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A vida é dura: seis formas de lidar com isso Dezembro 17, 2017 Um conjunto antigo de aforismos budistas oferece seis técnicas para transformar as dificuldades da vida em benefício e caminho para o despertar. O professor zen Norman Fischer guia-nos através delas. Existe um ditado Zen que diz que o mundo inteiro está de cabeça para baixo. Ou seja, o modo como o mundo aparenta ser do ponto de vista comum ou convencional é praticamente o oposto de como o mundo realmente é. Há uma história que ilustra isso: Havia um mestre Zen que era chamado de Roshi Ninho de Pássaro porque meditava dentro de um ninho de águia no cimo de uma árvore. Ele tornou-se bastante famoso por causa dessa prática arriscada. Uma vez, o poeta Su Shih (que também era um oficial do governo) da Dinastia Song foi visitá-lo e, permanecendo no chão muito abaixo de onde o mestre meditava, perguntou o que o lhe passou pela cabeça para viver de forma tão perigosa. O roshi respondeu: “Você chama a isto perigoso? O que você faz é muito mais perigoso!” Viver normalmente no mundo, ignorando a morte, a impermanência, a perda e o sofrimento, como nós rotineiramente fazemos, como se isso fosse um modo normal e seguro de viver, é na realidade muito mais perigoso do que subir num galho de árvore para meditar. Embora seja natural e compreensível tentar evitar as dificuldades, isso na verdade não funciona. Nós achamos que faz sentido protegermo-nos da dor, mas essa autoproteção acaba por nos causar dores mais profundas. Nós achamos que precisamos de nos agarrar ao que temos, mas esse ato em si faz-nos perder o que temos. Estamos apegados ao que gostamos e tentamos evitar o que não gostamos, mas não conseguimos manter o que nos atrai e não conseguimos evitar o que não desejamos. Por isso, e embora possa parecer contraintuitivo, evitar as dificuldades da vida é um meio perigoso de viver. Se quer ter uma vida plena e feliz, em bons e maus

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A vida é dura: seis formas de lidar com isso

Dezembro 17, 2017

Um conjunto antigo de aforismos budistas oferece seis técnicas para transformar as dificuldades da vida em benefício e caminho para o despertar. O professor zen Norman Fischer guia-nos através delas.

Existe um ditado Zen que diz que o mundo inteiro está de cabeça para baixo. Ou seja, o modo como o mundo aparenta ser do ponto de vista comum ou convencional é praticamente o oposto de como o mundo realmente é. Há uma história que ilustra isso:

Havia um mestre Zen que era chamado de Roshi Ninho de Pássaro porque meditava dentro de um ninho de águia no cimo de uma árvore. Ele tornou-se bastante famoso por causa dessa prática arriscada. Uma vez, o poeta Su Shih (que também era um oficial do governo) da Dinastia Song foi visitá-lo e, permanecendo no chão muito abaixo de onde o mestre meditava, perguntou o que o lhe passou pela cabeça para viver de forma tão perigosa. O roshi respondeu: “Você chama a isto perigoso? O que você faz é muito mais perigoso!” Viver normalmente no mundo, ignorando a morte, a impermanência, a perda e o sofrimento, como nós rotineiramente fazemos, como se isso fosse um modo normal e seguro de viver, é na realidade muito mais perigoso do que subir num galho de árvore para meditar.

Embora seja natural e compreensível tentar evitar as dificuldades, isso na verdade não funciona. Nós achamos que faz sentido protegermo-nos da dor, mas essa autoproteção acaba por nos causar dores mais profundas. Nós achamos que precisamos de nos agarrar ao que temos, mas esse ato em si faz-nos perder o que temos. Estamos apegados ao que gostamos e tentamos evitar o que não gostamos, mas não conseguimos manter o que nos atrai e não conseguimos evitar o que não desejamos. Por isso, e embora possa parecer contraintuitivo, evitar as dificuldades da vida é um meio perigoso de viver. Se quer ter uma vida plena e feliz, em bons e maus

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tempos, deve acostumar-se à ideia de que encarar o infortúnio diretamente é melhor do que tentar escapar dele.

Não se trata aqui de nos focarmos lugubremente nas dificuldades da vida. É simplesmente a forma mais suave de chegar à felicidade. É claro que sempre que pudermos evitar as dificuldades o devemos fazer. Pode ser que o mundo esteja de cabeça para baixo, mas nós ainda temos que viver neste mundo de cabeça para baixo e temos que ser práticos nessas condições. O ensinamento sobre como transformar as circunstâncias difíceis em caminho não nega isso. O que aponta é que a nossa atitude subjacente de ansiedade, de medo e a nossa visão estreita, faz com que tenhamos vidas infelizes, cheias de medo e limitadas.

Transformar circunstâncias difíceis em caminho está associado à prática da paciência. Existem seis frases de treinamento da mente (lojong) conectadas a isso:

1. Transforme todos os contratempos no caminho. 2. Atribuir todas as culpas a um só. 3. Seja grato a todos. 4. Veja a confusão como o Buda e pratique a vacuidade. 5. Faça o bem, evite o mal, aprecie a sua loucura, peça ajuda. 6. O que quer que encontre é o caminho.

1. Transforme todos os contratempos no caminho

O primeiro aforismo, “Transforme todos os contratempos no caminho”, soa completamente impossível à primeira vista. Como é possível? Quando as coisas vão bem nós ficamos contentes — sentimo-nos bem e experienciamos sentimentos positivos — mas assim que coisas difíceis começam a acontecer, ficamos deprimidos, desmoronamos, ou, na melhor das hipóteses, aguentamos firme e lidamos com a situação. Não transformamos certamente os contratempos no caminho. E por que o faríamos? Nós não queremos que os contratempos surjam; queremos que desapareçam o mais rápido possível.

Contudo, o texto diz-nos que podemos transformar todas as contrariedades em caminho. Fazemos isso praticando a paciência, a minha qualidade espiritual favorita. A paciência é a capacidade de acolher as dificuldades quando surgem, com energia, resiliência, tolerância e dignidade, ao invés de medo, ansiedade e fuga. Nenhum de nós gosta de ser oprimido ou derrotado, no entanto ao conseguir suportar a opressão e a derrota com coragem, sem nos lamentarmos, isso vai enobrecer-nos. A paciência torna isso possível. Na nossa cultura, nós achamos que a paciência é passiva e sem glamour; outras qualidades como amor e compaixão ou insight são muito mais populares. Mas quando tempos difíceis fazem com que o amor se desgaste e se torne aborrecimento, que a compaixão seja vencida pelo medo e que o insight desapareça, aí a paciência começa a fazer sentido. Para mim ela é a mais substancial, a mais útil e a mais confiável de todas as qualidades espirituais. Sem ela, todas as outras qualidades se tornam instáveis.

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A prática da paciência é bastante simples. Quando a dificuldade surge, perceba as formas óbvias e não tão óbvias com as quais nós tentamos evitá-la — as coisas que dizemos e fazemos, a forma como o nosso corpo recua e se contrai quando alguém diz ou faz algo de que não gostamos.

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Praticar a paciência é notar essas coisas e manter-se ferozmente presente com elas (respirar um pouco ajuda; voltar para a plena consciência do corpo ajuda) ao invés de reagir a elas. Ao darmos por nós a fugir, invertemos a marcha, voltando-nos para as emoções aflitivas, entendendo que elas são naturais em tais circunstâncias — e que evitá-las não vai funcionar. Evitamos a nossa agitação em relação a essas emoções e então permitimos que estejam presentes com dignidade. Perdoamo-nos por as sentir, perdoamos (pelo menos provisoriamente) quem quer que estejamos a culpar pelas nossas dificuldades, e com esse perdão espontâneo surge uma sensação de alívio e até mesmo de gratidão.

Isso pode soar um pouco forçado, mas não é. Contudo requer treino. Não estamos, no final das contas, a falar de milagres; nem de afirmações ou em desejar o impossível. Nós estamos a falar de treinar a mente. Se meditar diariamente, trazendo à mente esta frase, “Transformar todos os contratempos no caminho”, na sua meditação formal, escrevendo-a, repetindo-a muitas vezes ao dia, então vai poder ver que pode acontecer uma mudança na sua mente e coração, exatamente da forma como a estou a descrever. A sua reatividade automática em tempos difíceis não é imutável.

A mente, o coração, podem ser treinados. Uma vez que tenha uma única experiência de reagir de forma diferente, vai sentir-se encorajado, e, na próxima vez, será mais provável que você se domine. Quando surgir alguma dificuldade, vai deixar de dizer: “Por que isso teve que acontecer?!” para começar a dizer: “Sim, claro, isso é assim mesmo. Vou olhar para isto, vou praticar com o que está, vou ver para além da confusão e chegar à gratidão.”

Isto porque já terá compreendido que coisas difíceis vão acontecer porque está vivo e não morto, porque tem um corpo humano e não outro tipo de corpo, porque este é um mundo físico e não um mundo etéreo, e porque todos nós como pessoas somos o que somos. Isso é o mais natural, o mais normal, a coisa mais inevitável no mundo. Não é um erro e não é culpa de ninguém. E podemos fazer uso disso para aprofundar a nossa gratidão e a nossa compaixão.

2. Atribuir todas as culpas a um só

O segundo aforismo sobre transformar circunstâncias difíceis é famoso e também é muito contraintuitivo, bem de mundo virado ao contrário. O que significa é: o que quer que aconteça, nunca culpe algo ou alguém; a responsabilidade é sua.

Isso é complicado, porque não se trata exatamente de nos culparmos no sentido habitual. Nós sabemos perfeitamente bem como fazer para nos culparmos. Temos feito isso durante todas as nossas vidas. Não precisamos de aforismos budistas para nos mandar fazer isso. Mas claramente não é esse o significado.

“Atribuir todas as culpas a um só” significa que não pode culpar ninguém pelo que acontece. Mesmo se for de facto erro de alguém, não pode realmente culpá-lo. Algo aconteceu, e já que aconteceu, não há nada mais a ser feito a não ser usar o que aconteceu de forma útil.

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Em tudo o que acontece, mesmo no maior desastre possível, e seja quem for que tenha falhado, existe um benefício potencial e a sua tarefa é achá-lo. Atribuir todas as culpas a um só significa que você assume total responsabilidade por tudo o que surge na sua vida.

Isto é muito duro, não era isto que eu queria, isso vai causar muitos outros problemas. Mas o que vou fazer com isso? O que eu posso aprender com isso? Como posso fazer uso disso no caminho? Essas são as questões a serem colocadas, e a resposta é inteiramente da sua responsabilidade. Além do mais, vai conseguir responder a essas questões; tem o poder e a capacidade para isso. Atribuir todas as culpas a um só é uma prática formidável para cortar o antigo hábito humano de reclamar e lamentar, e de achar, do outro lado disso, a força para transformar todas as situações no caminho. Aí está. É isso. Não há outro lugar para ir a não ser para o próximo momento. Repita essa frase quantas vezes for necessário.

3. Seja grato a todos

Ser grato a todos: isto é muito simples mas muito profundo.

A minha esposa e eu temos um neto. Nós fomos visitá-lo quando ele tinha cerca de seis semanas de vida. Ele não conseguia fazer nada, nem mesmo segurar a cabeça, muito menos alimentar-se. Se ele estivesse em dificuldades, ele não conseguiria pedir ajuda. Impossibilitado de fazer qualquer coisa por conta própria, ele estava completamente dependente dos cuidados e constante atenção da mãe. Ela alimentava-o, acarinhava-o, tentava entender e antecipar as suas necessidades e cuidava de tudo, incluindo do seu xixi e cocó.

Nós já estivemos todos exatamente nessa situação e alguém teve que cuidar completamente de nós da mesma forma. Sem os cuidados a 100% de outra pessoa, ou mesmo de várias, não estaríamos aqui. Estes certamente são motivos para sentirmos gratidão pelas outras pessoas.

Mas a nossa dependência em relação aos outros não termina aqui. Não crescemos e ficamos independentes. Já podemos manter a cabeça firme, preparar o almoço, limpar o nosso traseiro, e aparentemente já não precisamos que a mãe e o pai cuidem de nós — então pensamos que somos autónomos.

Mas pense nisso por um momento. Cultivou o alimento que o sustenta todos os dias? Produziu o carro ou o comboio que o leva para o trabalho? Costurou as suas roupas ou teceu o tecido de que são feitas? Construiu a sua própria casa ou fabricou os materiais de é feita?

Precisamos uns dos outros todos os dias, em cada momento da nossa vida. É graças à presença e aos esforços dos outros que temos as coisas que precisamos para prosseguir, e que temos amizade, amor e sentido para a vida. Sem os outros não somos nada.

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A nossa dependência dos outros é ainda muito mais profunda que isso. Para começar, de onde vem a pessoa que nós acreditamos ser? Além dos genes, apoio e cuidados dos nossos pais, e da sociedade e de tudo o que ela produz para nós, existe toda uma rede de condições e circunstâncias que intimamente nos faz ser o que somos. O que dizer dos seus pensamentos e sentimentos? De onde vêm eles? Sem palavras para pensar, nós não pensamos, não fica nada, não há um sentido de um eu como nós o entendemos, e nós não temos as emoções e sentimentos que são moldados e definidos pelas palavras. Sem a miríade de circunstâncias que nos proporcionaram oportunidades para a educação, a fala, o conhecimento e o trabalho, nós não estaríamos aqui da maneira que estamos.

Literalmente, não poderia haver o que chamamos de uma pessoa sem outras pessoas. Podemos usar a palavra “pessoa” como se pudesse haver essa entidade autónoma, mas na verdade isso não existe. Não há uma coisa chamada pessoa — há apenas pessoas que se cocriaram umas às outras durante a longa história da nossa espécie. A ideia de uma pessoa independente, isolada e atomizada é impossível. E aqui não estamos a referir-nos apenas à necessidade dos outros de ordem prática. Estamos a referir-nos ao nosso sentido de identidade mais íntimo. A consciência de nós mesmos nunca é independente dos outros.

Isso é o que não-eu ou vacuidade significa no ensinamento budista: que não existe essa coisa de um indivíduo isolado. Embora nós possamos dizer que exista e embora nós pensamos que exista, e apesar de muitos dos nossos pensamentos e motivações aparentarem estar baseados nessa ideia, na realidade essa é uma ideia errada. Literalmente todos os pensamentos, cada emoção que sentimos, cada palavra que sai das nossas bocas, tudo o que precisamos para o nosso sustento material a cada dia, chegam-nos através da bondade dos outros e pela interação com os outros. E não apenas outras pessoas mas não-humanos também, literalmente toda a Terra, o solo, o

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céu, as árvores, o ar que respiramos, a água que bebemos. Não só dependemos de tudo isso, de todo esse sistema — nós somos tudo isso e tudo isso somos nós. Isto não é uma teoria, não é um ensinamento religioso. É simplesmente a mais nua das realidades.

Então, praticar “seja grato a todos” é treinar esse profundo entendimento. É cultivar todos os dias esse sentido de gratidão, a mais feliz de todas as atitudes. Infelicidade e gratidão simplesmente não podem existir ao mesmo tempo. Se se sente grato, é uma pessoa feliz. Se se sente grato por aquilo que é possível para si neste momento, independentemente dos desafios por que passa, se se sente grato simplesmente por estar vivo, por ter a capacidade de pensar, de sentir, de manter-se em pé, sentar, andar, falar — se se sente grato, então é feliz e maximiza as suas chances de bem-estar e de partilhar a felicidade com os outros.

4. Veja a confusão como o Buda e pratique a vacuidade

O quarto aforismo, “Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade”, requer alguma explicação. Isto vai para além do nosso entendimento convencional ou relativo, em direção a um sentido mais profundo do que somos. Embora convencionalmente eu seja eu e tu és tu, de uma perspectiva absoluta, aos olhos de Deus, se preferir, não há o eu e não há o outro. Há apenas ser, e apenas amor, que é ser compartilhando-se a si consigo mesmo, sem barreiras e com calor. Apenas parece haver um eu e um tu porque é assim que as nossas mentes e sistemas sensoriais funcionam. Esse amor sem limites é a prática da vacuidade.

“Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade” significa que nós nos situamos de forma diferente em relação à nossa confusão humana comum, à resistência, à dor, ao medo, à mágoa, e assim por diante. Em vez de desejar que essas emoções e reações por fim desapareçam e que nos livremos delas, nós as levamos a um nível mais profundo. Olhamos para a sua realidade subjacente.

O que realmente está a acontecer quando estamos chateados ou com raiva? Se pudéssemos por instantes desprender-nos da culpa, do desejo e da autopiedade e olhar para a base real do que está de facto a acontecer, o que iríamos ver? Veríamos o tempo a passar. As coisas a mudar. Veríamos a vida a surgir e a passar, vindo de lugar nenhum e indo para lugar nenhum. Momento a momento, o tempo escapa e as coisas transformam-se. O presente torna-se passado — ou torna-se futuro? E, ainda assim, no momento presente não há passado nem futuro. Assim que examinarmos o “agora”, ele foi. E não sabemos como ou para onde vai.

Isso pode soar a filosofia, mas não parece filosofia quando você ou alguém próximo está a dar à luz. Se nesse momento estiver na sala de partos ou estiver, você mesma, no meio da dor e da alegria, a dar à luz — nesse primeiro momento de explosão, fica maravilhada. Essa vidinha que achava que estava vivendo, com as suas várias questões e problemas, desaparece completamente frente ao milagre da vida visceral brotando na frente dos seus olhos. Ou se você está presente quando alguém deixa este mundo e entra na morte (se é que existe um lugar para entrar), você sabe então que esse vazio não é somente filosofia. Pode não saber o que é, mas vai ver que é real. Vai perceber

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que essa realidade é poderosa e o faz olhar para a sua vida, e para a vida como um todo, de forma bastante diferente. Surge um novo contexto que é mais do que pensamento, mais do que conceito. Quando olha para os seus problemas humanos diários à luz do nascimento e da morte, está a praticar esse aforismo. Cada momento da sua vida, até mesmo (e talvez especialmente) os seus momentos de dor, desespero ou confusão, é um momento de buda.

Então esteja presente em momentos de nascimento e de morte sempre que possível e aceite esses momentos como presentes, como oportunidades para a profunda prática espiritual. Mas mesmo quando não participar nesses momentos intensos, pode repetir e rever essa frase, e meditar sobre ela. E quando a sua mente está confusa e perdida, pode respirar e tentar ir para além do desejo e da confusão. Pode perceber que nesse exato momento o tempo está a passar, as coisas estão a transformar-se e que esse facto impossível é profundo, belo e alegre, mesmo que continue imerso no seu desespero.

5. Faça o bem, evite o mal, aprecie a sua loucura, peça ajuda

Agora os aforismos nos trazem de volta à terra. Se os ensinamentos espirituais existem para realmente transformar as nossas vidas, eles precisam oscilar (como esses aforismos fazem) entre dois níveis, o profundo e o mundano. Se a prática é muito profunda, isso não é bom. Estamos cheios de insights maravilhosos e elevados, mas falta-nos a habilidade de atravessar o dia com alguma graciosidade, ou de nos relacionarmos com os problemas e as pessoas na vida comum. Nós podemos ser sublimemente metafísicos, tocantemente compassivos, e ainda sermos incapazes de nos relacionarmos com um ser humano normal ou com um problema mundano. Esse é o momento em que o mestre Zen nos golpeia com seu bastão e diz: “Lavem as vossas tigelas! Matem o Buda!”.

Por outro lado, se a prática é muito mundana, se nós nos tornamos demasiadamente interessados nos detalhes de como nós e os outros nos sentimos e o que nós ou eles precisam ou querem, então a natureza elevada de nossos corações não estará acessível e nós vamos afundar-nos com o peso das obrigações, dos detalhes e das preocupações do quotidiano. Este é o momento em que o mestre diria: “Se tiver uma bengala, eu dar-te-ei uma bengala; se precisares de uma bengala, eu vou tirar-ta.” Nós precisamos tanto da filosofia religiosa profunda quanto das ferramentas práticas para o dia-a-dia. Essa necessidade dupla, de acordo com as circunstâncias, parece sempre acompanhar o ser humano. Estivemos no aforismo anterior a contemplar a realidade como o Buda e a praticar a vacuidade. Isso foi importante. Agora é hora de voltar para a terra.

Primeiro, faça o bem. Faça ações positivas. Diga olá para as pessoas, sorria para elas, diga feliz aniversário, sinto muito pela sua perda, há algo que eu possa fazer para ajudar? Estas coisas são convenções sociais, e as pessoas dizem isso o tempo todo. Mas praticá-las intencionalmente é trabalhar um pouco mais duramente para que sejam realmente sinceras. Genuinamente tentamos ser úteis, gentis e atenciosos da forma mais simples e mais grandiosa que conseguirmos, todos os dias.

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Segundo, evite o mal. Isso significa prestar mais atenção nas ações de corpo, fala e mente, notando quando nós fazemos, falamos ou pensamos coisas que são prejudiciais ou indelicadas. Tendo chegado até aqui com o treinamento da mente, nós

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não temos como não notar os nossos momentos ordinários ou maldosos. E quando notamos, sentimo-nos mal. No passado nós poderíamos ter dito para nós mesmos: “Eu só disse isso porque ela realmente precisa aprender. Se ela não me tivesse feito o que fez, eu não teria falado assim com ela. Foi realmente culpa dela.” Agora nós vemos que essa é uma forma de nos protegermos (afinal de contas, nós acabamos de praticar “Atribua todas as culpas a um só”) e almejamos aceitar a responsabilidade pelas nossas ações. Então nós prestamos atenção às coisas que dizemos, pensamos e fazemos — não obsessivamente, não de um modo perfecionista, mas apenas naturalmente e com generosidade e compreensão — e finalmente nós nos purificamos de boa parte dos pensamentos e palavras pouco generosos.

As duas últimas práticas deste aforismo, que eu interpretei como “Aprecie a sua loucura” e “Peça ajuda/Reze por ajuda”, têm tradicionalmente relação com fazer oferendas para dois tipos de criaturas: demónios (seres que impedem a prática) e protetores do Dharma (seres que ajudam a permanecer sincero na prática). Mas para os nossos propósitos neste momento é melhor vê-las de uma forma mais geral.

Nós podemos entender as oferendas a demónios como “aprecie a sua loucura”. Reverencie a sua própria fraqueza, a sua própria loucura, a sua própria resistência. Congratule-se por elas, aprecie-as. Isso é de facto uma maravilha, o quanto nós somos egoístas, confusos, preguiçosos, ressentidos e assim por diante. Nós adquirimos essas coisas com honestidade. Nós fomos bem treinados para manifestá-las a cada momento. Esse é o prodígio da vida humana transbordando, é o efeito da nossa educação, da nossa sociedade, que apreciamos até mesmo quando estamos a tentar domá-lo e gentilmente convencê-lo a manifestar o bem. Então nós fazemos oferendas aos demónios dentro de nós e desenvolvemos um senso de apreciação bem-humorada de nossa própria estupidez. Estamos em boa companhia! Podemo-nos rir de nós mesmos e de tudo o resto.

Ao fazermos oferendas para os protetores do Dharma, nós rezamos a qualquer força em que acreditemos ou não, para nos ajudar. Quer imaginemos uma deidade ou um Deus ou não, podemos buscar algo para além de nós mesmos e para além de qualquer coisa que possamos descrever objetivamente e pedir ajuda e força para o nosso trabalho espiritual. Podemos fazer isso em meditação, com palavras silenciosas ou em voz alta, verbalizando as nossas esperanças e desejos.

A oração é uma prática poderosa. Não é uma questão de abandonar a nossa própria responsabilidade. Não estamos a pedir para sermos desobrigados da necessidade de agir. Estamos a pedir ajuda e força para fazer o que sabemos que precisamos de fazer, com o entendimento de que embora nós precisemos dar o nosso melhor, qualquer coisa benéfica que surja no nosso caminho não é um feito nosso, um resultado pessoal. Isso vem de uma esfera mais ampla do que aquilo que podemos controlar. Na verdade, é contraproducente conceber a prática espiritual como uma tarefa que vamos realizar sozinhos. Afinal de contas, já não praticamos o “Seja grato a todos”? Já não aprendemos que não é possível fazer nada sozinho? Afinal de contas, estamos a treinar uma prática espiritual e não uma autoajuda pessoal (embora esperemos que isso nos ajude, e provavelmente ajudará). Então, não apenas faz sentido rezar por

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ajuda, não apenas aparenta ser poderosamente certo e bom fazê-lo, isso é importante também para que possamos lembrar que não estamos sozinhos e que não podemos fazer nada sozinhos.

Seria natural esquecermos este ponto, cairmos no hábito de imaginarmos uma autossuficiência ilusória. As pessoas frequentemente dizem que os budistas não rezam porque o budismo é uma tradição ateísta ou não-teísta, que não reconhece Deus ou um Ser Supremo. Tecnicamente isso pode estar correto, mas a verdade é que os budistas rezam e sempre rezaram. Rezam para toda uma panóplia de budas e bodisattvas. Até mesmo budistas zen rezam. Rezar não requer uma crença em Deus ou deuses.

6. O que quer que encontre é o caminho

Esse aforismo resume os outros cinco: o que quer que aconteça, bom ou ruim, faça com que isso seja parte da sua prática espiritual.

Na prática espiritual, que é a sua vida, não há intervalos nem erros. Nós seres humanos estamos sempre a realizar uma prática espiritual, saibamos disso ou não. Pode pensar que perdeu o fio da meada, que estava a praticar muito bem mas a vida ficou muito ocupada e complicada e perdeu o rumo do que estava a fazer. Pode sentir-se mal por causa disso, e esse sentimento se alimenta de si mesmo, e torna-se cada vez mais difícil voltar a seguir o trilho.

Mas isso é apenas o que pensa; não é isso que está a acontecer. Uma vez que começa a praticar, está sempre a prosseguir, porque tudo é prática, até mesmo os dias ou as

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semanas ou as vidas inteiras em que se esqueceu de meditar. Mesmo assim, está a praticar, porque é impossível perder-se. Está constantemente a encontrar-se, quer saiba disso ou não. Praticar esse aforismo é saber que, não importa o que esteja a acontecer — não importa o quão distraído pense que esteja, não importa o quanto se sinta um indivíduo terrivelmente preguiçoso que perdeu completamente o rumo das suas boas intenções e está agora irremediavelmente perdido — ainda assim tem a responsabilidade e a capacidade de pegar toda essa negatividade, circunstâncias adversas e dificuldades e transformá-las no caminho.

Fotos em Unsplash

© 2013 Norman Fischer. Excerto de “Training in Compassion: Zen Teachings on the Practice of Lojong.” Publicado em Lions Roar.

Tradução da responsabilidade do Centro Budista do Porto