independentes e organizados. Alm do mais, a poltica salarial do

governo militar, mantendo os aumentos em ndices abaixo da inflao, uma rgida proibio de greves e uma diminuio das garantias de estabilidade no emprego (criao do FGTS), terminaram resultando numa violenta compresso salarial e numa expanso da precarizao do mercado de trabalho na economia brasileira. O resultado foi a superexplorao da mo-de-obra, conseqncia direta da intensificao do trabalho associada compresso dos salrios.(Oliveira, 1996)

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2.3

O PS-FORDISMO

Os primeiros sinais da crise do fordismo surgiram ao final da dcada de 60. Analisado num primeiro plano, como princpio geral de organizao do trabalho; num segundo, como estrutura macroeconmica ou regime de acumulao, propiciado pelo aumento de produtividade com incremento para os salrios e, destes, para o consumo, o fordismo pode ser, ainda, segundo Lipietz (1991), analisado em um terceiro plano, ou seja, como regras de jogo ou modo de regulao. Enquanto tal, pressupe um contrato de longo prazo da relao salarial, que envolve: a) limites rgidos das demisses; b) programao de crescimento indexado aos preos e produtividade global; c) extensa socializao das rendas, por obra do EstadoPrevidncia, que assegura a renda permanente dos assalariados, atravs de salrio indireto (Lipietz,1991). A contrapartida residia na aceitao, pelos sindicatos, das prerrogativas da direo. Dessa forma, eram respeitados tanto os princpios de organizao do trabalho como a estrutura macroeconmica. 8 Esse modelo de desenvolvimento constituiu-se em verdadeiro achado 9. Seu sucesso era garantido, internamente, em cada pas capitalista avanado, pelo crescimento da demanda domstica, devido principalmente ao crescimento da renda salarial. Externamente, a restrio viria, primeiro, da coincidncia no crescimento

8 9

Lipietz, A., 1991:105. Boyer e Reynaud (1988) comentam que os polticos, economistas e pesquisadores freqentemente se esquecem do papel fundamental do programa de modernizao e de reformas do ps-guerra, e "adquirem assim a iluso que o novo curso de crescimento econmico refere-se principalmente mesmo exclusivamente - aos novos instrumentos de estabilizao contracclicos, a um melhor conhecimento estatstico ou ainda a previses elaboradas pelos modelos macroeconmicos. Segundo essa interpretao, isso confunde a mudana do modo de desenvolvimento com o princpio de interveno conjuntural de inspirao keynesiana. De fato, o segundo decorrente do primeiro, mas no a base." Sugerem os autores que no sendo a economia uma "cincia dura", como as cincias exatas, e que, ao contrrio, por guardar uma forte relao com a histria real do capitalismo industrial e financeiro, seria necessrio um programa de trabalho que pudesse inovar a teoria e a poltica econmica para dar conta das mudanas especficas que caracterizam a crise atual.

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interno de cada pas; segundo, pela importncia relativamente pequena do comrcio internacional resultante do crescimento dos mercados internos, e, terceiro, pela hegemonia americana consagrada no acordo de Breton Wood. Analisada por diversos autores, a crise do fordismo teria, para Lipietz (1991), dois lados: o da demanda e o da oferta. Do lado da demanda, a crise levaria retrao dos mercados internos e estratgia de busca pelos externos:

A primeira e mais evidente razo surgiu do lado da demanda. A competitividade igualou-se entre Estados Unidos, Europa e Japo. A busca de economia de escala induziu internacionalizao dos processos produtivos e dos mercados. O aumento do preo das matrias-primas importadas do Sul ( o petrleo, em especial) avivou a concorrncia pelas exportaes no incio dos anos 70. A regulao do crescimento dos mercados internos via poltica salarial viu-se ento comprometida pela necessidade de equilibrar o comrcio exterior. (Lipietz, 1991: 106)

Do lado da oferta, a principal razo estaria na diminuio do lucro e na desacelerao da produtividade. Isso ocorreria pela presso dos vendedores de matriasprimas, principalmente o petrleo e, tambm, pela norma salarial vigente. Ferreira esclarece que a desacelerao dos ganhos de produtividade entra em coliso com a relativa rigidez da norma salarial (a prtica generalizada da indexao do salrio em relao inflao e elevao da produtividade da economia) e das relaes de emprego vigentes ( que conferiam, notadamente, certas garantias que variavam, verdade, significativamente, conforme o pas considerado de estabilidade do emprego), resultando da uma compresso (um esmagamento) das margens de lucro em vrios setores destas economias. (Ferreira, 1997: 177) Em 1980, a Cpula dos Sete de Veneza declara que os compromissos sociais rgidos poderiam colocar dificuldades para a reestruturao do aparelho produtivo, com o risco de se perderem as oportunidades oferecidas pela revoluo tecnolgica.

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Encabeados pelo Reino Unido e Estados Unidos, vrios pases adotaram, ento, uma poltica de flexibilidade liberal, que pode ser assim resumida:

a primeira prioridade era combater a inflao ( mais do que o desemprego), mediante o compromisso de aumentar a produtividade, e redistribuir o capital dos setores em declnio para aqueles em expanso, do setor pblico para o privado e do consumo para o investimento. Firmou-se o compromisso de evitar as medidas de proteo a interesses particulares afetados pela severidade do ajuste. Em outras palavras, deviam ser rasgados os compromissos sociais rgidos. (Lipietz, 1991: 107)

A poltica de flexibilidade liberal significou uma retrao no papel do Estado, resultando num movimento de privatizao das economias nacionais. Por outro lado, o fim dos compromissos sociais rgidos implicou na reduo relativa da importncia dos sindicatos, se comparada com o papel chave que tiveram durante o perodo fordista. O esgotamento do fordismo, evidenciado desde meados dos anos 70, torna-se mais evidente durante a dcada de 80 e, com ele, emerge uma nova conjuntura na qual se destacam trs eixos:

1) a revoluo tecnolgica (tambm conhecida como terceira revoluo industrial); 2) as mudanas de carter organizacional que se traduzem no surgimento de princpios inovadores em matria de organizao do trabalho e da produo em geral; 3) as mudanas nos mercados de produtos e, em decorrncia, nas formas da concorrncia intercapitalista. (Ferreira, 1997: 178)

A nova ordem produtiva, instalada nas economias centrais, caracteriza-se pelo uso crescente das tecnologias de informao e de novas formas de organizao do trabalho, onde os grupos assumem papel relevante em contraposio ao princpio taylorista/fordista: um homem, uma tarefa, um posto de trabalho. A difuso dos novos modelos no foi, porm, igual entre os diferentes pases. O sucesso dos novos modelos,

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se comparado ao anterior, mais dependente da cooperao e do envolvimento do trabalhador. Por essa razo, os pases que escolheram o envolvimento negociado com os seus trabalhadores - a exemplo da Alemanha, Sucia e Japo alcanaram, num prazo mais longo, melhores vantagens no uso das novas formas de organizao industrial, elevando os seus ganhos em produtividade e reduzindo os efeitos da crise (Lipietz, 1991). O exemplo japons (explicitado adiante) passou a ser dos mais observados e mimetizados, pelos demais pases, na busca de alternativas para a superao da crise. No entanto, as sadas ps-fordistas acabaram criando novos problemas. Pelo fato de serem as instituies, todas elas, articuladas umas s outras, ao modificarem-se os arranjos originais alterou-se o equilbrio do conjunto, que passou a exigir novas mudanas. Para Boyer (1984), a nova lgica trouxe problemas especficos. Se durante o perodo de ouro as inovaes fordistas, em especializao e diviso do trabalho, tornaram possvel a abertura de novos mercados pela baixa dos preos relativos, pela obteno de lucros elevados e pela transferncia de uma parte dos ganhos de produtividade para os salrios, o mesmo no aconteceu aps os anos 80. O novo modelo produtivo, tambm caracterizado pelas inovaes constantes, acabaria gerando mercados incertos em volume e composio e, alm do mais, acirrou-se a concorrncia mundial como resultado da crise dos mercados internos.

2.3.1 Entre a cooperao e a competio

Para Chartres, o prprio sucesso do regime fordista de acumulao implicou em uma lenta alterao no modo de regulao que, a partir de certo patamar, encontrou-se completamente desestabilizado por uma brutal descontinuidade quanto natureza da

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dinmica econmica e das suas instituies. A crise que se inaugura est relacionada impossibilidade de se prever ex ante quais sero as estratgias que permitiro reconstituir um novo conjunto de formas institucionais, ou seja, um novo modo de regulao que supere os limites e as contradies do precedente. (Chartres, 1996: 273) Analisando a durao excepcional da crise do fordismo, Chartres aponta que uma de suas causas est nos prprios fatores que condicionam a cooperao, um ingrediente essencial dos novos princpios de organizao em vias de emergncia, em grande parte mimetizado a partir do sucesso do modelo japons de produo. As tentativas de rplica dos sistemas de redes ou de cadeias produtivas, atravs das economias onde os conflitos de interesse triunfam sobre os problemas de coordenao, nem sempre foram bem sucedidas, na medida em que a simples interao entre organizaes produtivas no suficiente para fazer emergir uma estratgia cooperativa. Para Boyer e Orlan (1997), a cooperao no automtica, e nem nasce de si mesma, na medida em que pressupe condies de tamanho e de performance relativos. Para os dois autores, em algumas instituies de tipo empresarial, a exemplo das cadeias produtivas ou das que transplantam o sistema japons, possvel que se consiga acionar estratgias cooperativas no seu coletivo, mediante uma incitao cooperao. A partilha de lucros uma das estratgias mais freqentemente adotadas. As empresas que adotam modelos cooperativos podem ter seus lucros afetados de forma benfica, pelo estmulo ou pelo consentimento de seus membros, transformando um jogo no cooperativo em jogo cooperativo. O acordo sobre as regras da partilha de lucros autoriza a troca de informaes e facilita a cooperao, que passa a evidenciar-se mais produtiva do que a defeco10, ou a no-cooperao. Mas para que isso funcione, preciso que as

10

Boyer e Orlan (1997: 21) ilustram o problema atravs do dilema dos prisioneiros : dois indivduos tinham o interesse de no se acusar mutuamente de um delito, mas o benefcio da defeco triunfa sobre o da cooperao qualquer que seja a estratgia adotada pelo outro indivduo.

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unidades que adotem esse tipo de cooperao sejam compatveis com um tamanho de unidade de produo no muito grande. A apario de uma hierarquia vertical, dentro de uma empresa, por exemplo, permite acionar regras de partilha que induzam uma cooperao consentida e negociada, mas no voluntria ou espontnea. Segundo Schmitz (1993), uma espcie de competio cooperativa um dos atributos caractersticos dos clusters - aglomerao de pequenas e mdias empresas. A atual tendncia para a adoo dos distritos industriais, baseia-se nas vantagens da proximidade e da cooperao. Mas, considerando ser a competio um dos, tambm fortes, atributos dos clusters (resultante da possibilidade sempre presente de um parceiro produtivo ser substitudo por outro11), encontram-se neles, ao mesmo tempo presentes, os dois atributos: cooperativa. Num ambiente de grande imprevisibilidade, caracterstico da crise atual, e que envolve diferentes agentes e instituies, aumenta a incerteza relativa quanto cooperao e competio, ou seja, um tipo de competio

repetitividade e durao das interaes. Neste caso, as estratgias defeccionistas triunfam sobre a cooperao, num resultado que atenua o otimismo relativo superioridade da estratgia de relaes do tipo dando-dando, defendida pelos que propugnam o virtuosismo do equilbrio geral, teoricamente possibilitado pelas mos invisveis do mercado. Para Chartres (1996), no h dvida que a decomposio do regime internacional e a globalizao financeira reduziram o horizonte previsional dos agentes, fator que distancia a possibilidade de compromissos mutuamente vantajosos. Observa-se, ento, que as economias de mercados financeiros apresentam muito mais dificuldades em superar a crise do fordismo:

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Comentrio nosso.

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Enfim, contrariamente intuio, o enrigecimento da competio entre firmas ou naes no suficiente para propagar de maneira endgena solues cooperativas superiores. Ao contrrio, podem ser privilegiadas as estratgias de curto prazo de tipo defensiva, ao ponto de poder ameaar a sustentao do prprio regime internacional. (Chartres, 1996: 279-80)

Analisando o mesmo fenmeno, salienta Francisco de Oliveira (1989), que o aumento da internacionalizao da economia acarreta um grave problema para as economias nacionais. Isso ocorre na medida em que o comrcio internacional retira de cada pas parte de suas receitas fiscais, deixando, em contrapartida, economia local as responsabilidades pela reproduo do capital e da fora de trabalho. Assim, na disputa pela aplicao dos fundos pblicos, vence, em geral, o capital enquanto ficam penalizados os servios pblicos. O cenrio atual caracteriza-se, pois, pela retrao do Estado; rompimento dos compromissos sociais com a classe trabalhadora (isto nos pases onde ela de fato tenha ocorrido); regime de produtividade baseado nas inovaes constantes; busca dos mercados externos; competio acirrada num quadro de economia mundializada; crescente opo pelos investimentos financeiros em detrimento dos investimentos produtivos. Esses e outros fatores resultaram num crescimento generalizado das taxas de desemprego, que agudizam a crise social e aprofundam o processo de excluso de significativa parcela da populao mundial. As alternativas de sada da crise polarizam opinies. O debate concentra-se em torno de dois plos principais e, grosso modo, aglutina de um lado os defensores da livre competio de mercado e, de outro lado, aqueles que defendem os pressupostos de regulao externa dos mercados. Os ltimos argumentando a partir do individualismo ostensivo, gerado pela idia de setores dominantes, que encaram a pujana do mercado como dependente da retrao do Estado, dessa forma reduzindo o

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papel dos elementos coletivos que caracterizam a vida em sociedade. J os ideais da liberalizao foram bem apresentados em recente relatrio do Banco Mundial12 (1996). Vale a pena citar o seguinte trecho:

Por que a liberalizao to importante? Porque transfere as decises sobre produo e comrcio empresa e aos indivduos e ataca diretamente as duas deficincias fundamentais do planejamento centralizado13: escassez de incentivos e insuficincia de informaes. A liberalizao expe as firmas demanda dos consumidores, ao objetivo de lucro e concorrncia, deixando que os preos relativos se ajustem verdadeira escassez. Os mercados liberalizados processam a informao melhor do que os de planejamento centralizado, e, quando os bens e servios so livremente comercializados, o mecanismo dos preos a mo invisvel de Adam Smith14 - combina a demanda e a oferta. Na maioria dos casos, o resultado eficiente. (...) Combinados com instituies adequadas, os mercados competitivos desencadeiam processos que foram a transformao tecnolgica e organizacional. Enquanto as economias planejadas acusaram crescimento baixo ou negativo da produtividade, apesar de grande acumulao de capital, pelo menos metade do crescimento da produo nas economias de mercado avanadas aps a Segunda Guerra Mundial resultou de aumento da produtividade. A criao de mercados um investimento num sistema de coordenao econmica mais dinmico, que fomenta o crescimento a longo prazo da produtividade e da produo. Finalmente, ao despolitizar a distribuio dos recursos, a liberalizao ajuda os governos a cortar os subsdios das empresas e assim facilita a estabilizao econmica.15

O argumento liberal justifica e estimula uma forte competitividade entre os mercados internos e externos, que passa a ser considerada uma condio natural de sobrevivncia das firmas, das naes e mesmo dos indivduos. A questo central (Boyer e Orlan, 1997:19), que o mercado passa a ser considerado como instituio chave para resolver o conflito de interesses, atravs da cooperao entre os agentes

12 13 14 15

Agradeo Liliana P. Segnini pela sugesto de consulta a este relatrio. Referncia s economias do leste europeu. Grifo meu. Do Plano ao Mercado: relatrio sobre o desenvolvimento mundial 1996. Washington: Banco Mundial, 1996, p. 23.

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econmicos. Entretanto, indagam, a busca exclusiva do interesse individual conduz, no plano global a um resultado aceitvel? Ora, muito curiosamente se pode observar que as mesmas fontes que recomendam as prticas competitivas, aliam-nas s mudanas tecnolgicas e organizacionais. Entretanto, as prticas cooperativas e de envolvimento do trabalhador so unanimemente consideradas uma condio fundamental para o funcionamento eficiente dos novos modelos de organizao contradio. A idia da seleo pela competio, baseada nos pressupostos da biologia, onde vence o mais forte, traz problemas quando aplicada sociologia e economia porque, nesses campos, as interaes so notadamente mais ricas. Neste caso, a seleo pela competio no o nico princpio dinmico, na medida em que a aprendizagem se define como um segundo mtodo de adaptao a um contexto mutante. Por outro lado, a idia de construo de modelos que possam aumentar a previsibilidade de comportamento dos mercados, tambm no se aplica a um contexto de constantes mutaes. Observe-se que o comportamento dos agentes mais sofisticado do que o supe a racionalidade situada e seqencial: este o caso particular dos mercados antecipaes, mimetismos e produtiva. Parece residir a uma

financeiros contemporneos, sobre os quais operam

revises de crescimento. No possvel construir modelos representativos destes mercados (Orlan)16. Somente num ambiente que , ao menos em parte previsvel, quer dizer, sobre os quais os agentes possam formular as antecipaes, a palavra estratgia, to cara s organizaes contemporneas, tem verdadeiramente um sentido. Num ambiente

16

A. Orlan, Descentralized Collective Learning and Imitation: A Quantitative Approach, mimeo,CREA, prsent au Second Workshop on the Emergence and Stability of Instituions, Louvain-la-Neuve, dcembre 1992. Citado por Boyer e Orlan ,1997: 36

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completamente incerto, no se pode falar de estratgia em termos concretos. Mais ainda, os agentes deixam-se guiar seja por uma forma de mimetismo, seja pelo seu estado de alma. (Ernst, 1996/97) Dessa forma, fica comprometida a noo de equilbrio global. Para Chartres (1996), existe uma multiplicidade de equilbrios, decorrentes do comportamento mimtico dos agentes. No existe mais um equilbrio natural, que seria determinado independentemente das convenes e instituies que regem as relaes entre os

indivduos. 17 As instituies constituem e so constitutivas do equilbrio econmico. Para Boyer e Orlan (1997), pouco provvel que em economias de grande tamanho e de mltiplas interaes, a cooperao possa emergir naturalmente e a partir de alguns poucos agentes agrupados. Na maioria dos casos, os agentes comunicam e negociam em nvel que ultrapassa o das interaes elementares, de forma que eles se atribuem regras e instituies que, uma vez estabelecidas, beneficiam ao conjunto de membros que pertencem mesma comunidade. Isso ocorre nas prticas de comrcio, quando os integrantes concordam em regular suas divergncias diante de um foro comum, que por sua vez elabora uma jurisprudncia incorporando o respeito aos contratos, tornando possvel a cooperao comercial. Da mesma forma, o antagonismo prprio das relaes capital-trabalho pode ser mitigado pelos princpios de gesto e de convenes coletivas que codificam uma distribuio de lucros, considerada eqitativa, e que permite uma atitude cooperativa dos parceiros sociais. Assim v-se emergir a maior parte das regras e instituies que so a trama do Estado moderno, que possivelmente, o vetor mais seguro da cooperao. O mercado seria, tambm ele, conseqncia desta ordem poltica.

17

Chartres, J. Le changement de modes de rgulation: apports et limites de la formalisation. In: Boyer e Saillard, Thorie de la Rgulation , LEtat des Savoirs, Paris, La Dcouverte, 1996.

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Essa noo contrape-se idia de autoregulao do mercado, e coloca tambm em confronto a figura da mo invisvel do mercado da mo visvel do Estado. Pelo fato de ser institudo, e rigorosamente por isto, o mercado no , em si, portador da cooperao:Muito paradoxalmente, o individualismo metodolgico constitutivo da teoria dos jogos no invalida a intuio que estava na base da viso de Hobbes: o ingrediente to necessrio diviso do trabalho e ao desenvolvimento que a cooperao supe, freqentemente seno sempre, o equivalente ao soberano, ou seja, uma autoridade poltica que imponha aos agentes o rompimento do crculo vicioso de todos contra todos. (Boyer e Orlan, 1997:40)

2.3.2 A mundializao financeira

As anlises sobre as polticas liberais, a retrao do Estado e, enfim, a crise do fordismo, ganham um contorno bastante rico, quando o debate desenvolvido pelos autores regulacionistas e apresentado acima, complementado pelas anlises sobre a mundializao financeira. Esta expresso, cunhada por Chesnais18, refere-se s conexes entre os sistemas monetrios e os mercados financeiros nacionais, que resultaram da desregulamentao adotada antes pelos EUA e Inglaterra entre 1979 e 1982, e pelos principais pases industrializados nos anos seguintes. O crescimento espetacular das transaes financeiras foi um dos fatos mais significativos da dcada de 80 e da primeira metade dos 90, afetando e fazendo declinar os investimentos em capital fixo que caracterizaram o perodo fordista. O termo ingls globalizao corresponde ao conceito de mundializao do capital, conforme Chesnais (1996). A noo de globalizao aplica-se produo e 18

Chesnais, F. Introduction gnrale. In: Chesnais, F. Dcouverte & Syros, 1996, p. 10.

La mondialisation financire. Paris: La

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comercializao de mercadorias materiais e imateriais (os bens e servios), traduzindo a capacidade estratgica, que tm os grandes grupos oligopolistas, de adotar uma abordagem e uma conduta globais abrangendo simultaneamente o mercado e suas demandas, as fontes de suprimento, a localizao da produo industrial e as estratgias dos principais concorrentes. Na esfera financeira, as mesmas prticas se aplicam s operaes efetuadas pelos investidores financeiros e composio de seus portflios de ativos (divisas, obrigaes, aes, e produtos derivados). Aplicam-se, ainda, s decises tomadas por esses investidores, seja em matria de arbitragem entre diferentes instrumentos financeiros ou compartimentos de mercado, ou mesmo a escolha dos pases onde eles compram moeda ou detm ttulos. (Chesnais, 1996 : 11) O contexto geral de surgimento da mundializao financeira o final da idade de ouro, fins dos anos 60, e s pode ser compreendida no quadro do que os regulacionistas chamam crise do modo de regulao fordista. Ou seja, a busca de valorizao do capital, pela via financeira, de emprstimos, deve ser compreendida em relao s dificuldades crescentes de valorizao do capital investido na produo, o que perceptvel pelas estatsticas. (Chesnais, 1996) A crise das polticas fordistas correspondeu ao momento em que os fundos de penso e organismos assemelhados de aplicaes coletivas, que so os atores mais vigorosos da finana de mercado mundializado, alcanaram um patamar importante. Suas necessidades em termos de novas oportunidades de investimento coincidiram com o momento em que os governos buscavam novas formas de financiar seus dficits sem dor poltica excessiva. Do ponto de vista do endividamento pblico, embora soberanos no plano poltico, os governos so colocados sob a vigilncia dos investidores institucionais (Farnetti, 1996). Efetivamente, os ttulos da dvida pblica constituem-se numa das modalidades mais atraentes de aplicaes, realizadas pelos fundos de penso.

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Para que se compreenda o papel dos fundos de penso, preciso observar suas caractersticas. De um lado, eles so o resultado acumulado das cotizaes percebidas sobre salrios, e seu objetivo declarado o de assegurar aos assalariados, ao se

aposentarem, uma penso regular e estvel. So, ento, formas institucionais que centralizam uma poupana, freqentemente nascida num regime privado obrigatrio de empresa, cujos recursos iniciais provm do rendimento salarial. De outro lado, a partir de um certo patamar de poupana acumulado, os fundos tomam lugar na categoria das instituies financeiras no bancrias, cuja funo fazer frutificar um montante elevado de capital-dinheiro conservando a liquidez e maximizando o rendimento (Chesnais, 1996: 27). Acrescenta-se que, para o Banco Mundial, preciso favorecer ao mximo a extenso dos fundos de penso, o que permitiria alcanar uma melhor aplicao do capital e evitar uma crise das aposentadorias privadas devida ao envelhecimento da populao (Farnetti, 1996 : 206). O regime de acumulao , portanto, na era ps-fordista, muito diferente daquele correspondente ao perodo fordista. Segundo Chesnais (1996), suas caractersticas so as seguintes: montante elevado das operaes de capital; alta mobilidade do capital; interesse privado tomando completamente as iniciativas se comparado ao Estado; papel relevante das instituies financeiras, principalmente as no bancrias, que so os principais atores da mundializao atual. Estas condies vo significar um novo regime salarial; repartio da renda no interior de cada pas, mas tambm entre os pases, com a repartio de rendimentos financeiros significativos; a diviso da poupana mundial entre investimento produtivo e aplicaes financeiras. Essas seriam as caractersticas prprias do novo regime de acumulao. Ainda segundo Chesnais (1996 : 11), a liberalizao e a desregulamentao tpicas da mundializao financeira no suprimiram os sistemas financeiros nacionais.

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Estes foram integrados, de maneira imperfeita ou incompleta, num conjunto que tem trs particularidades: 1o) fortemente hierarquizado, com predominncia dos EUA sobre os outros, decorrente do fato do dlar ser tomado como moeda-referncia no plano internacional; 2o) carncia de instncias de superviso e controle; 3o) a unidade dos mercados assegurada pelos operadores financeiros . Deste ponto de vista, prossegue o autor: errneo atribuir-se a unidade dos mercados essencialmente s tecnologias (telecomunicaes, informtica) que asseguram concretamente as interconexes das praas financeiras.... Ela (unidade dos mercados) nasce das operaes que transformam uma virtualidade tcnica em fato econmico. (Chesnais, 1996 : 11)

Efetivamente, so os operadores financeiros pessoas que detm um cargo e uma funo especfica - que decidem e delimitam os contornos da mundializao financeira, optando pelos agentes econmicos, pelos pases que participaro e em que tipos de transaes. Em geral, so penalizados, particular e severamente, os pases em desenvolvimento. Isso ocorre por no possurem, esses pases, um mercado financeiro emergente que possa ser integrado, nem firmas capazes de se conduzir em mercados obrigatrios ou bolsas dos grandes pases industrializados. (Chesnais, 1996: 12) O dinamismo da esfera financeira, em ritmos superiores ao do investimento produtivo, do PIB e das transaes comerciais, apontado como, talvez, o principal fator de modificao da situao econmica dos ltimos quinze anos. E, igualmente, do crescimento das taxas mundiais de desemprego, pois s o investimento produtivo faz nascer o emprego e determina a criao de riqueza a longo prazo. Apoiado em dados sobre os pases da OCDE, Chesnais (1996 :12) demonstra que neste grupo, entre 1980 e 1992, o crescimento mdio anual do estoque de ativos financeiros foi de 6%, ou seja, 2,6 vezes superior quele da formao bruta de capital fixo que apresentou, no mesmo

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perodo, uma taxa de 2,3% de crescimento. Quanto ao tipo de investidor, o Quadro 1 ilustra a evoluo da distribuio dos ativos financeiros financeira: por tipo de instituio

Tabela 1: Evoluo dos ativos financeiros por tipo de investidor de 1980 a 1994 (milhares de dlares) PERODO 1980 Fundos de penso 859 Fundos mtuos 118 Seguradoras 519 Bancos 342 Fundaes 48 * trs primeiros trimestres de 1994 Fonte: Mrieux et Marchand apud Chesnais, 1996: 27. 1990 3.116 967 1.328 759 143 1994 * 4.570 1.800 1.750 1.180 200

Os dados apresentados sugerem novas indagaes, como por exemplo: o crescimento do investimento produtivo e do emprego a nvel mundial so compatveis com o conjunto de fenmenos monetrios que se seguiram adoo do regime de taxas flexveis? De um lado, pode-se observar as seguintes conseqncias do atual

fenmeno monetrio: a instabilidade monetria permanente; a transformao do mercado de trocas em mercado especulativo, onde os capitais financeiros buscam obter lucros financeiros conservando o mais alto grau possvel de liquidez; a ausncia de uma moeda internacional que no seja o dlar. (Chesnais, 1996:17) Por outro lado, no mundo produtivo, outros pontos so igualmente observveis: as transformaes do regime de relao salarial, com a generalizao dos contratos precrios; a subordinao s necessidades de flexibilidade das firmas; a baixa relativa dos salrios; o todo apoiado sobre um desemprego elevado depois de ter sido

inexistente, a exemplo do Japo. Podem essas transformaes serem atribudas unicamente aos efeitos das mudanas tecnolgicas, ou elas tm ligao com o peso

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crescente das esferas financeiras e das exigncias feitas pelas novas instituies financeiras no bancrias? (Chesnais, 1996 : 18) A relao entre a mundializao financeira, a gesto empresarial e a gesto do trabalho, so bem enfocadas por Farnetti, para quem as instituies financeiras que mais se beneficiaram com a passagem finana de mercado, a liberalizao e a desregulamentao foram os fundos de penso e as sociedades de investimento coletivo (os fundos mtuos), cujo montante de ativos ultrapassa de longe o de outras intervenes no sistema financeiro mundial. Globalmente, os ttulos da dvida pblica representam perto de um tero do estoque de ativos dos fundos, e outro tero sob a forma de aes em Bolsa. Esses dois modos de aplicao asseguram aos fundos a captao de rendimentos elevados. O estatuto jurdico dos fundos mtuos autoriza uma grande diversidade nas aplicaes (fora de seu pas de origem, em particular), assim como um exerccio quase sem limite da preferncia pela liquidez, com todas as implicaes que isso comporta. Alm do mais, a presena dos fundos como acionistas de referncia, em empresas do ramo industrial, tem por efeito modificar as relaes no interior destas empresas, ativando novos princpios de gesto empresarial, com prioridade pelos direitos e interesses dos acionistas. Estas mudanas levam-nos a indagar sobre os seus efeitos na gesto do trabalho e das qualificaes, que objeto de anlise das sees seguintes.

2.4

O TRABALHO NA ERA PS-FORDISTA

Salama (1996) mostra como os efeitos econmicos e sociais do novo regime de finana de mercado se estendem alm da esfera financeira, abrangendo o conjunto de mecanismos que comanda a distribuio de renda e de explorao da mo-de-obra

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(flexibilidade salarial, durao e intensidade do trabalho). Suas anlises concentram-se sobre os pases da Amrica Latina, particularmente sobre o Brasil, Mxico e Argentina. Para Salama, a alta das taxas de juros, resultante das aplicaes financeiras, concorre com os rendimentos oriundos do trabalho. Quando a taxa de juro real passa duravelmente de 0% a 5%, por exemplo, as empresas para permanecerem rentveis devem fazer crescer suas margens de lucro, o que feito atravs da reduo de parte de suas receitas consagradas ao pagamento dos salrios.19 Esta deformao vai, num primeiro momento, agravar o desemprego. A tentao , ento, grande de baixar os salrios. E, em qualquer das hipteses acima, freqentemente reduzem-se os investimentos em capital fixo:

A financeirizao ligada liberalizao dos mercados financeiros freia a alta das taxas de investimento, na medida em que uma parte importante da mais-valia se dirige para os mercados lucrativos. (Salama, 1996: 247- 248)

Na Amrica Latina, prossegue a anlise, diversos pases puderam melhorar seu investimento em capital fixo, em parte possibilitado pela abertura de mercado, que tornou menos caro o bem adquirido. Mesmo assim, a taxa de investimento ainda insuficiente. Para que se produzam bens, em condies de custo comparveis queles obtidos nos pases desenvolvidos, com uma qualidade e uma diversificao capaz de satisfazer uma clientela pronta a preferir produtos importados, seria necessria uma elevao substancial da taxa de investimento, capaz de obter condies de valorizao do capital em nveis satisfatrios. A insuficincia dos investimentos incita a empresa a maximizar a reduo dos tempos de trabalho, intensificando o ritmo graas adoo dos sistemas de trabalho19

Fitoussi apud Salama (1996: 242, 243).

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flexveis. A busca de uma flexibilidade externa precariza os empregos, deixando enfraquecer a lgica participativa da organizao flexvel da produo. Em resumo, ocorre uma flexibilidade com intensificao do trabalho. Para Salama (1996: 248-9), a introduo das novas tcnicas, freqentemente importadas, e que servem de suporte flexibilidade, permitem certa valorizao do capital. Entretanto, outros fatores contribuem para que essa valorizao do capital seja insuficiente: a financeirizao, acompanhada de um investimento produtivo inferior ao necessrio, seguida das limitaes mais fortes para competir externamente, na medida em que o envelhecimento da indstria freqente. Esses e outros fatores levam adoo da organizao flexvel, e tambm sua caricatura. As tentativas de implantar certos tipos de organizao da produo por mimetismo resulta da busca, pelos administradores, de criar uma organizao da produo capaz de favorecer a estratgia competitiva das empresas. Passa-se, assim, das formas de organizao fordista a outras, centradas sobre a organizao flexvel.

2.4.1 Mudanas na estrutura industrial : cadeias e redes produtivas

As inovaes que vieram modificar a organizao fordista do trabalho referemse tanto ao uso das tecnologias de base microeletrnica (ME), quanto s mudanas organizacionais introduzidas no sistema produtivo. Inmeras pesquisas, desenvolvidas em todo o mundo, em diferentes campos do conhecimento, estudaram e ainda estudam o uso e os efeitos da ME, sobre diferentes aspectos, inclusive sobre o modo como afetam o trabalho e as qualificaes. Mais recentemente, o enfoque dos estudos volta-se para as

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mudanas organizacionais, principalmente para a organizao industrial em cadeias produtivas inter-firmas. A relao entre empresas tem se desenvolvido sob dois diferentes caminhos. Uma das vertentes corresponde aos distritos industriais, caracterizados por aglomeraes ou clusters de pequenas e mdias empresas, especializadas em partes especficas da produo ou em tens especficos, cujo exemplo mais citado o da regio de Emlia Romana, na Itlia. (Leite, 1996: 80) Os distritos industriais constituem-se em verdadeiro arranjo institucional, baseado em forma peculiar de relao entre empresas, demonstrando grande capacidade de adaptao s exigncias de flexibilidade da produo, e chegando mesmo a alcanar significativas taxas de desenvolvimento, mesmo em momentos recessivos que atingem o seu entorno prossegue a anlise de Leite. Uma das principais caractersticas dos distritos industriais o esprito de cooperao entre as empresas, baseado em relacionamentos estveis (envolvendo, freqentemente, laos culturais, sociais e polticos) e no mais na competio, acrescentam Leite e Posthuma (1996: 65) o que, a meu ver, torna esse caso num exemplo virtuoso de desempenho industrial.20 A outra vertente das cadeias produtivas inspira-se no modelo japons, e apresenta como caracterstica uma tendncia focalizao, que significa uma ateno concentrada e especializada das empresas em determinadas fases do processo produtivo, seguida da externalizao das demais fases. Esse sistema gera uma complexa organizao de cadeias produtivas, comandadas por uma empresa-me e um conjunto de fornecedores, e cujo exemplo principal a indstria automobilstica japonesa, um

20

Ver Ferreira et al. (1991), onde se compara o modelo de Emlia Romana ao japons e ao sueco.

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modelo mimetizado em quase todo o mundo(inclusive no Brasil) e que, por essa razo, merece ser melhor explorado.

2.4.2 Marchas e contramarchas da experincia japonesa

Exemplo de um novo paradigma industrial, os mtodos japoneses apontam para um padro especfico de organizao da produo e do trabalho. A estrutura industrial , a um tempo, flexvel e integrada, caracterizandose pela associao dos ganhos de escala aos ganhos de escopo, obtida pela produo diversificada e em pequenos lotes. H, portanto, uma diferena significativa em comparao com o padro

fordista, caracterizado pela produo em grandes sries de um mesmo produto, o que resulta em ganhos de escala. O estudo de Coriat (1994) sobre o mtodo toyota (empresa

paradigmtica), baseia-se em dois pilares: a auto-ativao e o mtodo just-in-time (JIT). O primeiro representa a possibilidade da fora de trabalho de reintegrar a gesto da qualidade nos atos elementares da execuo das operaes 21; a execuo do trabalho em vrias mquinas ao mesmo tempo, atravs de postos de trabalho polivalentes, em uma nova concepo da linha de produo. O resultado ser a desespecializao dos operrios para transform-los no em operrios parcelares, mas em plurioperadores, em profissionais polivalentes, em trabalhadores

multifuncionais22. Por outro lado, a desespecializao e a transformao em trabalhadores multifuncionais tambm se apresentam como uma forma de atacar o saber complexo21 22

Coriat (1994: 53). Idem (1994:53).

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do exerccio dos operrios qualificados, a fim de diminuir os seus poderes sobre a produo e de aumentar a intensidade do trabalho. Esta uma nova maneira de racionalizao do trabalho, no mais baseada no parcelamento e microtempo impostos como, na via americana, mas atravs da desespecializao e do tempo partilhado.23 J o just-in-time consiste no abastecimento dos postos de trabalho com o estritamente necessrio produo, no tempo certo. Para que isso funcione, torna-se necessrio um sistema de informaes (Kan-ban) eficiente mas no

necessariamente sofisticado, organizado paralelamente aos fluxos reais da produo. No JIT, enquanto as clulas de produo esto organizadas do incio para o fim, o fluxo de informao invertido, seguindo da jusante montante da cadeia produtiva. O sistema de circulao das informaes explicitam aos diferentes postos de trabalho as necessidades de cada um. O resultado desse sistema se traduz na reassociao de tarefas que antes, no fordismo, estavam separadas : execuo, programao e controle de qualidade. Essa reassociao resulta em outra dimenso da pluriespecializao ou polivalncia, que tambm inclui a manuteno das mquinas, em um nvel mais elementar. Todas as outras ferramentas do mtodo japons (muito conhecidas e, freqentemente adotadas no Brasil), tais como: o Controle da Qualidade Total, o Kaizen, os 5 Ss,24 o CCQ (Crculos de Controle de Qualidade), CEP (Controle Estatstico de Processos) e outros, funcionam como suportes para os dois pilares principais. Vrias destas ferramentas so, na verdade, mecanismos de envolvimento dos trabalhadores, garantindo sua participao, que vem atravs da apresentao de todos os23

Diferentemente dos tempos impostos (paradigma fordista), o tempo partilhado refere-se ao princpio da atribuio de tarefas modulveis e variveis tanto em quantidade quanto em natureza, o que possvel graas multifuncionalidade dos trabalhadores. (Coriat, 1994:71) 5 Ss (cinco esses) o nome de uma ferramenta da qualidade de origem japonesa, que rene cinco princpios de nome iniciados em S : seiri, seiton, seisoh, seiketsu, shitsuke. Estes princpios foram traduzidos para: arrumao, ordenao, limpeza, sade e autodisciplina. (MBR, s/d)

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tipos de sugestes. Estas sugestes vo gerar pequenas mudanas no processo produtivo, inovaes incrementais que, no seu somatrio, resultam numa dinmica de inovao tecnolgica constante. A participao dos trabalhadores macia e, dado o seu alto nvel de qualificao, o desenvolvimento tecnolgico das empresas , por isso, significativo. O sucesso do modelo japons , portanto, dependente de uma fora de trabalho altamente qualificada, multifuncional e com importante participao no processo de inovao da indstria. A multifuncionalidade, ou polivalncia, permite ao trabalhador desenvolver diferentes tarefas, bem como responder aos constantes problemas que a produo diversificada coloca para as empresas. Por outro lado, a polivalncia da mode-obra vai depender de uma outra singularidade da estrutura industrial japonesa: seu sistema de emprego e de gesto da mo-de-obra. O salrio por antiguidade representa um critrio para a formao da remunerao da mo-de-obra. Quanto maior o tempo de servio do operrio, maior o seu salrio. Mas esta frmula tem sido substituda por outros elementos, principalmente pelo pagamento por merecimento, ou seja, quanto mais eficiente e inovativo for o operrio maior ser seu salrio. (Oliveira, A. 1996). Por outro lado, um forte e amplo sistema de treinamento interno garante o saber do trabalhador sobre as especificidades da firma empregadora, tornando-o mais apto para as contribuies inovadoras. Posto o qu, pode-se melhor compreender a natureza do sucesso das relaes inter-firmas, no modelo japons. A base do modelo o just-in-time, inicialmente interno s grandes empresas. Sua difuso terminou por alcanar todas as empresas fornecedoras. Este sistema gerou, conseqentemente, uma estrutura industrial diferente da fordista, na qual as grandes plantas industriais buscavam a verticalizao das empresas, com o objetivo de alcanar ganhos de escala sucessivamente maiores. Na

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economia japonesa a verticalizao baixa, ou seja, sua estrutura muito mais horizontalizada se comparada ocidental, o que se deve s caractersticas de focalizao e externalizao da produo, atravs do JIT externo, bem explicada por Oliveira (1996):

A difuso do jus-in-time para toda a rede de fornecedores viabilizou a relao de subcontratao entre as pequenas e mdias com as grandes empresas. Essa relao de subcontratao pautada pela hierarquia, onde as pequenas e mdias empresas esto numa posio de subordinao em relao s grandes, tanto por um estatuto de dependncia como pela fidelidade em todos os nveis.25 Outra caracterstica importante a salientar que os salrios pagos pelas pequenas e mdias so menores quando comparados aos das grandes empresas. Mas as relaes entre elas tambm podem ser pautadas por cooperao tecnolgica e treinamento e qualificao da mo-de-obra. O objetivo implcito possibilitar a internalizao da inovao, distribuindo os ganhos entre as partes envolvidas. Geralmente nesses casos existem contratos de maior durao entre as empresas. Essa durao determinada pelo ciclo de vida dos produtos, quando abre-se uma nova rodada de negociaes entre as empresas. Em sntese, a grande empresa que define os critrios de qualidade, conformidade, prazos de entrega de produtos, alm de estimular a inovao das subcontratadas. (Oliveira, 1996: 42)

A cooperao dos trabalhadores, to vital para o JIT, obtida mediante um sistema de emprego e gesto do trabalho coerentes com o todo do modelo, ressalta Coriat (1994). Mas preciso destacar que, tambm no caso da gesto do trabalho, o sistema se concentra apenas nas grandes empresas, praticamente excluindo a mo-deobra das pequenas e mdias empresas, as mulheres, a mo-de-obra temporria e irregular. Leite (1996: 80) discute a existncia de uma significativa diferena em relao s condies de trabalho entre, de um lado, os trabalhadores vitalcios que constituem o core da fora de trabalho e, de outro, os trabalhadores perifricos. Nas empresas mes, e nas fornecedoras de primeira linha, a maior parte da fora de trabalho tende a

25

Ferreira et al. (1991: 18).

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ser formada por trabalhadores estveis, bem pagos e qualificados que constituem o core e para os quais as possibilidades de carreira e o treinamento contnuo so considerados como elementos essenciais. J nas fornecedoras que produzem as peas

tecnologicamente menos sofisticadas, a maior parte da modeobra constituda pelos trabalhadores pouco qualificados e instveis e, neles, as empresas pouco investem. A flexibilidade das firmas parece estar relacionada a esse duplo arranjo, o que lhes permite dispor de seus trabalhadores perifricos de acordo com as flutuaes do mercado, garantindo assim a estabilidade do core. Permite, ainda, que as empresas mes joguem sobre os fornecedores o peso de tais flutuaes, atravs da diviso do trabalho no conjunto da cadeia. Observe-se, pois, que esse arranjo, ao garantir o trabalho estvel e qualificado do core, o faz s expensas da mo-de-obra instvel, barata e desqualificada das firmas perifricas. Como diz Leite, o modelo se imbrica com fortes discriminaes sociais de gnero e etnia que acabam por reservar aos trabalhadores masculinos e japoneses os postos estveis e qualificados, relegando as mulheres e estrangeiros aos trabalhos mal pagos e desqualificados da periferia.(Leite, 1996: 81)

2.4.3 Mimetismo em mo dupla

A experincia japonesa, ou alguns de seus elementos, adentraram outros pases. Entretanto as estratgias variaram sempre, como tambm variaram as prticas e a organizao do trabalho, inclusive entre filiais de um mesmo grupo localizadas em pases diferentes. Elger e Smith (1994)26 comentam que na lgica atual da transnacionalidade, passa a existir uma maior mobilidade do capital. Entretanto, o regime de fbrica 26

Elger e Smith (orgs.), Global Japanization? Londres, Routledge, 1994: 34 5 apud Leite (1996).

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diferentemente distribudo, nas filiais estrangeiras de uma mesma firma, ou seja, h uma desigual distribuio das prticas adotadas em relao ao pas de origem. Leite (1996) aponta outra tendncia, caracterstica da diviso internacional do trabalho, que a de concentrar o trabalho mais simples onde a mo-de-obra mais barata. Passam, assim, os pases latino-americanos, convivncia de formas antigas de explorao com formas modernas, caricaturadas. E torna-se cada vez mais difcil criar empregos em nmero suficiente, derivando para a economia informal. No entanto, formas de trabalho instvel e polticas de reduo dos custos de mo-de-obra so encontradas mesmo nos pases centrais. Um mimetismo em mo dupla. No Japo, por exemplo, essa questo atestada pelo sindicalista Kamada (1994). Ali, a utilizao de trabalhadores estrangeiros aumentou, a partir do final dos anos 80 e incio dos anos 90. Esses trabalhadores no so regulares, ou seja, no tm carteira de trabalho assinada, garantia no emprego ou qualquer cobertura social, alm, claro, de receberem um salrio inferior comparativamente aos regulares. (Oliveira, 1996) Tambm na Frana e na Blgica, novos mecanismos de reduo dos custos da mo-de-obra so acionados, conforme analisa Lautier (1997)27, enfocando as recentes greves da Renault. O caso francs , ento, comparado ao do Brasil, onde se opera um tipo de paternalismo vamprico que , para Lautier, sem dvida, o futuro universal. Alis, como bem argumenta Salama:

a experincia recente destas economias (latino-americanas) rica de ensinamentos para as economias capitalistas avanadas. (Salama, 1996: 249)

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La