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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de Setecentos: Perfil Sócio Económico de uma Elite Ana Madalena Trigo de SOUSA Centro de Estudos de História do Atlântico [email protected] 1. Introdução No processo de construção das sociedades dos Impérios Ibéricos, a instituição municipal desempenhou um papel fundamental na organização de funções administrativas e jurídicas, à semelhança do que acontecia no Reino, e na estruturação da vida das comunidades coloniais. A sua influência seria, igualmente, notória no funcionamento de outras instituições de grande relevância local, articuladas institucionalmente com o município, designadamente, os Mesteres, as Ordenanças, as Misericórdias e as Confrarias 1 . No caso do arquipélago da Madeira, a criação dos municípios foi o reflexo de um rápido povoamento, iniciado na década de vinte do século XV, e da valorização económica deste espaço insular associada ao cultivo da cana sacarina e da exportação do açúcar. A investigação realizada por Miguel Jasmins Rodrigues demonstrou que no governo e controlo da instituição municipal funchalense se tornou visível, a partir de finais do século XV, a presença de alguns grupos familiares com uma forte ligação à actividade económica gerada pela cana sacarina 2 . Com efeito, o Autor concluiu que esse conjunto de homens, ligados entre si por laços de parentesco, e proprietários das melhores terras, procurou ligar-se às estruturas de poder da Ilha da Madeira, nomeadamente o município do Funchal, onde obtêm o monopólio da sua governação, a partir do primeiro quartel do século XVI 3 . A consolidação do poder desta elite, ao longo dos séculos posteriores, foi uma realidade. O estudo de Nelson Veríssimo dedicado às relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, afirma que a principal nobreza da Ilha da Madeira residia na cidade do Funchal onde detinha o governo da sua câmara municipal, sendo um grupo composto por fidalgos do rei, cavaleiros fidalgos, cavaleiros com o hábito da Ordem de Cristo, escudeiros, moços 1 José Viriato Capela, Rogério Borralheiro, “As Elites do Norte de Portugal na Administração Municipal (1750- 1834)” in O Município no Mundo Português. Seminário Internacional , Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, pp.91-115. 2 Miguel Jasmins Rodrigues, Organização de Poderes e Estrutura Social. A Ilha da Madeira: 1460-1521, Cascais, Patrimónia Histórica, 1996. 3 Miguel Jasmins Rodrigues, Organização…cit., pp.64-66.

A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de … · No processo de construção das sociedades dos Impérios Ibéricos, a instituição municipal desempenhou um papel

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de Setecentos:

Perfil Sócio – Económico de uma Elite

Ana Madalena Trigo de SOUSA

Centro de Estudos de História do Atlântico

[email protected]

1. Introdução

No processo de construção das sociedades dos Impérios Ibéricos, a instituição

municipal desempenhou um papel fundamental na organização de funções administrativas e

jurídicas, à semelhança do que acontecia no Reino, e na estruturação da vida das comunidades

coloniais. A sua influência seria, igualmente, notória no funcionamento de outras instituições

de grande relevância local, articuladas institucionalmente com o município, designadamente,

os Mesteres, as Ordenanças, as Misericórdias e as Confrarias1. No caso do arquipélago da

Madeira, a criação dos municípios foi o reflexo de um rápido povoamento, iniciado na década

de vinte do século XV, e da valorização económica deste espaço insular associada ao cultivo

da cana sacarina e da exportação do açúcar.

A investigação realizada por Miguel Jasmins Rodrigues demonstrou que no governo e

controlo da instituição municipal funchalense se tornou visível, a partir de finais do século

XV, a presença de alguns grupos familiares com uma forte ligação à actividade económica

gerada pela cana sacarina2. Com efeito, o Autor concluiu que esse conjunto de homens,

ligados entre si por laços de parentesco, e proprietários das melhores terras, procurou ligar-se

às estruturas de poder da Ilha da Madeira, nomeadamente o município do Funchal, onde

obtêm o monopólio da sua governação, a partir do primeiro quartel do século XVI3. A

consolidação do poder desta elite, ao longo dos séculos posteriores, foi uma realidade. O

estudo de Nelson Veríssimo dedicado às relações de poder na sociedade madeirense do século

XVII, afirma que a principal nobreza da Ilha da Madeira residia na cidade do Funchal onde

detinha o governo da sua câmara municipal, sendo um grupo composto por fidalgos do rei,

cavaleiros – fidalgos, cavaleiros com o hábito da Ordem de Cristo, escudeiros, moços –

1 José Viriato Capela, Rogério Borralheiro, “As Elites do Norte de Portugal na Administração Municipal (1750-

1834)” in O Município no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal, Centro de Estudos de História

do Atlântico, 1998, pp.91-115. 2 Miguel Jasmins Rodrigues, Organização de Poderes e Estrutura Social. A Ilha da Madeira: 1460-1521,

Cascais, Patrimónia Histórica, 1996. 3 Miguel Jasmins Rodrigues, Organização…cit., pp.64-66.

Ana Madalena Trigo de Sousa

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fidalgos, homens da governança, vivendo à lei da nobreza e constituindo um grupo assaz

heterogéneo4. À semelhança dos seus ascendentes, que tinham alicerçado o seu poderio

económico e social na posse da terra produtora de cana-de-açúcar, a elite de Seiscentos viu o

seu poder desenvolver-se graças à progressiva substituição da cultura da cana sacarina pelos

vinhedos. Assim, a produção de vinho e a sua exportação, propiciadora de elevados lucros,

transformou-se no principal foco de interesse deste grupo profundamente identificado com a

instituição vincular. Tal é atestado pela investigação de Jorge Freitas Branco que nos

demonstra, de igual modo, como o morgadio estruturou toda uma rede de relações sociais,

assente no dualismo da sociedade insular: de um lado, os morgados, monopolizadores da

terra, do outro, aqueles trabalhavam essa terra, cuja produção – o vinho -, consolidou a

posição social de domínio dos senhores e a capacidade de perpetuação do sistema5. Para a

elite de Seiscentos, assegurar o controlo do município funchalense, assim como da

Misericórdia e das Companhias de Ordenanças, era algo fundamental e, simultaneamente,

algo natural, na medida em que se tratava de uma realidade decorrente do sistema eleitoral do

Antigo Regime, cristalizado no século XVII, e que, com um conjunto de características

fortemente restritivas, acabaria por moldar a elite política municipal funchalense, à

semelhança de outros espaços insulares. O caso dos Açores, designadamente Ponta Delgada,

na Ilha de São Miguel, alvo da análise de José Damião Rodrigues, revelou-nos a existência de

um município governado por uma qualificada e rica nobreza associada à instituição vincular6.

Quando chegamos ao século XVIII, encontramos o município do Funchal governado

por um conjunto de indivíduos, ligados entre si por laços de parentesco, que exercem o poder

ao serviço do rei e do bem comum da respublica. A segunda metade de Setecentos é, em

nosso entender, uma época fulcral para o estudo das elites que controlaram os órgãos locais de

poder. Tal deve-se, essencialmente, à existência de uma fonte documental muito precisa e da

maior importância: os cadernos de nobreza ou de arrolamento da gente da governança, da

autoria dos corregedores, e que só se tornaram profusos a partir desta época. È uma fonte de

um enorme valor informativo porque fornecedora de uma radiografia da elite social e política,

a nível local7. Assim, a presente comunicação tem por objectivo, a partir do estudo dos

cadernos de nobreza ou de arrolamento da gente da governança, elaborar um perfil social e

4 Nelson Veríssimo, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, Direcção Regional

dos Assuntos Culturais, 2000, pp.49-63. 5 Jorge Freitas Branco, Camponeses da Madeira. As Bases Materiais do Quotidiano do Arquipélago (1750-

1900), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, pp.153-159. 6 José Damião Rodrigues, Poder Municipal e Oligarquias Urbanas. Ponta Delgada no Século XVII, Ponta

Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994. 7 Nuno Monteiro, Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,

2007, pp.51-74.

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económico do grupo de homens que governou o município do Funchal na segunda metade do

século XVIII e, pela análise dos Livros de Vereações e demais documentação depositada no

Arquivo Regional da Madeira, perceber qual a dimensão do poder e influência exercidos por

estes homens.

2. A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de Setecentos

2.1. Um Grupo Moldado pela Lei do Reino

O processo de formação da elite municipal funchalense esteve intimamente associado

ao sistema eleitoral de Antigo Regime, à semelhança dos outros municípios do Reino. Ou

seja, há que ter em consideração as leis emanadas pela monarquia portuguesa que

reconheciam, no seu articulado, que a liderança dos órgãos de poder local cabia às pessoas

mais antigas e honradas da terra, zelosas do bem público e de sã consciência8. Foi no decurso

do século XVII que assistimos à produção de um conjunto de diplomas, fundamentais na

regulamentação do processo eleitoral municipal, e que consagram duas importantes

realidades: a intervenção régia e o carácter elitista da escolha dos eleitores e dos elegíveis.

Esses diplomas, promulgados entre 1611 e 1670, retomam o articulado das Ordenações

Filipinas (1603), contudo, expressam uma verdadeira elitização do processo eleitoral

municipal. Ou seja, se com as Ordenações Filipinas, o povo era chamado a votar, juntamente

com os “homens – bons”, isto é, os cidadãos que costumavam ocupar os cargos do município,

estas leis restringem, com precisão, o universo dos eleitores e dos elegíveis: tinham de ser

naturais da terra, filhos e netos de vereadores e cristãos - velhos9. A intervenção régia no

processo eleitoral fica patente, nos diplomas posteriores a 1640, através do reforço do papel

do corregedor e na exigência do envio da documentação eleitoral para o Desembargo do Paço

onde o rei, pela leitura da pauta respectiva, fazia a escolha do elenco do município. Este

sistema era aplicado aos municípios presididos por um juiz de fora, uma realidade que se

verificava nas principais cidades e vilas do reino10

.

8 Maria Helena Coelho, Joaquim Romero de Magalhães, O Poder Concelhio. Das Origens às Cortes

Constituintes. Notas de História Social, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, pp.41-56. 9 Veja-se os Regimentos de 12 de Novembro de 1611, de 10 de Maio de 1640, de 22 de Março de 1656 e de 8 de

Janeiro de 1670 in José Justino de Andrade e Silva, Colecção Cronológica de Legislação Portuguesa (1603-

1619), Lisboa, 1854, pp.314-316; Ibidem (1634-1640), Lisboa, 1855, pp.228-230; Ibidem (1648-1674), Lisboa,

1856, pp.176-177; pp.385-386. 10

José Viriato Capela, “O Processo Eleitoral e a Constituição da Elite Dirigente” in Vila Nova de Cerveira.

Elites, Poder e Governo Municipal (1753-1834), Braga, Universidade do Minho, 2000, pp.29-32.

Ana Madalena Trigo de Sousa

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É relevante destacar o papel do corregedor no processo eleitoral do município do

Funchal na segunda metade de Setecentos11

. Assim, devia este magistrado proceder à escolha

de três informadores, dos mais antigos e honrados da terra e que, usualmente,

desempenhassem cargos nos órgãos de poder local, a quem faria um interrogatório minucioso

sobre as pessoas que costumam exercer o poder na câmara municipal. Esse interrogatório

tinha por finalidade saber que relação de parentesco existia entre esses homens; quais as suas

idades; se eram criados de Sua Majestade; que ofícios tinham e com que rendimento; se eram

naturais da terra e se viviam na vila ou no seu termo; se possuíam hábito com tença, ou sem

ela, e de que ordem. As respostas a este interrogatório eram escritas pelo corregedor, num

caderno próprio para o efeito. Elaborado o caderno, devia o corregedor dar, à margem de cada

item, uma informação pessoal e particular sobre as qualidades e eventuais defeitos dos

indivíduos que compunham o universo dos eleitores e dos elegíveis. Feita a e eleição da

câmara municipal, devia o corregedor transcrever os resultados e enviá-los para o

Desembargo do Paço, onde o monarca tinha a responsabilidade de proceder ao apuramento

dos nomes votados, ou seja, à escolha dos indivíduos que, anualmente, iriam compor o elenco

camarário12

. As palavras de Viriato Capela, sobre a essência do sistema eleitoral de Antigo

Regime, são deveras esclarecedoras: “nele assenta e por ele se exprime a elitização e a

oligarquização que percorre a sociedade, as instituições, o município e o Estado português

[…] promoveu a centralização mas, também, a conservação e a manutenção do status quo. É

um sistema eleitoral que sempre se fez em vaso fechado de eleitores e de elegíveis e cada vez

mais restritivo”13

. Por outro lado, Nuno Monteiro chama a atenção para o facto de os

diplomas reguladores do processo eleitoral reflectirem, inequivocamente, a cultura política

dominante que entendia a liderança das comunidades locais como pertença das pessoas

“principais da terra”, isto é, dos elementos das famílias mais antigas, nobres e abastadas, tidos

como mais capacitados para o exercício do poder local, na medida em que eram detentores de

uma autoridade natural, construída pelo tempo, logo, mais facilmente aceite pelos demais

11

Ana Madalena Trigo de Sousa, “Os Provimentos dos Corregedores nos Municípios da Madeira e Porto Santo:

1768 a 1833” in História do Municipalismo. Poder Local e Poder Central no Mundo Ibérico. III Seminário

Internacional, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 2006, pp.137-170. Devemos mencionar que

na cidade do Funchal o processo eleitoral era, desde meados do século XVII, superintendido pelo juiz de fora.

Quando o corregedor se torna uma instituição de carácter permanente na Madeira, a partir de 1768, é a este

magistrado que cabe a condução do mencionado processo eleitoral, para além de todo um vasto conjunto de

funções de cariz administrativo, judicial e policial. 12

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder Municipal na Madeira e Porto Santo na Época

Pombalina e Pós – Pombalina, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 2004, pp.84-85. 13

José Viriato Capela, Política de Corregedores. A Actuação dos Corregedores nos Municípios Minhotos no

Apogeu e Crise do Antigo Regime (1750-1834), Braga, Universidade do Minho, 1997, pp.10-17.

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grupos sociais14

. Uma vez instituída esta elite, ela ficava incumbida de exercer o poder local

ao serviço do rei e da causa pública. É esta a terminologia que encontramos na documentação

do município do Funchal, quando uma vereação camarária tomava posse, jurando sobre os

Santos Evangelhos o cumprimento das suas obrigações: o serviço do rei, o direito das partes,

com o segredo da justiça, e o serviço da respublica15

.

2.2. O Perfil Sócio – Económico de uma Elite Municipal

Os elementos que possuímos para estabelecer o perfil sócio – económico da vereação

do município do Funchal, na segunda metade do século XVIII, reportam-se aos cadernos de

nobreza ou arrolamentos elaborados pelos informadores, no decurso do processo eleitoral, sob

a tutela do corregedor, onde consta o nome e outros aspectos identificadores dos indivíduos

considerados aptos para o exercício do governo municipal. Localizámos, entre a

documentação do Desembargo do Paço, os arrolamentos efectuados nos anos de 1779, 1783 e

178716

. Para além desta fonte, fornecedora de uma informação assaz detalhada, coligimos

outros dados, mais escassos e dispersos, a partir dos livros de Vereações e do Registo Geral

da Câmara Municipal do Funchal, dos livros do Finto e de alguns testamentos que foram

possíveis localizar no Juízo dos Resíduos e Capelas.

Para uma definição do perfil social e económico da elite municipal funchalense,

procedemos a uma análise qualitativa das características essenciais do grupo que exerceu o

poder neste município, no decurso da segunda metade de Setecentos, articulada na seguinte

metodologia:

1- Apuramento da composição da Câmara Municipal do Funchal, a partir dos livros

de Vereações;

2- Cruzamento dos nomes que constam nos elencos municipais com o rol de

indivíduos arrolados, como eleitores e elegíveis, em 1779, em 1783 e em 1787;

3- Elaboração de uma ficha individual dos sujeitos identificados, onde consta um

conjunto de elementos, retirados dos arrolamentos, a saber; o nome e a idade; a

indicação social; a naturalidade e morada; os bens possuídos; as relações de

parentesco existentes entre eles;

14

Nuno Monteiro, Elites…cit., pp.43-47. 15

Arquivo Regional da Madeira (em diante ARM), Câmara Municipal do Funchal (em diante CMF), Vereações,

Livro 1353, fl.37-39. 16

Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (em diante ANTT), Desembargo do Paço, Repartição da Corte,

Estremadura e Ilhas, Maço 1659, Documento nº 38; Maço 1661, Documento nº 9; Maço 1671, Documento nº 6.

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4- Verificação da presença destes sujeitos noutros órgãos de poder local,

designadamente, a Misericórdia e as Companhias de Ordenanças;

5- Verificação da existência de outros elementos de carácter relevante,

nomeadamente, a opinião do corregedor sobre estes homens, assim como as

ligações, supostamente existentes, entre alguns membros desta elite e a primeira

loja maçónica da Madeira;

6- Verificação da existência de situações de concentração de mandatos por parte de

alguns membros da elite municipal funchalense.

No decurso da segunda metade do século XVIII, a vereação do município do Funchal

foi integrada por um total de 48 indivíduos, dos quais foi possível, do cruzamento com o rol

de nomes identificados nos arrolamentos de eleitores e elegíveis, reunir elementos

relativamente a 34 sujeitos17

. Para uma elaboração do perfil sócio – económico da elite

funchalense, o primeiro elemento a ter em consideração é a naturalidade. Com efeito, e tal

como determinava a legislação em vigor, quase todos os sujeitos em apreço eram naturais e

moradores na cidade, com excepção de Bento João de Freitas Esmeraldo que nascera em São

Paulo, no Brasil, mas sendo filho de funchalense. Relativamente à indicação social18

,

constatamos que as designações utilizadas eram abrangentes, a saber: ser filho e neto de

vereador, possuir foro de moço fidalgo, de fidalgo escudeiro, de fidalgo cavaleiro, ser

cavaleiro professo na Ordem de Cristo e/ou familiar do Santo Ofício19

. Ser “filho e neto de

vereador” traduz a aplicação das leis eleitorais, já mencionadas, que estipulavam como

característica fundamental dos eleitores e dos elegíveis, a descendência daqueles que tivessem

ocupado os cargos de governação do município. Possuir “foro de moço fidalgo”, de “fidalgo

escudeiro” ou de “fidalgo cavaleiro”, revela a existência de um relacionamento entre os

homens que governavam o município do Funchal e o monarca. Ou seja, referimo-nos à

concessão, por parte do rei, de uma honra, de uma qualidade a um conjunto de indivíduos que

lhe seriam leais. Verificamos que a concessão de qualquer uma destas mercês tinha, em

comum, o facto de os pais e os avós dos destinatários terem sido fidalgos del Rei, logo,

estamos perante uma situação em que o rei confirma um estatuto honorífico outorgado há,

17

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder…cit., pp.104-107. Os resultados da elaboração das

fichas individuais estão patentes no quadro que se encontra nestas páginas. Devido à sua extensão, a

apresentação deste quadro, não se revelou possível devido às normas de redacção solicitadas no presente

Congresso, nomeadamente, o limite de caracteres. 18

Refira-se que “indicação social” é o termo encontrado nos arrolamentos consultados. 19

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 1671, Documento nº 6.

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pelo menos, duas gerações, revelando o seu carácter hereditário20

. A qualidade de cavaleiro

professo na Ordem de Cristo encontra-se associada a três indivíduos: António Betencourt

Henriques, Bartolomeu de Freitas Esmeraldo e Mendo de Brito de Oliveira. Tal honra exigia

limpeza de sangue e a sua demonstração até à geração dos avós. Idênticas exigências estão

presentes no caso dos familiares do Santo Ofício. No caso de Tristão Joaquim de França Neto,

vemos que obteve a sua Carta de Familiar do Santo Ofício “pela boa informação da geração,

vida e costumes”21

. Apesar da ligação que existia entre estes fidalgos madeirenses e o

monarca, é fundamental sublinhar que esta elite insular vivia excluída da corte, ao contrário

da principal nobreza titulada do reino, não tendo qualquer tipo de influência na vida política

nacional22

. Por outro lado, há que questionar o uso do termo fidalgo quando surge aplicado às

elites municipais. Quando o rei D. Manuel ordenava, em 16 de Agosto de 1508, que fossem

os fidalgos a governar o município do Funchal23

, poderá colocar-se o problema da

terminologia utilizada na documentação antiga. Aqui, podemos ficar com a noção de que

fidalgo seria o termo usado pelo monarca com uma suposta finalidade de distinguir um grupo

social emergente, grupo que se queria afirmar perante os demais estratos populares, mas sem

que os seus membros tivessem quaisquer títulos concedidos pelo rei. Face à realidade que

encontramos em pleno século XVIII e tomando como referência os indicadores sociais

expressos nos arrolamentos, podemos afirmar que existe uma ligação entre estes fidalgos e o

rei, traduzida na concessão de uma qualidade ou honra, a par de algo mais abrangente e,

sobretudo, relacionado com a percepção que a restante sociedade funchalense teria sobre estes

indivíduos, em função do seu modo de vida e do seu desempenho no governo municipal. As

palavras do cronista Henrique Henriques de Noronha, na sua descrição da cidade do Funchal,

em 1722, são reveladoras do estatuto deste grupo social: “Nas casas e edifícios seculares, se

20

A título de exemplo, veja-se, ARM, CMF, Registo Geral, Livro 1220, fl.220; Idem, Livro 1221, fl.8vº; Idem,

Livro 1222, fl.52vº-53; Idem, Livro 1223, fl.143vº-144. 21

ARM, CMF, Registo Geral, Livro 1223, fl.137-137vº. 22

No caso do Funchal, a única situação de integração na nobreza titulada do reino e, essa por via, no círculo do

monarca, prende-se com o sucedido na sequência da morte, sem descendência, do oitavo capitão do Funchal,

João Gonçalves da Câmara, em 1656. Foi a sua irmã mais velha, D. Mariana de Alencastre, que ficou com o

senhorio da capitania do Funchal e com o título de Conde da Calheta, depois de um longo pleito com os seus

parentes mais próximos que reclamavam para si aquele privilégio. Por ser casada com o conde de Castelo

Melhor, João de Vasconcelos e Sousa, D. Mariana levou, para a primogenitura varonil da Casa de Castelo

Melhor, a capitania do Funchal e o título de Conde da Calheta. Veja-se Nelson Veríssimo, “A Capitoa –

Donatária” in Revista Islenha. Temas Culturais das Sociedades Insulares Atlânticas, Funchal, Direcção Regional

dos Assuntos Culturais, nº 3 Julho – Dezembro 1988, pp.74-89. 23

Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da

Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1996, pp.491-

492: Documento XXII.

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vê a opulência dos moradores: porque uns pela grossa renda de seus morgados e outros pelo

crescido cabedal de seus negócios, constituem todos uma vistosa corte no trato”24

.

Salientamos, de igual modo, a presença de dois indivíduos possuidores de um grau

académico, em concreto, Filipe Betencourt Albuquerque Freitas e João Afonso Henriques,

ambos bacharéis formados nos Sagrados Cânones, pela Universidade de Coimbra25

. Em

relação aos outros membros, pensamos que teriam tido uma instrução de base, isto é, o

conhecimento das primeiras letras, de algum latim e gramática, além da aritmética, ou seja, o

adequado para os indivíduos nascidos num meio privilegiado. Por outro lado, os Livros de

Vereações, além de não revelarem a existência de casos de analfabetismo entre os eleitos,

mostram-nos as assinaturas de homens que escreviam o seu nome com perfeição e estilo26

.

Entre os membros da elite do município do Funchal, a situação de fidalgo esteve, em

praticamente todos os casos, associada à posse de bens. As excepções encontradas prendem-

se com os filhos secundogénitos: Francisco Correia Betencourt, moço fidalgo, que aos 48

anos vivia dos alimentos do seu irmão, Jorge Correia Betencourt; Francisco de Ornelas

Frazão, com 58 anos, irmão do morgado Agostinho Ornelas e Vasconcelos; e os dois mais

jovens da governança, Luís Dória Atouguia e Luís Correia Acciaioly, ambos dependentes dos

respectivos irmãos mais velhos27

. No que concerne à fortuna, em bens de raiz, e aos

rendimentos auferidos por este conjunto de sujeitos, devemos mencionar que estamos perante

as impressões e opiniões dos informantes, na base do arrolamento, as quais, sendo credíveis,

foram completadas, quando se revelou possível, com outros elementos, designadamente, com

os testamentos desses sujeitos e com os valores do finto, ou imposto do quatro e meio por

cento, devido ao monarca. Com excepção dos filhos segundos, as expressões utilizadas na

indicação de bens são: abastado de bens; administrador de morgadios; senhor de uma grande

casa; sucessor dos vínculos da casa de seu pai; competentemente estabelecido de rendimentos

de bens vinculados; vive de suas fazendas; com bens suficientes. Constata-se, desde logo, a

estrita identificação desta elite com a instituição vincular que assumiu uma grande

importância na Madeira. O morgadio foi a forma institucional e jurídica estabelecida, no

século XVI, com a finalidade de assegurar uma base territorial e económica de um grupo

24

Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares…cit., p.43. 25

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 1671, Documento nº6. 26

Devemos salientar que, no caso do município do Funchal, os motivos apresentados para haver substituição de

algum vereador escolhido pelo rei eram o falecimento ou doença incapacitante, a ausência da cidade e a

existência de relações de parentesco, até ao 4º grau, entre os nomeados. Não foi encontrado um único caso de

analfabetismo. Aliás, era indispensável que um oficial camarário tivesse os meios mínimos para se apresentar,

com decência, nas ocasiões e funções públicas, além de que o conhecimento da leitura e da escrita era uma

condição essencial para o exercício dos ofícios da respublica. 27

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 1671, Documento nº 6.

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social minoritário destinado a exercer o poder. Foi predominante na vertente sul da Madeira

onde estavam localizadas as terras mais férteis, primeiro com a cultura da cana sacarina,

posteriormente com a vinha. Na época a que se reporta esta nossa análise, a economia da

Madeira foi marcada pela preponderância da produção vinícola que proporcionou aos

morgados, na qualidade de proprietários da terra, a obtenção de avultados rendimentos28

.

Pelos testamentos de três sujeitos identificados com a instituição vincular, podemos

concretizar algumas das expressões utilizadas no arrolamento, no âmbito da indicação dos

bens: António João Betencourt Henriques, “abastado de bens e administrador de morgadios”,

segundo o arrolamento, declara, no seu testamento, ter bens livre e vinculados, por si

administrados, cujo sucessor é o seu sobrinho, Pedro Júlio da Câmara Leme, também

membros da governança funchalense, visto não ter descendência directa. Para uma maior

clareza, apresentamos o rol de bens no quadro I:

Quadro I: Bens de António João Betencourt Henriques

Bens Livres Bens Vinculados

Três fazendas na freguesia de Câmara de

Lobos, com um rendimento anual de 7 mil

réis.

Umas casas grandes, situadas na Rua das

Pretas, Funchal, das quais lhe coube, por

carta de partilhas, a quantia de 238 mil e 430

réis.

Na mesma freguesia, três barris de vinho de

terço em fazenda das religiosas de S. Clara,

pagos por contrato antigo.

Uma benfeitora, na quinta da Boa Vista,

Caminho do Meio, termo do Funchal, no

valor de 142 mil réis.

Móveis e objectos de ouro e prata. Outra benfeitoria, no mesmo local, no valor

de 102 mil e 800 réis.

Fonte – ARM, Juízo dos Resíduos e Capelas, Maço 13, Processo nº 1008.

No caso de Diogo António Betencourt e Sá, considerado “abastado de bens” na

perspectiva dos informantes, o seu testamento revela-nos, à semelhança do anterior, um

conjunto de bens livres e vinculados, conforme se observa no quadro II:

28

Jorge Freitas Branco, Camponeses …cit., pp.153-159.

Ana Madalena Trigo de Sousa

10 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Quadro II: Bens de Diogo António Betencourt e Sá

Bens Livres Bens Vinculados

150 mil réis, mais uma quartola de vinho

velho, destinado à sua irmã, a abadessa do

Convento de N.S.ª da Encarnação, do

Funchal.

Uma fazenda na freguesia da Serra de Água,

com o valor de 600 mil réis.

10 mil réis a cada uma das suas irmãs

religiosas enquanto forem vivas.

Uma fazenda, na mesma freguesia, do

vínculo instituído pelo seu avô.

160 mil réis a distribuir pelos criados de sua

casa.

Um foro, na freguesia do Porto do Moniz,

pago em trigo.

Fonte – ARM, JRC, Maço 25, Processo nº 2238.

Finalmente, o caso de Mendo de Brito de Oliveira, tido por “competentemente

estabelecido com bens vinculados”, cujos bens estão sintetizados no quadro III:

Quadro III: Bens de Mendo de Brito de Oliveira

Bens Livres Bens Vinculados

Uma casa na freguesia da Ribeira Brava. Fazendas na freguesia da Ribeira Brava, no

valor de 600 mil réis.

135 mil réis em legados pios.

Um retábulo com invocação de N.Sª. da

Graça

Fonte – ARM, JRC, Caixa 53, Processo nº 40.

Gostaríamos de fazer uma referência a Agostinho de Ornelas e Vasconcelos, 10º

morgado do Caniço, cujos bens vinculados compreendiam um vasto conjunto de

propriedades, fazendas e foros em quase toda a ilha da Madeira, com um avultado

rendimento, amplamente descritos num inventário, com data de 186329

. Destacam-se o

morgadio do Caniço, constituído por duas importantes propriedades vinculadas,

29

Maria Fátima Barros Ferreira, Arquivo da Família Ornelas e Vasconcelos. Instrumentos Descritivos. Boletim

do Arquivo Regional da Madeira, Volume XXI, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1998, 48-

91. A Autora refere ainda um vasto conjunto de outras propriedades da casa Ornelas e Vasconcelos, fazendas e

foros em vários pontos da Ilha da Madeira, inventariadas em 1863. Desconhecemos se já estariam na posse do

10º morgado do Caniço.

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 11

designadamente, o Sítio da Quinta, freguesia do Caniço, e o palácio na rua do Bispo, no

Funchal; e o morgadio do Vale da Bica, na Ponta do Sol, ambos com elevados rendimentos,

segundo o inventário e avaliação datados de 26 de Fevereiro de 186330

.

Os valores do imposto do finto, ou quatro e meio por cento, que conseguimos apurar

em relação a alguns destes sujeitos, constituem um indicador interessante relativamente aos

rendimentos que auferiam. Assim, e continuando a ter em consideração a descrição contida

nos arrolamentos, vemos que Luís Carvalhal Esmeraldo, descrito como alguém com “falta de

bens”, apresentava valores do finto entre 700 e 900 réis31

. Por seu turno, ter “bens

suficientes”, casos de Bento João de Freitas Esmeraldo ou de Francisco Betencourt Henriques,

revela quantias entre 3 mil e 7 mil réis32

. Ser “competentemente estabelecido de

rendimentos”, designação aplicada a Joaquim Sanches de Baena Henriques, traduz um valor

de finto na ordem dos 8 mil réis33

. Os indivíduos considerados “abastados ou abundantes de

bens” apresentam valores superiores a 10 mil réis, visível nos casos de Diogo Ornelas Frazão,

de Francisco Betencourt Sá e de Francisco Xavier de Ornelas e Vasconcelos, chegando a 28

mil réis com Nuno de Freitas da Silva34

. Finalmente, mencionamos os dois sujeitos, cujos

valores do imposto do finto ascendem a 50 mil réis: João Carvalhal Esmeraldo e Francisco da

Câmara Leme, este último descrito nos arrolamentos como “senhor de uma grande casa”35

.

A existência de relações de parentesco entre os membros da elite municipal do

Funchal foi uma realidade apontada, com precisão, pelo governador D. Diogo Pereira Forjaz

Coutinho, em 1783, ao afirmar que “entre as pessoas da Nobreza de que devem sair os

Vereadores é quase geral o parentesco”36

. De facto, tal encontra-se atestado nos arrolamentos

estudados, conforme podemos verificar no quadro IV:

Quadro IV: Relações de Parentesco entre os Membros da Elite Municipal do Funchal

Nome Relação de Parentesco Nome

Agostinho Ornelas Vasconcelos Irmão--------------------»

Irmão--------------------»

Pai-----------------------»

Diogo Ornelas Frazão

Francisco Ornelas Frazão

Francisco Ornelas Vasconcelos

António Betencourt Henriques Tio-----------------------» Pedro Júlio da Câmara Leme

30

Maria Fátima Barros Ferreira, Arquivo da Família…cit., pp.50-56. 31

ARM, CMF, Finto, Livro 397, Rol de 1769-1770. 32

Idem, Ibidem. 33

Idem, Ibidem. 34

Idem, Ibidem; Idem, Livro 582, Rol de 1782. 35

ARM, CMF, Finto, Livro 397, Rol de 1769-1770; Idem, Livro 582, Rol de 1782. 36

ARM, Governo Civil, Livro 521, fl.106vº-108vº.

Ana Madalena Trigo de Sousa

12 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Cunhado----------------» António Brandão Henriques

Bartolomeu Freitas Esmeraldo Pai-----------------------» Bento de Freitas Esmeraldo

Francisco da Câmara Leme Primo - Irmão----------» Pedro Júlio da Câmara Leme

Francisco da Câmara Leme Irmão--------------------» Jorge Correia Betencourt

Francisco Esmeraldo Henriques Sogro--------------------» Bento de Freitas Esmeraldo

Francisco Carvalhal Esmeraldo Irmão--------------------» João Carvalhal Esmeraldo

Manuel de Brito Betencourt Irmão--------------------» Tomás de Brito Betencourt

Nuno de Freitas da Silva Pai-----------------------»

Pai------------------------

Sogro--------------------»

Nuno de Freitas da Silva, júnior

Jacinto de Freitas da Silva

Tristão de França Neto

Fonte – ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço

1659, Documento nº 38; Maço 1661, Documento nº 9; Maço 1671, Documento nº6.

Da análise deste quadro, podemos verificar como era significativa a teia de relações de

parentesco que existia entre os homens que exerceram o poder no município do Funchal nesta

época. Para além dos laços mais directos, constituídos por pais, filhos ou irmãos,

exemplificados no quadro IV, constatamos a existência de um relacionamento de 3º e 4º grau

entre membros de várias famílias. Assim, os Carvalhal Esmeraldo eram parentes em 3º grau

com os Ornelas Frazão, os Sauvaire revelaram um parentesco de 4º grau com a família

Câmara Leme que, por seu turno, tinha uma ligação em 3º grau com os Betencourt

Albuquerque Freitas, a mesma que estes tinham com os Freitas da Silva. Mencionamos,

ainda, o caso da família Teixeira Dória, parente em 3º grau com os Dória Atouguia, e dos

Baena Henriques, primos em 4º grau com os Brito de Oliveira. Em suma, do total dos 34

indivíduos analisados, verificou-se a existência de relações de parentesco em 28 casos, o que

é deveras ilustrativo37

. O parentesco era, sem dúvida, um factor decisivo no acesso ao

exercício e manutenção do poder no município funchalense.

Além do desempenho dos cargos no órgão de poder municipal, designadamente,

vereador, procurador do concelho, almotacé e guarda – mor da saúde, estes dois últimos

reservados, também, única e exclusivamente, aos membros da elite municipal, por via das

determinações legislativas vigentes38

, vemos que foram vários os elementos que estiveram

37

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 1671, Documento nº 6. 38

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder…cit., pp.122-126. Era condição fundamental para o

exercício do cargo de almotacé, ou seja, de fiscal e executor das posturas municipais, ser filho e neto de

vereador. Relativamente ao cargo de guarda – mor da saúde, responsável pela inspecção sanitária das tripulações

A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de Setecentos: Perfil Sócio – Económico de uma Elite

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presentes noutros dois órgãos de poder local da maior importância, em concreto, a

Misericórdia do Funchal e algumas Companhias de Ordenanças da Madeira. A Santa Casa da

Misericórdia do Funchal, fundada por carta régia de 27 de Julho de 1508, era uma instituição

cuja liderança, isto é, o cargo de provedor, devia pertencer, nos termos do Compromisso de

1631, a “homem fidalgo, de autoridade, prudência, virtude, reputação e idade, de maneira

que os outros irmãos o possam reconhecer por cabeça”, por seu turno, o escrivão da mesa

deveria ser, segundo o mesmo texto, “homem nobre, de tal prudência e condição”,

finalmente, o seu tesoureiro seria “pessoa nobre, honrada e abastada”39

. Para se aceder ao

estatuto de irmão da Misericórdia do Funchal era necessário possuir uma série de qualidades,

a saber: boa consciência e fama, temor a Deus, modéstia, caridade e humildade para o serviço

de Deus e dos mais pobres. Para além destas qualidades, eram exigidas outras condições,

perfeitamente inseridas no espírito da época, como a limpeza de sangue, quer do candidato

quer da sua mulher, um bom comportamento social e civil e, por último, uma idade superior a

25 anos40

. Do conjunto dos sujeitos que desempenhou funções municipais, vemos que 9 deles

exerceram o cargo de provedor da Misericórdia do Funchal, exercendo-o uma única vez:

António Betencourt Henriques (1750), Diogo Ornelas Frazão (1771), Francisco da Câmara

Leme (1781), Francisco de Ornelas Frazão (1770), Henrique Félix de Freitas da Silva (1761),

João Afonso Henriques (1752), Jorge Correia Vasconcelos Betencourt (1755), Mendo de

Brito de Oliveira (1762) e Nuno de Freitas da Silva (1747). Relativamente aos cargos de

escrivão e de tesoureiro, constatou-se uma realidade idêntica: 9 foram escrivães e 6 foram

tesoureiros da mencionada instituição41

. Para além do serviço de Deus e dos mais

necessitados, o papel da elite municipal esteve, de igual modo, associado à função militar. De

acordo com as determinações da época, visíveis no articulado do Alvará Régio sobre as

Nomeações dos Capitães, os postos militares deviam ser preenchidos, somente, por “pessoas

dignas e não por aqueles que com maior poder e sequito sem merecimento ou capacidade os

usurpam para as suas vinganças”. Assim, segundo o monarca, a escolha deveria recair sobre

as “pessoas de melhor nobreza, cristandade e desinteresse, do limite do mesmo concelho, vila

ou cidade”42

. Nobreza, cristandade e desinteresse, eis os atributos fundamentais para se aceder

e mercadorias das embarcações que faziam escala no porto do Funchal, era também desempenhado por homens

do círculo da governança. 39

Maria Dina Jardim, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal. Século XVIII, Funchal, Centro de Estudos de

História do Atlântico, 1996, pp.25, 32, 37. 40

Maria Dina Jardim, A Santa Casa…cit., pp.21-22. 41

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder…cit., pp.104-107. 42

Alvará Régio de 20 de Julho de 1709, in Fátima Freitas Gomes, Machico. A Vila e o Termo. Formas do

Exercício do Poder Municipal (Fins do Século XVII a 1750), Funchal, Direcção Regional dos Assuntos

Culturais, 2002, pp.226-227.

Ana Madalena Trigo de Sousa

14 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

a um posto de ordenanças. Efectivamente, verificou-se, em alguns casos, que os membros da

elite municipal desempenharam funções de índole militar ou, pelo menos, têm esse atributo,

segundo os arrolamentos. Podemos dar os exemplos de António Bentencourt Henriques,

capitão do Forte Novo, de António Leandro da Câmara Leme, capitão de ordenanças do

distrito do Campanário, de Francisco Xavier de Ornelas e Vasconcelos, capitão de ordenanças

da Ribeira Brava e do Caniço, e de Jacinto de Freitas da Silva, sargento de ordenanças da

Madalena e dos Canhas43

. Estas funções militares seriam exercidas, em princípio, fora da

cidade do Funchal. Contudo, temos informação que os eleitos raramente abandonavam as suas

casas e fazendas, acabando por delegar o comando das ordenanças em elementos subalternos,

uma situação que causaria desagrado ao governador e capitão – general da Madeira que, em

1783, entendia que, no domínio da escolha das Ordenanças, não se devia “consentir que com

a respeitável capa do mesmo Alvará [refere-se ao de 20 de Julho de 1709, já citado] se

cubram as paixões e parcialidades de que os Camaristas são dominados, pois em lugar de só

consultarem a utilidade do Real Serviço se deixam guiar dos particulares caprichos”44

.

Obviamente que desconhecemos os “caprichos” mencionados pelo governador Forjaz

Coutinho. Todavia, podemos constatar como a honra, noção bem patente no Alvará de 20 de

Julho de 1709, podia colidir com a perspectiva do governador e capitão – general da Madeira

que, possuindo o comando militar do arquipélago, entendia que, a propósito da proposta de

nomeação das ordenanças e das qualidades dos candidatos, devia ser alvo de consulta por

parte do poder municipal para, posteriormente, solicitar a competente confirmação do

Conselho de Guerra45

.

A questão da ligação, supostamente existente, entre alguns dos membros da elite

municipal funchalense e a primeira loja maçónica da Madeira reveste-se de alguma

singularidade. Quando o governador e capitão – general João António de Sá Pereira fez

denúncia ao Marquês de Pombal, em 1770, da existência de pedreiros livres na Madeira,

refere o facto de estes serem “alguns dos principais desta Ilha”46

. Quem eram eles? Destacou-

se, dentro deste grupo, Aires de Ornelas Frazão, irmão de Agostinho de Ornelas e

Vasconcelos, 10º morgado do Caniço, e que, em 1767, desempenhava o cargo de escrivão da

Mesa Grande da Alfândega do Funchal. Referidos, em 1770, pelo então governador João

António de Sá Pereira, como os “espíritos inquietos, livres, soberbos e indomáveis da

43

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder…cit., pp.104-107. 44

ARM, Governo Civil, Livro 517, fl.18-19vº. 45

ARM, Governo Civil, Livro 526, fl.7vº. 46

António Loja, A Luta do Poder contra a Maçonaria. Quatro Perseguições no Século XVIII, Lisboa, Imprensa

Nacional, 1986, p.247 e segs.

A Vereação do Município do Funchal na Segunda Metade de Setecentos: Perfil Sócio – Económico de uma Elite

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 15

principal nobreza”, surgem os nomes de Agostinho de Ornelas e Vasconcelos, do seu outro

irmão, Francisco de Ornelas Frazão, de Nuno de Freitas da Silva e de António Correia

Brandão Henriques, todos membros da elite municipal funchalense47

. São ainda mencionados

como sendo elementos que integravam a loja maçónica do Funchal, em 1770, Mendo de Brito

de Oliveira e Pedro Júlio da Câmara Leme. Dentro deste grupo, só Aires de Ornelas e

Vasconcelos foi preso e enviado para o reino. Relativamente aos restantes, há um silêncio

absoluto acerca dos motivos que teriam motivado a sua acusação48

. Importa, assim, colocar a

questão: quais teriam sido os verdadeiros contornos da subversão referida pelo governador Sá

Pereira? É difícil dar uma resposta cabal a esta interrogação. Contudo, sabemos que o

governador referia, como algo não desejável, que os homens da governança do Funchal, em

especial Nuno de Freitas da Silva, mantinham uma correspondência regular com os tribunais

do reino, uma correspondência facilitada pelo procurador da câmara do Funchal em Lisboa

que, por sua vez, era primo de Nuno de Freitas da Silva. Essas cartas eram, supostamente,

redigidas e enviadas da residência de Nuno de Freitas da Silva onde, segundo Sá Pereira, “se

formavam os conventículos destas e outras sedições”49

. Na impossibilidade de descortinar o

real significado de tais “conventículos e sedições”, inclinamo-nos para a hipótese de estarmos

perante um problema de carácter meramente pessoal, entre Nuno de Freitas da Silva e João

António de Sá Pereira, cuja governação na Madeira foi considerada deveras controversa50

.

Com a vinda de um novo governador, João Gonçalves da Câmara, em 1777, a situação teria

acalmado. De facto, Francisco Ornelas Frazão, António Correia Brandão Henriques e Pedro

Júlio da Câmara Leme aparecem no arrolamento de 1779, feito pelo corregedor António

Botelho Guedes do Amaral, e descritos, por este oficial, no tocante às suas capacidades para a

governação municipal, como indivíduos “com suficiente aptidão”. Contrariamente, Nuno de

Freitas da Silva, que contava na altura 68 anos, não é considerado apto devido a problemas de

saúde. Ao invés, Mendo de Brito de Oliveira é descrito como “hábil”, tendo a particularidade

de aparecer como informador nos três arrolamentos analisados (1779,1783,1787), “pela boa

notícia” que dele tinham os corregedores, responsáveis pelo processo eleitoral51

. No

arrolamento de 1779, a descrição do magistrado régio sobre os sujeitos em apreço usa,

predominantemente, as expressões “hábil” ou “com suficiente aptidão”, sem outro tipo de

comentário adicional. Só encontramos uma expressão mais personalizada no caso de

47

António Loja, A Luta do Poder…cit., pp.303, 313-314. 48

António Loja, A Luta do Poder…cit., pp.266-267. 49

ARM, Governo Civil, Livro 526, fl.92-92vº. 50

Ana Madalena Trigo de Sousa, O Exercício do Poder…cit., pp.55-59. 51

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 1659, Documento nº 38; Maço

1661, Documento nº 9; Maço 1671, Documento nº 6.

Ana Madalena Trigo de Sousa

16 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Henrique Félix de Freitas da Silva, apontado como “prudente e de génio tranquilo”52

. O

corregedor Bernardino Barreto, responsável pelo arrolamento de 1783, ao anotar os votos dos

eleitores com as informações a que só o monarca teria acesso, usa designações como “bom e

inteligente”, “bom”, “tem capacidade”, “bom e ágil”, “bom com capacidade por ser letrado”

(caso de Filipe Betencourt Albuquerque e Freitas, possuidor de um grau académico)53

.

Relativamente às opiniões de António Veloso de Oliveira, condutor do processo eleitoral em

1787, vemos as expressões “muito bom” e “bom” aplicadas, na generalidade, aos membros da

elite municipal. Contudo, Diogo Betencourt e Sá e considerado “muito demandista e

orgulhoso” e indica como óbices a idade avançada de Jorge Correia Betencourt e a inimizade

existente entre Pedro Júlio da Câmara Leme e Filipe Betencourt Albuquerque Freitas54

. Qual

o valor que se pode atribuir às expressões usadas pelos corregedores nas anotações enviadas

ao monarca? Teria esta classificação algo a ver com alguma situação efectiva? Cremos que tal

poderá ser aplicado aos casos que surgem mais especificados, ou seja, a idade avançada de um

sujeito ou a inimizade existente entre alguns. No entanto, esta classificação dos membros da

elite municipal, feita de uma forma pacífica e convencional, poderá revelar uma necessidade

de manutenção de uma certa ordem política e social que, por via da legislação régia,

reconhecia, quase de forma rotineira, a primazia dos principais da terra55

. Pela documentação

existente é muito difícil, ou quase impossível, definir as qualidades reais destes sujeitos, de

acordo com as concepções da época, em termos da sua aptidão para o exercício do poder

municipal. Mesmo assim, é lícito colocar a questão sobre qual o significado que teria o acesso

aos órgãos de poder local, designadamente o município, a misericórdia ou as companhias de

ordenanças. Neste ponto, a afirmação proferida por João Afonso Betencourt Henriques de que

as obrigações na vida pública eram “filhas do seu distinto nascimento”56

, revela uma

concepção do exercício do poder associado à honra e a um espírito de sacrifício em prol do

bem público e do serviço do rei, apanágio e virtude de um grupo: os filhos e netos de

vereadores, os que costumam andar na governança, os principais da terra. Devemos referir,

igualmente, que os vereadores funchalenses entendiam a instituição municipal como

52

Idem, Ibidem. 53

Idem, Maço 1659, Documento nº 38. 54

Idem, Maço 1661, Documento nº 9. 55

Veja-se José Viriato Capela e Rogério Borralheiro, “As Elites do Norte de Portugal…cit., pp.112-113. Alegam

os Autores que a qualificação feita pelos corregedores para o exercício do cargo de vereador, pouco ou nada teria

a ver com uma situação ou realidade efectiva. Com efeito, seriam na maior parte dos casos estereótipos, fixados

pelos códigos sociais de longa data, destinados a promover um certo ordenamento político e social, e usados

rotineiramente pelos corregedores que serviam a manutenção do sistema, compondo um código e uma gramática

que os juízes do Desembargo do Paço descodificam. 56

ARM, CMF, Vereações, Livro 1356, fl.15-16.

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representante da pessoa régia na Madeira, ou seja, a jurisdição que detinham fora conferida

pelo rei “sendo imanada imediatamente do Régio trono”, logo, não se encontrando

subordinada aos governadores e capitães - generais57

. Aliás, o município do Funchal, na

qualidade de cidade, única em todo o arquipélago, detinha duas importantes prerrogativas:

tinha direito ao tratamento de Senhoria em virtude de possuir as mesmas regalias e jurisdições

do Senado de Lisboa58

, por outro lado, era nas suas instalações e perante a vereação que os

governadores e capitães – generais exibiam as suas cartas patentes, ficando estas registadas

nos tombos do município, e tomavam posse do dito cargo59

. Um outro momento, da maior

importância para a elite municipal, atendendo à sua carga simbólica, era a festa processional

do Corpo de Deus que tinha a particularidade de projectar, junto da comunidade, o prestígio e

o poder desta elite. Daí o confronto latente com outras instituições de poder, ou seja, o

governador e capitão – general, o corregedor ou o bispo da diocese. A grande questão era,

precisamente, quem tinha a prerrogativa de se posicionar logo atrás do palio. Com efeito, e na

sequência do pedido de parecer régio solicitado pelo senado do Funchal, determinou D. José,

por provisão de 11 de Maio de 1763, que “aos oficiais da Câmara e Corpo dela é que toca na

função do Corpo de Deus o lugar imediato atrás do Palio sem outra pessoa que lhe aja de

por de premeio, por fazerem a sua Real Representação”60

. Com esta exposição, dirigida ao

rei, a elite municipal pretendia demonstrar que os vereadores do Funchal não estavam

dispostos a ceder da pose, honra e respeito com que entendiam ser, publicamente, tratados61

.

Contudo, logo em 1764, a procissão do Corpo de Deus foi marcada pelo conflito com o bispo

da diocese que, segundo os vereadores, tinha tratado o corpo de câmara com “a menor

atenção”, mandando posicionar, à frente do senado, um clérigo que teria assumido uma

57

Idem, Livro 1361, fl.25vº-26; Idem, Livro 1362, fl.32vº-35vº. Na perspectiva da vereação funchalense, o

município era o representante do rei na Madeira, em virtude do disposto numa ordem régia dirigida ao então

governador Tristão Vaz da Veiga, com data de 24 de Julho de 1586. Tratar-se-ia de uma provisão em que o rei

“declarou representar esta Câmara a sua Real Pessoa”. A questão do município ser o representante do monarca

na esfera do poder local foi levantada por Romero de Magalhães que chama a atenção para o facto de, ao

transferir e delegar tantas competências no poder municipal, a monarquia estar a utilizar uma importante rede de

transmissão de ordens por si emanadas, ao mesmo tempo que fortalecia o grupo que dominava a vida municipal

e que exercia o poder em nome do rei. Na prática, a elite constituída por via da legislação eleitoral, fortemente

restritiva, representava, em simultâneo, a autonomia da comunidade e a jurisdição régia. Joaquim Romero de

Magalhães, “Os Concelhos” in José Mattoso, História de Portugal, Volume III, Lisboa, Estampa, 1997, pp.161-

169. 58

ARM, Correições, Livro 168, fl.2-20. 59

Se até ao governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho estes oficiais tomavam posse nas instalações

municipais, com D. José Manuel da Câmara é exigida a deslocação da vereação funchalense ao palácio de São

Lourenço para assistir à posse do dito cargo. Perante tal exigência, a vereação reagiu exigindo ao novo

governador a apresentação do documento justificador de tal procedimento. ARM, CMF, Vereações, Livro 1365,

fl46vº-49. 60

ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 999, Documento nº 21. 61

ARM, CMF, Vereações, Livro 1357, fl.18vº-20.

Ana Madalena Trigo de Sousa

18 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

postura “ufana”62

. Em relação ao corregedor, o relacionamento também não se teria revelado

fácil, por ocasião desta festa processional. Na celebração realizada no dia 14 de Junho de

1770, o então corregedor, Francisco Moreira de Matos, introduzira-se no lugar de preferência,

isto é, entre o palio e a vereação e ignorara, ostensivamente, o reparo feito pelo juiz de fora. E,

para culminar episódio tão pouco diplomático, o corregedor não cumprimentara o corpo de

câmara com o protocolo necessário: “não o cortejando ao entrar para o lugar que tomou,

nem ao despedir (…) saindo quando ainda estava presente a Câmara formada”63

.

A vereação funchalense revela-se, de igual modo, profundamente zelosa dos seus

privilégios e prerrogativas num outro contexto, no qual se revelou mais fácil assumir essa

postura defensiva. Tal aconteceu quando os procuradores dos mesteres tentaram reivindicar o

direito de assinar, juntamente com os vereadores, os despachos emitidos pela vereação. A

resposta do senado foi contundente: os procuradores dos mesteres só iam às reuniões

unicamente para requererem a bem dos povos, pois nunca houve nenhuma ordem régia que

justificasse semelhante pretensão. Na perspectiva da câmara do Funchal, a reivindicação dos

mesteres seria dirigida por alguma outra entidade que pretenderia, desta forma, imiscuir-se

nos “segredos da governança”64

. Os vereadores do Funchal, ao recusarem linearmente as

pretensões dos mesteres, afirmaram a defesa da sua jurisdição de uma eventual usurpação por

parte dos governadores ou do bispo da diocese, descrevendo um sentimento deveras negativo

face à Casa dos Vinte e Quatro: “Os Homens de que se compõe a Casa dos vinte e quatro são

pobríssimos e do mais inferior trato (…) motivos que os fazem inconstantes e por isso fáceis

para a revelação dos segredos mais importantes às pessoas de maior poder”65

.

Revela-se importante perceber se houve concentração do poder municipal por parte de

um número restrito de sujeitos, ao longo da segunda metade de Setecentos. Os dados expostos

no quadro V reportam-se aos indivíduos que conseguiram totalizar 20 ou mais mandatos no

âmbito dos vários cargos municipais, vereador, procurador do concelho, almotacé, e guarda –

mor da saúde.

62

ARM, CMF, Vereações, Livro 1357, fl.18vº-20. 63

ARM, CMF, Vereações, Livro 1359, fl.29-30vº. 64

ARM, CMF, Correspondência do Senado, Livro 167, fl.93vº-94vº. 65

Idem, Ibidem.

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Quadro V: Membros da Elite Municipal do Funchal com Maior Número de Mandatos

(1750-1799)

Nome V. P.C. A. G.M.S. Total

António João Betencourt Henriques 10 5 5 26 46

Henrique Félix de Freitas da Silva 5 - 7 22 34

Francisco de Ornelas e Vasconcelos 3 2 20 4 29

Tristão Joaquim de França Neto 4 3 20 1 28

Mendo de Brito de Oliveira 6 - 1 20 27

Pedro Júlio da Câmara Leme 5 - 11 10 26

Francisco da Câmara Leme 6 3 3 12 24

Francisco de Ornelas Frazão 2 - 11 11 24

Jorge Correia Betencourt 11 3 7 2 23

Bento João de Freitas Esmeraldo 2 2 6 10 20

João Carvalhal Esmeraldo 2 - 4 14 20

Legenda – V. Vereador; P.C. Procurador do Concelho; A. Almotacé; G.M.S. Guarda –

Mor da Saúde.

Fonte – ARM, CMF, Vereações, Livros 1353 a 1365.

Do total de 48 indivíduos que integraram os elencos do município do Funchal, entre

1750 e 1799, verifica-se que 11 deles conseguiram totalizar 20 ou mais mandatos no conjunto

dos cargos concelhios. Houve, portanto, uma verdadeira concentração do poder municipal

num núcleo restrito de indivíduos donde se destacam António João Betencourt Henriques e

Henrique Félix de Freitas da Silva, com 46 e 34 mandatos, respectivamente. Focalizando a

nossa atenção em cada um dos cargos, podemos ver que, no âmbito do cargo de vereador,

António Betencourt Henriques totaliza 10 mandatos, sendo superado por Jorge Correia

Betencourt que atingiu 11. Portanto, dois indivíduos que, por uma dezena de vezes, foram

alvo da escolha do rei. O cargo de procurador do concelho surge menos representado. Não

nos esqueçamos que era, por norma, o vereador mais novo em idade, da vereação cessante,

logo, trata-se de uma situação que implicava o cumprimento de uma norma pré - definida66

.

Relativamente aos outros dois cargos da administração municipal, almotacé e guarda – mor da

saúde, o elevado número de desempenhos observado em vários casos pode ser indicador de

uma maior aptidão desses indivíduos pelos ditos cargos, certamente com a anuência e/ou

66

José Justino de Andrade e Silva, Colecção Cronológica […] (1603-1619), cit., p.393.

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conivência da restante vereação, na medida em que a respectiva eleição era da sua

responsabilidade67

.

3. Considerações Finais

O município do Funchal foi, no decurso da segunda metade de Setecentos, governado

por uma elite caracterizada, do ponto de vista social e económico, como fidalga, abastada, em

estreita identificação com a instituição vincular e ligada, entre si, por laços de parentesco. A

sua condição de fidalguia expressa uma ligação com o monarca, reflexo da legislação da

época que determinava a governação do município como prerrogativa das pessoas principais

da terra. Acrescente-se que se trata de um grupo de fidalgos que vivem excluídos da Corte, ao

contrário da grande nobreza titulada, não tendo qualquer peso ou influência na vida política

do reino ou nas decisões do monarca. A sua condição de abastança é uma consequência

directa da sua identificação com a instituição vincular. Trata-se de um grupo que detém, em

exclusivo, as melhores terras da ilha, um monopólio que assegura uma posição social e

económica de domínio sobre a restante população: social porque assente num sistema de

transmissão de propriedade – o morgadio – que perpetua a posição privilegiada no topo da

hierarquia social; o domínio económico estrutura-se em torno da posse das terras de

viticultura, geradoras de lucros avultados devido à exportação do vinho, que sustenta toda

uma vivência, nos seus símbolos e modos de vida, que projecta, no contexto insular, o poderio

destes fidalgos. A ligação de parentesco visível entre os membros da elite municipal, nalguns

casos revelando uma ligação em primeiro grau, traduz a necessidade de manter e aumentar o

património das famílias, através de alianças matrimoniais. A consequência directa desta

realidade foi expressa pelo governador Forjaz Coutinho ao afirmar que entre as pessoas da

nobreza era quase geral o parentesco. Logo, uma inevitabilidade no âmbito do acesso ao

governo municipal. Mas o exercício do poder, seja no município, seja na misericórdia ou nas

companhias de ordenanças, esteve intimamente associado ao dever e à honra. Assim, esse

exercício, revelou-se uma honra e um dever público, ao serviço do rei, do direito das partes e

do bem comum da respublica. Como tal, a elite funchalense não cedia na pose, honra e

respeito com que exigia ser publicamente tratada pelos restantes poderes insulares. A suposta

ligação de alguns membros da elite municipal à primeira loja maçónica da Madeira revela-se

67

ARM, CMF, Vereações, Livro 1357, fl.4-7. O processo eleitoral na origem da escolha trimestral dos almotacés

do Funchal não estaria isento de alguma irregularidade. Assim o atesta a acusação feita pelo Juiz de Fora à

vereação funchalense, em 1765, no sentido de haver divulgação dos nomes dos escolhidos, antes de se proceder

à eleição.

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 21

singular. A frase proferida pelo governador Sá Pereira, em 1770, fala-nos de pessoas de

espírito inquieto, livre, soberbo e indomável, num interessante contraste com as opiniões dos

corregedores expressas nos arrolamentos. O seu carácter pacífico e convencional poderá ser o

indicador da necessidade de manutenção de uma certa ordem política e social que, em virtude

da lei da monarquia, reconhecia a primazia dos principais da terra no desempenho dos cargos

nos órgãos de poder local.

4. Fontes e Bibliografia

Fontes Manuscritas

Arquivo Regional da Madeira

Câmara Municipal do Funchal: Correspondência do Senado, Livro 167; Correições, Livro

168; Finto, Livros 397 e 582; Registo Geral, Livros 1220 a 1223; Vereações, Livros 1353 a

1365.

Governo Civil, Livros 517, 521, 526.

Juízo dos Resíduos e Capelas, Maço 13, Processo nº 1008; Maço 25, Processo nº 2238; Caixa 53,

Processo nº 40.

Arquivos Nacionais / Torre do Tombo

Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas: Maço 999, Documento nº 21; Maço

1659, Documento nº 38; Maço 1661, Documento nº 9; Maço 1671, Documento nº 6.

Fontes Impressas

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História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Transcrição e Notas de Alberto Vieira, Funchal,

Centro de Estudos de História do Atlântico, 1996.

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Lisboa, Imprensa de J.A. Silva e F.X. Sousa, 1854-1856.

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