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A VIDA SOCIAL DO CARNAVAL DE SALVADOR OPERANDO PEDAGOGIAS DE
RESSENTIMENTO
Alex Valadares Freitas Colégio Antônio Vieira - RJE
Jose Teixeira Neto – Zelão Colégio Antônio Vieira - RJE
Nessa análise articulamos a perspectiva cidade educadora (Bonafé), pedagogias culturais do
tempo presente (Camozzato Costa, Andrade e Sarlo), insurgências curriculares (Teixeira
Neto), vida social das coisas (Appadurai) e ressentimentos (Nietzsche e Ferro) como
possibilidade de currículos vivos e aprendências para além das escolas para problematizar o
carnaval de Salvador e seus significados possíveis. Propomos a possibilidade de pensarmos e
problematizarmos essa festa como currículo vivo, insurgente, de ambivalências promotor de
entretenimento, exclusão e ressentimentos.
Quais pedagogias estão em operação nesse megaevento soteropolitano? Como se engendra o
processo de atribuição de valor a esse objeto que o torna mercadoria desejada? Para além de
reduzi-lo a razões econômicas há que se pensar nas dimensões sociais, históricas, políticas e
culturais que implicam humanos, coisas e contextos. Para problematizar esses engendramentos
como possibilidades de currículo vivo dentro e para além da educação escolar, propomos pensar
que as coisas são providas de uma história e de uma biografia social que pode transpor regimes
de valor distintos compreendidos em suas tramas de circulação. No caso do carnaval de
Salvador, analisando sua história compósita nesse movimento, podemos constatar uma
construção de processos de exclusão e ressentimentos para além das alegrias proporcionadas
pela “terra da felicidade”.
Problematizamos esse evento e suas movimentações ritualísticas e políticas compreendendo
instituídos e instituintes no espaço da festa, desvelando ordens onde impera um caos pulsante
produtor de uma névoa de empreendedorismo promissor sazonal que encobre uma brutal
violência social. A mega festa momesca de Salvador pode ser uma síntese de engendramentos
sociais segregadores que instauram lentes inebriantes que desvanecem olhos de incluídos e
excluídos como um megaevento que, por um flanco, solicita a excelência de um planejamento
dos sempre empreendedores da cidade, constituindo laços íntimos entre a festa e a ordem
urbana, laços visíveis entre a montagem e a desmontagem da cidade, privatizando e loteando o
espaço público para sua apropriação com expertise e tecnologia. E, por outro, a movencia e
mobilização de um exército de ambulantes, sobreviventes que deixando os subúrbios e o interior
numa espécie de êxodo dos guetos com suas famílias, ocupam de forma débil e precária, as
calçadas e encostas do entorno da folia rompendo a invisibilidade social que os naturalizam na
maior parte do ano.
Mais do que entretenimento propulsor de oportunidades para artistas, produtores, técnicos
administradores, comerciantes, ambulantes, foliões baianos e não baianos e de arrecadação de
divisas para a cidade, mais do que o fetiche e a vida própria que essa festa adquire ao longo de
sua história e dos usos que fazemos dela, esse mega evento momesco pratica política
segregadora, diversionista, que promove alijamentos, ressentimentos. É sobre essas últimas
questões que nos interessamos e problematizamos nesse ensaio.
O Carnaval de Salvador configura-se em uma das maiores festas de rua do Brasil e subverte a
cada ano o espaço urbano de uma das maiores metrópoles brasileiras. Ao mesmo tempo,
dissimula os fluxos de uma cidade alheia aos seus próprios “filhos”. Parece, assim, ressuscitar
os versos do inesquecível Gregório de Matos “Senhora Dona Bahia, nobre, e opulenta cidade,
madrasta dos Naturais, e dos Estrangeiros madre. Dizei-me por vida vossa, em que fundais o
ditame de exaltar, os que aí vêm, e abater, os que ali nascem?” A cidade cede o seu fluxo para
uma negócio de bilhões – blocos, ricos camarotes e uma polícia que maltrata quem não é
convidado “vip”. O olhar de exclusão reverbera ressentimento e daqueles que estão à margem
e não usufruem amplamente da festa. O poder público omisso, uma elite de entretenimento,
alheios às demandas da Salvador cotidiana implantam palco de uma representação de contrastes
dos modelos urbanos de um país em sobressaltos, que se eterniza em produzir rancor para o
cidadão da periferia, sem camarote e sem bloco.
Toma-se quase que 100% do espaço físico da rua, ocupam todo o espaço sonoro, pois com um
trio elétrico potente, ninguém consegue ouvir mais nada a um quilômetro de distância e ocupam
também o espaço visual da cidade, a decoração de rua também é definida no loteamento as
cidade entre poder público e patrocinadores (ALBERGARIA, 2012).
Uma festa com teias complexas e ambivalentes tecnologias culturais que operam a forja de
sujeitos, e o mais grave, operam redes de ressentimentos para quem não pode consumir o
pertencimento a esses significados de ‘festa da alegria’ oferecido pelos engendramentos das
empresas que os financiam e do poder público que o organiza e engendra em detrimento de
eternas demandas, sempre urgentes da cidade (SARLO, 2009). Uma sociedade já criticamente
recortada entre pobreza e riqueza, nitidamente, sem lugar pleno para aceitar qualquer
ambiguidade. A vida constrói-se simplesmente diante do lado do qual se encontra o folião,
dentro ou fora da corda. Uma democracia mascarada, sem espanto, visto que todos já sabem
previamente o seu lugar, numa estridente hiearquização.
A administração pública da cidade de Salvador, através dos seus prefeitos, transformou uma
festa popular em negócio. Característica incoercível da lógica do capital – que converte
absolutamente tudo em dinheiro ou investimento – foi aplicada ao carnaval com o intuito de
gerar receitas, postos de empregos, visitas turísticas, crescimento do comércio, enfim (RAMOS,
2015). Não se trata de viver em uma Cuba revolucionária e destruir as formas produtivas da
economia. Claro que existe um sistema produtivo bastante rentável, produtor de empregos e
renda para a cidade. O turista deixa muito dinheiro na cidade. Mas os grandes volumes de
dinheiro não alcançam a todas as mãos, pelo menos as mais pobres. Os grandes grupos de
entretenimento aliam-se ao poder público e fazem uma grande festa autofágica.
O Carnaval de Salvador tem cor
Pragmatismo Político: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/03/segregacao-carnaval-de-salvador.html
Contradição perversa a seu destino desejado de instituições democráticas destinadas ao
interesse público, à justiça e à qualidade de vida dos cidadãos, o carnaval enseja uma profunda
e totalitária manifestação de autoritarismo, espelho de uma poderosa via de exclusão. A cidade,
em seus desenhos perversos, procura camuflar na festa as fraturas do chão de seu território e o
cotidiano precário da população. Não há lugar pra diversidade, a festa não consegue suprimir a
hierarquização que permeia todo o tecido social.
Como se engendra o processo de atribuição de valor a esse artefato cultural que o torna
mercadoria? Para além de reduzi-lo a razões econômicas há que se pensar nas dimensões
sociais, históricas, políticas e culturais que implicam humanos, coisas e contextos. Como
podemos pensar essa complexidade como possibilidades de currículo vivo dentro e para além
da educação escolar? Propomos pensar nessa articulação que as coisas são providas de uma
história e de uma biografia social que pode transpor regimes de valor distintos compreendidos
em suas tramas de circulação. No caso do carnaval de Salvador, analisando sua história
compósita nesse movimento, podemos constatar uma construção de processos de exclusão e
ressentimentos para além das alegrias proporcionadas pela “terra da felicidade”.
Um dos diálogos que propomos para os argumentos dessa análise se dá com a antropologia de
Arjun Appadurai (2008). Provoca-nos para pensar como artefatos culturais reivindicam
pertencimento a uma determinada cultura contraindo significados, tornando-se agentes nos
espaços onde circulam. Inspirados nesse antropólogo propomos uma análise biográfica do
O carnaval de salvador tem exclusão
Luana Trinchão: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1034521606624443&set=a.138218526254760.35496.100001998392618&type=3&theater
Carnaval de Salvador para pensarmos como ele se altera de uma festa popular, aberta, a um
evento mercantilizado, controlado por marcas poderosas no mercado, fechado, possível a quem
pode consumi-lo a alto custo e como ele define uma baianidade soteropolitana através de táticas
de comunicação e de mercado que proporcionam sua implicação operante nos engendramentos
da invenção, da criação da cultura baiana.
Os sentidos de terra da felicidade atribuído à Bahia e à Salvador estão articulados às suas
manifestações populares, religiosas, e principalmente, ao carnaval onde estão em disputa
significados de identidades e de mestiçagem. Artistas, celebridades, bandas, festas
preparatórias, trios elétricos, imagens de multidões aglomeradas pelas vias, sorrindo,
expressando felicidade e prazer, geralmente com latinhas de cerveja, panorâmicas de camarotes,
detalhes do que é oferecido nesses ambientes elaborados paradisiacamente e mais latinhas de
cerveja, a vinculação com outros tantos produtos, a mundialização da festa, nos ajudam a ter
compreensão da metamorfose dessa festa popular, em especial, O Maior carnaval do Planeta.
Essa perspectiva antropológica permite analisarmos significados sociais dos bens materiais e
marcas que adquirem vida social em sociedades contemporâneas. Temos de considerar que
tanto pessoas, quanto artefatos possuem uma história biográfica, centrando o olhar nas coisas
trocadas e não nos movimentos das trocas, revelando as maneiras de circulação dos artefatos
em múltiplos regimes de valor no espaço/tempo. Os significados dos artefatos estão implicados
em suas formas, nos usos que fazemos deles, em suas itinerâncias. Interessa aqui elucidar
operações que atribuem vida a eles (Appadurai, 2013, p. 17). Dessa maneira os artefatos
culturais podem ser compreendidos como receptores/produtores de valores inferindo que
artefatos e pessoas produzem significados nas interações sociais (RIBEIRO, 2013). A vida
social dos artefatos podem forjar quem somos e como somos, pois as pessoas atribuem
autonomia a eles para operar. Tornam-se entidades que possuem agência engendrando a si
mesmos e o mundo onde atuam.
Transversalizamos a história do Carnaval de Salvador com Souza (2006) Cadena (2014) e
Aragão (2017), ressaltando algumas notas para essa análise. O Carnaval de Salvador, no final
do século 19 e durante a primeira metade do 20 se consolida na rua, organizado por grupos
populares, mesmo com as proibições de 1905 pelo poder Público tentando sufocar a exibição
dos costumes africanos. Durante os anos 1950, o trio elétrico traz nova dimensão a essa festa
popular de rua, possibilitando as primeiras transações empresariais e comerciais, empresas
baianas investem nessa inovação vislumbrando possibilidades de retorno.
Durante os anos 1960 a revigoração dos blocos afro, através das organizações do povo afro
descendente, inova os caminhos da festa criando representações de uma baianidade que será
tomada por ações mercadológicas, principalmente do mercado fonográfico e do turismo. Essas
afirmações de etnicidade reacendem as questões raciais no Brasil e amplia a diversidade cultural
trazida para o Carnaval. Mais adiante atuarão como organizações que vão promover gestões
mercadológicas rentabilizando sua imagem e produtos. (SOUZA, p.20).
No final da década o movimento tropicalista reverbera esse artefato como uma manifestação de
rua embalada pelo clamor “...atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu...”, em âmbito
nacional, possibilitando que a festa popular soteropolitana vá se configurando num
enquadramento mercantil de maiores proporções. Com os blocos de trios na década de 1980,
ocorre [...]um processo de inovação no Carnaval baiano, tanto na implementação de mudanças
físicas e tecnológicas no trio elétrico, quanto na gestão empresarial dos blocos, caracterizando
cada vez mais o Carnaval de Salvador como negócio [...] (SOUZA, 2006, p.21). A vinculação
desses blocos à produtoras artísticas e a elementos da cultura afro descendente consolidam o
mercado local da festa e engendram símbolos e significados de baianidade. Blocos, trios,
bandas, artistas, eventos, franquias, micaretas pelo interior do estado, comércio de abadás,
patrocínios robustos de marcas e empresas também robustas no mercado passam a compor as
estratégias de gestão de grupos que controlam o Carnaval de Salvador. A performance
mercantil dos [...] blocos de trio vão introduzir novamente uma hierarquia social na ocupação
do espaço público, tendo em vista o caráter de segmentação que estes blocos proporcionam,
uma vez que os trios elétricos estão, agora, dentro das cordas [...](ídem). A vida do Carnaval de
Salvador configura-se na década de 1990 como “terra onde as pessoas não nascem, estreiam”!
Instala-se na região um potente mercado fonográfico que se formata para além dos
enquadramentos da produção cultural do eixo Rio-São Paulo (RUBIM, 2000, p. 85, apud
SOUZA, 2006, p 22) e a “Axé Music” se consolida projetando a festa baiana como um mega
evento de dimensões mundializadas. Mesmo com a ação planejada do Poder Público para esse
artefato cultural, não há receita para um evento dessas proporções estreitando parcerias para o
financiamento e o loteamento da festa, da cidade, das calçadas pelo financiamento das mega
empresas privadas.
Os significados do carnaval como festa do povo, maior festa popular do planeta, terra da
felicidade, no carnaval da Bahia tudo pode, festa da diversidade, vão sendo engendrados em
lastros da lógica do capital, criando, inventando uma baianidade que passa a definir os baianos,
os soteropolitanos, numa quase “ditadura da felicidade”. Agenciam esse artefato como
entretenimento para determinado discurso e o próprio sítio onde atuam. O Carnaval de Salvador
é provido de uma história, de uma biografia social nos movimentos de sua circulação social,
histórica, política cultural entretecendo humanos, coisas e contextos.
Rubim (2000, p. 86) defende as inúmeras possibilidades a serem exploradas
mercadologicamente nesse evento. Com esse argumento e para além dele pensamos a vida
social do Carnaval de Salvador nesse momento atual trazendo o que ele aponta como 3 vertentes
da “indústria cultural” da festa [...] a presença e a valorização da cultura negra, o trio elétrico e
a axé music. A combinação destes três fenômenos constitui a identidade do estado,
intensamente reforçada por campanhas promocionais [...] que atribuem vida própria para gerar
significados não só ao Carnaval, como a Salvador.
Para além de toda especulação na comercialização de produtos culturais na lógica de mercado,
movimentando significativamente a economia formal e informal e inventando uma maneira
baiana de ser, a festa é potencial geradora de ressentimentos para quem não pode consumir a
materialidade desses significados por sobreviver fora das cordas, fora dos camarotes, na
condição existencial de pipoca cotidiana. Pensamos que essas pedagogias culturais formam
baianos e não baianos dentro e principalmente, fora das pedagogias institucionalizadas
academicamente. Compreendemos o Carnaval de Salvador como um texto da cidade e que,
portanto, pode ser concebido como um currículo, uma possibilidade de currículo vivo.
Para entendermos o carnaval de Salvador como possibilidade de currículo articulamos três
ferramentas conceituais: pedagogias culturais do tempo presente (COSTA e ANDRADE,
2015), insurgências curriculares (TEIXEIRA NETO, 2014) e cidades educadoras (BONAFÉ,
2017 e SARLO, 2009).
A mundialização vivida intensamente na maioria das sociedades contemporâneas provoca
alterações na noção de pedagogia, não se limitando a entende-la apenas como práticas escolares
evidenciadas institucionalmente. A complexificação do campo passa a ocorrer através de
pesquisas e análises que concebem a pedagogia enredada em significações culturais e políticas.
Essa aproximação com os Estudos Culturais ampliou possibilidades de discussões e teorização
problematizadoras da conexão entre modos educativos e artefatos culturais (COSTA e
ANDRADE, 2015). Nessa perspectiva pensamos que nem tudo o que ocorre em processos
pedagógicos são definidos por práticas pedagógicas evidenciadas em educação escolar.
Formação e educação operam em inúmeros locais para além das escolas pois, zonas
pedagógicas são arenas onde o poder se organiza e é exercido, cinema, novelas, propaganda,
notícias midiáticas, games, bibliotecas, brinquedos, entre outros (STEINBERG, 1997, p.102).
Os espetáculos do carnaval configuram-se como símbolos de um novo alfabeto do qual não se
pode fugir: trios, blocos, abadás e luxuosos camarotes apontam para uma urgente reflexão –
existe uma escola viva na cidade, praticando pedagogias culturais.
.
Pedagogias Culturais do Tempo Presente constitui-se num potente ferramental conceitual para
pensarmos e problematizarmos engendramentos que formam sujeitos para determinados
discursos e significados hegemônicos, ampliando diálogos seminais da educação com
diferentes áreas.
Essa perspectiva nos ajuda ainda, agora com Beatriz Sarlo (2009) propondo a hibridização entre
educação e comunicação, a pensar as cidades como mídias. Nelas circulam mercadorias
definidoras de maneiras de uso da própria cidade produzindo alterações que definem e
redefinem o espaço público como por exemplo, bairros temáticos, outdoors, graffitis,
ambulantes, feiras étnicas e temáticas, festas e, em nosso caso, o Carnaval de Salvador.
Nessa mesma direção, Jaume Martínez Bonafé (2017), da Universidade de Valencia, propõe
explorarmos a perspectiva de cidade praticando currículo, pois ela é produtora de significados
que nos assujeitam da mesma maneira como as mídias. Essa proposição de currículo está para
além das escolas e pode ser forjado/plasmado através das múltiplas praticas culturais e
experiências de vivenciar o cotidiano. São outros olhares para a cidade e para os
engendramentos que nos interpelam ao habitarmos esses espaços que devem ser públicos.
Esse pesquisador convoca agenciadores que não atuam necessariamente em educação para
interpretarmos os significados dos projetos de cidade que permitimos ocorrer; evidencia o
engajamento de comunicadores sociais, urbanistas, vereadores, prefeitos, comerciantes, e nós
ampliamos com ambulantes, coletivos sociais, minorias sociais nas questões de gênero,
sexualidade, raça, etnia, elites, camadas médias e pobres do centro e da periferia, entre outros,
para interpretar os “textos da cidade” e como eles estão nos formando - infâncias, juventudes e
adultos. Interagir com essas pedagogias é fundante para alterações e intervenções que desvelem
quem escreve esses textos da cidade e como eles se tornam hegemônicos. Analisar a cidade
como currículo é articular experiências, práticas formadoras, significados e acesso a
materialidades para compreendermo-nos como implicados nessas culturas. Afirma Bonafé
(2017) que dessa maneira nos damos conta de quais significados são forjados na cidade e
enxergamos as diferentes cidades que existem em seu interior, concebidas pelos modelos de
seus diferentes grupos de habitantes, em especial os agenciadores do poder público e grupos
mercantis interessados em engendrar tipos específicos de cidade para determinados discursos.
Para Bonafé [...] o currículo está na rua e devemos investigá-lo [...] entender o que significam
as grandes avenidas, os centros comerciais e as praças; qual o significado para as crianças ou
para as pessoas mais velhas, para os homens ou mulheres, para negros e para os brancos [...]
(BONAFÉ, 2017) E para nós, desvelar e desconstruir um tipo de carnaval, uma determinada
“festa da alegria” que se apropria com as empresas patrocinadoras dos direitos de circulação
dos cidadãos definindo quem pode participar do loteamento camarotizado e abadaificado
vendido como a maior festa popular do planeta e inventando uma baianidade centrada na
alegria infinita do carnaval.
O carnaval de salvador, apesar dos engendramentos do poder público com grandes empresas
do mercado em anos seguidos e de algumas alternativas para a massa dos arrabaldes da
opulência, ampliada nesse ano de 2017, é uma insurgência curricular (TEIXEIRA NETO,
2015). É uma possibilidade de currículo-vivo, pulsante, contingente, em acontecimentos e
momentos que vazam e explodem as fronteiras das prescrições e planejamentos, perturbadores
da previsibilidade e do controle.
Interagir com o Carnaval soteropolitano como artefato cultural através dessa ferramenta
conceitual nos ajuda a problematizá-lo, compreendo-o como provocador de lutas e negociações
por significados culturais no universo sedutor imagético-midiático-tecnológico, que engendra
jogos de verdade e opera poderes de representação umbigoide, autocentrada, que ensina, educa
e forja sujeitos. Essa maneira de pensar currículo traça rota de escape que subverte a ordem
hegemônica, autoritária, impositiva e consumista de significados da existência líquida
[...] pois acolhe a ambivalência e propõe urgência de lidarmos criticamente com os
dispositivos de subjetivação dessas sociedades líquidas, tratando sobre como estamos
educando e temos sido educados, sobre como somos interpelados por pedagogias da
cultura do tempo presente e nos tornamos sujeitos de um tipo específico, convocados
por textos culturais que nos assujeitam, que formatam o mundo, nos subjetivando
através de pedagogias para o consumismo de artefatos culturais que transformam tudo
em mercadoria, “da natureza ao nosso inconsciente” e, ao mesmo tempo,
ambivalentemente, interações, nessas e com essas pedagogias, para desestabilizações,
insubordinações, subversões, desgovernos, desencaixes, para outras, ainda mais
novas, maneiras de nos compreendermos e de nos tornar aquilo que podemos ser no
acontecimento nas contingências do espaço/tempo[...] (TEIXEIRA NETO, 2017).
Afirmamos que essa festa é uma das múltiplas, complexas e ambivalentes tecnologias culturais
que operam a forja de sujeitos, e o mais grave, operam políticas de ressentimentos para quem
não pode consumir o pertencimento a esses significados de ‘festa da alegria’ oferecido pelos
engendramentos das empresas que os financiam e do poder público que o organiza e engendra
em detrimento de eternas demandas, sempre urgentes da cidade.
A maneira como evento é engendrado permite que tenhamos acesso ao melhor e ao pior dos
mundos, se pudermos ou não comprar o que é oferecido. Essa lógica é definida pela matriz
mercantilista sem possibilidade de intervenções. As vidas que importam estão nos camarotes e
dentro das cordas na avenida. As vidas que não importam estão, não só fora das cordas mas na
precariedade do modelo, nas calçadas, meio fios com seus isopores e famílias no chorume, no
caldo fétido eliminado por todos que consomem a festa da alegria.
Para nos ajudar a pensar ressentimento nessa proposição fomos à Nietzsche. O filósofo assevera
em sua Genealogia da Moral (3a. parte, §15, 2009) que o que deprime os humanos é a paixão
do ressentimento, pois [...] A descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de
entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie
[...] e esse ressentimento é menos uma reação mecânica do que uma vontade de poder que opera
e quer tornar-se hegemônica. Esse assujeitamento infesto torna-se um força de rancor, vingança
e fraqueza. Antônio Edmilson Paschoal (2008) explica-nos que o filósofo alemão tratou do
ressentimento em duas dissertações da obra em questão. Na primeira o ressentimento se assenta
numa [...] fraqueza fisiológica e na rancorosa sede de vingança diante do “inimigo mal” [...] e
ela é individual impedindo o sujeito de reagir por sentir-se vítima. Na segunda dissertação, e é
o que aqui nos interessa, ela se torna coletiva, passa para o campo social por ser criada uma
“moral do ressentimento”. Ampliando um pouco mais a questão do ressentimento como moral,
o historiador Marc Ferro (2009), preconiza que tanto no indivíduo quanto no coletivo social a
origem do ressentimento é uma úlcera traumática, o vitimado, impotente, não consegue reagir
[...] rumina sua vingança. que não pode executar e o atormenta sem trégua, até explodir [...]. A
potência do reavivar o trauma passado se sobrepõe ao esquecimento, impedindo cisão entre
passado e presente fazendo com que o medo longevo não cicatrize e transfigure indivíduos em
ameaças. “O ressentimento não tem pátria”.
No Carnaval de Salvador tenta-se invizibilizar ressentimentos com a produção de significados
de “carnaval do povo”, na ‘terra da felicidade”! Portanto, “sorria, você está na Bahia”.
Partindo desse pressuposto, acreditamos que o carnaval de Salvador pode apresentar grande
possibilidades para pensarmos e problematizarmos processos de exclusão e ressentimentos.
Salvador representa e representa-se em face de uma festa internacional, mobilizadora das
múltiplas instâncias do Estado – da segurança pública até leitos de hospitais. O espaço
metaforiza-se em instância de aprendizagem, reveladora das engrenagens e dos obstáculos da
plena cidadania para os excluídos, expulsos do centro da festa, dos ambientes higienizados dos
ricos camarotes que invadem o espaço público, sem qualquer intimidação, com a “força da
grana que ergue e destrói coisas belas”.
A cidade cede o seu fluxo para um negócio de bilhões – blocos, ricos camarotes e uma polícia
que maltrata quem não é convidado “vip”. Apesar da geração de possibilidades para operários
e ambulantes sazonalmente, as condições são precárias e a exclusão reverbera ressentimento
daqueles que estão fora das cordas, à margem, e não usufruem amplamente da festa.
As ruas de Salvador parecem tomadas por uma antiga lutas de classes que emerge dos
romances de um bom baiano, Jorge Amado, em sua fase do Romance de formação da
consciência revolucionária, no qual se apropria da tradição do romance de aprendizagem para
situá-lo no nível das classes populares no Brasil dos anos 30. Quando em suas obras afirmava
que a reconciliação entre o indivíduo e o mundo social não pode e nem deve ser um simples
acomodamento, nem muito menos uma harmonia preestabelecida, sendo o personagem forçado
a procurá-la à custa de difíceis combates e de penosas vagabundagens, ao mesmo tempo em
que deve estar, contudo, em condições de a alcançar. Vê-se o espetáculo da orfandade cívica,
mesclada com raiva, confusão urbana e depredação da cidade, uma cultura privatista, própria
da sociedade competitiva e individualista. Pedagogias culturais e pautas formativas como
currículo vivo e insurgente, rotas de fuga dos significados hegemônicos dessa festa, ampliando
possibilidades de reconfigurá-la para mais acesso e distribuição de oportunidades à todos os
cidadãos.
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