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18 A UNIVERSIDADE VOLTA SEU OLHAR PARA AS IDEIAS, PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OS PROJETOS SOCIAIS E EDUCATIVOS REALIZADOS POR MORADORES DAS PERIFERIAS DAS CIDADES BRASILEIRAS Foto: Gilvan Barreto

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A UNIVERSIDADE VOLTA SEU OLHAR PARA AS IDEIAS, PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OS PROJETOS SOCIAIS E EDUCATIVOS REALIZADOS POR MORADORES DAS PERIFERIAS DAS CIDADES BRASILEIRAS

Foto: Gilvan Barreto

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uas da tarde em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janei-ro. A casa rosa na esquina da Rua Ângelo Bittencourt com a Luiz Guimarães começa a receber os ocupantes das pró-ximas três horas. No portão azul, Arlete Rodrigues, coor-denadora do espaço, dá as boas-vindas às crianças. “Arlete, pra que sala eu vou?”, pergunta uma menina de cabelos enrolados. “Vai para a sala de jogos, com a professora...”. A menina sai correndo pelas tábuas soltas do assoalho. Os móveis antigos da Casa da Arte de Educar contrastam com a decoração das paredes, que ostentam dezenas de discos de vinil pintados de muitas cores. Criadas pelas crianças na oficina de Artes Plásticas, as peças representam mandalas, círculos que atuam como agentes de concentração de energia e bons fluidos, símbolos da Casa.

A mais de 10 quilômetros dali, no campus da Universida-de Federal do Rio de Janeiro situado na Praia Vermelha, Zona Sul do Rio, um grupo tão coeso quanto diverso, composto de moradores da periferia e de acadêmicos, chega para os encontros regulares das quintas-feiras. São duas horas da tarde, as cadeiras do Auditório Muniz Aragão começam a ser ocupadas. Logo depois, Cláudia Matos, da UFRJ, apresenta o tema da vez, “O Espírito do Romantismo”. Suas primeiras falas disputam a atenção da plateia com o cafezinho e os biscoitos servidos no fundo do salão. A temática do indianismo, da primeira geração do romantismo, leva o grupo a pensar na ques-tão da identidade cultural e da valorização da própria cultura. A aula faz parte do projeto Universidade das Quebradas (UQ), lançado em meados de 2010.

Nos dois extremos da cidade, o esforço é o mesmo: aprender a conversar. Tanto na Casa da Arte de Educar como na Universidade das Quebradas, o indivíduo tem

Dpor Letícia Queiroz

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não só a chance de falar, mas de se fazer ouvir. São espa-ços que o estimulam a contar suas experiências e falar de sua cultura, o que ele, em geral, não tem a oportunidade de fazer nem nos bancos da escola, nem à mesa de jan-tar, com a família. Nesse diálogo entre culturas, o conhe-cimento intelectual entra em contato com a vivência da periferia. As duas pontas da cidade, enfim, se encontram. E se alimentam.

A metodologia de conjugar saberes

No casarão de Vila Isabel, crianças e adolescentes – se-parados em grupos de mesma faixa etária – participam de três oficinas diárias, com duração de uma hora cada. Diálogos com a Escola é uma prática que tem como ob-jetivo conhecer melhor cada aluno e entender, por meio da conversa, o que ele pensa. Já a oficina Jogos e Brinca-deiras faz um convite à diversão – que é outra forma de encontro. Da oficina de Artes Plásticas saíram as mandalas que decoram as paredes da sala. A conversa interfere na vida e a enriquece.

“Vamos fazer uma roda!”, sugere a professora Leandra Laurentino, moradora da comunidade e pós-graduada em biologia. Ela pergunta se alguém recorda qual é o tema proposto para o dia. “As semelhanças na nos-sa comunidade com os povos da África”, responde a menina de bochechas rosadas. “E o que vocês perce-beram?”, indaga a professora. “Todo mundo é preto”, algumas vozes respondem. “Tem certeza de que todo mundo é negro?”, pergunta Leandra. Paira uma dúvida no ar. “Alguém conhece o apartheid?” Silêncio. “O que significa essa palavra?”, continua Leandra. “A maioria?”, chuta um rapaz. “Apartar”, diz uma menina. “Por que

vocês acham que as pessoas das favelas sofrem pre-conceito?”, questiona a professora, experimentando outro caminho. “Porque somos pobres”, responde uma menina de cabelos longos. “Porque o pessoal da favela não se impõe perante a sociedade”, diz outra de cabelo arrepiado. Leandra arregala os olhos e continua a esti-mular a discussão. É por meio dela que os dois mundos se aproximam.

Todo mês ocorrem as Rodonas, em que os alunos tro-cam experiências pessoais. As crianças também par-ticipam de oficinas de música, capoeira, informática e leitura, produzem vídeos e textos. As atividades da Casa permitem que jovens sem perspectiva vislumbrem um futuro promissor. Há sete anos na instituição, José Da-nilo aprendeu a tocar violão e agora planeja cursar a faculdade de informática. Aparentemente informais, as conversas alimentam o futuro.

Na outra ponta da cidade, na Universidade das Que-bradas, o debate sobre a identidade cultural continua. “Na Maré tem uma menina que é índia e o pai dela vai buscá-la na escola todo pintado. Eu acho bonito ele permanecer com as características de sua identidade cultural”, diz Renata Freitas, que faz parte do projeto da UFRJ, além de coordenar o programa Salas de Lei-tura no Complexo da Maré e atuar como educadora no projeto Tear, na Tijuca. Participante das mais ativas na UQ, ela não hesita em sugerir que os alunos produzam pequenos textos com base em suas vivências em aula. A experiência pessoal deve ser registrada. É dela que os alunos devem partir.

“Eu topo!”, diz William Santiago, ator da Companhia Ru-bens Barbot Teatro de Dança e coordenador do fórum

A formação das crianças além das possibilidades oferecidas pela escola é um dos objetivos da Casa da Arte de Educar. Foto: Gilvan Barreto

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de debates de performance negra. Ele chegou à UQ por curiosidade, e hoje acredita que o curso trará mais elementos para seus projetos pessoais. “Eu acho isso muito difícil”, retruca Luciana Bezerra, diretora do epi-sódio Acenda a Luz, do filme 5x Favela – Agora por Nós Mesmos. Ela que, na semana anterior, tinha ido assistir à première de seu filme em Cannes. “Não existem dire-tores pobres no cinema. Isso causou uma curiosidade muito grande na imprensa do mundo todo”, conta para a turma. “Minha história é tão forte que eles ficavam perguntando: como você chegou até aqui? Como isso está surgindo no Brasil?” Luciana é a coordenadora do Grupo Nós do Morro, que, em parceria com pessoas da Central Única das Favelas (Cufa) e do Observatório das

Favelas, do Complexo da Maré, produziram um filme que reflete a mudança social no país.

Ao fim da conversa, Renata sugere uma síntese estética para o encontro. “Quero ensinar uma canção guarani que aprendi. Vamos fazer uma rodinha aqui?” As cadei-ras são arrastadas para os cantos da sala e uma roda se forma em seu centro. Todos começam a andar em círculos, batendo o pé direito a cada dois segundos. Renata puxa o canto e o grupo repete suas palavras: “Moema... croootá paramãe popuãoã taquariporã... eh têitêi eh têitêi moema...” e a cantoria vai diminuindo junto com as batidas dos pés até o som sumir. Explo-dem os aplausos.

Renata Freitas, na UFRJ: canções em guarani para os garotos da Maré. Foto: Gilvan Barreto

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Uma ideia na cabeça e uma mão realizadora

Cinco quilômetros separam o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, da Mangueira, onde a Casa da Arte de Edu-car abriu as portas em 1999 para cerca de 200 alunos da comunidade. O objetivo é utilizar a cultura como ferramenta de educação e desenvolvimento social. Atual-mente, a casa atende cerca de 500 alunos em horários alternados ao da escola, possibilitando assim uma edu-cação em tempo integral. As mães têm um lugar seguro para deixar os filhos e uma alternativa para afastá-los da violência e das drogas que assolam as comunidades. Todos ganham.

Sueli de Lima é pedagoga e, atualmente, cursa doutora-do sobre técnicas e didáticas na educação. Seu interesse

Nas o!cinas de Artes Plásticas da Casa das Artes de Vila Isabel se produzem objetos de decoração. Foto: Gilvan Barreto

CRIADA NO ÂMBITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, A UNIVERSIDADE DA QUEBRADAS

DESENVOLVE UMA PEDAGOGIA DA TROCA DE EXPERIÊNCIAS E DO DIÁLOGO

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pelas técnicas de ensino começou aos 15 anos, quando conheceu as teorias do educador Paulo Freire a respeito da educação dos mais pobres. Em 1963, no Rio Grande do Norte, aplicando os princípios de alfabetização concebi-dos por Freire, e em apenas 45 dias, ensinou 300 adultos a ler e escrever. Sueli incorporou conceitos que podem ser resumidos em uma frase do educador: “Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”. Aos 16 anos, engajou-se em uma ação pedagógica com os professores da Rocinha. Não parou mais. Tempos depois, a empresa Xerox, que realizava ações esportivas na Mangueira, a convidou para organizar um projeto educacional e cul-tural no morro. Assim nasceu a Casa da Arte de Educar, onde Sueli, aliando-se a um corpo eclético de educado-res, vindos tanto das favelas como do meio acadêmico, criou uma metodologia própria, inspirada nos princípios

de Paulo Freire. O programa é financiado pela Secretaria de Educação, com o apoio de grandes empresas privadas.

Sim, existe uma tecnologia para o diálogo entre culturas, e ela se sofistica cada vez mais. As técnicas desenvolvidas na Casa da Arte, por exemplo, são levadas para outras re-giões do Brasil em parceria com os Ministérios da Educa-ção e da Cultura. “É uma ação de diálogo dos pontos de cultura com as escolas”, explica Sueli. No começo de 2010, o programa Mais Educação tornou-se uma ação nacional. “As nossas duas casas funcionam como um laboratório de metodologias”, ela diz. “Com base em nossa experiência, desenvolvemos conceitos e técnicas que serão aplicados em outras regiões do país.” O reconhecimento desse es-forço veio rápido: a Casa da Arte de Educar ganhou o prê-mio Itaú-Unicef 2009, concorrendo com 1.917 projetos.

No Complexo da Maré os alunos do Projeto Tear produzem textos baseados em suas vidas. Foto: Gilvan Barreto

Da escola para a universidade

A Universidade das Quebradas surgiu em abril de 2010, com o objetivo de promover uma troca de co-nhecimentos entre os profissionais acadêmicos e os produtores culturais vindos das áreas periféricas do Rio de Janeiro, conhecidas como “quebradas”. O pro-grama possui uma metodologia inédita formulada pela doutora, artista e psicanalista Numa Ciro e pela professora, pesquisadora e escritora Heloisa Buarque de Hollanda. A ideia surgiu durante a dissertação de doutorado de Numa. Ouvindo os rappers, logo iden-tificou neles o desejo de voltar a estudar. Heloisa, que era sua orientadora, criou condições para que o proje-to surgisse, trazendo-o para a universidade.

Assim como os habitantes das periferias têm poucas oportunidades de acesso à formação superior e pos-suem uma carência de produção intelectual, os acadê-micos sentem falta das informações e saberes culturais construídos fora das salas de aula. Os dois lados têm o que dar e o que receber. Nas Quebradas, DJs, produtores culturais, rappers, artistas, diretores e arte-educadores discutem os caminhos da produção de conhecimento em uma época de diálogo. “Ainda é muito cedo para dizer que algo já surgiu dessa troca”, diz Numa, pruden-te. “Não sei quando teremos uma resposta”. No final do

24 Fotos: Gilvan Barreto

PESQUISADORES ACADÊMICOS BUSCAM CONHECER E REFLETIR SOBRE A PRODUÇÃO CULTURAL

DAS PERIFERIAS, ESPAÇO URBANO ONDE AS CARÊNCIAS DE FORMAÇÃO EM EDUCAÇÃO

SUPERIOR SÃO GRANDES

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curso cada participante terá que apresentar um projeto relacionado ao campo que pesquisou. Renata Freitas já sabe que quer trabalhar com a memória na comunida-de da Maré, onde atua há dez anos. Já William Santiago não enxerga ainda como a UQ vai ajudá-lo. O objetivo final é transformar as conversas em ação.

No outro extremo da cidade, os moradores das comu-nidades começaram a perceber que precisam de uma representação social. Não é por outro motivo que as ONGs e outras instituições nelas se multiplicaram. Sua voz, sua música e seu corpo se impuseram no panora-ma social, protagonizados por projetos culturais como o AfroReggae, de 1993, e o Grupo Nós do Morro, de 1985. Ambos abriram novos caminhos para os valores das co-munidades. Tanto a Universidade das Quebradas como a Casa da Arte de Educar estão atentas a essas mudan-ças. Apostam na educação como uma metodologia ca-paz de conectar a cidade consigo mesma.

A palavra da periferia

Marcus Vinicius Faustini é um mestre na arte de ecoar as vozes periféricas. Está envolvido, no momento, em 15 projetos culturais, sendo um deles a UQ. Em parce-ria com Heloisa Buarque de Hollanda, criou, em julho de 2010, o Apalpe – A Palavra da Periferia, um estímu-lo à memória fluminense. Tem como base metodoló-gica o livro Guia Afetivo da Periferia. Memórias Carto-gráficas de Faustini, publicado pela editora Aeroplano, que Heloisa dirige. O livro faz parte da coleção Tramas Urbanas, que surgiu em 2007 como novo espaço para a literatura marginal.

Cada encontro do Apalpe apresenta uma proposta diferente de trabalho, envolvendo experiências au-diovisuais, literárias, cênicas etc. Renata e William, da UQ, estão entre os selecionados. Faustini estuda o processo de percepção da obra e propõe uma forma plástica de produzir literatura. O projeto terminou em setembro de 2010. É mais um trunfo a favor do diálo-go entre as culturas.