A Trilha Sonora No Filme

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  • 8/12/2019 A Trilha Sonora No Filme

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    Marcia Carvalho 11111

    AAAAAtrilha sonortrilha sonortrilha sonortrilha sonortrilha sonora do Cinema: Pra do Cinema: Pra do Cinema: Pra do Cinema: Pra do Cinema: Proposta paroposta paroposta paroposta paroposta para uma uma uma uma umouvir analticoouvir analticoouvir analticoouvir analticoouvir analtico

    Resumo:Este artigo objetiva apontar uma reflexo sobre o somno cinema a partir das trs categorias de Charles Sanders Peirce.Prope-se um exerccio de anlise da msica, efeito sonoro e vozcomo correspondentes de uma classificao do som em trscategorias: no-representativo, figurativo e representativo. Dessamaneira, pretende-se ressaltar a importncia de um debate sobre asdiferentes perspectivas do pensamento sobre o som para o cinema,e a necessidade de aguar nossos ouvidos para escutar e produzirestes sons.

    Palavras-chave: Cinema, trilha sonora, semitica peirciana.

    Abstract: This art icle aims to show some reflection about thesound in the cinema using the tree categories of Charles SandersPeirce. It is proposed an analyze of the music, sound effect and voicecorrespondent of the classification of the sound in tree categories:non-representative, figurative and representative. In this manner, Iintend to project the importance of one debate about differentperspectives of thinking the sound for cinema, and the necessity ofopen ours ears for listen and product this sounds.

    Key words: Cinema, soundtrack, Peirce semiotic

    11111 MMMMMarararararcia Carvcia Carvcia Carvcia Carvcia Carvalhoalhoalhoalhoalho Radialista,

    formada pela UNESP, MestreemComunicao e EstticasAudiovi suais, pela ECA-USP, edoutoranda em Multimeios peloInstituto de Artes da UNICAMP,sob orientao de Ney Carrasco,com pesquisa sobre a cano nocinema brasileiro. integrante doGrupo de Pesquisa de Msicaaplicada Dramaturgia e aoAudiovisual, na UNICAMP. Compublicao sobre cinemabrasileiro, documentrio, e msicano cinema em livros da SociedadeBrasileira de Estudos de Cinemae Audiovisual (SOCINE), nos

    Anais do Congresso Brasileiro deCincias da Comunicao(INTERCOM), na revista PJ:Br Jornalismo Brasileiro, entre outrosperidicos.

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    O cinema nunca foi no-sonoro, o cinema foi mudo, isto , literalmenteprivado de palavra. Por isso, o cinema no se tornou sonoro e sim se tornoufalado. Desde os primeiros filmes sempre existiu a presena de intervenes sonoras,seja ao vivo com o uso de acompanhamento musical realizado por um pianista,um improvisador ou, s vezes, por uma pequena orquestra; ou na forma gravada,com a juno do fongrafo com o cinematgrafo.

    Assim, a estrutura e o sentido do filme, desde o advento do cinema falado,so construdos atravs das duas bandas da pelcula: a sonora e a visual. Na banda

    sonora - que chamamos aqui de trilha sonora - podemos identificar os seguinteselementos: msica, efeito sonoro (sons reconhecveis e irreconhecveis ou rudos)e voz (falas e narraes). A trilha sonora, portanto, diz respeito aos cdigos decomposio sonora, ou em outras palavras, ao agenciamento sintagmtico doselementos auditivos entre si. As msicas, os efeitos sonoros e as vozes intervmsimultaneamente com a imagem visual, e essa simultaneidade que os integram linguagem cinematogrfica.

    No cinema narrativo-representado dominante, a percepo do som estatrelada ao pacto que existe entre o emissor e o espectador quando este entranuma sala de exibio para ver-ouvir uma histria contada. A estruturapredominante neste pacto, de aproximadamente cem minutos, a narrativa. A

    trilha sonora, ento, participa da articulao e da organizao da narrativacinematogrfica compondo um elemento de sua montagem. E desse modo, apercepo flmica udio (verbo) visual e permite numerosas combinaes entresons e imagens visuais 22222.

    A linguagem sonora no cinema clssico, desde o modelo de Griffith at osseus subprodutos contemporneos, elaborada por meio do sincronismo daimagem visual e dos sons. O que consolidou para a dimenso sonora uma espciede discurso da neutralidade, uma maneira de colocar a trilha sonora como umafaceta tcnica complementar na confeco do controle da narrativa e de suarecepo. Assim, o fenmeno sonoro no cinema passou a ser predominantemente

    utilizado de forma a se tornar imperceptvel ao espectador.Este modelo de uso do som caminha junto com sua diegetizao (tudo o

    que diz respeito ao mundo representado), recorrendo, segundo Claudia Golbman(1987:73), a certos princpios bem definidos, entre eles: a invisibilidade, em queo aparato tcnico da msica no diegtica no visvel; a inaudibilidade, o usoda msica subordinada s imagens para criar uma ilustrao ou uma atmosferacorrespondente situao dramtica; e o respeito continuidade e unidadeda narrao, com o uso da repetio do material musical (com o chamado leitmotivou motivo condutor um desdobramento da criao de Wagner na msica, emque temas meldicos recorrentes so associados a situaes dramticas, sentimentos

    ou aes de personagens) e da instrumentao com o intuito de auxiliar aconstruo da unidade formal e narrativa.Todo o trabalho do cinema clssico e de seus subprodutos visou, portanto,

    espacializar os elementos sonoros oferecendo-lhes correspondentes na imagemvisual, o que garante uma combinao redundante e simplista. Esta concepo detrilha sonora respeita a linearizao da narrativa e de seu impacto dramtico paraa obteno dos efeitos realistas e da mobilizao emocional do espectador. Almdisso, imps o predomnio da voz sobre os outros elementos sonoros.

    Irremediavelmente, este cinema dominante, rigidamente codificado, e suaretrica de base que a impresso de realidade do som e da imagem at hojea mais bem aceita diretriz na produo dos meios audiovisuais. Dado que arepresentao naturalista e mecnica de Hollywood consagrou um estilo repletode sedutoras convenes industriais que ainda so seguidas e reverenciadas demaneira pouco inventiva, mesmo com o seu inegvel refinamento tecnolgico.

    22222 No processo de produo dos filmes,a trilha sonora parece resguardar a suaparticipao mais criativa etapa de ps-produo (ou, mais precisamente com ainsero de msicas, efeitos produzidosem estdio, dublagem, narrao e etc.)realizada por meio de tcnicas de ps-sincronizao e de mixagem. Na etapade gravao das imagens visuais, a trilhasonora resume-se basicamente aos sonsdiretos captados do ambiente da ao.

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    33333 Pode-se tambm lembrar que ovocabulrio terico da msica tomouemprestadas muitas indicaes das artesvi sua is e do mundo das aparncia sespaciais : al to , baixo , ascendente,descendente (todos se referindo altura);horizontal, posio, intervalo e inverso(referindo-se a melodia); vertical, aberto,fechado, denso e rarefeito (referindo-sea harmonia); e, contrrio e oblquo(referindo-se ao contraponto que , porsua vez, um termo visual). Sobre estadigresso, ver, SCHAFER, Murray (2001),A afinao do mundo, p. 176.

    Entretanto, preciso lembrar que em termos de decupagem clssica, mesmocom o sincronismo audiovisual, possvel pensar em muitas combinaes deimagens visuais e sonoras. Tambm no podemos deixar de destacar aqui aimportncia de outras propostas para a utilizao da trilha sonora. Afinal de contas,mesmo antes da consolidao do cinema sonoro, certos realizadores propuseramalgumas inventivas articulaes entre som e imagem visual ampliando aspossibilidades e propostas criativas de um filme.

    Para citar alguns exemplos, sem dvida, a mais notvel proposta foi o manifesto

    Declarao sobre o futuro do cinema sonoro de 1928, publicado por Eisenstein,Pudvkin e Alexandrov (Weis e Belton, 1985: 83-85), em defesa do uso docontraponto entre som e imagem visual. Um mtodo de no sincronia entre oselementos audiovisuais que permitiriam ampliar as possibilidades da montagemno cinema. Podemos lembrar tambm que em 1929 Ren Clair elaborou ummanifesto chamado A arte do som (Weis e Belton, 1985: 92-95), no qual propunhauma distino entre um cinema falado para definir as propostas do cinemaamericano, e cinema sonoro para definir um cinema que utilizaria diferentesefeitos sonoros e rudos em sua narrativa. J em 1945, Bela Balazs se dedicou aodebate do uso diversificado de sons nos filmes. Para ele, o som no cinema possuia capacidade de recuperar para os espectadores certas sensaes perdidas, tais

    como os sons da natureza, os barulhos da cidade e at o silncio (Weis e Belton,1985: 116-125).

    Como se sabe, a msica enquanto arte de organizar sons foi sempre utilizadacomo essncia metafrica do cinema, tal como na expresso msica das luzes deAbel Gance. Muitas noes da msica foram retomadas para qualificar fenmenosformais do cinema, e alguns conceitos imbricam os aspectos sonoro-visuais taiscomo montagem harmnica ou montagem tonal de Eisenstein, intervalo deVertov, ou ritmo de Dulac, entre outros (Aumont e Marie, 2003: 204-205) 33333.

    Tambm podemos citar vrios trabalhos inventivos com o som ao nosremetermos a vrios filmes e muitos diretores que investiram na dimenso sonora

    de suas produes com numerosos experimentos na forma de relacionar imagense sons, sem se preocuparem com a utilizao realista, e sim articulando efeitossonoros, vozes e at rudos para produzir outros tipos de metforas e significaesmais originais ou singulares. So exemplos parcerias entre compositores e diretoresj bastante consagradas, principalmente por suas trilhas musicais, tais como a deProkofiev e Eisenstein, Herrman e Hitchcock, Fumio Hayasaka e Kenji Mizoguchi,Giovanni Fusco e Michelangelo Antonioni, Nino Rota e Fellini, Walter Murch eCoppola, ngelo Badalamenti e David Lynch, entre outros. Ou ainda, diretores queinvestiram em instigantes trilhas sonoras tais como Jean Renoir, Orson Welles,Jacques Tati, Stanley Kubrick, Robert Bresson, Louis Malle, Marguerite Duras, Jean-

    Luc Godard, Glauber Rocha, Woody Allen, Alain Resnais, entre outros.Mas afinal, o que queremos ressaltar nestes primeiros comentrios sobre aquesto do som no cinema justamente a existncia, por um lado, de um cinemaque trata a linguagem sonora como um mero acompanhamento visual, consagrandouma padronizao de procedimentos e tambm de mensagens, com poucas brechaspara intervenes mais ousadas. Mas, de outro lado, buscamos tambm enfatizar anecessidade de se estar atento presena, ao longo de toda a histria do cinema,de diversos filmes que tratam o som como um elemento esttico inventivo, capazde adquirir audibilidade, com um carter mais conceitual, singular e menos mecnico.Com isso, podemos afirmar que num estudo sobre cinema preciso realizar umexerccio de olhar e tambm de escuta dos filmes.

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    1 Uma classificao dos sons do cinema1 Uma classificao dos sons do cinema1 Uma classificao dos sons do cinema1 Uma classificao dos sons do cinema1 Uma classificao dos sons do cinema 44444

    Com o intuito de apontar um caminho para se discutir as trilhas sonoras defilmes, permitimo-nos apresentar uma classificao para a linguagem sonora docinema. Para tanto, tomaremos como referncia o texto de Lcia Santaella Parauma classificao da linguagem visual (1989), com a inteno de realizar umparalelismo entre a classificao da imagem visual e as possibilidades dos elementossonoros no cinema.

    Santaella confeccionou este texto a partir da tica das trs categorias deCharles Sanders Peirce. Isto quer dizer que a autora divide a imagem visual em trscategorias bsicas de acordo com a relao estabelecida entre o signo e aquilo aque ele se refere. Dessa maneira, as imagens visuais so divididas em: no-representativas, figurativas e representativas. Segundo Santaella:

    As formas no-representativas, no limite, dizem respeito reduo da declarao visual aelementos puros: tons, cores, manchas, brilhos, contornos, formas, movimentos, ritmos,concentraes de energia, texturas, massas propores, dimenso, volume etc. Acombinao de tais elementos no guarda conexo alguma com qualquer informaoextrada da experincia visual externa. (...) As formas figurativas dizem respeito s imagens

    que basicamente funcionam como duplos, isto , transpe para o plano bidimensionalou criam no espao tridimensional rplicas de objetos preexistentes e, no mais das vezes,

    visveis no mundo externo.(...) nestas formas que buscam reproduzir o aspecto exteriordas coisas, os elementos visuais so postos a servio da vocao mimtica, ou seja,produzir a iluso de que a imagem figurada igual ou semelhante ao objeto real. (...) Asformas representativas, por fim, so aquelas que, mesmo quando reproduzem a aparnciadas coisas essa aparncia utilizada apenas como meio para representar algo que noest visivelmente acessvel e que, via de regra, tem um carter abstrato e geral. (Santaella,1989: 59).

    Desde j podemos situar os trs elementos: msica, efeito sonoro e voz,como correspondentes dessa diviso, pelo fato destes apresentarem, geralmente,

    papis distintos na montagem do filme. Assim, passamos a propor a seguinteclassificao:

    1. No-rNo-rNo-rNo-rNo-repreprepreprepresentaesentaesentaesentaesentativtivtivtivtivooooo: O som no-representativo predominado pela msica.Consideramos aqui todo tipo de msica, ou seja, desde o canto gregoriano pilarda concepo musical que abolia, em sua assepsia, os instrumentos de percussoe os acordes dissonantes, percebidos como ruidosos - at a msica eruditacontempornea, a msica popular e as msicas das mdias. No entanto, necessrioque esta msica desperte a ateno para as possibilidades de sentido e qualidadesprprias de seus elementos, que so: a melodia, a harmonia, o ritmo, o timbre etc.

    2. FigurFigurFigurFigurFiguraaaaativtivtivtivtivooooo: O som figurativo predominado pelo efeito sonoro ou som

    ambiental. Consideraremos efeito sonoro aquele que tem predominncia no registroda imagem/ao por sua necessidade de constituir signo e que se referem a umobjeto concreto. So os sons ambientais, passos, barulhos de motores, de chuva,sinos, ou ainda efeitos produzidos eletrnica ou digitalmente.

    3. ReprReprReprReprRepresentaesentaesentaesentaesentativtivtivtivtivooooo: Predominam como representao as vozes, os dilogosentre os personagens, as locues de um narrador etc. Estas vozes inserem-se numuniverso hbrido composto pela linguagem verbal e a oralidade. So formasrepresentativas convencionadas pela lngua, pelo sotaque e pela entonao.

    Cada um desses trs elementos pode ser subdividido, demonstrando aflexibilidade e a riqueza de possibilidades de comunicao que o som proporciona

    para a narrativa.Sobre a msica, preciso lembrar que a teoria musical contempornea vemutilizando junto aos sons musicais (as notas) os rudos e o silncio em sua estruturamusical. No entanto, no podemos deixar de estranhar a referncia desta presena

    44444 Esta classificao foi originalmenteescr i ta em minha monograf ia deconcluso de curso de graduaorealizada em co-autoria com FbioLeandro de Oliveira, sob a orientao deCarmen Lcia Jos, intitulada A imagemsonora - nas trilhas do cinema brasileiro.Um ouvir analtico sobre os filmes Oquatrilho, Tieta e Baile Perfumado,defendida na Universidade EstadualPaulista, UNESP, em 1998. Contudo,apresento aqui um exerccio de anlisesuplementar desta pesquisa com algunsacrscimos conceituais e tambm comuma nova explorao de trabalhossonoros, apontando outros filmesenquanto objetos de estudo.

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    do silncio na matria sonora. Para esclarecermos um pouco este assunto, citaremosJos Miguel Wisnik:

    O som o produto de uma seqncia imperceptvel de impulsos e repousos, de impulsose quedas cclicas desses impulsos, seguidas de sua reiterao. Em outros termos, podemosdizer que a onda sonora formada por um sinal que se apresenta e de uma ausncia quepontua esse sinal. Sem esse lapso, o som no pode durar, nem comear. No h som sempausa. O som presena e ausncia, e est, por menos que isso aparea, permeado desilncio. H tantos ou mais silncios quanto sons no som. (Wisnik, 1989: 18).

    Assim, podemos dizer que o silncio tambm capaz de sublinhar comfora e tenso dramtica um momento no filme. E, s vezes, torna-se at maiscontundente do que uma interveno de uma msica. No entanto, a msica quese destaca por sua potencialidade para constituir signo e por seu modo de percepopeculiar.

    Segundo J. J. de Morais (1983) existem trs modos dominantes de se ouvirmsica: o fsico, o emocional e o intelectual. O autor destaca como primeirauma maneira de ouvir com o corpo. Ou seja, sentir a vibrao da sonoridade. misturar o pulsar do som com as batidas do corao, um quase no pensar.Ouvir com o corpo a materialidade da msica entrando em contato direto coma materialidade do corpo. Como um budista entrando em transe com os sons dosgongos e sinos. Ou um jovem que nesse estgio de escuta sente o impulso do atode danar em uma discoteca.

    No segundo modo, o autor aponta um ouvir emotivamente. Uma maneirade ouvir que sai da sensao bruta e entra no campo dos sentimentos, daemotividade. Aqui entram os adjetivos: msica triste ou alegre, entre outros. Pode-se dizer que uma tentativa de ouvir o mundo interior atravs da msica. estemodo de escuta que acabou sendo muito utilizado na sonoplastia tanto de cinemacomo de televiso para criar o chamado clima ambiental.

    No terceiro modo, ocorre um ouvir intelectualmente em que a estrutura

    musical colocada em destaque. A msica pensada como linguagem, organizaode certos pressupostos como a escolha de sons e a maneira de articul-los. Ouvirmsica intelectualmente perceber que msica constituda de estrutura e forma.Como sabemos, a terceiridade aproxima um primeiro e um segundo, numa snteseintelectual, ao pensamento em signos atravs do qual representamos e interpretamoso mundo. Assim, quando nos referimos ao terceiro nvel do cdigo musical sabemosque este se constri a partir de traos do corpo ou do sentimento bruto (primeiro),e da emotividade (segundo).

    Afirmando que o segundo engloba o primeiro e que o terceiro incorpora asduas primeiras, o autor destaca que a maneira de ouvir com o corpo prevalece

    sobre as outras e assim por diante. Isto parece estar de acordo com o que diz LciaSantaella (1989: 46) ao afirmar que a matriz virtual ou musical da percepopossui uma vocao para o primeiro nvel do signo, estabelecido por Peirce. Ouseja, uma Primeiridade que na relao entre signo-objeto-interpretante se fazsentir enquanto qualidades de sentido. E a matriz visual teria uma vocao para aSecundidade e a palavra escrita para a Terceiridade.

    a partir desses trs modos de ouvir que vamos considerar a participaoda msica nos filmes. No primeiro nvel, o fsico, podemos destacar as propriedadesmateriais bsicas para a percepo do som que so: a altura, a durao, timbre eintensidade 55555. Estes componentes do som se caracterizam e se mostram como

    qualidades sensoriais, portanto, so matria prima da linguagem sonora.Ao propormos uma correspondncia com a experincia visual, podemoslembrar que Santaella atribui ao primeiro nvel do campo da imagem visual, asformas no-representativas, a qualidade reduzida a si mesma, ou seja, a tatilidade

    55555 O maior ou menor nmero devibraes por segundo determina a alturade um som. A durao o campo deprolongao de um som. O timbredetermina a possibilidade de identificaoe discriminao auditiva das vrias fontessonoras. E, por sua vez, a intensidade ograu de energia de um som.

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    que corresponde aos efeitos de formas, qualidades de linha e superfcie, combinaode massas e volumes, citando como exemplos as telas de Kandinsky.

    Para o receptor do som, este nvel de percepo corresponde a um modo deouvir com o corpo, no qual partes deste, ou este por completo, vibram. amaterialidade da msica que entra em contato com o corpo. Podemos perceberclaramente esta dominncia na trilha sonora composta por Philip Glass para atrilogia Koyaanisqatsi (1983), Powaqqatsi(1988) e Naqoyqatsi(2002), realizadapelo diretor Godfrey Reggio. Estes exemplos - ainda que no sejam filmes narrativos

    - constituem signos de uma experincia espao-temporal amplificada e esclarecemcomo compositor e diretor conseguem envolver o espectador com a plasticidadeda fuso de som e imagem, refreando ao mximo a necessidade de atribuio desentido, e deixando o espectador absorvido pela sensao, pelo quase no-pensar.

    O segundo nvel que encontramos na msica aquele que est conectadoa um acontecimento que se mostra na imagem. Prevalece aqui a melodia do some seu carter situacional, ou seja, a forma como geralmente trabalhada comofundo musical que contextualiza a diegese, ou a que dirige o estado psicolgicodo espectador para a situao dramtica atravs da emoo, ou ainda, que fazparte desta diegese. Trata-se de um modo de ouvir como adjetivo (triste, alegre,etc.). A sucesso particular de sons sua tessitura, dinmica, instrumentao dum certo carter melodia e, por sua vez, obtm uma certa resposta emocionaldos ouvintes. Inserida nesta categoria, a msica foge um pouco da capacidadede referenciar a sua materialidade, trazendo consigo a significao emocional de siprpria e uma intencionalidade de interagir com a diegese. Este nvel se apresentaem praticamente todos os filmes, sobretudo em filmes melodramticos, devido aofato de ser eficiente no encadeamento de planos e seqncias e na constituioda atmosfera de ao.

    O terceiro nvel, que possui um carter mais simblico e intelectual, constitui-se da ocorrncia do leitmotiv (motivo condutor) na trilha sonora, e articula aconstruo de imagens sonoras com a narrativa. Trata-se, em resumo, da repetio

    de um tema musical ou de algum elemento meldico que associado a algumapersonagem, situao ou idia. Esta vinculao faz com que o espectador tenhainstrumentos de acompanhamento da trama alm daqueles que o texto explcitofornece. Este princpio exige uma participao intelectual, ou um interpretantemais rgido, pois nos remete a um significado mais especfico servindo unidadeda narrativa, ou estrutura dramtica. Existem inmeros exemplos deste nvel,realizados com maior ou menor rigor, com maior ou menor propriedade. Umexemplo o leitmotiv musical criado para Tubaro(1975) de Steven Spielberg, emque a msica funciona no filme de tal forma que a presena fsica do animal-personagem na cena dispensvel.

    Quanto ao uso dos efeitos sonoros, consideramos aqueles que possuemvocao para se constiturem como signos figurativos devido conexo que seestabelece com o objeto. E tambm dividimos a indexicalidade destes efeitossonoros em trs nveis de variao.

    Num primeiro nvel, temos o efeito sonoro representando o seu objetoapenas em parte, j que interessa mais a plasticidade da sua presena do que oprprio referente. a aproximao do signo/efeito com qualidades musicais. Hum corte livre do som de sua origem natural, ou seja, separa-se o som da fonteque o produz 66666.

    Em Os Pssaros(1963) de Alfred Hitchcock, por exemplo, foram utilizadossons de violinos para reproduzir o som emitido pelas aves, carregando consigoqualidades sonoras que sublimavam as cenas. E a correspondncia possvel com aimagem visual atravs das telas de Cezzane, nas quais a figura seria apenas um

    66666 Trata-se do som esquizofonico talqual como nomeou Murray Schafer(1992), em O ouvido pensante, p. 171-177.

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    pretexto para que se desenvolva a plasticidade da matria, sem que se queira dar aimpresso de realidade. Sobre Cezzane, Santaella afirma:

    A figura no visa a reproduzir ilusoriamente uma realidade externa, mas um universo parte com qualidades prprias. Nesse caso, ento, o objeto do signo no vale pela suarealidade natural ou existncia no espao externo. O signo apenas o sugere ou alude,criando para ele, dentro do signo, uma nova qualidade concreta, puramente plstica.(Santaella, 1989:63)

    Tambm preciso acrescentar nesta primeira categoria do efeito sonoro ouso do rudo. Rudo a mistura de sons aleatrios e indistintos, sem harmonia;sons produzidos por vibraes irregulares, de maneira confusa. Entretanto, o rudo um som o qual fomos treinados a ignorar.

    Sabemos que na teoria da comunicao, dentro do processo de comunicaocompreendido por emissor - canal/ cdigo - receptor, um rudo designa qualquerdistrbio ou perturbao que ocasiona perda de informao na transmisso damensagem. No entanto, estes sons que nem sempre so reconhecveis nemdesejveis tambm podem despertar uma expressividade sonoplstica interessante,construindo certas subjetivaes de narrador e personagens, alm de sugerir novas

    sensaes aos espectadores e ampliar as possibilidades de efeitos cmicos.Nesse sentido, o uso dos rudos na trilha sonora se transforma numa total

    criao no realista do som, isto , em no-coincidncia com a imagem visual.Como em O milho(1931) de Ren Clair, na seqncia em que vrios homensdisputam o palet que contm um bilhete premiado e h uma insero de sons deapitos de uma imaginria partida de rugby, produzindo um efeito cmico. Ouainda, em Milagre em Milo(1950) de Vittorio De Sica, em que as palavras dedois capitalistas que discutem o valor de uma posse de terra transformam-se poucoa pouco em latidos. Ou tambm emAs frias de M. Hulot(1953) de Jacques Tati,em que h uma substituio do som de uma porta da sala de jantar por uma corda

    solta de violoncelo acentuando todas as gags realizadas pelos garons a cadaabertura e fechamento dessa.Tambm no cinema brasileiro h outros curiosos destaques tal como j foi

    apontado por Nel Burch (1992: 124-125) em suas consideraes sobre aspossibilidades criativas de se tratar dimenso sonora no cinema. Burch comentaa sensibilidade e a beleza na organizao plstica dos rudos que nascem daimagem em Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos, em especial, amsica dos crditos que se trata de um longo ranger de rodas de carros-de-bois.Ou ainda, podemos lembrar do exemplo particular deA herana(1971) de OzualdoCandeias, filme em que no h quase falas e nenhum dilogo, com algumasespordicas legendas que elucidam as aes ou remetem obra Hamlet deShakespeare. Entretanto, esta bizarra adaptao substitui o texto de Shakespearepor rudos de sons de animais, principalmente de pssaros (como tambm inseremodinhas de viola), transportando a estria para a paisagem rural brasileira.

    Desse modo, quando um rudo incorporado intencionalmente ganha statusde efeito sonoro, deixa de ser pura desordenao interferente ou sem sentido epassa a participar da composio da cenografia acstica.

    J o segundo nvel dos efeitos sonoros trata-se do uso de uma conexodireta em que podemos identificar a fonte que produz o som no ambiente visual. o som diegtico o qual referencia o espao fsico com a maior fidelidade possvel.Este efeito sonoro afirma a imagem visual como verossmil e representa o seu

    objeto da maneira mais completa e realista. So os sons do corpo tal como ospassos dos personagens; os sons naturais tais como os sons da gua ou dosanimais; ou os sons da sociedade tais como as paisagens sonoras da cidade, os

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    sons mecnicos das mquinas e de equipamentos industriais, etc. o efeito sonoromais usado por causa da sua capacidade de descrio do espao da cena, etambm pela sua flexibilidade em relao ao campo de viso da cmera, poispode ser percebido em todo o ambiente da ao ou pode se apresentar porconvenincia fora do campo de viso. Aqui h uma correlao com a imagemvisual tecnicamente produzida (como a fotografia), que alcana o nvel mximo dereproduo da imagem tal como os nossos olhos vem, assim como esse efeitofigurativo reproduz fielmente o seu objeto.

    Num terceiro nvel, que sempre conhecido no interior de sua conveno epelo reconhecimento, temos o efeito sonoro como leitmotiv. O leitmotiv, como jfoi explicado neste estudo, sugere a previsibilidade atravs da pr-audibilidade deum determinado elemento. Nesse sentido, o efeito sonoro dentro da narrativapode ser usado para criar uma conveno, determinando para um som umsignificado especfico. Para identificar uma ao de um personagem, o efeito sonoropode trazer consigo a marca de quem est agindo na narrativa naquele momento,ou ainda, atualizar, na memria, uma idia representada anteriormente no filme. exemplo deste efeito de identificao e de reconhecimento atravs do leitmotiv, otema de Peer Gynt (sute 1, Op. 46, ltima parte) de Edvard Grieg assobiado peloassassino em M, o vampiro de Dusseldorf(1931) de Fritz Lang. O ato de assobiar

    esta msica um efeito sonoro que se torna parte do enredo, dado que ao ouvireste som um cego descobre quem o assassino.

    Finalmente, quanto voz podemos afirmar que ela corresponde ao terceironvel, o da representao. A voz a manifestao sonora do corpo do ator, mesmoque ele no esteja representado visualmente. Como material fnico, a voz caracteriza-se, antes de tudo, por um timbre, que permite identific-la. Ela tambm pode sermodulada pela entonao, pela tnica e pelo ritmo das frases.

    Sabemos que sempre existiu no cinema um domnio da voz na maior parteda produo cinematogrfica mundial, desde o surgimento do cinema falado. Eembora a voz seja um fenmeno hbrido entre a linguagem verbal escrita e a

    oralidade, suas associaes de idias tambm permitem a considerao de trspossibilidades.

    Num primeiro nvel temos as qualidades da voz que se sobressaem atravsda musicalidade com a qual esta expressa. Uma faceta do uso da voz que praticamente desconectada da lngua e se apresenta na forma verbal oral comnfase em sua plasticidade sonora. Esta voz pode at ser utilizada de formadiegtica, mas eficaz no modo no diegtico, caso contrrio ela se constitui numndice descritivo da pessoa que se apresenta atravs da indexicalidade da imagem.Trata-se dos sons da voz em que a fala ou o sussurro carregam palavras quecantam, e a lngua quase funciona como msica. O som ganha vida e o sentido

    definha, o ouvinte quase no compreende o seu significado. exemplo a msicacantarolada por Caetano Veloso durante os crditos do filme So Bernardo(1973)de Leon Hirszman, em que a harmonia puramente vocal.

    No segundo nvel da voz esto os dilogos entre os personagens, osmonlogos que, atravs da sua entonao, sotaque ou modo de falar contribuempara a caracterizao dos personagens. Os dilogos normalmente so apresentadoscom fala sincrnica, ou seja, vemos quem fala atravs de um som lbio-sincrnico.E nestas falas diretas encontramos o domnio do diegtico. Cria-se com isso, umverdadeiro figurino sonoro para caracterizar as personagens, tal como o uso desotaque para evidenciar um regionalismo ou da prpria lngua para determinar alocalizao geogrfica, ou ainda, a presena de estrangeiros em certas narrativas.

    No terceiro nvel, temos a voz off e over ou no-diegtica, que, atravsde um sistema de convenes, do pacto entre o narrador e o espectador, conectam

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    a voz com a narrativa e estabelecem a relao do signo com seu objeto atravs deseu interpretante.

    No Brasil, como na Frana, usa-se em geral a expresso voz off para toda equalquer situao em que a fonte emissora da fala no visvel no momento emque a ouvimos. Nos EUA, h uma distino entre voz off, usada para a voz deuma personagem de fico que fala sem ser vista, mas est presente no espao dacena; e, voz over, usada para aquela situao onde existe uma descontinuidadeentre o espao da imagem e o espao de onde se emana a voz, como acontece,

    por exemplo, na narrao de muitos filmes documentrios (voz autoral que fala doestdio) ou mesmo em filmes que a imagem corresponde a um flashback, ou queapresenta tempos diferentes. Enfim, trata-se de uma forma de usar a vozdescorporizada, com um narrador que est presente em um tempo/ espao queno o da narrativa, ou que no est presente no campo de viso. E o seu carterde terceiro reside na informao que passada para o espectador sem que ospersonagens ou os espectadores tenham acesso visual de quem produz estainformao. Este recurso do trabalho da voz para a narrao bastante utilizadono cinema americano, e de forma magistral em Crepsculo dos Deuses(1950) deBilly Wilder.

    2 A2 A2 A2 A2 As imas imas imas imas imagens sonorgens sonorgens sonorgens sonorgens sonoras deas deas deas deas de Baile PBaile PBaile PBaile PBaile Perfumaerfumaerfumaerfumaerfumadododododo

    Para realizarmos um exerccio de anlise aplicada escolhemos o filme BailePerfumado (BRA-1997) dirigido por Paulo Caldas e Lrio Ferreira. Este filmepernambucano baseado em fatos reais, e mostra saga de Benjamin Abraho(interpretado por Duda Mamberti), imigrante libans que chegou ao Brasil no finaldos anos 10. Abraho, fotgrafo e homem de confiana de padre Ccero, filmouLampio e seu bando com o auxlio de coronis da regio, incomodando o governode Getlio Vargas. No filme h a retomada das imagens originais captadas por ele,

    trecho que constitui o ncleo da estria contada e que revela a atitude marotadeste cineasta estrangeiro de filmar Lampio e seu bando, sonhando em ganharmuito dinheiro com isso.

    O filme, ento, conta histria do encontro entre Abraho e Lampiovoltando-se para a questo do serto e a histria do cangao, temas muito filmadosdurante a histria do cinema brasileiro. Entretanto, Baile Perfumado carrega emseus desdobramentos formais uma maneira diferente de se narrar esta histria.Para tanto, o espao do serto percorrido no indica mais uma metfora dointolervel como em outros filmes brasileiros, principalmente do perodo do CinemaNovo, mas sim apresenta um serto repleto de circuitos de troca e conexes como litoral, vistos a partir das imagens dos bailes nos acampamentos de Lampio eseu bando, com destaque para a imagem de um Lampio seduzido pelos perfumese o usque, adquiridos com o dinheiro extorquido ou originrio de alianas comfazendeiros locais que marcavam o jogo de poder na regio; ou ainda, com asimagens de Lampio e Maria Bonita numa sala escura de um cinema.

    O filme, portanto, mostra um outro olhar para a histria e para o Nordeste,com imagens de um serto verde e de Lampio como um bandido refinado,caractersticas destoantes das imagens recorrentes na historia do cinema de umNordeste sem cor, seco, rido e sem vida; e da figura romntica e sanguinria deLampio.

    Alm disso, o maior destaque deste filme parece ser a sua trilha sonora que

    dialoga com o seu estilo visual por meio de uma interao entre o tratamentorealizado para a msica - com a performance instrumental e a mistura de ritmosregionais com ritmos importados, caracterstica que sintetiza o movimento musical

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    pernambucano manguebeat - com os movimentos estranhos experimentados pelacmera. Em muitas cenas, destaca-se uma cmera que se movimenta seguindo umpouco as batidas sonoras inseridas no filme, o que parece colaborar para a criaode uma viso singular para este evento histrico narrado.

    A trilha musical possui uma mistura de guitarras pesadas com batidas puxadaspara o baio e para a msica tradicional nordestina, presentes em samplers demaracatus sintonizados com as propostas do movimento musical mangue-beat(bit),que possua como principal divulgador o compositor Chico Science (Francisco

    Assis Frana). Sabemos que a principal bandeira criativa deste movimento musicalpernambucano a mistura de elementos tradicionais e regionais com elementoscontemporneos. Esta provocante mistura dada na sua prpria definio quecondensa a idia regional do mangue embolado com a batida (beat) e com amodernidade eletrnica dos computadores (bit), usando uma justaposio propositalde palavras em ingls e portugus.

    A msica do mangue beat/ bit (os dois termos so usados, mas a primeiraforma mais generalizada) contagiou os artistas locais que incorporaram em suasmanifestaes um dilogo aberto com a idia de se articular a arte popular tradicionale a cultura pop, ultrapassando um iderio temtico regionalista e folclrico, ou da

    pura exaltao dos valores e da riqueza da arte popular ao revitalizar e ampliar asua sonoridade e performance. Ritmos tradicionais pernambucanos como omaracatu, coco de embolada, caboclinho, cavalo-marinho, afox, ou a ciranda, somisturados e reinventados a partir da mistura com diferentes sonoridades da culturapop, do rocknroll, funk, hip-hop, soul e hard-core 77777.

    A trilha musical deste mangue movie de Chico Science, Fred 04, Siba,Lucio Maia e Paulo Rafael. As msicas foram gravadas entre julho de 1995 esetembro de 1996, em Recife. Chico Science tem papel fundamental nessa trilhasonora, pois sua performance a traduo mais exata da mistura de elementostradicionais com a cultura pop. Ele foi responsvel pela msica Angicos, inspirada

    no local onde morreu Lampio (no cd da trilha sonora, a msica aparece na versooriginal e em dois remixes: uma verso mais roqueira feita por Paulo Rafael; e outramais danante realizada pelo produtor musical Suba); e a instrumental SalustianoSong, ambas em parceria com Lcio Maia, guitarrista da Nao Zumbi; alm dainesquecvel Sangue de Bairro, ao lado da Nao Zumbi (tambm com duasverses: uma instrumental, que tocada no incio do filme; e a outra cantada, quese destaca em suas cenas finais).

    Fred 04, lder da banda Mundo Livre S/A, criou o hard tango BailePerfumado com seu cavaquinho acompanhado pela voz de Stela Campos (msicatocada durante os crditos finais); e a msica Tenente Lindalvo, interpretadajunto a sua banda. Fred 04 tambm faz uma participao especial no filme

    interpretando um jornalista que entrevista Benjamim Abraho para o jornal local,o qual divulga a histria do rabe que filmou Lampio. O compositor Siba foiresponsvel pela maioria dos temas; como intrprete tocou rabeca, viola e atmonocrdio. Comps o forr p-de-serra Baile Catingoso com seu grupo MestreAmbrsio, participando de uma cena do filme ao tocar esta msica para Lampio.Siba tambm criou Mamede, Chico Rural e a msica tema do personagemBenjamim Abraho intitulada Benjaab, em parceria com Lenine. E interpretou otema de domnio pblico Fulo de Junco. J Paulo Rafael foi o diretor musical e oresponsvel pela vinheta do filme (que comentaremos mais adiante), alm dascomposies DIP e Abertura 1900, esta ltima composta por guitarras variadas

    com samplers de maracatus, e com a voz de Alceu Valena. Para entendermos o trabalho da trilha sonora deste filme torna-se importante

    destacarmos algumas seqncias que parecem trazer imagens visuais que nasceram

    77777 Sobre o movimento musicalMangue-beat(bit), sua histria, suascaractersticas e principais artistas, verTE LE S, Jo s , (2 00 0) . Do fr e vo aomanguebeat, So Paulo: 34.

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    atravs desta sonoridade proposta. exemplo a seqncia em que se apresenta figura de Lampio, nela vemos entre cortes rpidos um tiroteio envolvendo Lampioe o seu bando, e o ambiente sonoro composto por sons secos de correria e tiros.A trilha sonora se alia aos movimentos geis da cmera, que quase participa daao. Lampio se esquiva entre a mata verde do serto e atira para o alto. Insere-se,ento, um som de tiro que ecoa na transposio das imagens para uma seqnciade panormicas areas de um canyon, formado pelos barrancos do rio So Francisco.A msica Sangue de bairro (verso instrumental) cria ritmo com suas batidas

    para a mobilidade da cmera que perfura o cu.Esta seqncia torna-se um exemplo emblemtico da estranha e relevante

    postura gestual entre cmera, atores e trilha sonora que se cria ao longo do filme.Estas cenas parecem compor uma espcie de vdeo-clipe, ou seja, nota-se aelaborao de uma maneira de inserir no filme uma espacialidade para a msica,que ganha uma existncia amplificada e independente. O que chama a ateno que esta msica descontextualizada da poca da narrativa com guitarras distorcidase uma batida vigorosa, se associa figura de Lampio pela correspondncia entreo ritmo da msica e o ritmo como filmado o tiroteio. E com isso, sugere-se umapostura livre e gestual na representao visual e sonora desta estria.

    Dessa forma, o desenrolar do filme reverbera de um impacto sonoro, comose as imagens fossem a prpria espacializao da msica, como se a msica abrisseos olhos do espectador para as imagens subseqentes do filme. Nesse sentido,conjugando os instrumentos analticos da semitica peirciana, a msica parece serutilizada para que fosse ouvida em todos os seus aspectos. Todos os modos deouvir - com o corpo, a emoo e o intelecto - so desejveis, porm o impactofsico de suas qualidades (altura, intensidade, timbre, ritmo) predomina. Assim, oprimeiro nvel da msica que ganha importncia na trilha sonora.

    Curiosamente, esta audibilidade da msica no filme nos remete a idia deuma configurao de um estilo pop que nos leva a pensar sobre uma particularsintonia com a linguagem do canal americano MTV e de sua filial no Brasil. NaMTV quase toda a sua programao se baseia na agilidade e na fragmentaoproposta pela linguagem do videoclipe, como podemos perceber nos sons e nasimagens grficas dos programas ou dos flashes de informao, os quais atualmente,em tempos de convergncia digital, tornaram-se extenses da visualidade estticae grfica da Internet ou do chamado web-design.

    Segundo Frederic Jameson, a MTV um exemplo peculiar de ps-modernidade nos meios audiovisuais:

    A relao mais crucial da msica com o ps-moderno certamente passa pelo prprioespao (em minha anlise, uma das caractersticas distintivas ou constitutivas da nova

    cultura ou dominante cultural). A MTV pode ser considerada como uma espacializaoda msica ou, se preferirmos, como a revelao clara de que a msica j tinha se tornado,em nossa era, profundamente espacializada. As tecnologias musicais, certamente, querseja de produo, reproduo, recepo ou de consumo, j tinham contribudo paraarmar um novo espao sonoro em torno do ouvinte individual ou coletivo: tambm namsica a representacionalidade- no sentido de sentar-se em uma fauteuil contemplarum espetculo que se desenrola diante de nossos olhos - j teve sua crise e suadesintegrao histrica especfica. No se oferece mais um objeto musical contemplaoe degustao; faz-se uma instalao sonora e se transforma em musical o espao emtorno do consumidor. Nessa situao, a narrativa oferece mltiplas mediaes proteiformesentre os sons no tempo e o corpo no espao, coordenando um fragmento visualnarrativizado. (Jameson,1997: 304)

    Nesse sentido, interessante observar no filme esta afinidade com a linguagemtelevisual ou com esta linguagem condensada da MTV que nos apresentadacom esta criao de uma espcie de vdeo-clipe na seqncia em que se apresenta

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    a figura de Lampio, ou mesmo com o uso de uma vinheta para mostrar o ttulodo filme (com a imagem do chapu de Lampio) em suas cenas iniciais. O usodeste recurso sonoro-visual nos remete ao valor e fundamental caracterstica dasvinhetas utilizadas na televiso com nfase em um som que marca ou especifica asua produo. A vinheta televisual apresenta logotipos e marcas, identificandoprodutos e empresas. No caso do filme, o uso desta vinheta nos chama a atenocomo uma espcie de atrativo para um maior nmero de receptores do cdigotelevisual j habituados a uma abordagem do fenmeno sonoro neste meio de

    comunicao, que fundamentalmente hbrido e nos faz escutadores porexcelncia.Os efeitos sonoros presentes na trilha sonora do filme tambm so bastante

    expressivos por conta do trabalho de sonorizao. Os sons so consideradoscomo matria criativa para composio sonora como um todo, destacando certosambientes sonoros bem trabalhados, tais como o tiroteio que envolve Lampio eseu bando sendo perseguidos pelo Tenente Lindalvo Rosas e seus volantes. Nestaseqncia (j citada anteriormente), destacam-se os sons de tiros, passos, e ossons dos corpos que roam na mata. Assim, de acordo com a nossa classificaodo som, o segundo nvel do efeito sonoro que predomina.

    Tambm preciso comentar a presena do silncio que muitas vezes faz

    ecoar a experincia sonora do filme, destacando-se como mais um recurso dentroda trilha sonora. So exemplos as cenas em que se inserem trechos do filmeoriginal, captados por Benjamim Abraho, nos quais o silncio parece enfatizar aimportncia deste registro documentado e a petulncia verdica do ato de Abrahofilmar Lampio. Entretanto, nas cenas finais do filme estas mesmas imagens embranco e preto so retomadas para integrar uma montagem paralela com as novasimagens do filme - uma srie de tomadas entrecortadas da mata verde e dosbarrancos do rio So Francisco. E a opo esttica do som neste momento configura-se de maneira oposta ao emprego do silncio. Dado que estas imagens so inseridascom uma batida vigorosa e amplificada pela vocalidade de Chico Science ao

    interpretar sua composio Sangue de bairro. Nesta seqncia, podemos verimagens de Lus Carlos Vasconcelos interpretando Lampio nas alturas ao caminharpelos barrancos do rio So Francisco. A cmera sobrevoa este percurso de Lampio,e fragmenta as cenas em inmeros cortes que acompanham o ritmo da msica,rodopiando em torno da figura de Lampio. No final, a cmera torna-se lenta equase congela a imagem quando a msica termina, compondo um dos mais belosmomentos do filme, se levarmos em conta a proposta esttica do trabalho sonoro-visual e seu entrosamento com a narrativa.

    Infelizmente, quanto voz, a impostao utilizada na maioria dos dilogos feita de modo a caracterizar os personagens e o lugar o mais diretamente possvel,

    de forma quase grosseira, destacando a afetao do sotaque e da entonao. Estacaracterstica fica evidente na interpretao de Duda Mamberti do estrangeiroBenjamim Abraho, e encontra ressonncia mais autntica com Aramis Trindadecomo o tenente Lindalvo Rosas, implacvel perseguidor de Lampio. Trata-se,portanto, de um uso predominante do segundo nvel da voz.

    Entretanto, neste trabalho com a seleo das vozes, nota-se um interessanteuso de uma voz off que se destaca pela funo de narrar (terceiro nvel da voz,em nossa classificao). Trata-se da presena de uma voz off atravs da qualouve-se um monlogo interior da personagem principal que narra o seu dirioem rabe. No incio do filme, durante o extraordinrio plano-seqncia que percorreo velrio da clebre figura de padre Ccero (interpretada por Jofre Soares), esta vozaparece sem legendas o que enfatiza as qualidades da voz desconectadas dosentido arbitrrio da lngua dando nfase em sua plasticidade sonora (primeironvel da voz). Esta sonoridade da voz e das palavras nos chama a ateno

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    principalmente devido reverberao sonora do uso da voz no primeiro nvel comas vozes inseridas logo em seguida, que so as vozes femininas das mulheres quecercavam o corpo de padre Ccero ao cantar-chorar a sua morte. Em contrapartida,em vrios outros momentos do filme, Abraho escreve o seu dirio enumerandoatividades e providncias a serem tomadas, sempre falando em rabe, mas comlegendas. Assim, ouvimos sua voz em off e vemos a sua imagem na tela sem osmovimentos labiais. Trata-se, ento, de um uso recorrente do terceiro nvel da voz,ou seja, do pacto convencional entre emissor e receptor.

    3 Consider3 Consider3 Consider3 Consider3 Consideraes Finaisaes Finaisaes Finaisaes Finaisaes Finais

    Muito do que se diz hoje em dia, no Brasil, sobre os filmes nos quais amsica ganha um certo destaque, gira em torno do ponto de vista do compositor/intrprete musical e suas virtudes e idias, ou sobre a importncia que o diretor dofilme atribui personalidade do artista que comps as msicas para o seu filme.Ou ainda, destaca-se a recorrncia de uma crtica cotidiana que ignora ou nocompreende a materialidade sonora do cinema. Isto acontece, provavelmente, porqueexiste uma grande dificuldade em se encontrar um instrumental que nos habilite aanalisar a trilha sonora numa contemporaneidade em que a cultura erudita e apopular no possuem mais fronteiras. Alm do mais, impossvel falar sobrefilmes sem inseri-los no espectro da cultura das mdias, pois a prpria construodo sentido dinmico na sua estrutura prov a possibilidade de leitura atravs doentrelaamento de cdigos e da interconexo de vrias mdias, principalmente, ocinema, a televiso, o rdio e a produo fonogrfica.

    Com o intuito de contribuir, em certa medida, para um debate sobre a trilhasonora dos filmes brasileiros contemporneos, colocamos aqui esta classificaopara o som no cinema e esta anlise de um filme que at hoje se destaca devidoa sua sonoridade. Dado que Baile Perfumadopossui uma rara comunicao sonoraque busca conquistar o publico jovem, integrado as culturas hbridas. Este filme

    apresenta uma construo narrativa mais atenta criao de imagens sonoras, naqual a msica deixa de ser inaudvel ou alegrica, para constituir junto s imagensvisuais a matria-prima de elaborao de sentido e manipulao sgnica. A trilhasonora cria ritmo e fora dramtica ao filme dando o tom do encontro entre ocineasta Benjamim Abraho e o rei do cangao Lampio, desconstruindo o mitoe ressaltando um contato do moderno com a tradio. E estas curiosas resoluessonoras, com uma interessante diretriz potica afinada ao movimento musicalmangue-beat(bit), talvez sejam a singularidade deste filme diante do panorama deproduo do cinema brasileiro dos anos 90.

    Alm disso, esta classificao do som no interior de um estilo particular de

    um filme demonstra o fato de que o cinema sonoro significa imagem e som comoelementos integrantes de mesmo valor, e no, como muitos preferem, imagensvisuais acrescidas de um acessrio sonoro. Nesse sentido, o que nos interessacom este artigo evidenciar uma clara oposio mxima da boa trilha sonora aquela que no se percebe, trazendo tona a proposta de se aguar os ouvidospara escutar e produzir os sons do cinema. Ou seja, queremos enfatizar a importnciade se brincar com os sons no cinema: montar e desmontar sonoridades, descobrir,criar, organizar, juntar, separar critrios sonoros para produzir imagens sonorascom significado e movimento.

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