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A vida humana em julgamento: o Supremo Tribunal Federal e a lei que permite a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapia PRIMEIRO ARTIGO Alberdan Camili Teles Júnior Maria Penha Sousa Nascimento Valentina Maria Álvarez Catalán Introdução Extrai-se do preâmbulo e do art. 1°, inc. V, da Consti- tuição Federal, a opção da sociedade brasileira por uma democracia pluralista, que reconhece as tensões advin- das das inúmeras e diferenciadas doutrinas religiosas, filosóficas e morais típicas das sociedades contemporâ- neas, nas quais não se afirma um consenso político subs- tantivo abrangente, a alcançar todas as esferas da vida humana. A ausência de um consenso político abrangente é um fato, na medida em que as pessoas possuem visões distintas sobre valores, manifestando divergências radi- cais, especialmente sobre questões que envolvem dile- mas morais profundos.

A Vida Humana Em Julgamento Embriões

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A vida humana em julgamento - embrioes, Estudos Jurídicos, Supremo Tribunal Federal

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  • Direito Informao e Acesso a Documentos Governamentais: breve estudo do Direito canadense

    CAPTULO 1

    Na faciduisim zzriliquis atin vulland ionsed te tin exer in utat nisi tinit wisis nos aliquis dit volessim adigna feugue modit voloreet lam, vo-lobor ipisit accum nons non velit ut lut eu feugiam iniam, quat, conse-quis nos eniatinit ent exeros alis nibh exerci ese magna feugue dit aut niscilisit lorper. To commy nis nibh et praessi tie dolore molore vulla cons ad ming eui

    A vida humana em julgamento: o Supremo Tribunal Federal e a lei que permite a utilizao de clulas-tronco embrionrias em pesquisas e terapia

    PRIMEIRO ARTIGO

    Alberdan Camili Teles JniorMaria Penha Sousa NascimentoValentina Maria lvarez Cataln

    Introduo

    Extrai-se do prembulo e do art. 1, inc. V, da Consti-

    tuio Federal, a opo da sociedade brasileira por uma

    democracia pluralista, que reconhece as tenses advin-

    das das inmeras e diferenciadas doutrinas religiosas,

    filosficas e morais tpicas das sociedades contempor-

    neas, nas quais no se afirma um consenso poltico subs-

    tantivo abrangente, a alcanar todas as esferas da vida

    humana. A ausncia de um consenso poltico abrangente

    um fato, na medida em que as pessoas possuem vises

    distintas sobre valores, manifestando divergncias radi-

    cais, especialmente sobre questes que envolvem dile-

    mas morais profundos.

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    A possibilidade de usar, em pesquisas cientficas e terapia, embries

    no utilizados na fertilizao in vitro, mantidos congelados, constitui exem-

    plo emblemtico da tenso oriunda da diversidade de doutrinas religio-

    sas, filosficas e morais tpicas de uma sociedade plural moderna. Embo-

    ra, a partir da modernidade, a investigao cientfica tenha se revelado

    um trao caracterstico e permanente da experincia humana, no fcil,

    por exemplo, conciliar a permisso das pesquisas cientficas e terapia com

    clulas-tronco embrionrias com o princpio que protege a integralidade

    da vida humana, levando em conta as diversas vises apresentadas no

    debate pblico a respeito do tema, vises divergentes e que se preten-

    dem razoveis, no contexto de uma democracia constitucional pluralista.

    Como se sabe, em meio s controvrsias, a Lei n. 11.105, de 24 de

    maro de 2005, denominada Lei da Biossegurana, por meio do seu art.

    5, autorizou a realizao de pesquisas e terapia com clulas-tronco ex-

    tradas de embries humanos. Contudo, no obstante a opinio favorvel

    da maioria dos representantes legislativos do povo brasileiro, a polmica

    persistiu e o desacordo ensejou a propositura da Ao Direta de Incons-

    titucionalidade (a partir de agora, ADI) n. 3.510 pelo Procurador-Geral da

    Repblica, prosseguindo assim o debate no Supremo Tribunal Federal. A

    ao foi julgada improcedente, mediante argumentos que se propuseram

    a justificar tanto o direito que a Constituio protege como a legitimidade

    do STF para declar-lo, sem menoscabo do regime democrtico, mesmo

    diante do fato de a questo transcender os limites do texto legal e ter sido

    amplamente debatida no Poder Legislativo. A resposta oferecida pelo Po-

    der Judicirio, no curso da recente histria constitucional vivenciada pelo

    Brasil, a partir de 1988, enseja uma srie de questionamentos sobre papel

    e limites de sua atuao, quando chamado a decidir questes de tal en-

    vergadura.

    Posto assim o cenrio da reflexo, a questo norteadora inicial do

    presente texto quanto razoabilidade da resposta dada pela Suprema

    Corte brasileira, na deciso, levando em conta as exigncias de uma de-

    mocracia constitucional pluralista.

    E, ainda que razovel, h de se perguntar, tambm, se os fundamen-

    tos da resposta so oferecidos com respeito aos limites institucionais de-

    mocrticos para atuao do Judicirio constitucional. Certamente a segun-

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    da questo pode ser relacionada primeira, pois os limites democrticos

    de uma instituio no eleita tm a ver com o fato de a representao

    plural dos interesses e vises diversos, no congresso dos legisladores,

    alegadamente permitir o melhor equacionamento de problemas em que

    valores substantivos das partes esto em jogo. Se no por outro motivo,

    pelo simples fato de as partes estarem representadas de maneira ampla.

    Esse costuma ser um aspecto bem destacado por certos tericos da de-

    mocracia deliberativa, quando defendem o princpio da incluso.

    A estratgia de abordagem, no presente artigo, fazer uma anli-

    se dos fundamentos do julgado eleito, com o propsito de se identificar

    pontos de convergncia e/ou divergncia seus com o ideal de justificao

    poltica prprio das democracias constitucionais marcadas pelo fato do

    pluralismo e com a estrutura institucional democrtica de repartio dos

    poderes constitucionais. Isso pode permitir valorizar a deciso em si mes-

    ma, ou revelar alguma inconsistncia de seus fundamentos, em face da

    estrutura mais geral do direito de uma sociedade que se autoproclama

    plural e democrtica.

    1 A controvrsia submetida a julgamento

    1.1 Consideraes iniciais sobre a questo

    A chamada fertilizao in vitro, mtodo de reproduo assistida con-

    sistente na extrao de diversos vulos para serem fecundados por esper-

    matozoides em laboratrio, significou enorme avano para a superao

    da infertilidade conjugal.1 Desse processo resultam embries viveis e

    inviveis, muitos dos quais, por no terem sido aproveitados nos respec-

    tivos procedimentos (embries excedentrios), acabam, ento, perma-

    1 Em meados do sculo XVI foi descoberta a existncia das trompas de falpio; no sculo XVIII foram descobertos os espermatozides; em 1770 descobriu-se a necessidade do contato entre o fludo seminal e o vulo para a fecundao em mamferos; em 1910 foi descoberta a conservao do smen, por resfriamento, fora do organismo; em 1969 foram obtidos embries humanos por fecundao in vitro; em 25 de julho de 1978 nasceu a britnica Louise Joy Brown, o primeiro beb de proveta do mundo; em 1984 nasceu, na Austrlia, o primeiro beb desenvolvido a partir de um embrio criopreservado (congelado); no dia 7 de outubro de 1984 nasceu Ana Paula Caldeira, a primeira brasileira fruto de uma fertilizao in vitro (IORRA, 2008, p. 36).

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    necendo indefinidamente em bancos de congelamento de clnicas e labo-

    ratrios. No Brasil, no ano de 2006, existia nas 150 clnicas de reproduo

    assistida cerca de 10.000 embries nessa situao (VALE, 2006, p. 1).

    Embora as clulas-tronco no sejam encontradas apenas em embries,

    somente estes possuem as clulas-tronco denominadas totipotentes e

    pluripotentes (ou multipotentes), as quais tm a capacidade de se di-

    ferenciar em quaisquer dos 216 tipos de tecidos que compem o corpo

    humano, exceto as ltimas, que no se diferenciam na placenta e nos ane-

    xos embrionrios. Tais clulas, que podem ser extradas at trs semanas

    aps a fecundao, diante da capacidade que possuem, despertaram o

    interesse da comunidade cientfica, que v nelas a possibilidade de cura

    de patologias graves que acometem milhares de brasileiros.2

    A possibilidade de realizao de pesquisas e terapia com clulas-

    tronco embrionrias fez eclodir um intenso debate pblico no Pas, que

    culminou na edio da Lei n. 11.105/2005. Fruto da iniciativa do Presi-

    dente da Repblica, o Projeto de Lei n. 2.401/2003 percorreu um longo

    itinerrio at sua transformao na Lei de Biossegurana, envolvendo

    audincias pblicas, discusses plenrias, sustentaes orais e passa-

    gens por diversas comisses em ambas as Casas congressuais. Ao final,

    restou aprovado mediante expressiva votao: 53 votos a 2, no Senado

    Federal, e 366 a 59, na Cmara dos Deputados, sendo sancionada em 14

    de outubro de 2004.

    No que trata especificamente das pesquisas com clulas-troncos em-

    brionrias, disps a Lei n. 11.105/2005 nos seguintes termos:

    Art. 5. permitida, para fins de pesquisas e terapia, a utilizao de c-

    lulas-tronco embrionrias obtidas de embries humanos produzidos por

    fertilizao in vitro e no utilizados no respectivo procedimento, atendidas

    as seguintes condies:

    2 Dentre as patologias cuja cura pode resultar das pesquisas com clulas embrionrias podem ser citadas, por exemplo, as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose mltipla, as neuropatias e as doenas de neurnio motor, o diabetes, o mal de Parkinson, sndromes diversas (como as mucopolisacaridoses ou outros erros inatos do meta-bolismo). Todas elas constituem doenas graves, que causam grande sofrimento a seus por-tadores. [...] No Brasil, entre 10 a 15 milhes de pessoas tm diabetes; 3% - 5% da populao tm doenas genticas que podem ser congnitas ou ter incio na infncia ou na idade adulta; surgem entre 8.000 e 10.000 novos casos de leso medular por ano (paraplegia e tetraplegia) (BARROSO, 2007, p. 245-246).

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    I sejam embries inviveis; ou

    II sejam embries congelados h 3 (trs) anos ou mais, na data de publi-

    cao desta Lei, ou que, j congelados na data da publicao desta Lei,

    depois de completarem 3 (trs) anos, contados a partir da data de conge-

    lamento.

    1 Em qualquer caso, necessrio o consentimento dos genitores.

    2 Instituies de pesquisa e servios de sade que realizem pesquisas

    ou terapia com clulas-tronco embrionrias humanas devero submeter

    seus projetos apreciao e aprovao dos respectivos comits de tica

    e pesquisa.

    3 vedada a comercializao do material biolgico a que se refere este

    artigo e sua prtica implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n. 9.424, de

    4 de fevereiro de 1997.

    No obstante o contexto de surgimento e de deliberao, o permissi-

    vo legal teve sua constitucionalidade questionada pela Procuradoria-Ge-

    ral da Repblica, por meio da ADI n. 3.510, sob a alegao de ser contrrio

    inviolabilidade do direito vida (CF, art. 5, caput) e ao postulado da

    dignidade da pessoa humana (CF, art. 1, III), eis que, segundo o propo-

    nente da ao, [...] a vida humana acontece na, e a partir da, fecundao

    (BRASIL, 2008-b, p. 10).

    Em sede de informaes, o Presidente da Repblica defendeu a

    constitucionalidade do texto impugnado, enquanto o Chefe do Ministrio

    Pblico Federal, atuando na condio de fiscal do Direito, concluiu pela

    declarao de inconstitucionalidade dos dispositivos legais vergastados.

    O ministro relator, alm de admitir como amigos da corte (amici curiae)

    entidades da sociedade civil brasileira3, convocou a primeira audin-

    cia pblica da histria da Corte Constitucional brasileira, efetivamente rea-

    lizada no dia 20 de abril de 20074. Foram ouvidos diversos especialistas,

    3 Foram admitidas as seguintes entidades: Conectas Direitos Humanos; Centro de Direitos Hu-manos - CDH; Movimento em Prol da Vida - Movitae, Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero - Anis; e Confederao Nacional dos Bispos do Brasil.

    4 A possibilidade de realizao de audincias pblicas pelo STF foi introduzida pela Lei n. 9.868/1999. Segundo o art. 9, 1, deste diploma, em caso de necessidade de esclarecimento de matria ou circunstncia de fato ou de notria insuficincia das informaes existente nos autos, poder o relator requisitar informaes adicionais, designar perito ou comisso de peritos para que emita parecer sobre a questo, ou fixar data para, em audincia pblica, ouvir depoi-mentos de pessoas com experincia e autoridade na matria.

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    contrrios e favorveis realizao de pesquisas com clulas-tronco em-

    brionrias, que expuseram posicionamentos discrepantes sobre o marco

    inicial da vida humana.

    Com esse pano de fundo, o STF finalmente enfrentou a questo, fa-

    zendo as mais diversas consideraes de ordem jurdica, cientfica, polti-

    ca e moral. Neste artigo, importa reconstruir os argumentos centrais lana-

    dos pela Corte para, em seguida, exp-los avaliao, como se props no

    incio. o que se far a partir de agora.

    1.2 Alguns argumentos dos ministros

    O Ministro Carlos Britto, relator do feito, aps realar em sua expo-

    sio preliminar a importncia da admisso dos diversos amici curiae e da

    audincia pblica realizada para o deslinde da controvrsia submetida a

    julgamento, delimitou as duas correntes de opinio envolvidas na causa: a

    primeira, contrria s pesquisas, defendendo que a vida humana comea

    na fecundao e que as clulas-tronco embrionrias no possuiriam vir-

    tualidades superiores s das clulas-tronco adultas; a segunda, favorvel

    aos expedientes cientficos, sustentando que o embrio produzido in vitro,

    embora algo vivo, no se equipararia quele evolvente nas estranhas da

    mulher, ressaltando, ainda, a maior plasticidade das clulas-tronco obti-

    das em embries em relao quelas extradas de clulas adultas.

    No voto propriamente, destacou o ministro a desnecessidade de fi-

    xao do termo inicial da vida. Segundo ele, a questo residiria em saber

    que aspectos ou momentos dessa vida esto validamente protegidos pelo

    Direito, salientando que os embries referidos pela Lei de Biosseguran-

    a, alm de produzidos sem cpula humana, no se fariam acompanhar

    de uma gestao, inexistindo, portanto, interrupo de gravidez. Lembrou

    que o embrio humano a que se reporta o art. 5 da lei constitui-se num

    ente absolutamente incapaz de qualquer resqucio de vida enceflica, es-

    tando o mencionado dispositivo legal em perfeito paralelo com a Lei n.

    9.434/97 e com a Constituio Federal (art. 199, 4). Em arremate, desta-

    cou o compromisso da Constituio-cidad com o direito sade e com

    a Cincia enquanto ordem de conhecimento que se eleva dimenso de

    sistema e garante a livre expresso da atividade cientfica.

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    A Ministra Ellen Gracie, que tambm votou pela improcedncia do

    pedido formulado na ao direta, depois de esquadrinhar as condies

    estabelecidas pela Lei 11.105/2005 para o uso de clulas-tronco embrio-

    nrias em pesquisas e terapia, entendeu que a matria fora disciplinada

    com cautela e razoabilidade, motivo pelo qual no haveria, no permissivo

    vergastado, ofensa dignidade humana. Ademais, a improbabilidade de

    utilizao desses pr-embries (absoluta no caso dos inviveis e altamen-

    te previsvel na hiptese dos congelados h mais de trs anos) na gerao

    de novos seres humanos afastaria, consoante magistrada, a alegao

    de menoscabo do direito vida. Ressaltou, ainda, a aplicao ao caso do

    princpio utilitarista.

    O Ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, considerou deficiente

    o tratamento legislativo dado matria, notadamente no que concerne

    indeterminao do conceito de inviabilidade embrionria e ao grau de

    consentimento dos genitores exigido pela lei. Enfatizou a importncia do

    estabelecimento de limites ticos e jurdicos atuao cientfica, alertan-

    do quanto a possveis interesses econmicos subjacentes s pesquisas

    em debate. Tais limites, de acordo com o ministro, evitariam a coisifica-

    o ou reificao do homem. Ao final, votou pela procedncia parcial do

    pedido deduzido na inicial para, sem reduo do texto, conferir norma

    os ajustes que entendeu necessrios.

    A Ministra Crmen Lcia teceu, inicialmente, algumas consideraes

    sobre a legitimidade do tribunal para julgar a causa. No mrito, aduziu

    que, considerando a impossibilidade de os embries referidos na lei

    transformarem-se em vida, seja porque no implantados em um tero,

    seja porque inviveis ou congelados por tempo superior ao estabelecido

    na norma, no caberia falar em vida, nem em direito que pudesse ser

    violado. Assim, concluiu que as clulas-tronco embrionrias deveriam ser

    tidas como uma das substncias humanas que a Constituio da Rep-

    blica, em seu art. 199, 4, permite a manipulao visando ao progresso

    cientfico da humanidade e melhoria da qualidade de vida dos povos.

    Somando-se aos que votaram pela improcedncia da postulao

    ministerial, o Ministro Joaquim Barbosa assinalou, em suas colocaes

    preliminares, que a lei hostilizada resultou de [...] debate social prprio

    de questes dessa natureza, que o Congresso Nacional, afirmando

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    que a norma respeitava os trs primados fundamentais da Repblica:

    a laicidade do Estado brasileiro (CF, art. 19, inc. I), traduzida tambm

    no respeito liberdade de crena e religio (art. 5, inc. VI); o respeito

    liberdade, na sua vertente de autonomia privada (art. 5, caput); e o

    respeito liberdade de expresso da atividade intelectual e cientfica

    (art. 5, inc. IX). A seu ver, o permissivo legal traduziria opo que alia a

    proteo da vida num sentido mais amplo e coletivo, conciliando-a com

    o desenvolvimento cientfico.

    O Ministro Eros Grau, em sentido anlogo s formulaes de Lewan-

    dowski, alertou para a existncia de interesses mercadolgicos entre os

    defensores das pesquisas em causa. Em seguida, com base em disposi-

    tivos da lei civil5, asseverou que o embrio, no sentido literal da palavra

    (ser em processo de desenvolvimento vital), faz parte do gnero hu-

    mano, de maneira que as pesquisas em comento afrontariam o direito

    vida e dignidade humana. Todavia, lembrou que, no contexto da Lei n.

    11.105/2005, embrio vulo fecundado fora de um tero, marginaliza-

    do, portanto, do processo de desenvolvimento vital. Firme nesse funda-

    mento, entendeu que nestes embries no haveria vida nem dignidade a

    serem protegidas. No obstante essa concluso, o magistrado defendeu

    considerando a amplitude da permisso veiculada pelos preceitos

    sindicados (permisso concedida sob mnimas reservas), a necessidade

    de o Supremo estabelecer limites s pesquisas autorizadas pela Lei de

    Biossegurana, implementados mediante a prolao de deciso aditiva.

    Ao seu turno, pontificou o Ministro Cezar Peluso que a vida um pro-

    cesso, em que o ser se move sem a interferncia de estmulos externos.

    No entanto, tal procedimento no ocorreria com o embrio congelado,

    porquanto no inserido em tero materno. Assim, para o Ministro, [...] a

    fixao do vulo fecundado na parede uterina condio sine qua non de

    seu desenvolvimento ulterior e, como tal, constitui critrio de definio

    do incio da vida, concebida como processo ou projeto. No obstante o posi-

    cionamento de que o embrio congelado no tem vida, o ministro susten-

    5 O ministro referenciou, expressamente, os arts. 2, 542, 1.621, 1.798 e 1.799, todos do Cdigo Civil de 2002, dando especial realce ao primeiro dos dispositivos, segundo o qual a personalidade civil da pessoa comea do nascimento com vida; mas a lei pe a salvo, desde a concepo, os direitos do nascituro.

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    tou que o fato de ser matria-prima capaz de originar um ser humano lhe

    conferiria dignidade.

    O Ministro Marco Aurlio, de plano, afianou a impropriedade do em-

    prego da tcnica de interpretao conforme ao caso em exame, pois que,

    alm de ausentes seus pressupostos (texto legal ambguo e ditame consti-

    tucional de alcance incontroverso), haveria o risco de o STF assumir o papel

    de legislador positivo. No mrito, assentou que o legislador ordinrio teria

    disciplinado a questo com zelo, ressaltando o sentido de solidariedade

    expresso na norma que autorizou as pesquisas com clulas embrionrias ao

    fomentar o avano cientfico na descoberta de cura para diversas doenas.

    Ofertou voto pela improcedncia do pedido formulado na inicial.

    O Ministro Gilmar Mendes, ao prolatar o ltimo voto do julgamen-

    to, destacou, inicialmente, a legitimidade da deciso tomada pela Corte,

    aduzindo que a admisso dos diversos amici curiae, a audincia pblica

    realizada, bem como a interveno do Ministrio Pblico e das advocacias

    pblica e privada, fizeram do STF um espao democrtico, aberto re-

    flexo e argumentao jurdica e moral. Tambm afastou a necessidade

    de fixar o incio o fim da vida humana. Para ele, a questo consistiria em

    saber, luz do princpio da proporcionalidade, se a Lei 11.105/2005 teria

    regulado a matria com a prudncia exigida por um tema tica e juridi-

    camente complexo, que envolve diretamente a prpria identidade huma-

    na. Aps comparar o texto impugnado com a legislao anloga de outros

    pases, reputou deficiente o tratamento conferido pela lei brasileira s

    pesquisas, mas assentou que a declarao da inconstitucionalidade da

    norma ensejaria vcuo normativo mais danoso ordem jurdica e social,

    propondo fosse ela interpretada conforme a Constituio.

    1.3 Sntese da controvrsia

    Como exibidos, os argumentos dos ministros repercutem posicio-

    namentos divergentes anteriores, que se pretendiam verdadeiros, mas

    sem indicativo de consenso. Cincia, religio, filosofia, tica e moral

    confrontaram-se novamente, depois do debate pblico anteriormente

    travado no colgio de representantes legislativos. Para a indagao, pro-

    funda e controversa, sustentavam posicionamentos divergentes. Quan-

    do se inicia a vida?

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    Para os concepcionistas, a simples fuso dos gametas masculinos e

    femininos independentemente da viabilidade do ser concebido, do

    modo e do ambiente onde isso ocorra suficiente para o surgimento

    da vida, a qual no pode ser sacrificada em benefcio da coletividade.

    Nesse sentido, a retirada de clulas-tronco de embries consistiria numa

    espcie de aborto, violando, a mais no poder, o direito vida e digni-

    dade humana. A essa corrente filiou-se a maior parte dos grupos religiosos

    brasileiros.6

    Para outros, contudo, o termo inicial da vida humana coincide com

    a nidao, ou seja, com a fixao do vulo fecundado no tero da mulher

    (sexto ou stimo dia aps a concepo). Somente neste instante, identifi-

    cado, tecnicamente, como o incio da gravidez, surge a real possibilidade

    do embrio tornar-se pessoa humana, razo por que haveria plena compa-

    tibilidade entre as referidas pesquisas e o direito integralidade da vida.

    De acordo com uma terceira vertente, a vida somente tem incio com

    o surgimento do sistema nervoso central, que ocorre por volta do dcimo

    quarto dia aps a fecundao. Como os embries disciplinados pela Lei n.

    11.105/2005 tiveram seu processo de desenvolvimento interrompido em

    momento anterior quele lapso temporal, no haveria ofensa ao direito

    vida nas pesquisas com clulas-tronco.

    Vale registrar, finalmente, a posio natalista, pela qual o embrio

    constitui apenas parte das vsceras maternas, sem desfrutar, ainda, da

    condio de pessoa. O ser humano, segundo eles, surge apenas com o

    nascimento com vida. Tambm por esta viso restariam infirmadas as ale-

    gaes contrrias aos expedientes cientficos em anlise.

    6 Conforme registra Barroso (2007, p. 251), esta a posio defendida pela Congregazione per la Dottrina della Fede. No documento intitulado Il rispetto della vita umana nascente e La dignit della procreazione, de 1987, tal entendimento afirmado: Assim, o fruto da gerao humana, a partir do primeiro mo-mento de sua existncia, isto , a partir do primeiro momento em que o zigoto formado, exige o respeito incondicional que moralmente devido ao ser humano em sua totalidade corporal e espiritual. O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa a partir do momento da concepo; e ento, a partir do mesmo momento, seus direitos como uma pessoa devem ser reconhecidos, dentre os quais, em primeiro lugar, o direito inviolvel de todo ser humano inocente vida. Esta lembrana doutrinria prev o critrio fundamental para soluo de vrios problemas levantados pelo desenvolvimento das cincias biomdicas neste campo: como o embrio deve ser tratado como uma pessoa, deve ser tambm defendido em sua integridade, cuidado e protegido, mxima extenso possvel, da mesma forma que qualquer outro ser humano no que se refere assistncia mdica. [...]

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    Nessa quadra, ficou o STF diante de controvrsia que parecia recla-

    mar a definio do incio da vida, com a difcil misso de explicitar os

    princpios de justia que todas as doutrinas religiosas, filosficas e morais

    razoveis pudessem aceitar, apesar de suas posies divergentes.

    No caso, alm de dizer que descabia para soluo da controvrsia

    a definio do incio da vida, o tribunal afirmou que os embries de que

    trata a lei impugnada no se equiparam ao nascituro. Assentou, ademais,

    que a norma tal como legislativamente disposta , respeitava o laicismo

    do Estado, a autonomia privada do casal sobre o embrio e suas convic-

    es morais e religiosas, a solidariedade intergeracional, o direito sade

    e a livre expresso da atividade cientfica.

    Todos esses pontos foram referenciados pelos ministros do STF, va-

    lendo o esforo de tentar responder s seguintes indagaes, a partir da

    reconstruo daqueles argumentos: considerando a exigncia de razoa-

    bilidade do poder estatal em uma sociedade pluralista, resolveu bem a

    Suprema Corte a controvrsia submetida a julgamento? E ainda que se

    possa concordar quanto razoabilidade do pronunciamento judicial, os

    argumentos do julgado enfrentaram adequadamente o problema, do pon-

    to de vista democrtico-institucional? Estas questes exigem algumas no-

    tas prvias sobre a razo pblica em uma sociedade pluralista e sobre a

    diviso de competncias entre os Poderes, no Estado democrtico.

    2 Razo pblica em uma sociedade pluralista

    A visualizao de uma sociedade pluralista dada pela descrio de

    duas organizaes polticas: uma comunidade na qual a fidelidade a uma

    doutrina religiosa, filosfica ou moral abrangente uma condio de per-

    tena plena; outra sociedade na qual no existe consenso abrangente e,

    sendo seus membros livres e iguais, o projeto nacional envolve o com-

    promisso de expressar essa liberdade igual no arranjo de instituies e

    escolhas coletivas.7 A descrio em destaque feita por Joshua Cohen, ao

    pontuar que a sociedade pluralista se insere na segunda ordem. Cohen

    7 Uma doutrina expressa uma viso de mundo e da vida de uns com os outros. abrangente quan-do se refere vida como um todo (RAWLS, 2000).

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    elabora a distino em texto a favor da democracia deliberativa como a

    forma de legitimao do poder poltico mais condizente com o tipo de

    diferenciao humana apreendida no fato do pluralismo razovel o fato

    de que h concepes de valor distintas, incompatveis, cada uma razo-

    vel, segundo as quais as pessoas se sentem sob condies favorveis para

    o exerccio de sua razo pblica. (COHEN, 2007, p. 116).

    Se na sociedade pluralista os cidados livres e iguais esto profun-

    damente divididos por doutrinas religiosas, filosficas e morais confli-

    tantes e at incompatveis, Cohen defende uma verso de democracia

    deliberativa, cuja parte essencial no o voto, mas a exigncia de ra-

    zes que outros a serem governados possam aceitar. O autor no acei-

    ta que a legitimidade democrtica do poder estatal, a partir da igual

    considerao dos interesses de cada membro, decorra simplesmente

    de ter sido a deciso autorizada pelo voto. O debate deliberativo deve

    tomar a melhor deciso, a partir de razes que possam contar com apro-

    vao de todos.

    Essa verso de democracia descrita por Cohen, que pe em foco o

    ideal de justificao poltica mediante argumentao pblica livre entre

    iguais, em uma sociedade pluralista, tem manifesta origem na concep-

    o poltica de justia defendida por John Rawls. Como se sabe, para

    Rawls, o fato do pluralismo razovel uma caracterstica permanen-

    te das sociedades democrticas contemporneas, nas quais convivem

    doutrinas religiosas, filosficas e morais abrangentes que, embora ra-

    zoveis, so incompatveis entre si. Em tais sociedades, uma doutrina

    abrangente, ainda que razovel, no pode garantir a base da unidade

    social, nem oferecer o contedo da razo pblica sobre questes pol-

    ticas fundamentais. Alm de essa no ser uma alternativa razovel, os

    conflitos seriam insolveis.

    A ideia de razo pblica a chave da concepo poltica de justia

    descrita por Rawls, tendo aplicao exatamente nas questes que envol-

    vem elementos constitucionais essenciais e questes de justia bsica, ou

    seja, questes da estrutura bsica de uma sociedade pluralista:

    A razo pblica caracterstica de um povo democrtico: a razo de seus

    cidados, daqueles que compartilham o status da cidadania igual. O objeto

    dessa razo o bem do pblico: aquilo que a concepo poltica de justi-

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    a requer da estrutura bsica das instituies da sociedade e dos objeti-

    vos e fins a que devem servir. Portanto, a razo pblica pblica em trs

    sentidos: enquanto a razo dos cidados como tais, a razo do pblico:

    seu objeto o bem do pblico e as questes de justia fundamental; e

    sua natureza e conceitos so pblicos, sendo determinados pelos ideais

    e princpios expressos pela concepo de justia poltica da sociedade e

    conduzidos vista de todos sobre essa base. (RAWLS, 2000, p. 261-262)

    De acordo com interpretao corrente, a razo pblica segundo Rawls

    prescreve que a argumentao poltica apele unicamente para as crenas

    gerais e para as formas de argumentao aceitas no momento presente e

    encontradas no senso comum, e para os mtodos e concluses da cin-

    cia, quando estes no so controvertidos (SOUZA NETO, 2006, p. 115).

    E mais: o ideal de razo pblica deve guiar os trs Poderes em seus atos

    e pronunciamentos sobre questes que envolvam elementos constitu-

    cionais essenciais e de justia bsica. Fora dessas hipteses, at haveria

    espao para as maiorias parlamentares decidirem de acordo com determi-

    nada doutrina abrangente, ainda que essa possibilidade no se estenda

    ao Judicirio constitucional, pois:

    [...] os juzes tm de explicar e justificar suas decises como decises ba-

    seadas em sua compreenso da constituio, de estatutos e precedentes

    relevantes. Como os atos do legislativo e do executivo no precisam ser

    justificados dessa maneira, o papel especial do tribunal faz dele um caso

    exemplar de razo pblica (RAWLS, 2000, p. 265).

    Comentando a concluso de Rawls sobre a imprescindibilidade da

    razo pblica no exerccio da jurisdio constitucional, afiana Souza Neto:

    Para que a jurisdio constitucional seja exercida sem comprometer a

    cooperao social, os juzes no podem invocar sua prpria moralidade

    particular; no podem recorrer, ao justificarem suas decises, a vises

    religiosas ou filosficas. O fundamento das decises judiciais deve se

    limitar aos valores polticos que os magistrados julgar fazer parte do en-

    tendimento mais razovel da concepo pblica e de seus valores pol-

    ticos de justia e razo pblica. Tais valores so aqueles que todos os

    cidados razoveis e racionais endossem. Essa restrio faz do Judicirio

    um caso exemplar de razo pblica. Por isso, a corte constitucional har-

    moniza-se com a ideia de democracia constitucional dualista. Ao aplicar

    a razo pblica, o tribunal evita que a lei seja corroda pela legislao

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    de maiorias transitrias ou, mais provavelmente, por interesses estreitos,

    organizados e bem posicionados, muito hbeis na obteno do que que-

    rem. (SOUZA NETO, 2006, p. 121-122).

    A ideia de razo pblica em uma sociedade constitucional pluralis-

    ta, portanto, fornece a base da legitimidade do poder poltico em geral,

    poder esse que se traduz no uso da coero, no sendo razovel e nem

    factvel sustentar tal legitimidade em uma doutrina abrangente. No seria

    razovel, pois significaria menosprezo das outras doutrinas abrangentes,

    caracterizando, dessa forma, violao clara ao princpio da igualdade. No

    haveria justia. No seria factvel, porque os conflitos decorrentes do pri-

    vilgio seriam insolveis, como ensina a histria. No haveria estabilida-

    de social, a sociedade no seria possvel.

    Insistindo: numa sociedade democrtica, a razo pblica a razo de

    cidados iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder poltico

    final e coercitivo sobre os outros, ao promulgar leis e emendar a Consti-

    tuio. Aplica-se aos elementos constitucionais essenciais e s questes

    de justia bsica, quando os cidados atuam na argumentao poltica no

    frum pblico a respeito desses temas. Sendo razoveis e racionais, os

    cidados devem assim atuar, ou seja, devem estar dispostos a explicar a

    base de suas aes uns para os outros em termos que cada qual razoavel-

    mente espere que outros possam aceitar, por serem coerentes com a li-

    berdade e igualdade dos cidados (RAWLS, 2000, p. 263-267). As questes

    de justia bsica tm a ver com a estruturao das principais instituies

    polticas, sociais e econmicas da sociedade, como um sistema unificado

    de cooperao social. J os elementos constitucionais essenciais se tra-

    duzem nos princpios fundamentais que especificam a estrutura geral do

    Estado e do processo poltico e nos direitos e liberdades fundamentais e

    iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem respeitar (RAWLS,

    2000, p. 277).

    As decises judiciais que tratam dos elementos constitucionais es-

    senciais, em uma sociedade pluralista, dessa maneira, tambm devem

    apelar para razes pblicas, e no para razes no pblicas. Haveria um

    comprometimento da cooperao social, por violao da justia (igualda-

    de) e risco de desintegrao, se a discusso sobre os elementos consti-

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    tucionais apelasse para doutrinas religiosas e filosficas abrangentes. A

    integrao social justa apenas se torna possvel com a justificao poltica

    do poder coercitivo ancorada na razo pblica.

    Essas ideias oferecem diretrizes importantes para o exame de de-

    liberaes sobre questes fundamentais em uma sociedade pluralista,

    como pode ser visualizada a deliberao sobre a utilizao de embries

    humanos em pesquisas e terapias. E sobre tal ponto se voltar mais

    adiante. Antes, porm, algumas notas prvias sobre a democracia e o

    problema que surge com a previso de controle judicial de constitucio-

    nalidade das leis.

    3 Controle judicial de constitucionalidade e democracia

    Como j se disse, a propositura da ADI 3.510 colocou o STF diante

    de uma questo extremamente complexa. Afora a multiplicidade de as-

    pectos envoltos na causa (jurdicos, religiosos, cientficos, ticos e mo-

    rais), havia, ainda, um ponto institucional em discusso: a legitimida-

    de do tribunal para sindicar a deciso poltica substantiva tomada pelo

    Congresso Nacional, num contexto de profundo e genuno desacordo

    moral na sociedade.

    Como se proclama, em um regime democrtico todo o poder ad-

    vm do povo, que constitui, a um s tempo, fundamento e destinatrio

    da atuao estatal. O povo , simultaneamente, autor e destinatrio do

    direito. A Constituio de 1988 incorpora expressamente esta ideia ao

    estabelecer em seu art. 1 que o Brasil um Estado Democrtico de Di-

    reito, para dispor, logo em seguida, que todo o poder emana do povo,

    que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos

    termos nela previstos.

    No adimplemento do mnus da representao popular, compete ao

    Parlamento a feitura das normas que devem reger a vida em sociedade.

    Como bem o disse Conrado Hbner Mendes, a democracia se apropriou

    do Parlamento para ecoar e concretizar a soberania popular, seu principal

    fundamento ideolgico (MENDES, 2008, p. 21). Nesse sentido, a institui-

    o parlamentar um espao pluralstico por excelncia, a sede natural

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    de discusso e equacionamento dos diversos anseios, concepes e pro-

    posies conflitantes jacentes na tessitura social.

    A constatao de que as leis derivam de uma atividade que expressa

    o exerccio da prpria soberania popular causa certo estranhamento quan-

    do se verifica a possibilidade de um tribunal, composto por membros no

    eleitos, invalidar as decises congressuais insertas na legislao. Tal pos-

    sibilidade, de acordo com o referido autor, [...] soa incompatvel com a

    premissa [...] segundo a qual numa democracia decidimos em conjunto,

    respeitando a igual autonomia e status de todos os cidados (MENDES,

    2008, p. XXV).

    Com efeito, o controle judicial de constitucionalidade das leis tem

    sido identificado por parte dos tericos do direito constitucional como

    algo essencialmente traumtico em um regime democrtico. Expresses

    como dificuldade contramajoritria (Alexander Bickel ) e paradoxo da

    democracia constitucional (Frank I. Michelman) procuraram dar conta

    das implicaes poltico-institucionais que circunscrevem a prtica da

    reviso judicial.

    De um modo geral, a defesa do controle jurisdicional de constitu-

    cionalidade fundamentada nas ideias de supremacia constitucional e

    proteo de direitos fundamentais. Argumenta-se que no seria pruden-

    te deixar ao completo arbtrio dos legisladores, indivduos movidos por

    paixes e egosmos, a resoluo de questes relacionadas a direitos e

    princpios. Haveria, nesta hiptese, sempre o risco de serem desrespei-

    tados os direitos de minorias, de instalao de uma tirania da maioria. A

    Constituio seria inelutavelmente desfigurada.

    Nesta ordem de ideias, somente com o estabelecimento de um me-

    canismo rgido de fiscalizao do labor legislativo, executado por indiv-

    duos distanciados da vida poltica ordinria e no sujeitos s presses

    populares, poder-se-ia assegurar a observncia dos direitos e garantias

    fundamentais do cidado e, por conseguinte, da prpria Carta Poltica. A

    reviso judicial seria, nesse diapaso, o corolrio institucional imediato

    (MENDES, 2008, p. 10).

    As cores lgubres com que foram pintadas a legislao verificveis

    em descries nas quais a atividade legislativa aparece como negociata,

    troca de favores, manobras de assistncia mtua, intriga por interesses

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    e procedimentos eleitoreiros serviram, consoante Waldron, para en-

    dossar e dar credibilidade ideia de reviso judicial das leis. o que,

    observa o autor, construmos [...] um retrato idealizado do julgar e o

    emolduramos junto com o retrato da m fama do legislar (WALDRON,

    2003, p. 2). E prossegue:

    [...] As pessoas se convenceram de que h algo indecoroso em um siste-

    ma no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos polticos e

    tomando suas decises com base no governo da maioria, tem a palavra

    final em questes de direito e princpios. Parece que tal frum con-

    siderado indigno das questes mais graves e mais srias dos direitos

    humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento pare-

    ce ser que os tribunais, com suas perucas e cerimnias, seus volumes

    encadernados de couro e seu relativo isolamento ante a poltica parti-

    dria, seriam um local mais adequado para solucionar questes desse

    carter. (WALDRON, 2003, p. 5).

    Mas haveria realmente razes profundas para sustentar a viso gene-

    ralizada a que se refere Waldron? Que motivos levam a crer que os magis-

    trados seriam pessoas especialmente vocacionadas proteo de direitos

    e, os legisladores, indivduos incapazes de transcender os prprios inte-

    resses? Guilherme Soares oferece uma descrio interessante do pensa-

    mento daqueles que identifica como crticos da teoria constitucional:

    [...] A teoria constitucional quer justificar o controle judicial de constitucio-

    nalidade das leis por ser esta uma forma de evitar o arbtrio do legislador,

    ou das maiorias populares, que tendem a deliberar preocupados exclusi-

    vamente com seus prprios interesses. Mas, se esse egosmo, que inspira

    um mecanismo judicial de conteno, algo intrnseco ao indivduo liberal,

    no h razo para imaginar que os juzes, indivduos liberais tanto quanto

    quaisquer outros cidados, sero menos egostas e orientados pelos pr-

    prios interesses do que todas as outras pessoas. (SOARES, 2006, p. 95).

    De fato, a prpria histria parece oferecer elementos concretos des-

    favorveis a essa viso messinica 8 do controle judicial de constitucio-

    nalidade das leis. Em Dred Scott v. Sanford, por exemplo, a Suprema Corte

    8 O adjetivo foi empregado por Conrado Hbner Mendes na obra Controle de constitucionalidade e democra-cia. Para o autor, a verso messinica do controle jurisdicional de constitucionalidade est presente em descries nas quais a prtica da reviso judicial identificada como ltima trincheira do cidado, a reserva de justia da constituio, dentre outras. (MENDES, 2008, p. XXVI).

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    Americana invocou a clusula do devido processo legal (due process of law9)

    para invalidar o Missouri Compromise Act, uma lei que assegurava aos es-

    cravos, em situaes especficas, o direito liberdade. No caso, a Corte

    entendeu que a aplicao do referido estatuto possibilitaria que um cida-

    do, o proprietrio do escravo, fosse privado de seus bens e de sua pro-

    priedade, o escravo, sem o devido processo legal. Alm disso, o tribunal

    afirmou que, na condio de escravo, Dred Scott no possua legitimidade

    para pleitear em juzo sua liberdade.

    Tendo em conta esse cenrio complicado, alguns sustentam que o

    controle judicial de constitucionalidade das leis configura uma prtica an-

    tidemocrtica, pois possibilitaria a uma minoria no eleita (portanto, no

    representativa) invalidar as decises tomadas pela maioria democratica-

    mente escolhida, os representantes legislativos. Permitir aos juzes revi-

    sar as decises substantivas do Parlamento seria, nessa ordem de ideias,

    subestimar o status igualitrio dos cidados, com srio risco de substitui-

    o da soberania popular pela judicial.

    Para outros, contudo, este no seria o entendimento mais adequado

    do problema. A visualizao do controle de constitucionalidade das leis

    como uma manifestao antidemocrtica decorreria da confuso entre de-

    mocracia e majoritarismo. Democracia, nessa perspectiva, no poderia ser

    definida apenas em termos procedimentais, reduzida simples regra da

    maioria ( premissa majoritria, no dizer de Dworkin). Pelo contrrio. Uma

    compreenso adequada exigiria a insero de elementos substantivos, que

    a colocasse igualmente dependente de procedimentos e resultados.

    A alocao de vetores substantivos na definio de democracia ser-

    viria de contrapeso deliberao cruamente majoritria, impedindo que

    uma deciso fosse reputada democrtica somente pelo fato de ter sido

    tomada pela maioria dos participantes. Estes vetores substantivos, de-

    nominados por Dworkin de condies democrticas, corresponderiam

    exigncia de igual respeito e considerao totalidade de cidados.

    9 Amendment 5 (Ratified 12/15/1791) No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases a rising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of live, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken in public use, without just compensation. (UNITED STATES, 2008, p. 28).

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    A adoo de uma compreenso diferenciada e abrangente de demo-

    cracia, que abraa, simultaneamente, procedimento e substncia, afas-

    taria a mcula antidemocrtica atribuda jurisdio constitucional. No

    seria legtimo objetar, em nome da democracia, procedimentos capazes

    de assegurar o status igualitrio dos cidados, pois este seria, justamente,

    uma condio de realizao do prprio regime. Nas palavras de Dworkin:

    [...] A democracia um governo sujeito s condies podemos cham-las

    de condies democrticas de igualdade de status para todos os cida-

    dos. Quando as instituies majoritrias respeitam as condies demo-

    crticas, os veredictos dessas instituies, por esse motivo mesmo, devem

    ser aceitos por todos. Mas quando no o fazem, ou quando essa garantia e

    esse respeito mostram-se deficientes, no se pode fazer objeo alguma,

    em nome da democracia, a outros procedimentos que garantam e respei-

    tem as condies democrticas. (DWORKIN, 2006b, p. 26-27).

    O problema, entretanto, atine ao fato de que nem sempre (e princi-

    palmente nos chamados casos difceis) o desrespeito s condies de-

    mocrticas apresenta-se de modo bem evidente10. Ao revs: as especifi-

    caes e exigncias concretas de determinadas clusulas constitucionais

    (vida, dignidade humana e igualdade, por exemplo) costumam suscitar

    profundas divergncias, sobretudo em sociedades pluralistas, como a

    brasileira. Para repetir, assim se encara o caso das pesquisas com clulas-

    tronco embrionrias, por exemplo.

    Estas circunstncias, de um modo geral, tm resultado num conselho

    em que juzes, ao exercerem o controle de constitucionalidade das leis,

    assumam uma atitude de deferncia em relao ao legislador, reservando

    a declarao de inconstitucionalidade para casos extremos, nos quais a

    ofensa aos postulados republicanos (condies democrticas) seja pa-

    tente e ostensiva. Esta postura de conteno especfica evitaria que a sin-

    dicncia judiciria, a pretexto de salvaguardar valores constitucionais, im-

    10 Dworkin no ignora este fato. Para esta objeo, responde o autor: [...] claro que pode haver desacordo quanto a saber quais so, na realidade, as condies democrticas, e quanto a saber se uma determinada norma as ofende ou no. Mas, de acordo com a concepo constitucional, no teria cabimento levantar-se objees, sob a alegao de que tal prtica seria antidemo-crtica, a que a deciso final acerca dessas condies fosse reservada a um tribunal; isso no teria cabimento porque essa objeo parte do princpio de que as leis em questo respeitam as condies democrticas, e exatamente este o assunto que est em questo(DWORKIN, 2006b, p. 27).

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    plicasse mera substituio do juzo legislativo pela compreenso da Corte

    Suprema sobre a matria julgada (MENDONA, 2007).

    Sem embargo de toda a polmica que o tema encerra, a continui-

    dade do artigo levar em conta essa advertncia da teoria constitucional

    contempornea, conquanto o conselho, como se observa, no resulta em

    abdicar da competncia de reviso judicial das leis e dos atos normativos.

    No Brasil, alis, o poder de reviso judicial expresso, consoante dispe

    a letra do art. 102 da Constituio da Repblica. O que se deve assumir,

    para as finalidades deste artigo, que o melhor desenho institucional de

    um Estado constitucional pluralista h de considerar o dficit democrtico

    do controle judicial de constitucionalidade, exigindo atitude de defern-

    cia do tribunal e ampla cooperao e dilogo entre todos os Poderes, na

    escrita e reescrita da histria constitucional (SOARES, 2006).

    4 Razo pblica e legitimidade democrtica no julgado

    4.1 Quando tem incio a vida humana?

    As discusses travadas a partir da ADI 3.510 giraram, preponderan-

    temente, em torno do direito vida e da dignidade da pessoa humana,

    defendidos tanto por aqueles que se manifestaram favoravelmente au-

    torizao concedida pela Lei n. 11.105/2005, quanto pelos que se firmaram

    em sentido contrrio. Para a maioria dos participantes do debate, a ques-

    to essencial para o desfecho da controvrsia consistia na identificao

    do termo inicial da existncia humana. Identificado este marco, bastaria

    apenas confront-lo com a opo vazada no permissivo legal impugnado,

    para a aferio de sua compatibilidade com a Lei Maior. Mas seriam as

    coisas to simples assim?

    A resoluo da causa por meio da delimitao do incio da vida hu-

    mana encontra sua primeira dificuldade na apresentao do dispositivo

    ou do conjunto de preceitos magnos veiculadores desta resposta. Vale

    dizer, se o juzo de constitucionalidade e a questo resume-se reve-

    lao do ponto de partida da existncia humana, seria no prprio texto

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    constitucional, e no em qualquer outro documento, que tal momento

    deveria ser identificado.

    Ocorre que, quanto ao termo inicial da vida humana, no exato trocadi-

    lho formulado pelo Ministro Ayres Britto, a Constituio foi de um silncio

    de morte (BRASIL, 2008b, p. 32). No h dvidas de que o constituinte

    reservou ao direito vida um status privilegiado. Foi o primeiro direito fun-

    damental a ser enunciado na Carta Poltica, pondo-se, tal como normativa-

    mente disposto e ontologicamente concebido, como centro de gravidade

    de uma srie de outros direitos de idntica envergadura. Entretanto, no

    que toca ao preciso instante de irrompe do viver humano, nada disseram

    os mentores da Carta.

    Como bem acentuou o Ministro Gilmar Mendes, ao se referir aos mar-

    cos inicial e final da vida humana,

    [...] so questes transcendentais que pairam no imaginrio humano des-

    de tempos imemoriais e que nunca foram resolvidas sequer com relati-

    vo consenso. Cincia, religio e filosofia construram sua prpria histria

    em torno de conceitos e concepes sobre o que a vida, quando ela

    comea e como deve ser ela protegida. Como todo desenvolvimento do

    pensamento e do conhecimento humano, no possvel vislumbrar qual-

    quer resposta racionalmente aceitvel de forma universal, seja pela cincia

    ou pela religio, seja pela filosofia ou pelo imaginrio popular. (BRASIL,

    2008b, p. 467-468).

    Assim, qualquer manifestao do tribunal no sentido de fixar o mo-

    mento inicial da vida humana, dentre as mltiplas concepes existen-

    tes, no poderia se reputar, com franqueza intelectual, produto de uma

    interpretao aceitvel. Seria simplesmente uma escolha, qui arbitr-

    ria. E, como disse a Ministra Ellen Gracie, logo aps constatar o mesmo

    silncio a que fez referncia o relator, [...] no papel desta Suprema

    Corte estabelecer conceitos que j no estejam explcita ou implicita-

    mente plasmados na Constituio Federal. No somos uma Academia de

    Cincias (BRASIL, 2008b, p. 81).

    Sem embargo desta primeira dificuldade (inexistncia de uma defi-

    nio constitucional do incio da vida humana), h ainda outra, relativa

    apresentao de uma resposta estatal de tal natureza no mbito de uma

    comunidade onde no existe consenso abrangente, ou seja, em uma co-

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    munidade com vises divergentes sobre o incio da vida (seo 1.3), que

    se pretendem razoveis e reclamam a mesma considerao e respeito.

    Afirmar judicialmente como verdade este ou aquele marco inicial da vida

    seria uma imposio indevida no contexto de uma sociedade pluralista

    democrtica e, portanto, incompatvel com a razo pblica.

    Ademais, o fato de inexistir consenso sequer no meio cientfico acer-

    ca do incio da vida indica a impossibilidade de estabelecer uma ideia

    que venha a ser compartilhada por todos, valendo lembrar que a razo

    pblica, segundo Rawls, prescreve que a argumentao poltica ape-

    le unicamente para as crenas gerais e para as formas de argumentao

    aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os

    mtodos e concluses da cincia, quando estes no so controvertidos

    (SOUZA NETO, 2006, p. 115).

    Acertada, pois, a deciso da Corte de desprezar a discusso sobre o

    incio da vida. E o acerto se revela ainda maior quando se observa que foi

    colocado no centro do debate o que realmente est na base das vises

    diferenciadas a respeito do problema: o valor intrnseco da vida humana.

    possvel defender que essa a razo comum aceita pelos usurios da

    tcnica de fertilizao in vitro, pelos possveis beneficirios da pesquisa

    com os embries excedentes e tambm por aqueles contrrios aos expe-

    dientes cientficos.

    Com efeito, essa razo o mvel dos que buscam a prpria fertiliza-

    o, da pretendida pesquisa com os embries excedentes e mesmo do

    receio da coisificao da vida humana. Elucidativas, neste ponto, as pala-

    vras do Ministro Gilmar Mendes:

    Independentemente da concepo que se tenha sobre o termo inicial da

    vida, no se pode perder de vista e isso parece ser indubitvel diante de

    qualquer posicionamento que se adote sobre o tema que, em qualquer

    hiptese, h um elemento vital digno de proteo jurdica. [...] Assim, a

    questo no est em saber quando, como e de que forma a vida humana

    tem incio ou fim, mas como o Estado deve atuar na proteo desse orga-

    nismo pr-natal diante das novas tecnologias, cujos resultados o prprio

    homem no pode prever. (BRASIL, 2008b, p. 468-469).

    Irrecusvel a circunstncia de o direito oferecer diferentes nveis de

    proteo aos diversos estgios da biologia humana. Este resguardo jurdi-

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    co diferenciado transparece de forma visvel na esfera infraconstitucional,

    sobretudo na seara criminal, em que se distinguem (inclusive com repri-

    mendas diversas) os crimes de aborto, infanticdio e homicdio. Tambm

    a fixao de delitos contra o respeito aos mortos, com penas significativa-

    mente menores, pe-se como demonstrativo desta tutela discriminada

    que o direito empresta ao evolver humano.

    Ainda sobre a constatao de que o direito protege, sim, por modo

    variado cada etapa do desenvolvimento biolgico do ser humano, lem-

    brou o relator o pensamento de Ronald Dworkin, exposto no livro Dom-

    nio da Vida. Nesta obra, o jusfilsofo americano, tomando a opinio dou-

    trinria sobre o aborto, leva compreenso de que devem ser buscados

    os pressupostos independentes e no as ideias derivativas para melhor

    apreenso das opinies sobre assuntos conflitantes:

    A opinio doutrinria religiosa sobre o aborto ser mais bem apreendida

    se entendermos que a vida humana tem por base o pressuposto inde-

    pendente de que a vida humana tem valor intrnseco, e no a ideia de-

    rivativa de que o feto uma pessoa com interesses e direitos prprios.

    (DWORKIN, 2009, p. 70).

    Assim, na discusso sobre o aborto, eutansia e pesquisa com em-

    bries humanos, por exemplo, tem-se como pressuposto independente

    o valor intrnseco da vida humana, princpio este compartilhado de for-

    ma abrangente pela comunidade jurdica, a partir do qual podem ser

    resolvidas tais questes. Diante do valor intrnseco da vida humana, no

    pode o embrio ser simplesmente instrumentalizado, sendo certo que

    a resistncia pesquisa, a exemplo da constatao de Dworkin sobre o

    aborto, remete irresponsabilidade de pr fim a uma vida humana sem

    uma justificao realmente importante (DWORKIN, 2009, p. 81).

    4.2 A compatibilidade entre a permisso das pesquisas e as concepes divergentes

    A ideia de que a vida humana experimenta diferentes nveis de tu-

    tela, de que o Magno Texto Federal no faz de todo e qualquer estdio

    da vida humana um autonomizado bem jurdico (BRASIL, 2008b, p. 3),

    conduz seguinte indagao: teria o legislador ordinrio regulamenta-

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    do, de maneira razovel, a realizao das pesquisas com clulas-tronco

    embrionrias, outorgando proteo compatvel com a dignidade e o va-

    lor intrnseco prprios do organismo vital que constitui o objeto desses

    experimentos?

    A despeito das divergncias que a questo suscitou, a maioria dos mi-

    nistros do STF entendeu que a matria fora disciplinada adequadamente,

    sem violao ao direito vida e dignidade da pessoa humana, uma vez

    que, embora vida humana, os embries no gerariam qualquer pessoa hu-

    mana, seja porque no implantados em um tero, seja porque inviveis ou

    congelados por tempo superior ao estabelecido na norma impugnada.

    Com efeito, depreende-se do permissivo legal impugnado11 a preocu-

    pao de viabilizar a realizao das pesquisas, sem menosprezo ao valor

    intrnseco da vida humana, e tambm de deixar espao para a convivncia

    pacfica das opinies divergentes. Assim, vedou-se a comercializao dos

    embries, imps-se obrigao s instituies de pesquisa e servios de

    sade de submeterem seus projetos aprovao dos respectivos comits

    de tica e pesquisa, permitindo fossem utilizados somente os embries

    inviveis ou congelados h trs anos ou mais, e exigindo, em qualquer

    caso, o consentimento dos genitores.

    Alm de terem sido preservados embries que pudessem evoluir

    para pessoa humana na hiptese de serem implantados no tero materno

    preservao que decorre de se permitir pesquisas apenas com aqueles

    embries considerados inviveis ou congelados por lapso temporal igual

    ou superior a trs anos , exigiu-se o cumprimento de outra condio: o

    consentimento dos genitores dos embries excedentrios. A exigncia de

    11 Art. 5. permitida, para fins de pesquisas e terapia, a utilizao de clulas-tronco embrionrias obtidas de embries humanos produzidos por fertilizao in vitro e no utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condies:

    I sejam embries inviveis; ou II sejam embries congelados h 3 (trs) anos ou mais, na data de publicao desta Lei, ou que,

    j congelados na data da publicao desta Lei, depois de completarem 3 (trs) anos, contados a partir da data de congelamento.

    1 Em qualquer caso, necessrio o consentimento dos genitores. 2 Instituies de pesquisa e servios de sade que realizem pesquisas ou terapia com clulas-

    tronco embrionrias humanas devero submeter seus projetos apreciao e aprovao dos respectivos comits de tica e pesquisa.

    3 vedada a comercializao do material biolgico a que se refere este artigo e sua prtica implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n. 9.424, de 4 de fevereiro de 1997.

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    consentimento, combinada com a opo pela permisso (a letra do dis-

    positivo comea com permitida), e no proibio ou imposio da uti-

    lizao das clulas-tronco embrionrias em pesquisa e terapia, preserva

    a liberdade dos diversos grupos em divergncia para autorizar, ou no, o

    uso do embrio em pesquisas e terapias, de acordo com sua concepo

    de bem, que envolve, no caso, o valor intrnseco da vida humana.

    Para alguns grupos, esse valor impede a experimentao cientfica

    com qualquer forma de vida humana, ainda que embrionria. Para ou-

    tros, porm, a forma embrionria de vida humana tem valor, mas no ao

    ponto de impedir a pesquisa que tem a finalidade de descobrir as novas

    formas de terapia para enfermidades graves que ameaam e pem fim a

    vidas humanas estruturadas, de pessoas que fizeram longo investimento

    em suas histrias e escolhas significativas para si, para outros e para a co-

    munidade como um todo.

    Andou bem, portanto, o legislador, ao colocar no plano da discricio-

    nariedade de cada casal a deciso fundamental sobre a doao, ou no,

    dos embries resultantes da fertilizao in vitro. Sem proibir nem impor

    tal conduta, mas simplesmente permiti-la, a norma investe na autonomia

    privada, sobrevalorizando a capacidade de deliberao moral dos dife-

    rentes integrantes da comunidade poltica. Esta dimenso da norma foi

    contemplada nos argumentos apresentados por diversos integrantes do

    STF, sendo assim desenvolvida pelo Ministro Joaquim Barbosa:

    A conjugao da laicidade do Estado e do primado da autonomia privada

    conduz a uma importante concluso: os genitores dos embries produzi-

    dos por fertilizao in vitro, tm a sua liberdade de escolha, ou seja, a sua

    autonomia privada e as suas convices morais e religiosas respeitadas

    pelo dispositivo ora impugnado. Ningum poder obrig-los a agir de

    forma contrria aos seus interesses, aos seus sentimentos, s suas ideias,

    aos seus valores, sua religio, e sua prpria convico acerca do mo-

    mento em que a vida comea. Preservam-se, portanto, a esfera ntima

    reservada crena das pessoas e o seu sagrado direito liberdade. (BRA-

    SIL, 2008-b, p. 334-335).

    A autonomia jurdica do casal para escolher livremente o destino dos

    embries por eles produzidos coloca em destaque

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    [...] o poder do sujeito de auto-regulamentar seus prprios interesses, de

    autogoverno de uma esfera jurdica, e tem como matriz a concepo do

    ser humano como agente moral, dotado de razo, capaz de decidir o que

    bom e ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com

    estas escolhas, desde que elas no perturbem os direitos de terceiros nem

    violem outros valores relevantes da comunidade. Ela importa o reconheci-

    mento que cabe a cada pessoa, e no ao Estado ou a qualquer outra insti-

    tuio pblica ou privada, o poder de decidir os rumos de sua prpria vida,

    desde que isso no implique em leso a direitos alheios. [...]. (SARMENTO

    apud BRASIL, 2008b, p. 333-334).

    Esta concepo do ser humano como agente capaz de deliberar mo-

    ralmente, de realizar as escolhas estruturantes de seu prprio projeto

    espiritual, sendo por elas responsvel, alm de compor a base que in-

    forma todos os direitos fundamentais, vincula-se de forma estreita ao

    direito ao planejamento familiar, estampado no art. 22612 da Carta Pol-

    tica sobre os postulados da dignidade humana e da paternidade res-

    ponsvel. este direito que, sendo fruto da livre deciso do casal e

    exercitado mediante fomento estatal com recursos educacionais e cien-

    tficos, autoriza os indivduos incapacitados de conceberem filhos pelo

    mtodo natural a recorrer s tcnicas humanas de reproduo assistida,

    sem lhes obrigar, por outro lado, ao aproveitamento da integralidade de

    embries gerados. Colhe-se, a propsito, o seguinte excerto contido na

    ementa do julgado:

    A deciso por uma descendncia ou filiao exprime um tipo de autono-

    mia de vontade individual que a prpria Constituio rotula como direito

    ao planejamento familiar, fundamentado este nos princpios igualmente

    constitucionais da dignidade da pessoa humana e da paternidade res-

    ponsvel. [...] A opo do casal por um processo in vitro de fecundao

    artificial de vulos implcito direito de idntica matriz constitucional, sem

    acarretar para este casal o dever jurdico do aproveitamento reprodutivo

    de todos os embries eventualmente formados e que se revelem geneti-

    camente viveis. O princpio fundamental da dignidade da pessoa humana

    12 Art. 226. A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado. [...] 7 - Fundado nos princpios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsvel, o planejamento fa-miliar livre deciso do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cient-ficos para o exerccio desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituies oficiais ou privadas.

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    opera por modo binrio, o que propicia a base constitucional para um casal

    de adultos recorrer s tcnicas de reproduo assistida que incluam a fer-

    tilizao artificial ou in vitro. De uma parte, para aquinhoar o casal com o

    direito pblico subjetivo liberdade (prembulo da Constituio e seu

    art. 5), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para

    contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles

    optar o casal, com planejadas condies de bem-estar e assistncia fsico-

    afetiva (art. 226 da CF). [...] O recurso a processos de fertilizao artificial

    no implica o dever da tentativa de nidao no corpo da mulher de todos

    os vulos afinal fecundados. No existe tal dever (inc. II do art. 5 da CF),

    porque incompatvel com o prprio instituto do planejamento familiar

    na citada perspectiva da paternidade responsvel. Imposio, alm do

    mais, que implicaria tratar o gnero feminino por modo desumano ou de-

    gradante, em contrapasso ao direito fundamental que se l no inc. II do art.

    5 da Constituio. [...]. (BRASIL, 2008b, p. 5-6).

    Estampa-se, pois, perfeita sintonia entre a permisso para utilizar re-

    feridos embries e a permisso para a reproduo assistida e consequen-

    te impossibilidade de compelir a mulher a utilizar todos os embries. Am-

    bas as permisses denotam a neutralidade estatal, a ideia de tolerncia

    e a valorizao da autonomia da pessoa, que deve assumir a responsa-

    bilidade no s pela ao de submeter-se reproduo assistida, mas

    tambm pelo excedente de embries da resultantes e sua destinao.

    Assim, diante das possveis alternativas oferecidas pela questo pro-

    fundamente controversa, o Legislativo valorizou aquela possvel de acei-

    tao por todos os sujeitos razoveis a serem governados pela deciso.

    No caso, impor, obrigar ou proibir a utilizao dos embries seria uma

    escolha indevida no contexto da democracia pluralista, pois representaria

    a adeso a uma especfica viso abrangente, mediante a imposio coati-

    va de uma concepo acerca do bem, a exemplo do que seria a fixao do

    marco inicial da vida.

    Inevitvel concluir que, no contexto de uma democracia pluralista,

    no poderia ser outra a deciso do Estado seno deixar espao de liber-

    dade para que cada qual resolva se vai permitir que o embrio originado

    de seu proceder anterior seja usado em pesquisas cientficas. O que o

    Estado pode, como o fez, impor regras para controle das pesquisas e

    para garantir que cada qual possa livremente decidir sobre a autorizao.

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    A resposta pblica em questo profundamente controversa como a

    destacada reclama independncia das doutrinas religiosas, filosficas e

    morais abrangentes, pois vital para a ideia de liberalismo poltico que

    possamos, sendo perfeitamente coerentes, afirmar que no seria poss-

    vel empregar o poder poltico para impor nossa prpria viso abrangen-

    te, que devemos, no h dvida, defender como razovel ou verdadeira

    (RAWLS, 2000, p. 184). Como bem lembrou o Ministro Joaquim Barbosa:

    [...] o melhor caminho para a proteo do direito vida, em seus diversos e

    diferentes graus, uma legislao consciente e a existncia de rgos do-

    tados de competncia tcnica e normativa para implement-la, fiscalizan-

    do efetivamente a pesquisa cientfica no pas. A proibio tout court da pes-

    quisa, no presente caso, significa fechar os olhos para o desenvolvimento

    cientfico e para os eventuais benefcios que dele podem advir, bem como

    significa dar uma resposta tica unilateral para uma problemtica que en-

    volve tantas questes ticas e to diversas reas do saber e da sociedade.

    (BRASIL, 2008b, p. 341).

    Observa-se, finalmente, que o STF mostrou, argumentativamente,

    que a permisso em referncia est norteada pela razo pblica de uma

    sociedade pluralista como a consagrada pela Constituio brasileira, po-

    dendo ser exibida, diante da controvrsia em destaque, como a base co-

    mum razovel para o acordo poltico que permite conciliar o fato do plu-

    ralismo com a legitimidade mais ampla do poder coativo do Estado. Uma

    deciso baseada em certa crena religiosa no teria essa fora, significan-

    do, antes, a imposio dos valores de uns sobre todos.

    4.3 O julgamento pelo STF: entre Hrcules e Pilatos

    O fato do desacordo moral razovel, evidenciado em todo o contexto

    de aprovao da Lei n. 11.105/2005 at o ajuizamento da ADI 3.510, soma-

    do inequvoca resposta dada pelo legislador brasileiro polmica ques-

    to das pesquisas com clulas-tronco embrionrias, agravaram a tarefa do

    STF, demandando-lhe a apresentao de uma resposta capaz de ser sus-

    tentada no apenas em termos de razoabilidade pblica, mas igualmente

    defensvel do ponto de vista democrtico-institucional.

    A questo da legitimidade democrtica foi suscitada de forma ex-

    pressa por Lus Roberto Barroso, advogado de um dos amici curiae ad-

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    mitidos na ao. Segundo o causdico, o tribunal deveria levar em con-

    ta que a lei impugnada resultou de amplo processo de discusso no

    Congresso Nacional, tendo sido aprovada por expressiva maioria em

    ambas as Casas legislativas. Assim, no se legitimaria a atuao contra-

    majoritria do Supremo, que deveria abster-se de substituir a deciso

    do legislador pela sua.

    A arguio de Barroso foi enfrentada pela Ministra Crmen Lcia, logo

    em suas consideraes iniciais:

    Finalmente, Senhor Presidente, e ainda como observao preliminar, a se

    tomar no apenas quanto a esse, mas em relao a qualquer julgamento

    de controle abstrato de constitucionalidade, preocupa-me o que foi aqui

    afirmado por um dos timos advogados que assomaram a tribuna, na ini-

    cial desse julgamento. Segundo o que anotei nas alegaes lanadas na

    tribuna, afirmou um dos eminentes procuradores, que, no presente julga-

    mento, no teria muito a fazer este Supremo Tribunal, pois no haveria um

    vazio legislativo sobre a matria. A questo resumir-se-ia na indagao que

    poderia ser assim traduzida: que legitimidade teria o Poder Judicirio para

    afirmar inconstitucional uma lei que o Poder Legislativo votou, o povo quer

    e a comunidade cientfica apia?

    No Estado Democrtico de Direito, os Poderes constitudos desempenham

    a competncia que lhes determinada pela Constituio. No exerccio

    de poder, cumprimento de dever. Ademais, no imagino que um cidado

    democrata cogite querer um juiz-Pilatos dois mil anos depois de Cristo ter

    sido crucificado porque o povo assim queria. Emoo no faz direito, que

    a razo transformada em escolha jurdica. Quantos Cristos a humanidade j

    no entregou segundo emoes populares momentneas? E quem garante

    quem ser o prximo, que poder sofrer uma injustia, evitada pelo que

    o leigo, s vezes, considera ou apelida ser apenas uma firula legal? [...]

    (BRASIL, 2008-b, p. 195-196).

    As ponderaes da ministra merecem algumas reflexes. Em primei-

    ro lugar, no h dvidas de que, no sistema jurdico-constitucional bra-

    sileiro, compete ao STF a realizao do controle concentrado de consti-

    tucionalidade das leis e atos normativos. O art. 102 da Carta de Outubro

    claro ao instituir o Tribunal como seu legtimo guardio. Mas definir a

    quem cabe a guarda diz muito pouco, ou quase nada, sobre a forma e os

    limites de seu exerccio.

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    Em segundo lugar, a circunstncia de que num Estado constitucional

    democrtico no apenas o Judicirio, mas todos os demais Poderes devem

    respeitar e promover a Constituio, conduz a seguinte indagao: estaria

    sendo realmente Pilatos o juiz constitucional que, ao sindicalizar as leis em

    face das clusulas abstratas da Constituio, considerasse a deliberao le-

    gislativa como algo digno de relevncia? O juiz que enxergasse na delibera-

    o legislativa comprometida um desestmulo a uma atuao mais ativista

    estaria, de fato, lavando as mos quanto ao seu mister constitucional?

    A argumentao sustentada pela Ministra Crmen Lcia enviesa

    pelo seguinte argumento encontrado na teoria constitucional: ao realizar

    o controle de constitucionalidade das leis, a Corte Suprema poria termo

    ao potencial homicida do legislador presente em momentos de exaltao

    popular. Manteria inclumes os sagrados valores constitucionais em face

    do mpeto tirnico do Parlamento. Mas, at que ponto seria verdadeiro

    sustentar que a deliberao promovida pelo Congresso Nacional, no pro-

    cesso de aprovao da Lei n. 11.105/2005, expressa uma deciso tomada

    segundo emoes populares momentneas?

    Conforme j enunciado, o processo legislativo que culminou na edi-

    o da Lei de Biossegurana foi precedido de amplos debates em ambas

    as Casas congressuais, nos quais tiveram vez e voz diversos segmentos

    sociais, polticos, cientficos, religiosos e filosficos. O qurum qualificado

    com que foi aprovado o estatuto particularmente raro em temas de ta-

    manha conflituosidade indica no um conluio dos congressistas, mas um

    consenso resultante da deliberao poltica responsvel.

    Seja como for, a ideia de conteno judicial presente na atitude que

    a Ministra Crmen Lcia associou jurisdio de Pilatos foi igualmente

    rechaada pelo Ministro Gilmar Mendes ao acentuar que:

    [...] a aparente onipotncia ou o carter contramajoritrio do Tribunal Cons-

    titucional em face do legislador democrtico no pode configurar subterf-

    gio para restringir as competncias da Jurisdio na resoluo de questes

    socialmente relevantes e axiologicamente carregadas de valores funda-

    mentalmente contrapostos. (BRASIL, 2008-b, p. 464).

    Segundo ele, as Cortes Constitucionais, chamadas a dirimir controvrsias

    de tais naturezas, [...] tm exercido suas funes com exemplar desenvoltu-

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    ra, sem que isso tenha causado qualquer ruptura do ponto de vista institucio-

    nal e democrtico (BRASIL, 2008b, p. 464), destacando, ainda, que:

    Em nossa realidade, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo questes

    importantes, como a recente afirmao do valor da fidelidade partidria

    (MS n. 26.602, 26.603 e 26.604), sem que se possa cogitar que tais questes

    teriam sido melhor decididas por instituies majoritrias, e que assim te-

    riam maior legitimidade democrtica. (BRASIL, 2008-b, p. 465).

    Para Mendes, a deliberao judicial sobre questes socialmente re-

    levantes e axiologicamente carregadas de valores fundamentalmente con-

    trapostos no deve ser objetada com o argumento de que os integrantes

    da Corte so desprovidos de representatividade. O mnus da representa-

    o popular, consoante o magistrado, compete tambm ao Tribunal, em-

    bora de forma diversa daquela exercida pelos legisladores: o parlamento

    representa o cidado politicamente, o tribunal constitucional argumenta-

    tivamente (BRASIL, 2008-b, 466).13

    A tese da representatividade argumentativa apresenta a virtude de

    destacar a dimenso discursiva prpria da jurisdio constitucional, reve-

    lando-a como um espao particularmente receptivo a questes de prin-

    cpios. Neste ponto, a tese forte e acentua, sem dvida, uma verdade

    constatvel a olho nu. O problema que, para sustentar a representati-

    vidade da corte constitucional, a teoria investe em um ponto que, a rigor,

    13 Trata-se de compreenso extrada pelo ministro dos ensinamentos do constitucionalista alemo Robert Alexy. Confira-se: O princpio fundamental: Todo poder estatal origina-se do povo exige compreender no s o parlamento, mas tambm o tribunal constitucional como representao do povo. A representao ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidado po-liticamente, o tribunal argumentativamente. Com isso, deve ser dito que a representao do povo pelo tribunal constitucional tem um carter mais idealstico do que aquela pelo parlamento. A vida cotidiana do funcionamento parlamentar oculta o perigo de que maiorias se imponham desconsi-deramente, emoes determinem o funcionamento, dinheiro e relaes de poder dominem e sim-plesmente sejam cometidas faltas graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal no se dirige contra o povo seno, em nome do povo, contra seus representantes polticos. Ele no s faz valer negativamente que o processo poltico, segundo critrios jurdico-humanos, fracassou, mas tam-bm exige positivamente que os cidados aprovem os argumentos do tribunal se eles aceitarem um discurso jurdico-constitucional racional. A representao argumentativa d certo quando o tri-bunal constitucional aceito com instncia de reflexo do processo poltico. Isso o caso, quando os argumentos do tribunal encontram eco na coletividade e nas instituies polticas, conduzem a reflexes e discusses que resultam em convencimentos examinados. Se um processo de reflexo entre coletividade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza duradouramente, pode-se falar de uma institucionalizao que deu certo dos direitos do homem no estado constitucional demo-crtico. Direitos fundamentais e democracia esto reconciliados (ALEXY, 1999, p. 55-56).

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    no seria necessrio para justific-la: a existncia de deficincias no pro-

    cesso legislativo.

    No caso especfico da Lei de Biossegurana, por exemplo, justificar

    a atuao da Corte Constitucional brasileira como contraponto s mazelas

    e distrofias do processo de deliberao parlamentar no poderia ser feita

    sem certa dose de falsidade de propsitos. O Congresso Nacional, como

    j assinalado, debateu exaustivamente a matria regulamentada, realizou

    audincias pblicas, ouviu especialistas e entidades da sociedade civil e,

    ao final, exprimiu sua deciso mediante um qurum surpreendente.

    No se descuida do fato de que mesmo decises expressivamente

    majoritrias podem, eventualmente, veicular escolhas atentatrias a di-

    reitos e liberdades fundamentais, disfarando, sob o vu de um forjado

    consenso, preferncias polticas sem espao, numa sociedade comprome-

    tida com o igual respeito e dignidade de seus integrantes. Todavia, no

    correto presumir, no contexto de uma democracia constitucional, que

    este tipo de situao ocorra sempre. Desvios institucionais existem, e no

    devem ser omitidos. Mas empreg-los como razo e fundamento ltimos

    da atividade da corte suprema amesquinhar em muito o significado e

    relevo da jurisdio constitucional.

    A deliberao legislativa comprometida, notadamente quando leva-

    da a efeito em situaes de profundo desacordo moral, deve significar

    um dado relevante para o exerccio do controle de constitucionalidade

    das leis. A glosa judicial no pode desprezar este fato, sob pena de grave

    violao harmonia que deve presidir as relaes entres os Poderes de

    um Estado constitucional democrtico. Expressivos, neste diapaso, os

    comentrios tecidos pelo Ministro Marco Aurlio, a propsito do julga-

    mento da ADI 3.510:

    Devem-se colocar em segundo plano paixes de toda ordem, de maneira

    a buscar a prevalncia dos princpios constitucionais. Opinies estranhas

    ao Direito por si ss no podem prevalecer, pouco importando o apego

    a elas por aqueles que as veiculam. O contexto alvo de exame h de ser

    tcnico-jurdico, valendo notar que declarao de inconstitucionalidade

    pressupe sempre conflito flagrante da norma com o Diploma Maior, sob

    pena de relativizar-se o campo de disponibilidade, sob o ngulo da con-

    venincia, do legislador eleito pelo povo e que em nome deste exerce o

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    poder legiferante. [...] Somente em situaes extremas, nas quais surge, ao

    primeiro exame, a falta de proporcionalidade, pode-se adentrar o mbito

    do subjetivismo e exercer a glosa. No caso, a lei foi aprovada mediante

    placar acachapante 96% dos Senadores e 85% dos Deputados votaram a

    favor, o que sinaliza a razoabilidade. (BRASIL, 2008, p. 407-408).

    O mesmo ministro que afirmou o carter extraordinrio da declara-

    o de inconstitucionalidade das leis e atos normativos, apontando que o

    expressivo qurum de aprovao da Lei n. 11.105/2005 sinalizaria razoabi-

    lidade no trato da matria, afastou com veemncia a proposta de aplica-

    o ao caso da tcnica de interpretao conforme, sugerida pelo Ministro

    Menezes Direito. que, segundo Marco Aurlio, haveria [...] o risco de, a

    tal ttulo, redesenhar-se a norma em exame, assumindo o Supremo, con-

    trariando e no protegendo a Constituio, o papel de legislador positivo

    (BRASIL, 2008-b, p. 405).

    Argumentos veiculadores de conteno judicial foram proferidos

    tambm pelo Ministro Joaquim Barbosa. Este, logo aps assinalar que

    no caberia ao Tribunal delimitar o momento inicial da existncia huma-

    na, mas, sim, verificar se exceo ao direito vida consubstanciada no

    dispositivo impugnado seria ou no compatvel com os princpios cons-

    titucionais, iniciou seu inventrio de razes pela improcedncia da ao,

    ressaltando que a lei vergastada [...] foi fruto de debate social no mbito

    prprio de discusso de questes dessa natureza que o Congresso Na-

    cional (BRASIL, 2008-b, p. 330).

    Perceptvel, portanto, que a questo da legitimidade democrtica

    no passou ao largo das discusses travadas no STF no julgamento da ADI

    3.510. Pelo contrrio. Tanto os atos de instruo probatria (realizao de

    audincia pblica, admisso de amici curiae etc.) como os votos dos minis-

    tros demonstraram a preocupao da Corte em apresentar uma resposta

    institucionalmente defensvel, sem qualquer pretenso de menoscabo

    do labor legislativo. Entre argumentos vocacionados defesa de uma ati-

    tude hermenutica mais proativa e afirmaes reveladoras de conteno

    judicial, entre Hrcules e Pilatos, transpareceu o propsito do Tribunal de

    proferir um veredicto fundado em razes publicamente aceitveis e ajus-

    tado s exigncias decorrentes da repartio de competncias de compe-

    tncias no Estado constitucional democrtico.

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    Consideraes finais

    Nas sociedades democrticas contemporneas, marcadas pela hetero-

    geneidade e complexidade, seus membros no compartilham uma mesma

    ideia substantiva acerca do bem. Como no h democracia sem pluralismo,

    compete s instituies polticas democrticas garantir e respeitar a convi-

    vncia de doutrinas religiosas, filosficas e morais razoveis, em suas deci-

    ses, especialmente em situaes de profundo desacordo moral.

    A Constituio brasileira de 1988, marco de reencontro da Nao com

    a democracia, consagrou a democracia pluralista (prembulo e art. 1, V),

    rompendo com consensos abrangentes, o que, de